sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Tempo de memórias em José Ribamar Garcia




                                                        Cunha e Silva Filho


          Depois do sucesso de Filhos  da mãe  gentil (Litteris Editora, Rio de Janeiro,  2011),  e do bom  acolhimento, sobretudo no Piauí,   de Contos da minha  terra (Nova Aliança, Teresina, PI,    2012, 196 p.),o  contista, o romancista e cronista   piauiense  José Ribamar  Garcia lança seu mais recente  livro,  de título  enigmático com certo tom   lírico-metafórico, E depois, o  trem (Litteris Editora, Rio de Janeiro, 2015.166 p.).
       Desta vez,  não foi  buscar  sua  criatividade  nos gêneros  em que   mais  produziu sua  pena. Os tempos  passaram. Estamos  à altura dos quinze anos  do   século  21. O  autor   já provou que  tinha    fôlego  para  dar continuidade à sua vida literária,  aos  seus projetos de produção  em idade  mais  madura,  já tendo alcançado boas  décadas   de vida, quer dizer,  aquela  fase existencial que, segundo  o grande crítico  Álvaro Lins (1912-1970)  se encontra com  maior  equipamento    tanto   de experiência  acumulada   quanto   de domínio  da linguagem  para  uma   incursão  em  novo  gênero, o das  memórias,  gênero  de natureza  estrutural  algo  híbrida, porque  se aproxima   e se imbrica  com  outros  assemelhados em  alguns   pontos  comuns: a confissão,  a autobiografia, o diário.
        Essa espécie de forma  literária remonta  à literatura  egípcia antiga, penetrou em todas as literaturas   do Ocidente e, para simplificar,  no   domínio da  língua  portuguesa,   foi fértil em Portugal e tem  bons exemplos no  Brasil. Praticaram-na escritores   como Joaquim  Nabuco, Taunay,   Humberto de Campos, com as suas MemóriasMemórias  inacabadas, que li  ainda em Teresina,   Medeiros de Albuquerque,    Álvaro  Moreyra,    Gilberto  Amado Graciliano  Ramos, Rodrigo  Otávio, Pedro Nava, entre  outros.
     A extensão  das memórias  varia  muito de  acordo com  o temperamento  do escritor, a sua disposição  para  narrá-las,   o seu estilo   de escolha  de fatos, lembranças  e acontecimentos  que mais se  lhe  insinuaram no  espírito.
     Os relatos   que se fixaram  em E depois, o trem, exigiram, a meu  ver,  do  autor   um  esforço  cuidadoso de seu  estilo   objetivo,   sintético,  ágil  conhecido  de quem  se acostumou  com  a sua   ficção vívida,  visual,  movimentada, traços  que  o distinguem como  um  escritor  que  constrói seu texto  com  a determinação,   no fundo  estilístico-composicional, de  não ultrapassar  em  excessos  de palavras, mas  armar   sua  exposição ou  o seu  relato  na justa medida   de precisão  fática, visual e estético-emotiva.  
  O memorialista   não  cansa o leitor,  não o enfastia  com   o que seja   dispensável. Sabe dosar o seu quinhão  de  reminiscências e vai  naquelas que  não poderiam  absolutamente  deixar  despercebidas  da história  de sua vida.  Por outras  palavras,   contenta o leitor com um texto   onde cabe tanto a emoção,   a tragédia  quanto   uma  boa dose de humor.
  A arrumação de suas  recordações,  gratas  ou  ingratas,  obedece  a um tempo  não-linear. De um parágrafo  a outro,  vem  o relato  de uma   fato  novo ou de uma   reflexão  que  lhe determinam, no  plano  literário,  a sua  visão de vida  dos homens,  dos fatos  e das  instituições.
    O que releva  considerar  numa   resenha  como  esta  são os  pontos  centrais  de suas memórias:  a  de dar conta   de sua vida  desde as mais remotas   lembranças  da infância  no seio da família: fala  de si como  criança  travessa e irrequieta,  mas viva  e observadora.
    Fala  do pai, seu  grande  ídolo,  fala de sua mãe,  a sempre amada   Dedé,  relata   sua  formação escolar em Teresina, fala de sua família  em geral,  de seus  antepassados mais  próximos,  da sua  mudança  para o Rio de Janeiro aos quatorze anos, de seu  ingresso na universidade  para cursar Direito, da sua formatura de estudante  universitário  pobre que nem dinheiro tinha para  pagar  as despesas  que lhe cabiam  para a colação  de grau.
      Alude aos seus muitos  percalços   vividos  por um adolescente  desejoso de conquistar o seu espaço com dignidade,   garra  e sabedoria na  cidade  do  Rio de Janeiro em tempos difíceis de ditadura  militar. Por sinal,  Garcia, como o autor desta resenha,   atravessou todo  o  período da ditadura, porém  ele, já como  estudante de Direito,  prestou  depoimento  a propósito do assassinato do  estudante  paraense  Edson Luís  Lima Souto, que causou  consternação nacional, ou seja,  o  memorialista  se tornou, assim,   parte da história  brasileira no que tange ao  incidente  da morte de Edson Luís Lima  Souto.
       O assassinato  desse jovem de  17 anos, após a invasão  policial  do restaurante de estudantes   secundários  e universitários  Calabouço, em fins de marco de 1968,  foi o ponto  alto das manifestações  estudantis  contra  a repressão da Ditadura Militar, culminando com  a chamada  passeata dos Cem mil pelo centro da cidade.    
