sábado, 23 de maio de 2015

Na mesma situação do Velho Lima

            



                                        Cunha e Silva Filho


         Não sei se o leitor mais velho se lembra do personagem  de um conto  de Artur Azevedo (1865-1908), o Lima, funcionário  público do  final do  Segundo Império, que, tendo adoecido gravemente,   embora   não tenha procurado  a ajuda médica, permaneceu em casa durante nove dias, ou seja, a partir da véspera da Proclamação da República  brasileira, acontecida em 15 de novembro de  1889.
       Lima morava no Engenho  de Dentro, subúrbio da ex-Central do Brasil. O tom do conto é inteiramente farsesco e construído  com  extrema  habilidade narrativa.
      Restabeleceu-se   com  simples  “remédios  caseiros,” graças aos cuidados de uma  gorda   mulata que há vinte anos  lhe servia  não só como  cozinheira, mas também  na cama.  No dia 23 do citado mês, Lima   saiu de casa, pegara o trem e fora  trabalhar na sua repartição no Centro do Rio de Janeiro.  
     Para resumir,  Lima não tinha  o costume de ler jornais, nem tampouco aquela  com quem morava.  A República tinha sido proclamada  e, portanto,  derrubado o Império. E o velho Lima  ignorava a radical mudança  do regime  de governo do país.
    Durante a viagem, encontrou-se com  o comendador  Vidal, cumprimentando este pelo  título. Ao responder a saudação, o velho Lima estranhou que Vidal o  tivesse chamado de “cidadão.”  
   A grande  força  caricaturesca do conto  é esse diálogo com o Vidal  e  a permanência  desse estado de quiproquó  que se estabeleceu entre ele o  Vidal.  Lima  passou a  achar    pelo avesso  tudo que lhe respondia o companheiro de viagem de trem.
    Esta situação  equívoca chega a um  ponto em que  o velho Lima  passa a ver nos outros    um comportamento   de loucos. Enquanto  tudo se invertia, Lima  se mantinha convicto  de que ainda  vivia  sob o regime  imperial.    
   Ninguém o conseguia demovê-lo dessa  posição até o desenlace  da narrativa, cuja derradeira cena hilariante fora  a entrada na seção em que  dava expediente. Perguntou ao continuo por que haviam    retirado da parede o retrato de Dom  Pedro II. O contínuo, de forma  desrespeitosa  e  num “tom  lentamente “desdenhoso,”  lhe respondeu:
 “— Ora, cidadão,  que fazia ali a figura de Pedro Banana?”(grifo meu)
“—Pedro Banana! Repetiu  raivoso o velho Lima.” E, sentando-se, pensou com tristeza:
“—Não dou  três  anos para  que isto seja República!
  Pelo visto,  o velho Lima  acertara, mas a um alto  custo de três  anos  de risos e mofas por sua alienação.
     Pois, leitor,  foi assim que, hoje,  lendo  manchetes de O Globo, constato,  após algumas semanas  mergulhado num  projeto de um livro  de memórias, que o país anda   de ponta cabeça. O que vejo: violência descomunal  no Rio de Janeiro e em outras  partes do país,    arrocho do  governo  federal  contra o povo, situação caótica da Universidade  Estadual do Rio de Janeiro,  crescimento do desemprego,   aumento de juros   decretados pelo  governo federal,  ausência do  Ministro da Fazenda para anunciar  os  escorchantes   cortes   em setores  vitais  ao desenvolvimento do país,  educação,  saúde,  transporte, excetuado  a menina dos  ovos de ouro do  PT,  a bolsa-família  - maior  curral eleitoral  petista e, o que é pior,  em ações  tomadas pelo governo, no setor da economia,  que recairão  sobre os costados  do brasileiro.
    Me  pergunto: ainda não se tocaram  as nossas   autoridades que todos  esses  graves  problemas  que estamos atravessando  foram  provocados  pelo  desgoverno petista que nos enganou a todos,  ocultando,  por razões meramente  eleitoreiras a fim de se manter no  poder, que, nos bastidores  do Palácio do Planalto  estavam prestes a explodir  todas  essa bombas  atiradas contra  o  Estado  Brasileiro,  com dois  sucessivos epicentros   de  corrupção  deslavada, o escândalo do  Mensalão e o  da Petrobrás além de outros  que poderão surgir durante  mais  investigações da  Operação  Lava-Jato?  
    Já avaliaram  todos  os bilhões de reais que deveriam  estar  no Erário Público e que  foram  sugados  para os bolsos  de políticos  da situação e de dirigentes  de estatais e empresários    corruptos em conluio com  políticos de partidos  da base de sustentação do governo?
     E o povo nada faz. E a Justiça   até quando   fará  justiça  colocando na cadeia  ladrões da  República? O povo  é como  o brasileiro  que não lê jornais, como  o personagem Velho Lima de Artur  Azevedo, como a sua  serviçal e amásia.
     As raízes da nossa passividade  vêm de longe,  desde a Escravidão, pelo menos. Não imitemos  o velho Lima, estejamos  atentos aos fatos  atuais, lendo, ouvindo, falando,  escrevendo, agindo como cidadãos a quem  a Presidente  Dilma deve satisfações de seus atos   e de seus  erros. Não somos  escravos,  objeto comprado  pelos  poderosos do passado. Queremos liberdade, mudanças  da lei  da maioridade  penal e outros  pleitos  necessários  ao bem-estar  da sociedade.
   Não permitamos que o país  se torne uma tragédia  social, com a morte de inocentes em “cidades esfaqueadas” para usar um título de uma crônica  de Arnaldo Bloch. Por falar em crônicas,  a página de Opinião de O Globo de hoje, dia 23 de maio,  estampa dois artigos sobre a violência, um do cronista Zuenir  Ventura, de resto,  para ser mais  exato, uma  crônica  magnífica,   “Há sangue em cada notícia,” e um artigo,  “A violência do teste de virgindade,”  escrito a quatro mãos, de  Maria Laura Canineu e Phelim Kine.

