quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A RAZÃO ESTÁ NO MEIO, NÃO NOS JULGAMENTOS







                                                           Cunha e Silva Filho


           Quem diz que ele foi grandioso, herói,  líder mundial  conspícuo, não está sendo imparcial, Fidel Castro (1926-2016), no meu entender,  só fez três coisas  importantes na idílica  ilha  de Cuba: 1) livrar o pequeno país do jugo  do ditador, que, primeiro, foi  presidente eleito,  Fulgencio Batista (1901-1973),  uma joguete nas mãos dos norte-americanos  que transformou  Cuba num  grande lupanar   visitado por turistas, sobretudo  norte-americanos; 2) desenvolveu  um  louvável  sistema de saúde  pública,   se bem que,  no  interior,   esse setor  era negligenciado. Só se fazia eficiente na área  urbana; 3)  reduziu a quase zero o índice de analfabetismo. Alguém poderia  negar  esses feitos   de grande alcance  social? Ninguém, nem os seus opositores.
         No entanto,  nem tudo são flores.  Há um lado pernicioso  nos seus longos  anos  de comandante  geral dos cubanos. Seria o outro lado da sua personalidade carismática, que  é ter-se  batido contra a ditadura  do  seu antecessor e haver prometido  direcionar  seu governo  a um sistema político   aberto,  democrático e com liberdade de expressão e locomoção. Formado em direito,  logo que  conquistou  o poder,  esqueceu   o passado. As promessas  e a magia do poder   o tornaram mais um ditador,  alguém que  se pôs  na mesma condição  do antecessor se entendermos   que o termo  “ditador”  ainda  conserva o mesmo  sentido de um  governante tirano,  autoritário, autocrático, enfeixando em suas mãos todo o  poder  acima  das leis e dos direitos inalienáveis  do ser humano,  que é ter  o direito  de  divergir,  de discordar.  As promessas de fazer Cuba um país  livre e com sistema de governo  de alternância de poder periódica, consoante   fazem as nações minimamente democráticas, foram  olvidadas, tornaram-se  papel  queimado,  viraram cinzas.
        A ditadura  predominou,  as dissidências foram sufocadas, seja  pelo  paredón (fuzilamento), seja  pelas masmorras, às quais foram  mandados os políticos   que se lhe  tornaram adversários ou desafetos inimigos da revolução  castrista, alguns  deles  antigos  companheiros  da luta  revolucionária  que  culminou  com a queda do    ditador  Fulgencio em 1959.
         Fidel Castro,  portanto,  não pode ser  rotulado de  ícone   e libertário digno  de ser exemplo para outros  países  que almejem  a mesma  posição e esquema   político que caracterizou  a   duradoura  ditadura  cubana. Se olharmos  com  isenção  a política cubana e seus feitos econômicos, o seu desenvolvimento industrial,  a condição  do povão,  vemos  facilmente que  o país  não cresceu durante  meio  século  de  regime discricionário   e conduzido com mão de ferro. 
        Com as devidas  diferenças histórico-culturais, o Brasil  sob o governo  petista, sobretudo no  primeiro mandato do presidente Lula,   modificou, ninguém pode negar,  alguns  hábitos  de  governança  arcaica  e elitista,  em relação  às condições  do povão. Houve  progresso  social. Mas,  isso  não  é suficiente  para    exaltarmos   o lulopetismo,   de vez que, do outro lado da moeda, esse governo, falazmente   dito  da “esquerda,”   cometeu  e deixou  cometer  os  mais   aviltantes   escândalos  de corrupção de que já se teve notícia  na História do Brasil com  uma administração   caracterizada pelo contumaz  jogo espúrio da  propina   e pelos desvios  do dinheiro  público.  Isso tudo  resultando  no deplorável  estado  de nossas finanças  públicas   que atingiram    níveis  de bancarrota,  repercutindo até hoje com  estados brasileiros  sofrendo  as consequências deletérias do que  o governo federal fez de errado.
        O que torna respeitável um governo   é a sua transparência  ética,  suas decisões   calcadas na decência  e  proteção   de seus ativos,  de seus gastos  controlados  e nas  suas realizações  a serviço  de uma sociedade  mais justa O petismo  passou  muito ao largo de toda essa ética  fundamental  à grandeza de um nação. Por isso, caiuO  que norteou   a plataforma   de governo  elaborada pelos seus  ideólogos foi, com o tempo,  desvirtuando de seus objetivos  cívicos iniciais.  O mesmo, voltando a Fidel Castro,  poderia   dizer  dessa figura de ditador hiperbolicamente  exaltada  pelos seus  admiradores  aqui e fora do país, sobretudo no meio acadêmico universitário.público.
          A meu ver,  Fidel Castro, senhor absoluto do poder  de Cuba,  foi, ao contrário,   infeliz e   um mau estrategista que só  infelicitou e  atrasou o país quanto ao  seu   crescimento  econômico   e em outros setores, a começar  do regime  político   ali  implantado, regime este que só  trouxe àquela sociedade dissabores e uma vida  apertada e humilde. Se tivesse tido maior visão política, a despeito dos pronunciamentos fatigantes, e habilidade   diplomática,  teria  feito  aberturas  políticas em seu  governo e  organizado  o país   de forma independente   e sem ser  servil  aos Estados Unidos.
          Se o tivesse feito,  não teria  sofrido  o injusto   embargo  americano vigorante até hoje. Faltou-lhe tato, apesar  das várias situações dramáticas  pelas quais passou  o seu  longo percurso de ditador. Sua miopia de não   se ter  atualizado como  político, ainda que  impulsionado  pelo socialismo real  superado de estofo  soviético, foi o seu erro palmar. Enquanto  países comunistas como a China   absorveram  as vantagens  do  capitalismo  em sua economia,  Fidel Castro  ainda  vivia  repetindo, ao longa de décadas,  a sua cantilena  contra o que  dizia  ser o  imperialismo americano.
         Essa posição  casmurra  tanto  prejudicou   a sua imagem quanto   o desenvolvimento de Cuba. Projetar  os destinos  da  bela ilha caribenha não me  está nos  interesses de observador da cena  política  internacional,  mas  pode-se  tentar  um palpite: Cuba,  no futuro não muito distante,   encontrará  o caminho   da liberdade de expressão  e das divergências  sem  polarizações ou  recursos à violência política. 
       Para finalizar estas considerações, existe um dado  sombrio e contraditório  dessa figura tão  incensada  pela esquerda, que me deixa  perplexo. Segundo dados da Forbes,  Fidel  Castro  era um   homem  milionário. Como explicar que um ditador  milionário  venha a falar   de melhoria  de seu povo  e ao mesmo  tempo se dizia  socialista ou marxista?  Então, seria a vez de indagar: o seu  socialismo só servia para si mesmo, sua família, sua nomenklatura e para  uso externo com finalidades  midiáticas?


