quinta-feira, 23 de julho de 2015

Tradução do poema "The road not taken", de Robert Frost (1875-1963)





The road not taken


Two roads diverged in a yellow wood,
And sorry I could not travel both
And be one  traveler, long I stood
And looked down one as far as I could
To where it bent in  the undergrowth;

The took the other, as just as fair,
And having perhaps the better claim,
Because it was grassy and wanted wear;
Though as for  that the passing there
Had worn them really about the same,

And both  that morning  equally lay
In leaves no step had trodden black.
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if I should ever come back,

I shall be telling with a sign
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a a wood, and I__
Took the one less traveled  by,
And that has made all  the difference.


O caminho  eleito

Numa mata amarela dois caminhos havia,
Lamento, os dois seguir não  poderia.
E deles ser o escolhido  solitário viajante, daí um  tempo  esperaria
Examinando um deles tanto quanto  podia
Alcançar a minha vista até onde a curva fazia. na mata rala;

Segui, então, a outra  trilha, tão perfeita quanto  vistosa
Mas quiçá maior fascínio pra mim  exercendo
Visto ser virgem e de ramagem viçosa;
Conquanto o trilhasse como o outro,
Na mesma situação  o deixaria,

Naquela manhã, ambos permaneciam igualmente
Livres, sem nenhuma folhagem pisada e estragada.
Oh, ainda assim, o  primeiro  caminho pra outra vez deixei!
Posto que ciente  estivesse dos rumos de um caminho,
Dúvidas pairavam se algum dia  voltaria.

Suspirando, tudo isso direi
Em algum  lugar daqui a muitos e muitos anos:
Dois  caminhos havia numa mata e eu__
Resolvi seguir o menos  palmilhado.
Esse foi de tudo o divisor.


                                               (Trad. de Cunha e Silva Filho)
.