  O país precisa  despertar os velhos Limas  para  a realidade trágico-grotesca  que nos angustiam  atualmente por todos os lados.

sábado, 16 de maio de 2015

Note to the readers [Nota aos leitores]

 [After the English text below  there is a Portuguese tranlation of it] 



Dear  readers:

           Up to now, I have been publishing  16 texts referring to my memories, by highlighting  the most important  facts of my life, involving  my childhood days in Teresina, State of Piauí, northeastern of Brazil, my moving to Rio de Janeiro in order to  take up a university  course, as well as  reporting a lot of  passages  showing the difficuties  and hardships  I came across in a big  city on  trying to  be successful  in the options I made  personally and  professionally.  
          As I intend to have these memories published  as  a book,  I thought it useful and feasible  to interrupt  this series of  texts. I guess I  have given a good glimpse of the purpose  I  wish  to carry out in terms of   a  period of time ranging , as I said above, from  childhood days,  teen days to adult  life
       
       If they  might serve  useful  to   young  people to  get an idea of how  a self made-man  - as I consider myself to be  -  overcame so many troublesome days, sufferings and injustices,  all  my efforts in putting my memories  to paper  would be worthwhile and would make me glad and rewarded 
        On the other hand,  I will continue  publishing my usual  articles and other different texts  in my blog "As ideias no tempo." 
Thanks kindly, 

Cunha e Silva Filho

Prezados leitores:

Tenho  publicado até agora 16  textos  relativos às minhas memórias, assinalando os mais  relevantes fatos  de minha vida, focalizando a minha infância em Teresina,  estado  do Piauí,  região nordeste, minha transferência  para o Rio de Janeiro  a fim de realizar  estudos universitários, e bem assim  relatando  muitas  passagens  mostrando   as dificuldades  e aflições pelas quais   passei   numa grande urbe na tentativa de  conseguir  sair vitorioso quanto às escolhas  que fiz no campo  pessoal e profissional.