               


sexta-feira, 25 de novembro de 2016

"Paradeiro", de Geovane Fernandes Monteiro: uma estreia e uma promessa








                                   Cunha e Silva Filho

     Escrever sobre um obra de estreia de um jovem ficcionista torna a  responsabilidade do crítico  ainda bem maior do que escrever sobre um autor já conhecido e bem  analisado  pela crítica. Desta vez, tenho diante de mim o livro de contos Paradeiro[1]  do piauiense Geovane Fernandes Monteiro.
      Segundo breves dados biobibliográficos  fornecidos no final   do pequeno  volume de contos, o autor, formado em Letras,  escreve também  poesia,  crônicas, artigos e já tem a seu favor alguns prêmios  conquistados fora do Piauí. Fez parte de várias coletâneas pelo país afora, o que é bom sinal  de que o ficcionista pretende mesmo  dar continuidade à sua  produção  e enfileirar-se ao número elevado de outros  jovens  autores  que serão acrescentados  à produção  ficcional  brasileira. O Piauí, quer-me parecer,  já vai  aumentando, ao contrário do que havia no passado com o predomínio de poetas,   substancialmente  o número de ficcionistas na contemporaneidade, de tal sorte que  muitos  escapam  ao conhecimento  de quem  faz  crítica literária, o que é, no mínimo,  natural nas condições hoje oferecidas a esta  atividade que, no passado, foi muito intensa em nosso  vida literária. 
     Para um  estreante, devem-se  acentuar de início alguns  pontos fundamentais de construção ficcional nele evidentes: seu domínio  narrativo, seu poder  descritivo, sua boa  dose de imaginação e sua forte tendência de fundir   a prosa e a poesia de molde a resultar  num texto que envolve  o leitor  num  espaço e tempo  tendentes  a um mundo ficcional  regido  pela força do interioridade do que  o mundo  empírico não é capaz de  dar conta.
      O que a leitura dos seus contos suscita é aquilo que, em poesia, se chama de estranhamento, os formalistas russos  denominam de ostranenie,[2]i.e., desfamiliarização ou desautomatização  dos modos  comuns  pelos quais  percebemos  a realidade e as situações  existenciais. Seu intento é o   de impactar  o leitor. O mundo empírico, a partir desse desvio  literário, assume  uma nova forma  de  “realidade” tanto em  lidar com  o narrador quanto  com a narrativa.  Essa estratégia, no passado, já fora usada por  poetas como Wordsworth (1750-1850)  e Shelley (1792-1822). A vanguarda, na ficção e na poesia,  da mesma maneira fez uso  desse traço linguístico-literário. O mesmo diria da nossa   poesia  modernista  nas suas fases mais   radicais.
        Em Paradeiro tal uso  do estranhamento ocorre não só ao nível  do narrador  mas também  no discurso literário. Ora, ao  utilizar-se de tal estratégia, Geovanne Monteiro  não vai satisfazer  o leitor  habituado ao romance de  corte tradicional,   mais focado  no enredo,  nas peripécias  da narrativa. Desta  forma,  o  horizonte  de recepção da obra  se encolhe para certas faixas  de leitores e não atinge  a maioria. Teoricamente,  se elitiza.
         Outro componente da linguagem que logo  nos chama  atenção é a recorrência  do emprego  da oxímoro ou do paradoxo ao  longo dos  contos.Vejam-se,  por exemplo, “(...) intenso e efêmero,”[3] primeiro conto, “Paradeiro,” da primeira parte da obra, ou “(...) pequenez profunda,”[4] ou estoutro “(...) harmonia da desordem,”[5]conto “Redescobrindo Teresina,” o quarto da primeira parte. Há também na sua linguagem, diria na sua sintaxe literária,   um recurso  bem original, que é o emprego de um sintagma no qual  o adjetivo e o substantivo  guardam um  inusitada combinação  de efeito antinômico a fim de configurar  um  estado  mental ou emocional de uma personagem, segundo se constata nos exemplos “(...) em difícil doçura,”[6] conto “Paradeiro”; “(...) severidade paciente;”[7] “(...) contradição animada;”[8] “(...) pobre  superioridade,”[9] conto “Redescobrindo Teresina.”      
          Tal feição conduz a narrativa  a exigir do leitor  uma constante  reflexão diante de frases em tom sentencioso,aforístico, hermetizando o discurso  literário da mesma  maneira  que,  na poesia contemporânea ou nas antigas vanguardas  do início do século  passado, a   descodificação torna-se antes mais  sentida do que explicitada, como se estivéssemos em pleno estado característico da poesia simbolista, guardadas as proporções,com a conhecida  recomendação  de Paul Verlaine (1844-1896): “sugerir sempre, nomear nunca.”    
         A sensação que passam ao leitor os contos de  Geovane Monteiro  é a de um  mundo ficcional  poetizado ou metaforizado  tanto no sentido  dos sentimentos  bons  quanto  maus ou indeterminados.
         O livro, segundo  aludi acima, se divide em duas partes, ambas com intenções bastante desarticuladoras: 1) “Histórias mal  contadas ou entre o medo e a saudade”. Esta se compõe de quatro contos, o primeiro dos quais  dá título à obra; 2) “De volta ao esboço ou fica comigo.” Reúne três contos.
        Há que considerar, na compreensão geral  dos contos,  o valor  das parataxes relativas à primeira parte da obra,  usadas  pelo autor, com citações de escritores universais, Dostoiévski (1821-1881), Lao Tsé (605 a.C-531 a. C.) e Fernando Pessoa (1888-1935); na segunda parte do volume, são citados, dois brasileiros  de peso, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)  e João Guimarães Rosa (1908-1967) e um estrangeiro, o famoso  Franz Kafka (1883-1924).
        O curioso e ao mesmo tempo  relevante  é o fato de  que em todos aqueles autores  nomeados, sem dúvida um  exemplo de “isotopia narrativa”[10] convergindo, é claro,  para a unidade temática  da obra por inteiro instaurada pelos termos “caminho,” “paradeiro”(que aparece mais de uma vez  na obra), ou equivalentes, “regressam, saída,”extraviados,” “chegada,”  “retorno,” “travessia” Propositalmente ou não, esses termos fazem parte dos enunciados dos parataxes ou epígrafes. presentes, segundo  referi antes, no livro. Por falar em parataxes,  não se deve esquecer  que o autor, no  início da obra,  com sua  maneira desconcertante de escrever, inclui uma nota prévia ao leitor, a qual  corrobora  a natureza estético-composicional  de  seus contos  no livro, sob o título “Aos outros”:Este livro esteve melhor escrito quando da falta de história tão fácil de contar. Apenas leitores inconscientes de sua escrita salvariam minha literatura. Este livro é minha pior bondade, pois – sem paradeiros – descubro o caminho.[11]
   