terça-feira, 21 de julho de 2015

Extremos que se tocam: política e violência no Brasil








                                                                      Cunha  e Silva Filho



           Aviso aos leitores: este texto não é um ensaio nem um  estudo  de especialista. É, antes,  de um observador dos fatos que acontecem em meu país e para os quais só aspiro a contribuir para lançar algumas  ideias com vistas à melhoria  de nossa sociedade.
Afastado há dias de temas  sociais, retomo  agora  temas que estão intimamente  interligados  no meio  brasileiro: as questões da  política  e da violência. Numa e noutra  há pontos  convergentes   que se equivalem, que se aproximam e são praticamente semelhantes se levar em conta componentes como  caráter  do  povo brasileiro,  condição  social  degradada  da população  e a famigerada   impunidade.
Creio que  o noticiário  da política  nacional,  mesmo  visto  pelas chamadas  das manchetes de jornais,  não é nada  abonador à imagem da situação – agônica -  em que  partidos  em geral e, sobretudo o PT, nos envolveram  e, o que é pior,  nos   envolveram  à nossa revelia.
As lutas intra-partidárias ou interpartidárias, ora  semelham a uma comédia, ora a uma tragédia  grega. A violência de parte a parte serve a um  propósito: confundir  as consciências alienadas  da maior parte da sociedade.O poder  delegado  aos  políticos  só é legítimo  porque  alguém,   sem  comprometimento   político algum,  por vezes por mera  farra ou molecagem, elemento  carnavalizador  do  votante  brasileiro,  vai às urnas  de forma  compulsória e vota  em  candidatos  sem a mínima   condição de  representar  o povo, e aí temos os  humoristas de segunda  classe, os artistas  oportunistas (até rimou), os esportistas   aproveitadores de seu passado de glórias  e de mau-caratismo. Seria isso  representação lídima de um  povo?
Não,  isso nunca  foi nem será  pleito eleitoral   verdadeiro, mas uma farsa  cooptada, consciente ou  inconscientemente, pelo  próprio  povo desunido,  dividido  em classes e,  assim,  presa fácil  do “reinado”  dos demagogos e dos politiqueiros de longa  e  breve data.
Por outro lado,  o  país  se modernizou. Funciona  até bem  em alguns setores  que até nos causa  espécie. O país é outro, se informatizou,   tem shoppings  espalhados  em muitas  partes  ao longo de seu  território. Os shoppings se tornaram uma espécie de segundo lar  do brasileiro. Desta  forma,  nos dá a impressão de que  vivemos bem no meio de  tanta   suntuosidade,  riqueza,  produtos sofisticados de comunicação  instantânea.
Os restaurantes de classe média, nos fins de semana,  sempre se encontram  lotados de gente com apetite pantagruélico. As bebidas  rolam  pelas goelas abaixo, os carros de luxo   desfilam pelas  ruas da alta   burguesia. A ilusão de ótica  nos dá a impressão de que estamos num mundo paradisíaco, num Éden, não  o bíblico,  mas o  do hedonismo  exibicionista,  uma afronta,  de certa maneira,  às camadas mais  precárias de nossa   sociedade, os merdunchos da vida, os esfolados  pela engrenagem  do capitalismo  mal  assimilado. 
Enquanto isso,  no Planalto,   as lutas  persistem  aguerridas.    Parte da oposição rompe com o governo  petista via presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, o qual, por seu turno,  é acusado de também ter recebido polpuda propina   de empreiteiras. Ou, por outra,   o oposicionismo  pró-governo federal (que confusão dos diabos e ausência de vergonha na cara a um só tempo!)  já não sabe  quem  é quem  no reinado  da luxúria  e da prestidigitação da politicalha.
Pipocam  as denúncias,  as delações   premiadas. Os executivos, com  a burra  cheia de dólares, depositados não sei onde,   surgem  perante os  telespectadores  das TVs ou das páginas dos jornais. Estão mesmo  presos ou apenas não passa  de um palco de encenação simbólica, de um simulacro?  Quero acreditar que não, que as prisões valerão  e serão cumpridas, não nos domicílios  dos acusados, mas atrás das grades para a execração pública e lição aos que  tentarem novas  maquinações   contra o dinheiro   do povo. Isso se as denúncias contra eles forem  realmente comprovadas. Aí sim,  passarei a crer em alguma  coisa séria do Estado Brasileiro e de suas instituições.
Entretanto,   enquanto os sinos  badalarem pedaladas   de reais  dos  governantes   no poder  à busca  voraz  de pecúnia   para  sustentar  a barriga  dos pobres e dos falsos  pobres que se beneficiam   do bolsa-família   e queijandos, manterei  minha  posição  firme  de descrença e de repúdio  contra o governo  petista. O Brasil, por enquanto, me parece caleidoscópico, camaleônico,  macunaímico, banânico,  bruzundanguense, em suma,   uma  miragem  perigosa  no deserto das ações  dos Palácio do Planalto.