Como pretendo  ver  estas memórias  transformadas em livro, julguei  oportuno e apropriado  interromper esta série de  textos. Presumo que já dei uma boa ideia geral do alcance disso no que concerne ao período  de tempo que  vai,   conforme acentuei acima, da infância, adolescência até à  vida adulta 

Se elas por acaso  forem de alguma  utilidade aos jovens propiciando -lhes compreender como um "self-made man"  - e é assim que me vejo - superou  tantos óbices, sofrimentos e injustiças, então foi  compensador  e agradável todo o meu esforço em  escrevê-las.

Por outro lado, continuarei  escrevendo meus artigos e outros diferentes textos  neste blog.

Com os meus  agradecimentos  efusivos,

Cunha e Silva Filho


quinta-feira, 14 de maio de 2015

Apenas memórias (16)

 Lembranças de parentes, Páginas atrás, mencionei  o nome do  Weyden, um primo  meu, irmão do Wellington e do Norberto,  todos  tinham vindo  para o Rio  à procura de emprego.O último veio  primeiro e foi  morar provisoriamente na casa de uma  tia avó, a tia  Chiquinha,  do lado materno.
     Norberto, depois de alguns empregos mais modestos,  entrou  como  praça  da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Casou-se com a Licinha, a qual, mesmo depois de casada, foi sempre  residente do bairro de Oswaldo Cruz. Teve dois  filhos, um deles falecido  precocemente. Hoje,  Norberto  está  aposentado como oficial  da Polícia Militar.  Tem uma filha médica e dois netos.  É um apaixonado pelo Piauí.   
    O Wellington trabalhava, segundo assinalei anteriormente nestas lembranças,   no  Laboratório Silva Araújo,  no escritório da Avenida Beira-Mar. O emprego fora  arranjado pela minha irmã Nélia, Depois,  regressou  a Teresina. Tornou-se  escrivão  da Polícia Civil  Constituiu família e ainda  mora em Teresina.  
    Tia Chiquinha  morava  também em Oswaldo Cruz no tempo em que vim para o Rio.Wellington,  por pouco tempo,  morou  também com  essa tia,  uma velhinha  bonita, de pele muito branca, alvinha, como se diz no  Piauí. Ela acolhia  sempre os sobrinhos da irmã, a tia Lolosa, apelido afetivo  pelo qual atendia a mãe desses primos.    Quando cheguei ao Rio, o marido dela ainda era vivo. O casal teve muitos filhos.  Me  parece que um só está vivo, o Jurandyr,  conhecido  como Jura, que é solteirão.Tia Chiqinha morava de aluguel. No tempo em que  o casal residia no Piauí,  vivia bem e confortavelmente, mas, no Rio,  sobretudo após a morte do marido,  tia Chiquinha  teve seu padrão de vida reduzido.
    Lolosa, cujo nome verdadeiro era  Aurora  Teixeira e Silva,  foi, na mocidade, uma   mulher  bonita, que conquistou de imediato  o coração do meu tio Luizinho   e com ele se casou. Mais tarde,  modificou  o sobrenome para  Aurora  Cunha e Silva, omitindo o sobrenome “Teixeira,” que, se não erro,  herdara  da parte do pai.  
     Professora  primária diplomada,  ficou  bem conhecida e conceituada por suas qualidades de  professora  em Amarante e Teresina. Inteligente como  era,   tinha  facilidade para escrever  e tinha um espírito elevado. Foi uma grande mãe.  Morava em Teresina,  teve dez filhos, dois deles já falecidos. Tio Luizinho, cujo nome por extenso  era Luís Cunha e Silva, era irmão  de meu pai, o mais novo de três irmãos. Era escrivão de polícia  e, por algum tempo,  saindo de Teresina,  foi  ser delegado  em Palmeirais, município do Piauí.