        Na   análise  destes contos, há que assinalar  em todos eles o componente  estrutural  do enredo, ou de uma trama, que, na  obra,  recebem um tratamento  "contra-ideológico" no que concerne às narrativas   tradicionais lineares ou mesmo  não lineares.
        Paradeiro persegue algum enredo? Conta uma  história? Contém ações? Sim, contudo de forma  subvertida. Assim se dá no primeiro  conto, “Paradeiro,”  uma história que fala de um  homem velho,   já vencido pelo cansaço da vida e do seu passado, Antônio Soares Monteiro. Seu presente é a sua relação com  os filhos, suas netas.  Sua vida consiste em tentar se equilibrar entre as memórias do passado no sítio e a sua pálida  vida presente  de idoso e divorciado.
       O narrador deste conto não  deseja apenas situar a figura do velho  Monteiro no espaço familiar e no  espaço exterior, da rua,  dos conhecidos,  das conversas. O que mais interessa ao narrador  é a vida interior  da personagem  nuclear, captar-lhe os anseios na fase de declínio vital,   as  boas lembranças,  as frustrações e o seu destino  humano e comum.
       Mais um elemento  a se acrescer  a esta personagem  típica do homem  do  interior é a sua  forma de aguardar o derradeiro dia  da vida,  com  a esperança  na vinda de Cristo. A sua morte não se manifesta direta na matéria narrativa.
     Ela vem obliquamente, graças a um   recurso  que, no conto se  repete, não agora com a intenção puramente de se valer da fé, mas com  o propósito de fundir  hedonismo  e alusão bíblica frente à sociedade do espetáculo tendo, por melhor ilustração o esvaziamento de valores positivos, o Big Brother Brazil  que vai  aparecer no  derradeiro conto do livro, “Travessia.”[12] Sobre este conto, voltarei a comentar nas páginas finais  deste estudo.
   No segundo conto, “Dona Maria,” o  narrador-protagonista, na fase adulta,  rememora o seu convívio, quando menino,com uma velha  viúva atravessando  os anos crepusculares de uma vida  simples,  cheia de lições a transmitir ao menino e   que decida, depois,   mudar  de lugar s fim de morar com os filhos até seus últimos dias. O que flagra este conto é a questão  mais uma vez da velhice e de seus percalços. 
      O terceiro conto, “O segredo da vida,” retrata psicologicamente os momentos decisivos de jovem Ada, pessoa simples,  trabalhadora, habitante de um bairro periférico. Os instantes do drama  pessoal mais intensos são  o  de pagar a passagem ao cobrador.  Este é um  ato simples e corriqueiro  de uma passageira  passar pela roleta, porém, no relato,  adquire contornos   de ordem pessoal e moral diante da situação  psicológica da personagem num ambiente fechado de um  ônibus  lotado de passageiros e insinuações. 
       O estar no ônibus era uma forma também  de pensar  fora daqueles limites  do carro e até pensar numa possível maneira de ser feliz dentro ou fora do veículo.  Verdadeira sondagem subterrânea na alma de uma jovem  pobre. Sobressalto e epifania. Alegria e dor. Fantasias de uma vida melhor, confortável   e lembranças   passadas.O ônibus  como metáfora do mundo  interior  intenso de uma  personagem presa à vida e às suas  surpresas e limitações.  Ada,  o nome da passageira, é, sim,  um poço fundo de vida interior. 
         Após descer do ônibus, dirige-se para  a sua casa. Toda esse monotonia de um vida  sem  horizontes no cotidiano urbano assume um alto sentido  do  drama  existencial   inescapável  nos seus segredos e nas suas finalidades de existir no anonimato.