Nesse ínterim,  na rua,  nua e crua,   a delinquência corre frouxa e sem medo  da decantada   redução da maioridade. Crimes hediondos são praticados diuturnamente,  notadamente nas grandes  cidades brasileiras, por  adolescentes  bandidos.  Oh, desamparados, coitadinhos,   “filhos” da  injustiça   social que,  no mínimo, em doze anos  de petismo   antropofágico, mistura  princípios  de  democracia de fancaria,  autoritarismo e  esquerdismo caviar.
Falso esquerdismo,  amante  dos louros do neoliberalismo, das viagens a Miami,  Nova Iorque e países  adiantados da Europa e de outros continentes  que estão na moda,  embora,   a todo  instante,   ameaçados do terrorismo  mundial fundamentalista. É a esquerda postiça, mui amiga dos pobres desde que fiquem sempre  pobres  e ganhem  as migalhas  do assistencialismo  populista. Contudo,  é uma “esquerda” que adora os  produtos  do capitalismo,  amam Nova Iorque,  os hotéis sofisticados,  a indumentária   dos milionários,  os carrões de luxo  e  a dolce vita  dos bacanas.”  Só  sociólogos europeus, norte-americanos e mesmo   brasileiros  de gabinetes,  avessos  ao contato com a arraia-miúda, posam de defensores do Lula, político  guindado a segundo  “pai dos pobres” de nossa  combalida Nação. Lula atualmente goza de uma posição  ambígua: a de  ser um  homem  bem  sucedido financeiramente  e de  estender  tudo isso à sua  família ilustre  que ama o doce capitalismo,  cujos frutos  já se multiplicam aos olhos   da patuleia basbaque e analfabeta
Esta a pátria amada  idolatrada, salve, salve que, com tantas evidências,  deixam, incólumes,  pelo menos  dois  responsáveis  pela  ópera-bufa  encenada  desde a guinada do embuste  esquerdizante do   voto  conseguido  às expensas  das  milionárias  propinas  do dinheiro  dos lucros das grandes estatais  através de diretores  nomeados pelo governo   federal  em conluio com grandes  empreiteiras e políticos  do governo   ou de partidos     aliados a ele.Tais  diretores de estatais se tornaram, destarte,      verdadeiros donatários baseados na Petrobrás e   disfarçados de bom-mocismo a serviço do “bem-estar” da Nação brasileira.
          Se no alto da pirâmide exemplos de lisura,  de  dignidade profissional,  de ética   pessoal é moeda  podre,  como  os que  estão na base da pirâmide podem se espelhar na ausência completa de caráter? Ora,  um país assim,  não pode dar certo. Conhecendo a estrutura  parcial  das leis brasileiras permitindo que a impunidade   passe ao largo dos graves  problemas   da violência  crônica  e   crescente  no dia-a-dia da nossa sociedade,  o cidadão  honesto,  contribuinte dos impostos,  vítima dos  juros  estratosféricos  que  funcionam como   se fossem  estelionatos   sob  a proteção  das leis do mercado, vive  sobressaltado de todos os lados, i,e,, vive  por sorte,  por milagre, em cidades   sem  a devida   e necessária  segurança que se espera há anos   das autoridades  responsáveis, tantos nos níveis municipais, estaduais  quanto federal. 
          O país está  hoje sofrendo a pior fase  de violência de toda a história brasileira. Os assassínios cometidos  se tornaram  banalizados. Apenas se noticiam  como dados  estatísticos. Os governos  estaduais e o federal não se importam mais com as matanças  de seres humanos. Assassinam-se pessoas de todas as idades por roubos de bicicletas, de motos, de carros,  de  “saidinhas de bancos,”  de assaltos à propriedade  privada,  de crimes  para compras  de drogas, de crimes no trânsito,  por estupros, seguidos de morte, de meninas  indefesas, de mortes sem motivação, ou seja,  mata-se  só por crueldade.
       Em quase todas  estas situações sumariamente   citadas aqui, sinto que  há um profundo vazio  de  compromisso do governo  federal para equacionar, com urgência  urgentíssima,   o teatro de horrores em que  se atolou o nosso país para  vergonha dos  povos  civilizados. Ainda mal  consigo  acreditar  como um país tão  atraente  turisticamente  como o nosso ainda  encontra   pessoas que viajam. É temeroso viver, agora,  no  Brasil,  sair sozinho a qualquer parte da cidade. Sempre ficamos com a pulga atrás da orelha. Infelizmente,  a população, sobretudo os mais  necessitados,  tem que sair de suas casas e enfrentar  o batente.
        Para os que creem só restam as orações,  os pedidos a Deus   a fim de que nos  poupe  do fantasma  da violência. Para finalizar, que Deus  nos  livre  da camarilha  pela qual é regida  em geral a  política brasileira. Que os órgãos de investigação da  Lava Jato encontrem os culpados da nossa  caótica crise financeira, não obstante intuirmos que não é tão  complicado assim indigitá-los com quase cem  por cento  de certeza.