   Tio Luizinho era  um homem  muito inteligente, lido,  não  obstante  não ter-se formado em curso  superior, assim como o  tio   Enoch, sobre quem adiante  me reportarei. Sabia escrever com  correção, inclusive  por vezes  publicava algum artigo em jornal de Teresina. Amava ouvir o rádio, sobretudo as estações  do Rio de Janeiro da época.Tinha uns olhos  azuis  profundos. Ao deixar Teresina, fui me despedir dele. Se comoveu muito e me desejou  sucessos. Morreu ainda  moço. Na época escrevi para  a tia Lolosa um carta de pêsames  e de consolo. Ela ficou muito feliz pelo meu gesto, de vez que a carta relembrava a figura dele, não em termos formais,  mas como  um ente  amado e querido pela família e amigos.
   Havia outro  tio meu, o mais velho, irmão de meu pai, e de tio Luizinho,  o Enoch  Cunha e Silva,  homem de estatura  baixa, tinha   olhos  verdes. Foi ele quem  cuidou dos negócios de meu avô após o falecimento  dele. Porem, ao que todo  indica,  não tinha muito tino  para os negócios,  o comércio, assim como meu pai e tio Luizinho.
    Pessoa  humana, calma, foi, por mais de uma vez,   prefeito de Amarante e, pelo resto da vida,  foi  fiscal de renda. Pessoa  discreta,   honesta,  de  princípios   firmes. Casou-se  com uma mulher notável  pelo valor  humano,   a tia  Maricô, uma mulher santa,  que só enxergava nos outros  bondade. Tinha belos olhos  verdes e deveria ter sido bela quanto   jovem.
   O casal teve três  filhas:  a Dioneia, a mais velha,  a Valdineia e a Maria Nilza, a mais nova e a mais bela das três,  falecida ainda  moça. Maria  Nilza  era professora,  assim como o é Valdineia, agora aposentada e a  única sobrevivente das três. Quando adolescente,  sentia-me enamorado de Maria  Nilza, talvez por sua  beleza,  sua doçura,  sua feminilidade. Era mais velha do que eu. Como me  sentia bem sempre que   ela aparecia em casa vinda do Colégio das Irmãs, na Avenida  bela pessoalmente  histórico-amorosa  Frei Serafim.
   Todas nasceram com  olhos verdes, belíssimos. Tio Enoch ainda teve dois filhos: o Valdo e o Netinho. Não me  lembro se o Valdo  tinha  olhos verdes,  contudo, é possível que fossem. O primeiro  nasceu com  um problema  de nervos. Ficara  interno  no Meduna,  hospital psiquiátrico, em Teresina dirigido  pelo  Dr. Clidenor de Freitas Santos,  que pertenceu à Academia Piauiense de Letras e era homem  ilustrado. Uma vez,  fui  visitar   o Valdo com a minha prima, Maria Nilza, sempre linda.   
  Netinho, cujo nome completo era Manuel Aires Neto, possuía olhos muito azuis, tinha  ótima aparência, e um  palestra   fascinante. Era um  cronista ambulante de Amarante.  Sabia  tudo sobre a sua época, o passado de Amarante,  a vida da política  do município, a vida  íntima das pessoas, as aventuras  donjuanescas da rapaziada da época. Era um arquivo  vivo  de informações  sobre a sociedade de Amarante.    