       “Redescobrindo Teresina,” o quarto  conto,  narra a história de um personagem  conhecido apenas pelas iniciais de JS  (alusão kafkiana?),  esperado por um amigo num bar  sem luxo, numa noite de um sábado teresinense. O evolver da narrativa  bate na tecla  da espera do amigo que nunca   chega.
        Enquanto aguarda a chegada do  amigo, o mundo interior de JS ressurge forte e avassalador, indo às  recordações  de Água Branca, cidadezinha  piauiense,  onde viveram ele e  o amigo.  Agora, no presente da narrativa,  estavam ambos  em Teresina,  um cidade já crescida,  desconhecida,   que oferecia   perigos  e novidades.Já eram  estudantes  de universidade. No meio  de um gole de cerveja,  o espaço ao redor  quebrava  algum silêncio com um  música e  os movimentos  de um  jogo de bingo.
       Todo o conto  é essa espera que não chega,mas que  desperta a abertura para o  insondável da  existência humana e para a solidão.
      Até agora,  se vê que a atmosfera dos contos de Geovane Monteiro  é invadida  pela reflexão de  estofo filosófico, de questionamentos e tentativas de  interpretar os sinais da convivência humana,  sobretudo no  plano  familiar  e da amizade.   
        São narrativa pontuadas da “vaguidão,” de silêncios, de medos, de perigos  e de inquietudes  abissais. Ao analisar   estes contos,me vem à mente  algum   modo de  narrar  e de  olhar para o humano e o existencial  de  Clarice  Lispector (1925-1977), ficcionista cuja narrativa mergulha  densamente na contemplação e análise   da vida  e no destino de seus personagens, segundo a perspectiva  de uma certa  hesitação, de  mistérios, ambiguidades,  conceituações metafísicas, silêncios e indefinições,  ou seja,  de uma inconclusa  procura de caminhos,  num movimentar-se  sem fim,   propiciando ao leitor aquela sensação do texto  beirando  o poético e o dramático   da condição  do indivíduo no mundo.
      Um literatura em desespero,  em sofreguidão, em luta interior  contra  o vago e o indecifrável.Na ficção de autor piauiense, só consigo vislumbrar algo  parecido em O.G. Rego de Carvalho (1930-2013) no que tange ao mundo  interior, sombrio  e indevassável de alguns  personagens.
     O texto  se faz sensível,  ao leitor, mas não se lhe entrega de bandeja. Nesta  direção, é significativo, do ponto de vista  metaficional, o seguinte trecho que aparece no conto “A chuva,” que, adiante comento:”Há encantos em não desamparar  o desconhecido, hei de dominá-lo? Se o desafio é a falta de desfecho, o desconhecido é uma revelação.”[13]
         No conto “O alto da montanha,” o tema, de conotação visivelmente simbólica, faz girar seu eixo no desejo estético da personagem que aspira a encontrar a “beleza.” Esta é a sua busca: desentranhar  o belo no que lhe seja possível. É uma narrativa plena de sortilégios. Na procura por  nomear  o que fosse belo, no seu deambular  pelas ruas,  ao mesmo  tempo  se misturavam   sentimentos de liberdade,  de autobeleza   alcançada caso fosse relacionada a outrem,  até que uma amiga lhe oferece   de presente uma “pedra.” Ora, de posse desse objeto, a personagem inicia a sua perquirição  existencial cheia de contradições  e de aporias, tanto  quanto existem em alguns autores, por sinal  o citado Fernando Pessoa.
       Segundo o monumental  Dicionário de símbolos de Jean  Chevalier e Alain Gheerbrant, a pedra, entre outras  sentidos, está relacionada com a alma. A “pedra bruta” se considerava ainda como "símbolo  da liberdade.”[14] No Arcadismo,  o topos da “pedra” está muito  presente no poeta   Manuel da Costa (1729-1789)). Segundo Antonio Candido,  para aquele  poeta:
                