quarta-feira, 15 de julho de 2015

O milagre, não o suave de Eça de Queiroz





                                                        
                                                                  “Obed é rico e tem servos.”
                                  

Cunha  e Silva Filho



       Chegando ao meu apartamento,  me dei conta  de que  não se encontrava na minha  carteira de dinheiro a minha  identidade. Eu havia  ido à farmácia com a minha mulher  comprar  um remédio.Senti um calafrio como se  tivesse  visto um fantasma.   
         Um fantasma diferente, um   fantasma que  nos provoca  medo e apreensões. Era a quase certeza de que, perdendo um  documento  tão  vital como a identidade, equivaleria a  vislumbrar um série de  problemas  que  iria enfrentar: não poder  fazer uma retirada  de maio  valor no banco,  não poder  abrir um  crediário,  não  poder  irar um  passaporte, não poder  fazer compras com cartão de crédito que exija a comprovação  da identidade  do comprador, enfim,  a perspectiva  de não poder fazer isso tudo  me  deixava arrasado,  apavorado,  perdido  como  uma criança  na multidão. Como iria  provar quem  eu era diante  de um situação que  me obrigasse a exibir a minha  carteira de identidade.
       Neste país chamado  Brasil,   o domínio da burocracia  tem força  de lei. Se você vai a uma repartição  pública e lhe faltar um item  de uma documentação   exigida,  você  fica  travado, de mãos atadas. Um vez, um ministro brasileiro desejou  desburocratizar a máquina  administrativa  do país,  mas tudo foi  debalde. Alguma coisa ele fez, mas o grosso  da mania  da exigência do papelório teima  em ser uma lei consuetudinária. Se não  se tem  tudo  o que se nos pede em matéria  de  documentos,  nada se consegue.
      O atendente  da burocracia fica  até  irado quando alguém  lhe entrega  tudo que lhe foi  pedido a fim de   conseguir alguma coisa de natureza burocrática. Somos uma sociedade cartorial,   tabelionária,   documentária.Até para morrer,  se o de cujus  não estiver  direitinho  com  as exigências  da burocracia para esta difícil  e traumática  passagem  da vida para o  andar  de cima,  ele ficará  em estado de putrefação ou senão  volta  para  a geladeira  dos necrotério.
    A burocracia  ainda tem  fortes elos  com  os tempos  do  Brasil  colonial, das capitanias  hereditárias, dos tempos dos  meirinhos do Rio de Janeiro  joanino. O que neste país  vale é o documento. A palavra  empenhada de nada mais vale. Tudo deve estar  escrito e  chancelado no cartório. Meu reino  pela  burocracia!  - a única  força-motriz que leva este  país  para a frente de não sei de quê...
     Diante de toda  esse calvário, me encontrava  completamente desolado e sem  chão. Onde foi  cair a bendita   identidade? Foi na farmácia? Perdeu-se em casa em alguma pilha de  papéis? Minha mulher me  sugeriu  a possibilidade de voltar à farmácia  a  fim de ver se eu  deixara  caída no chão  a minha  identidade. Então,  a minha pobre  mulher decidiu  ir  novamente à farmácia. Ao chegar lá,  perguntou  a  vendedor com quem  fizera a  compra do remédio se ele por acaso  não  vira uma identidade no chão, ou se um cliente  honesto  a pegara e entregara aos cuidados da farmácia. Qual nada! Ninguém  vira minha identidade. Voltou para casa  desolada.