    Na minha infância e até no princípio da adolescência,  tio Enoch, quando  vinha a Teresina, sempre visitava meu pai. Conversavam  por horas. Os dois se davam muito bem. Sua chegada à minha casa era sempre aguardada  com  ansiedade e tinha  um motivo  maior  que fazia a alegria da  criançada. Sempre  ao se despedir,  abria a carteira e dela tirava uma  boa   quantia em dinheiro, segundo ele,  para repartir entre nós. Quanta alegria para nós!
    Meu pai e seus irmãos  nasceram em berço de ouro, em Amarante,  onde meu avô era comerciante  de peso e um homem respeitado  por todos.  Segundo me contou meu pai,  o meu avô  Manuel  Alexandre e Silva, hoje nome de rua em Amarante,  era de estatura baixa,  tinha olhos  azuis(alguém me falou, não sei se papai ou foi dedução minha ao ver-lhe a fato de família) uma  aparência solene num rosto  bonito com uma bela cabeleira. Foi assim que o vi  numa foto  de família, ao lado de  vovó  Candinha.
   Papai me dizia que meu avô foi um pai extremoso. Gostava de  tomar banho no rio Parnaíba, à noite, num tempo que me dá inveja. Vovó Candinha,  ou melhor,  Cândida  da Cunha e Silva.  Foi a única avó que conheci ainda viva. Tinha eu três anos e estava perto de sair  de Amarante, porquanto meus pais foram  residir em Teresina.
    Em Teresinha, muito velhinha, já prestes a se despedir  desse “vale de lágrimas, a sua figura vem  à  minha lembrança como  algo esfumado, com alguém  que não tive o  prazer  mais  intenso de beijar a fronte querida, os cabelos branquinhos,  a voz  carinhosa, cheia de cuidados comigo, conforme eu  narrei em parte numa  crônica do meu  livro  As ideia no tempo. (1)Papai me contou  que era descendente de cearenses. Subiu ao Céu  bem  idosa. Me vem agora, à mente   a tarja  preta colocada numa  das mangas  do paletó de meu pai, em sinal de luto. Eu era menino.  Morava na  Rua  24 de Janeiro, Centro de Teresina.
  O Weyden era o mais  próximo  amigo  meu. Companheiro  das aventurosas  romântico-amorosas nas noites de Teresina, cujo  epicentro  era o adro e os fundos  da Igreja de São Benedito e de lá o dom-juanismo  adolescente  partia  para outras  partes da cidade, Cada um  com uma  mocinha  cheia de amor para dar, ainda que fosse por uma noite  só.   
     Éramos como dois irmãos,  primos pelo lado materno e paterno. Weyden  gostava de cantar  em inglês ou  cantar canções de  conhecidos   artistas da época,  todos praticamente  do Rio de Janeiro ou São  Paulo.Tinha bossa também  para fazer  a gente rir das piadas que sabia tanto  contar, me matando de rir, fora as imitações que  fazia de figuras  diversas. Era danado  para encontrar os defeitos físicos dos outros,  contrariando  a lição de Esopo, fabulista grego do século VI a. C e, com esta disposição para brincadeiras  de mau gosto, na minha companhia,  fazíamos as traquinagens,  provocando,  ocultos  pelas janelas ou portas semi-abertas,  quem  passasse por acaso  pela rua. Morria de rir de suas  brincadeiras e de  veia satírica..
    Outro hábito que tinha era  falar em inglês  comigo por onde passássemos – um forma de  esnobismo  ingênuo de adolescentes   sem rebeldia.Mesmo no Rio,  quando estávamos juntos,  falávamos em inglês diante dos balcões de bares do Catete, bairro da Zona Sul do Rio. Os garçons,  ignorantes,  se entreolhavam embasbacados. Dizia o Weyden  que era para passarmos  por gringos, tirando  onda com  as pessoas  que se encontravam  perto de nós.   Ele não tinha tanta fluência, mas dava para se safar porque era  inteligente e  espirituoso.