                                                        (...)
a presença da rocha aponta nele para um  anseio profundo de encontrar alicerce,ponto básico de referência que a impregnação da  infância e adolescência  o levam a buscar  no elemento característico da paisagem  natal.”[15]

        Recorde-se também o controvertido  poema de Carlos Drummond de Andrade “No meio do caminho”[16] aqui citado apenas na primeira  linha do verso:”No meio do caminho havia uma pedra...”
       No conto “A chuva” tem-se, sem dúvida,  o ponto talvez mais  evidente da capacidade de o autor  construir  uma narrativa  sem mácula, uma pequena obra-prima no meio de bons contos. O que dizer desse conto? Somente encontro uma definição: é pura poesia. Latejar de sons e palavras poderosamente  tematizando o fenômeno da chuva ressoando nos poros  da existência.O ritmo frenético,uma  enxurrada  harmoniosa  de enunciados  lírico,  num canto  à natureza  tendo por  elemento  nuclear   a “água” – fonte da  existência e equilíbrio na Terra.
          O eu do narrador  se espraia por todos os cantos de um espaço  indefinido. Fala de si e dos multifários contornos  da Natureza-Mãe abrangendo  todo um vasto movimento da paisagem  humana e da força da natureza no seu dinamismo natural e irreprimível,    construindo um caleidoscópio atravessado  pelos corpos, pelos objetos e pelos espíritos dos homens diante dos fenômenos naturais.
        Se há catarse do trágico pode-se asseverar que o há  igualmente no lirismo desta narrativa, na exaltação  assombrosa  dos movimentos,  das mutações,  das ondulações, do solo, do ar, dos ventos,   dos mares, e da “alma,” termo  que aparece reincidente na narrativa  destes contos surpreendentes e, a meu ver,  muito bem  elaborados, elaborados com  plena consciência  estética: “Viu o adeus da amiga no perigo de uma bondade. Ela obedeceu a seus mistérios.”[17]
       Atinge, finalmente, este  pequeno volume o  derradeiro   conto, “Travessia.”  Essa narrativa  retoma, em muitos traços temáticos a notação autoficcional do primeiro conto, a que, de resto,  não fiz  claramente alguma  alusão. Suas referências se alicerçam nas raízes  familiares  do autor e no forte  tom  rememorativo  da figura do velho Monteiro.  Só que no  conto  inicial,  o narrador  é de terceira pessoa, ao passo que, no conto final,  o narrado é de primeira  pessoa. O conto se desenvolve em seções, ao todo,  nove, sendo as últimas formadas  de pequenos  enunciados.
     Entretanto,  é uma conto  independente ainda que  retomando  aspectos  semelhantes do  primeiro conto  do volume. Tem-se, agora,  as lembranças de um adulto  que remontam aos  treze anos. Fala da infância, do início da adolescência, do sentimento do amor juvenil, da competição  pelo  mesmo  ser amoroso, dos sobressaltos, dos medos, das  incompreensões nunca   aclaradas ainda que   pelo distanciamento temporal e amadurecimento do adulto. Tanto é que o narrador, aqui e ali,  recorre à palavra “vagueza” ou suas  derivadas  ou sinônimas (e isso  vale praticamente para o livro todo).      
      O conto  oscila entre o passado e o presente do narrador. Ou seja, as recordações  se tornam  novamente vivas na elucidação do presente do jovem adulto da Teresina  moderna. 