   Enquanto minha querida cara-metade  estava  na rua para ver se encontrava a minha carteira,  em casa  eu revirava tudo: gavetas,  fichários,  armários,  pastas etc. Tudo fiz para  não ter nenhuma dúvida de que  a identidade não  estava comigo.
  Olhei,  examinei todas as divisões de minha velha  carteira de dinheiro e nada de encontrar a identidade. Meu medo era  que algum  malandro a encontrasse e fizesse algum mal  a mim, ou seja,   retirar a minha foto e, em lugar dela,  colocar a foto de alguém com  alguns  traços   que indicassem pertencer à minha   faixa etária ou,  por outras artimanhas, falsificar meus dados  pessoais,  inclusive  meu CPF, e transferi-los  para  terceiros. Meu pavor  era ser vítima  de um  estelionatário que até poderia usar meus  dados para fins de lavagem de dinheiro,  aposentadorias  falsas ou outras maldades  de que são tão  férteis  esses escroques em plagas basílicas...
   Foi, então, que pensei em São Longuinho, o santo dos que perdem  objetos  e outras  coisas. “Valei-me, meu São Longuinho!Valei-me,  meu São Longuinho!" Esse santo  é tiro e queda. Entretanto,  não desisti de  procurar em outros lugares do apartamento: quartos,  cozinha,  banheiro,  debaixo das cama,  das mesas, onde me fosse possível lobrigar  alguma   ponto do apartamento  em que pudesse  se ocultar a minha identidade.
     Exauridas  todas as minhas  energias, tomamos  minha mulher,  meu filho mais novo e eu uma decisão  para que  os meus receios  se tornassem menos penosos: ir à delegacia do bairro e fazer um  BO (boletim de ocorrência).  Nós três saímos  com passos  largos  em direção a uma  avenida  perto do meu prédio. Atravessamos e ficamos esperando acenar para o primeiro táxi  disponível que surgisse .Passaram  vários  sem  ligarem para o nosso  aceno até que um parou. Indicamos ao motorista  o nosso destino: a delegacia.
   Chegando lá, subindo uma rampa, entramos  no prédio e  nos dirigimos ao balcão de atendimento, atrás do qual havia uma funcionária de semblante amável. Lhe  contei todas as circunstâncias  do dramático incidente  e lhe disse que  desejava fazer  um BO. A funcionária  era  amável, simpática. No momento em que me pediu dados  pessoais consignados na  identidade,  de certa forma  involuntária, retirei minha carteira de dinheiro do bolso direito da calça e foi aí que  percebi um objeto  plástico que  surgiu de uma das partes da carteira. Era a minha identidade. “Milagre!  Milagre!- exclamei  numa alegria  incontida. A funcionária sorriu e entendeu tudo.
       Descemos a rampa. Na calçada, ainda cresceu a minha alegria. Queria compartilhá-la com  todos. Passou  um moço que,  pelos seus  modos de vestir,  via-se  que era um  investigador de polícia. Contei para ele o que ocorrera comigo. Ele mostrou-se receptivo.Nos despedimos e  caminhamos  em direção a outra rua que dava para uma praça.
        No caminho,  com voz embargada de tanta emoção, falei com a minha mulher: “É um milagre! O milagre existe.”  Sem perceber, estava  falando e chorando  baixinho. Nesse instante,  me lembrei  do meu apelo a São Longuinho. Ele me dera  ouvidos, me atendera. Era bem tarde da noite. Numa calçada,  acenamos para  outro táxi. Nele entramos e, com  o coração  esfuziante  de  contentamento,  resumi  o acontecido  para o motorista,  um moço   de fisionomia  bondosa.