    No Rio de Janeiro, morando por pouco tempo na casa de tia Chiquinha, Weyden,  por algum tempo,  continuou com a   nossa amizade. Depois, tomou  rumo sozinho,  foi morar na Glória, Rua  Benjamim Constant, zona sul,  bairro bem perto do Centro   do Rio. Conseguiu emprego e nossos  encontros foram se rareando.  Com boa  voz, sempre  esteve  ligado  à atividade de rádio. Tornou-se radialista – suponho -  primeiro em  Goiânia,  onde morou depois que deixou o Rio de Janeiro e, de volta a Teresina,  firmou-se como  um conhecido  radialista e homem  relacionado com a imprensa local.
    Desde adolescente,  demonstrara  ter vocação para o rádio. Uma vez,  acompanhando, em campanha política   o meu pai, candidatos a cargos   políticos e eu, numa cidadezinha do interior do Piauí,  subiu a um improvisado  palco  sobre  um caminhão e discursou  para  os ouvintes que se aglomeravam diante  do carro.
    Discursou, primeiro,   meu pai e, em seguida,  usaram da palavra outros   oradores.  Ocorreu, na ocasião,   um fato pitoresco.  Meu pai me pediu que usasse também da palavra Não aceitei, alegando  ser tímido, encabulado. “O que eu tinha para falar? Nada,”  pensei comigo. Me deixaram de lado,  uma vez que  da minha “oratória” não iria sair nada,  nem que invocássemos  o talento do grande  Demóstenes.  Não tinha assunto nem interesse  em dirigir  algumas  palavras  de agradecimentos  aos que  estavam  formando  uma pequena   assistência. Entretanto, compensei minha timidez participando de um baile de interior, com  dança,  forró e tudo. O bom  foi que havia ali  moças bonitas  para um  breve namoro  de   uma única noite.
    Não toquei ainda na figura de meu avô  materno, cujo nome era Avelino Alves Setúbal. Não o conheci, dado que morrera muito jovem, com  pouco mais de trinta anos. A imagem que dele tenho é de fotos tiradas quando  era um jovem  militar do Exército. Tinha boa altura,  cabelos  meio crespos,  moreno, rosto  fino, e bem apessoado. Diziam ser namorador. Deve ter sido um militar disciplinado,  correto, sério. Sua figura me  faz lembrar, na aparência física, o  meu filho mais novo, o Alexandre, que mora  comigo e é solteiro.
    Por informações colhidas por terceiros,  era descendente de portugueses e, por coincidência, de um pai ou avô  militar que emigraram para o  Brasil. Casou-se com  uma das irmãs de Lolosa, a Cotinha, minha avó materna que, segundo meu pai,  quando  mocinha, era    muito bonita. Vovó Cotinha morreu  de parto muito jovem. Por coincidência, meu  pai,  meninote,  brincara  com ela e mal  previra que, anos depois, se casaria com uma filha  dela, Ivone, a minha mãe. Cotinha,  Lolosa,  tia Chiquinha, e mais duas tias e dois do lado materno que não tinha ainda mencionado,  tia Elira e tia Tudinha, tio Gonçalo e um outro  tio, que foi morar no Rio Grande do Sul, eram irmãos. Tio Dico,  sobre quem  anteriormente  comentei, era outro irmão de  minha avó Cotinha.
  Meu avô Avelino Setúbal  participou da Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo e,  por causa disso,   galgou  a patente de oficial do Exército. Antes era  primeiro sargento. Por uma razão que não me explicaram,  lhe retiram, depois,  o galão de oficial, o que o deixou  profundamente acabrunhado e deve ter concorrido, a meu ver,   para  a sua  morte  precoce.
   Essa afirmação minha  tem um valor apenas de  suposição e não se fundamenta,  pois,  em  dados pesquisados. Contudo, o que me importa  é reafirmar que meu avô materno  era homem digno  e cuidadoso com a família.  Um sinal de seu  espírito empreendedor foi que,  depois de seu falecimento,  deixara  duas ou três casas  em Teresina.
   Logo que Cotinha faleceu,  meu avô teve que cuidar de     mamãe e dos outros  irmãos,  o tio Zequinha, o tio Carlitos, e o tio Cláudio.   Deste  último nem mesmo sei  o sobrenome  que lhe deram os pais adotivos.
 Sentindo-se sozinho e ainda muito  moço,  se uniu maritalmente com a tia  Tudinha e  dessa união  tiveram um filho,  o tio Ivon,, de quem  já falei nestes  relatos. Falecendo meu avô Setúbal,  tia Tudinha  ficou  cuidando de mamãe, de tio  Carlitos, e do tio Ivon.   