     Durante o fechamento de um sinal de trânsito, no seu carro,  passa em revista  as mais  enternecidas  passagens de sua infância e adolescência no interior, Água Branca,  que, a caminho do trabalho, na cidade de Teresina,  já com  traços de  cidade grande.
    Neste vaivém de reminiscências e sobressaltos  existenciais,  o jovem adulto retorna ao presente tão ao logo  abre o sinal de trânsito. Suas reflexões, sempre  pontuadas pelos elucubrações de  natureza  existencial e vincadas de frases  sentenciosas,  conceituais, se concentra numa espécie de  surda denúncia  de modos e estilos   da vida  moderna, vida pautada pelos meios eletrônicos, pelo sensacionalismo  das mídias,  pelo  universos  virtual. Seu tom é de franca   crítica  à vulgaridade  da sociedade  de espetáculosdisfarces  do marketing e da publicidade,  espaço artístico sem sentido   e vazio.
    A narrativa reveste, então, ares de  montagem,  de  fusão  de realidades  artificiais. O exemplo mais contundente é sua  clara  referência ao  programa de TV  BBB -  fonte de  hedonismo  oco e disparatado conduzindo  massas amorfas e    alienadas. Parte de uma seção, a quinta  do conto, com evidentes[18] vestígios de pós-modernidade, é uma  contundente  denúncia  a esta nova modernidade  que mistura o profano e o sagrado. Daí o clamor  do narrador  invocando figuras de destaque   do Velho Testamento em tempos apocalípticos. É curiosa a  inclusão nesta  seção de  palavras da língua inglesa  que reforçam  o traço  globalizante das imitações midiáticas  ao mesmo tempo que  são  lembradas cenas de horrores   de guerras e mortos, de refugiados. O  texto,  assim   manejado  habilidosamente pelo narrador,  junta  objetos difusos e díspares,   num caldeirão semântico e conceitual  que nos   desconcerta  pelo impacto que pode ter o  leitor  em termos de comunicação literária.
     Não deixa esta seção de ser um belo libelo (valem a rima e o oximoro, por coincidência em consonância com  o espírito geral deste conto) contra os tempos(templos) atuais em qualquer cidade contaminada pelos big brothers  do capitalismo devorador da multidões famintas de consumo e de entretenimento  que estiolam a inteligência da massa de espectadores de programas  de baixo nível da televisão brasileira,  fenômeno que, aliás,  não é privativo  de nosso país.  
     Os períodos finais desta narrativa retomam  as lembranças  do pai e, como  sempre,   as aporias  prevalecem, dando apenas uma  posta final   na hermenêutica  da obra, que não deixa de ser uma epifania  à criação literária: “Retorno a casas, vivo minha pior bondade, pois – sem paradeiro – descubro o caminho.”[19] Este epílogo, em parte,  já se tinha  anunciado naquela  nota “Aos outros.” [20]
      Uma palavra ao  autor  não deixaria por menos: se  a posse dos segredos da ficção aponta para novas  excursões,  que  o autor, sem se desviar  de seu estilo de escrita,  saiba  também  penetrar  no mundo  ficcional   por caminhos  renovados  que não percam  um  pouco  da chama ardente  das grandes lições  das narrativas da tradição literária.  
     Que,  não abdicando  da originalidade de sua escrita,   possa  seduzir  os leitores a veredas  que ainda acenam  a um bom  enredo a despeito dos experimentalismos  necessários  à oxigenação   da narrativa contemporânea. Basta descer um pouco na escala  do hermetismo e  a estrada do imaginário  lhe estará aberta e lhe será  bem-vinda.