        Não fora um grande milagre como  o daquela criança doentinha, pobre,  que procurava  pelo Salvador, o Rabi,   o Messias. No momento em que não esperava,  Jesus anunciou-se a ela:  “_Aqui estou.” O meu  pobre grande   milagre igualmente  se realizou. São Longuinho, que tantas  vezes  invoquei com sucesso,  naquela delegacia se fez  presente e o milagre, mais uma vez,   me convenceu  pela fé. Ó incrédulos,  não duvideis  dos milagres!

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Elmar Carvalho : a toga, a memória e o lirismo


                  


                                                            Cunha e Silva Filho


         
        A carreira do escritor  Elmar Carvalho se divide, a meu ver,  em duas  fases: a de  maior  expressão,  a poesia de vanguarda, que lhe deu  notoriedade e a da sua produção em  prosa  algo  conservadora, mas não anacrônica. A poesia, por enquanto, quero  crer que  possivelmente hoje  a cultive por via indireta,  ou seja, pelo saudável  exercício das leituras.
       Contudo,  ninguém  pode exigir que um  poeta que escreveu obra de  reconhecida  qualidade  estética seja obrigado a produzir  por vontade e desejo alheios. A poesia, como qualquer  obra literária,  não nasce por decreto ou  por injunções legais. Só ao poeta é dada a possibilidade de livremente criar  ou não.
      A criação literária   é um fenômeno  artístico que só medra  como manifestação   natural  da vontade de quem a produz, no tempo que lhe aprouver. O silêncio  poético só aos poetas  pertence. Em consequência,  não temos  o direito de  exigir deles  nada no domínio criativo.
      Ao falar da   prosa de Elmar  Carvalho, me refiro   ao  gênero  ficcional. Por outro lado,  não estou  insinuando que  em outras manifestações da escrita não-ficcional, ele  tenha produzido  obra inferior, porquanto no ensaio não acadêmico, na crítica igualmente não-acadêmica, assim como na crônica   de caráter lírico, dramático  ou lidando com matéria sobrenatural, o poeta Elmar  Carvalho  tem sabido   produzir alguns  textos  de  indiscutível qualidade literária.
     No autor, entretanto,  a poesia se insinua em sua produção  não-poética, i.e.,  o lirismo,  nele permanente  como estratégia de linguagem  de maior   imaginação criadora, não lhe permite  deixar de vez a poesia, ainda que não o queira. Por conseguinte,   no ponto mais alto de sua obra,    continua  poeta e, em segundo plano, o prosador, quer no  ensaio,  na crítica  esporádica e na  ficção. É dentro dessa perspectiva  de abordagem crítica que me volto para comentar-lhe o livro de memórias  recém-editado, Confissões de um  juiz (Teresina: Academia Piauiense de Letras,  2014, 193 p. Prefácio de Reginaldo Miranda).
      Determinadas vidas merecem transformar-se literariamente em memórias em face de  sua  específica trajetória  profissional e pessoal. No exemplo do poeta Elmar Carvalho, pelas circunstâncias  e impactos de sua vida  pessoal e profissional, o recurso do autor  a reproduzir  criativamente   certas partes  significativas de sua vida  não lhe veio  por veleidades  ou exibicionismos  subalternos, mas  para dividir com o leitor  o que de sua   percurso  existencial valeria a pena  ser compartilhado  pelos seus coetâneos.       
   Pode ter sido uma forma de  catarse, pode também  ter sido uma  vontade insopitável  de dar testemunho  da experiência de vida do seu tempo  tanto  na  carreira de magistrado  quanto na de  um homem que enfrentou  os   desafios  e os rigores  provocados  por uma doença que o atingiu por duas vezes e da qual saiu  vitorioso.
   Suas memórias, segundo assinalou no final do prefácio, são “confissões,”   o que  quer dizer que nelas  os  relatos se fizeram a bem da verdade, sem subterfúgios,  sem maquinações.
   Procurou,  assim, a verdade  limpa e desnuda, a que, enfim,  interessa como  lição de vida dividida entre o afeto,  a dor,  a saudade, as perdas, os ganhos  e o pacto com  a literatura  rememorativa,  que se alinha,   desde os primeiros  cronistas  portugueses, aos primeiros historiadores lusos, às primeiras biografias em língua   portuguesa a se interessarem  pelo experiência vivida em  várias situações  da existência humana.