      O memorialista  revela um dado  pouco  conhecido  sobre  o estudante  morto  por policiais. O jovem morto fora  transformado por gente da esquerda, conforme  anota o memorialista, em  “estudante”  meramente para  fins   de reforçar  a opinião  pública   de que um estudante  do  restaurante Calabouço  fora  covardemente   fuzilado  por um  policial. Cito as  palavras do  memorialista  a este respeito: “Quando viram  que o morto era o 'paraense,’ imediatamente preencheram uma ficha de inscrição do curso de Madureza com o nome dele, sem os dados pessoais, ignorados  até então.” (p.119). Garcia  presenciou  todo  o desenrolar daquele fatídico dia e ainda  prestara   declarações ao jornal  O Globo no ano de 1968. Na verdade,  declara  Garcia,  Edson  Luís era apenas um jovem  que frequentava  o Calabouço e ali fazia  “pequenos  biscates.”
   Faz referência a Caryl Chessman, escritor americano, condenado  à cadeira  elétrica e finalmente executado.   Na cela escreveu  alguns livros   que se tornaram famosos  na  época. A leitura  daquele autor, segundo  Garcia,  despertou  nele, no início da adolescência em Teresina,    a vontade de se tornar escritor.
    As memórias de Garcia são as de um  jovem que,  sem favor  algum,  foi  um vitorioso tanto  na profissão    que escolheu, a advocacia,  quanto  no campo da Literatura;  as duas  atividades que  o absorveram  sempre.
   Às vezes,  tenho a sensação de que não estou lendo apenas  as  lembranças   de Garcia, e sim o autor  ficcionalizando-as  em algumas  partes  do livro,  o qual tem   tantas  vinculações com o romance de formação, também chamado de Bildunsgroman ou Künstlerroman E, na realidade,  quem  conhece  sua  obra   publicada,   percebe  bem  que  nele a ficção  de alguns  livros   mantém  fortes liames    factuais  com  essas  memórias  ora   dadas ao  público e mesmo são por ele   próprio  reconhecidas  quando,  no final de seu  texto,  explica, à maneira  de  Manuel  Bandeira em  O Itinerário de Pasárgda,  os  objetivos  que o levaram  a  tematizar    situações  da vida  humana, o que vem  corroborar  o fato de que   o conjunto de sua obra  em parte  está  fortemente  associado  a   aspectos autobiográficos. Ora,  tais   subsídios  dados  pelo  próprio autor tem  grande significado  para o  crítico  literário, já que a  crítica   literária  nunca  esgota as suas  escavações  analíticas.
  O autor  se saiu  bem em duas vertentes de seu  percurso até hoje:  a)  relata  com  competência   a sua  caminhada  de   advogado e neste sentido  nos dá  informações  valiosas   quanto a suas atitudes e ao seu   dinamismo    de experiência advocatícia;b) narra  de  forma muitas vezes admirável   fatos de sua vida  pessoal e familiar. Não há quem  não se comova  com  as passagens em que fala  de  seus  pais, sobretudo de sua  mãe, a Dedé,  figura sempre  presente  e extremamente querida  e amada  por toda a família  Garcia.
    A passagem  da doença   que a acometeu e a levou  à morte  é um  texto de nobreza,    de amor,  de grandeza de um  filho  para com a mãe. Um trecho  de sua página dedicada  à narração das  últimas horas de sua  mãe, Dedé,  merece  a citação seguinte: “Nada tão pungente quanto  a expressão  nunca mais” (p.134).
    Garcia  é exemplo vivo  de  um filho extremado,    para quem   o amor à mãe só podemos  entender   no plano   altamente  espiritualizado. Para os irmãos, os    parentes em geral,  há sempre uma nota  de  sentimento de  solidariedade  e de amor. Dos seus filhos,   fala  como pai  superiormente  dedicado  -    uma espécie de pai que  todos   queríamos  ter   em vida.   Bom filho, pai  grandioso e   advogado   que, combinando  a vocação   do Direito com a da  Literatura,  se completa como  homem e individualidade.
     As  memórias  do autor fazem  convergir  vários  planos:  o existencial, o afetivo,   o da amizade, o da  generosidade, o da gratidão, o da coragem,  o da determinação  para  colimar   seus  projetos  de vida profissional  e literariamente.
   Vale a pena, para concluir   esta resenha,   constatar  um  fato:  estas memórias  testemunham a figura de um  homem  visceralmente  amante da vida,   entendida  em  suas múltiplas circunstâncias. O amor  à natureza,  às viagens,  à terra natal,  ao país, o amor  à vida em toda a sua  plenitude, contraditoriamente  não   por  crenças   religiosas. Que contradição! Define-se como não apegado  a credo  religioso, mas, por outro lado, para quem  o conhece com  maior   intimidade,  Garcia  é daqueles   homens  que  têm  um  profundo   sentimento   da emoção,  da beleza artística,  da  beleza moral  e é um  amigo  das  horas  dos desesperos, um solidário  com  o ser humano e,  para completar-lhe a figura  humana,  um   homem  de bem  que,  no entanto,  não    se dobra  às injustiças, sejam  individuais,   sejam  coletivas.  
   “E depois, o trem é uma obra  de lutas,    de  renúncias,  de  desejos   de  atingir  os valores mais   prezados   pela  humanidade: a liberdade,  a justiça, a felicidade  que  deveria  ter todo   ser que habita  o nosso  planeta.Um adendo:  na leitura  desta edição   identifiquei alguns senões  que escaparam à revisão, como,  por exemplo,  sinal da crase  onde não há necessidade.Louve-se  a beleza da capa e o bom  texto  da orelha assinado  por Antenor  Rego Filho  tanto quanto  o   pequeno e bem  redigido texto da contracapa 

Cunha e Silva Filho é crítico  literário e Pós-Doutor  em  Literatura  Comparada  pela UFRJ.

       


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