 



[1] MONTEIRO, Geovane Fernandes. Paradeiro. Introdução de Perce Polegatto e orelhas do editor.Teresina: Nova  Aliança, 2016, 104 p,
[2] GRAY,  Matin. A dictionary of literary terms.  2nd edition.  Essex:, EnglandLongman York Press, 1994, p. 206.
[3] MONTEIRO,  Geovanne Fernandes. Idem, p. 23.
[4] Ibidem.  .
[5] Idem, p. 75.
[6] Idem, p.20.
[7] Idem, p.25.
[8] Idem, p. 38.
[9] Idem, p. 71.
[10] Apud  PIRES, Orlando. Manual de teoria e técnica literária. 2 ed.rev. . e ampl.Rio de Janeiro: Presença, 1985, p. 288.
[11] Idem,  p. 13.
[12]  Idem, p. 91 -102.
[13] Idem, p. 84.
[14] CHEVALIER,  Jean  e GHEERBRANT. Alain. Dicionário de símbolos. 8 ed.   rev..  e aumentada. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994. Trad. de Vera da Costa e Silva, Raul de Sá Barbosa, Angela Melim e Lúcia Melim. Verbete "pedra", p. 696..
[15] CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. momentos  decisivos. 6. ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, p. 88-89..

[16] ANDRADE, Carlos Drummond de. “No meio do caminho”. In: __. Poesia e prosa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1983, p. 80

[17] MONTEIRO,  Geovane Fernandes, idem, p. 84..
[18] Idem, p. 99-101.

[19] Idem p, 102.
[20] Ver  p. 13.