     Aí se incluem os nomes que primeiro  vão  dando um contorno memorialístico  a narrativas   que fizeram história, aí se incluindo os nomes de Garcia de Resende, com  as suas Miscelâneas, e  de Fernão Mendes Pinto  com a sua Peregrinação. A linhagem  se avoluma com o passar dos séculos até chegar  à contemporaneidade.
     O mesmo se poderia   afirmar das primeiras   produções literárias  brasileiras  com acento  memorialístico, desde a carta de Pero  Vaz e Caminha até  aos tempos de hoje, em que o Brasil  pôde contar  com  grandes nomes  de autores de memórias, Joaquim Nabuco,   Gilberto Amado, Érico Veríssimo,  Álvaro Moreira,  Humberto de Campos ate culminar com  o grande memorialista   Pedro Nava.
    No Piauí,   penso que  temos ainda um   quantidade  considerável de  livros de memórias ou autobiografias. Do meu conhecimento, alguns autores já enveredaram  por este  gênero Sem  citar os títulos,  menciono  pelo menos os  autores: H. Dobal, Nasi Castro, Francisco Miguel de Moura,  Eleazar Moura,  Geraldo Almeida Borges, Celso Barros Coelho, Homero Castelo Branco,  José Ribamar Garcia, Assis Fortes, Olemar de Souza Castro e  o autor deste artigo, que acaba de  concluir  um livro de memórias, de título Apenas memórias. 
   Cada livro de memórias singulariza-se por uma traço  particular, por um  escolha geralmente  circunscrita à vida profissional  do autor, que pode ser um médico,  um professor, um escritor  profissional,  um  juiz, um cientista,  um político  um ator, um militar etc. A profissão  compreende as vivências   do memorialista e é a partir delas que  o autor  se alia ao papel do escritor-memorialista. No exemplo de Elmar Carvalho se repte esta  estratégia narrativa neste gênero  literário.
    No poeta Elmar Carvalho, do ponto de vista  profissional,  um ciclo de vivências  se fechou logo que lhe  veio a aposentadoria de juiz. É desse recorte de sua experiência  como juiz  que nele surge a possibilidade de contar  suas memórias. Dessa empreitada se saiu muito bem como  artista da palavra  a serviço das evocações de um juiz que percorre lugares diversos do interior  piauiense, do seu dia-a-dia de julgador de litígios, de conciliador  nos momentos em que era preciso  pesar na balança da justiça  os prós e contras a fim de  dar o veredicto mais  justo  possível ou, como o memorialista  deixa sugerir nos seus relatos, julgar  sempre tendo em vista o lado dos mais fracos.
   Seu percurso  de magistrado se realiza em várias comarcas, cada qual com suas  peculiaridades,   com a sua realidade  própria e com seus  diferentes  problemas. Poder-se-ia dizer,  o juiz Elmar Carvalho é sempre aquele viajante compelido,  por seu ofício,  a mudar  de lugares, a conhecer  outras  pessoas, a conviver  com  o provisório.  
  Poderia  chamar seus relatos de memórias telúricas,  visto que  o juiz com suas “confissões” não perde tempo para ir registrando fatos,  cenas,  paisagens,  natureza  diversa, pessoas  diferentes  que encontrou  em cada  comarca interiorana para a qual era designado.
   A paisagem   interiorana, os costumes,  os hábitos, a vida social,  a vida cultural,  se lhe fixaram  na retentiva. Tal  espólio da memória - “quase dezessete anos de magistratura” -,  se lhe tornaria farto material  de rememoração e   de  análises  instigantes em forma de  livro.
    Confissões de um juiz não se cinge apenas à experiência  técnico-burocrática de um   magistrado-poeta. As memórias se expandem a outras vertentes  de sua  função.   
  O memorialista não é só  o homem da Justiça, mas o cidadão que tem  suas   aspirações  e seu idealismo, além  de sua atuação  de escritor, de cronista,  de ficcionista, de ensaísta que não para de  publicar,  tem seu blog,  vive a vida  intelectual piauiense,  está em sintonia com  o mundo acadêmico e  com a vida literária de seu Estado. Participa  de questões  ambientais,  culturais,  desportistas, como, no caso da primeira,  a da preservação  do rio Parnaíba em páginas   contundentes  de reação  contra os inimigos  da natureza.
  A obra em exame não é só  depositário  de  fatos da vida de um  juiz,  mas  se compõe de textos  pictóricos onde  o estatuto  da linguagem  assume  toda uma força   lírica,  com belas  e comoventes  passagens onde se distingue  o talento  do memorialista  na pintura  da paisagem, da  flora e fauna  piauienses,  como são exemplos  paradigmáticos,  na segunda parte da obra, “Memórias afins,”  passagens de muita  beleza e vigor  descritivo (“Oração  à Vila de São Gonçalo de Regeneração”, p.57-65 “Evocação de Piracuruca,”  p.79-81).
   Porém,   a beleza de alguns textos não se fazem apenas de   paisagens   bem  descritas, mas também de textos alusivos  à condição  da justiça praticada para o bem e à necessidade  da prática da bondade consoante  lemos na seção “Exortação à justiça e à bondade (p.74-77).
   O memorialismo  de Elmar  Carvalho   reúne uma gama de  visões e perspectivas formando um painel  no qual  o autor  fala de  escritores,  pessoas comuns, servidores da justiça,  condição humana, injustiças,   prepotência,  vícios humanos,  erros  da administração  pública,  erros da justiça,  em que nada lhe escapa  ao olhar  de espectador  atento às misérias humanas.
   Outros  temas lhe são caros  nas relembranças,  a sua  participação  de atleta, de goleiro,  a sua  permanência no  Recife a fim de realizar  um curso de monitor  postal.
   Não lhe falta  fortaleza moral  para  reportar-se ao câncer de que foi vitima, da luta  para a sua recuperação e cura, de uma recaída, formando  estes relatos   um ponto algo trágico de sua  caminhada  existencial, felizmente  tendo  superado  tudo  com uma vida  renovada e pronta a seguir  sua travessia  agora mais  empenhada  no  universo  em que talvez  mais  se sente  bem e recompensado, que é o de  produzir literatura.
   Prende-me a atenção, de forma   especial,  por seu sentido  de humanidade, de afeto, e de saudade, a terceira parte das memórias, denominada “Memórias afetivas.” Neste capítulo  o poeta Elmar  despe-se  de qualquer formalismo  de linguagem e  adentra  o mundo  dos sentimentos, contudo, sem pieguismo.
  Discorre  sobre a perda da mãe, da família, da morte precoce e trágica de sua irmã Josélia, de seu amigo   inesquecível,  Zé Henrique,  de seus  antepassados,  da grandeza moral  de seu pai, Miguel Arcângelo, felizmente ainda lhe dando o prazer de seu convívio, da perda inconsolável de sua irmãzinha  Josélia,  falecida, aos quinze anos,   em acidente  de carro, de seus amigos, de seus irmãos e irmãs e last but no least, das mortes de duas cachorrinhas  de estimação, exemplos edificantes  da capacidade  de animais serem tão humanos, tão mais do que  alguns humanos, Belinha e Anita, em textos de  beleza  pungente,  em cujo tempo de leitura  não contive as lágrimas.
 Elmar Carvalho pertence à estirpe de escritores  que não deixam escapar a  conveniência de   entender  a “alma” dos bichos,  como o fazia  tão bem  outro  retratista de animais, o escritor  Guimarães Rosa (1908-1967), com a sua  modelar estória  de profunda  humanidade, “O burrinho pedrês,”  um conto de Sagarana (1946). Assim como  podíamos   citar outros  escritores que deram  estatura de humanidade a animais e bichos,  como   Graciliano Ramos(1892-1953), com a sua cadela  Baleia, de Vidas secas (1938) e o ficcionista  piauiense, Rivanildo Feitosa,  em clave cômico-erótica com a personagem-protagonista,  uma cadela  vira-lata, de nome Sabiá, do romance Reflexões de uma cadela vira-lata (2011)   

  A derradeira parte das Memórias de um juiz se destina ao que chama de “Memória fotográfica.” O bom é que a para cada  foto o autor  preparou pequenos  textos informativos alusivos  às fotos, num total de 29, representativas de  momentos marcantes de sua  vida pessoal, familiar  e profissional. Finalmente,  ao livro  acrescenta uma  quinta parte,  formada de depoimentos  sobre o autor  de figuras da vida cultural  piauiense. As duas  últimas páginas  contêm uma “síntese  biográfica do autor".