        O tio Cláudio, ainda com meu avós vivos,  for entregue bebê a um  família amiga e vizinha do meu  avô O que na verdade aconteceu foi o seguinte: os vizinhos tanto se afeiçoaram   à criança que terminaram  por ficarem  com ela  e a levaram  para o Rio de Janeiro. Entretanto,  esta é a história que me contaram e, na realidade, não sei  se tudo  ocorreu  assim..
     Ainda rapazinhos,  tio Carlitos e tio  Zequinha se mudaram para o Rio  - esta cidade que tanto  atrai os nordestinos  por tantos  motivos:  necessidade de encontrar  trabalho melhor do eu na terra de origem,     espírito   de aventura  dos jovens  desejosos de conhecer uma  metrópole famosa, vontade de se libertar da dependência  da família, entre  .outras  motivações. Há ainda uma razão  estimuladora da migração: outros parentes  que já se encontram  na grande cidade do eixo Rio-São Paulo..Até hoje, isso  acontece. O tio  Ivon foi também  para o Rio de Janeiro. de sorte que só minha mãe ficou com  tia Tudinha.
    Perto de morrer,  me parece que  meu avô Avelino  se casou  no católico com tia  Tudinha.Tudo leva a crer que ela já o admirava  mesmo  antes  quando  minha avó Cotinha  estava casada com  o meu avô.
   Tudinha não era bonita como minha avó. Magrinha,  pele branca,  cabelos lisos, altura média, junto com  tia Elira, foram pra o Rio de Janeiro morar algum tempo.Isso depois que tio  Carlitos e tio Zequinha já tinham  ido também para o Rio de Janeiro. Mamãe,  àquela altura,   estava  casada com meu pai e morando em Amarante.
  Tia Elira era uma mulher  de valor,  trabalhadora,  habilidosa,  tornou-se costureira de mão cheia. Como fosse excelente  costurei,  fazia amizades com  gente  de posse e terminava  costurando para essa gente. Costura e também  se hospedava na casa das clientes  que lhe eram  mais  próximas. 
    Era uma mulher  educada,  fina,  vestia-se bem,  tinha   elegância e muito charme, sobretudo quando  usava  óculos escuros  da moda. .Certo dia,  meu pai  me segredou  que tia Elira,  quando mocinha,  tinha um a atração  por ele.Porém, tudo foi muito discreto  e foi esquecido com o tempo, sobretudo  porque ela devotava   muito carinho à  minha mãe. Sempre que podia,  vinha a Teresina e os sobrinhos sabiam  que  presentes  eram coisa certa  e líquida. Sempre  elegante,  bem  penteada, com aquela  pele delicada de  morena clara, tia Elira   me cativou e senti muito   ao saber que,  já velhinha,  tinha morrido.
  Ambas,   após muito tempo  morando no Rio, decidiram  regressar  para  Teresina. Primeiro, veio a tia Tudinha, que,  para sobreviver,   conseguiu  um emprego público  como  inspetora  de alunas da Escola Normal  “Antonino  Freire.” Depois, veio  tia Elira. Tia Lolosa, que já estava viúva,  recebeu  ambas as irmãs de braços abertos. Tia Tudinha  era meio  ranzinza,  gostava até de corrigir  o português dos sobrinhos. Eu mesmo  fui  vítima de sua  indiscrição  gramatical. Não gostei. Ela sentiu  no meu olhar. Como no  poema de Bandeira,  todas  estão  “dormindo  profundamente.” (Continua)

(1). Op. cit., p. 30-31

terça-feira, 12 de maio de 2015

Apenas memórias (15)

    


                                            Cunha e Silva Filho



         O ano de  1965, que foi  decisivo  para (1) os meus estudos preparatórios e autodidáticos  com o  objetivo  de entrar para a universidade, me leva a falar  de um  encontro  com alguém  que  iria   ter  um sentido  intenso e definitivo  na minha  vida afetiva e amorosa.
       Estava eu   sentado numa das mesas da Biblioteca “Castro Alves,”  de frente para a entrada, ao lado da qual  ficava  o balcão de informações  com as suas  funcionárias  prontas a atenderem aos  usuários   daquele  ambiente  cercado de livros,   com um acervo  rico nas  áreas de literatura  e de línguas,  além de  obras de referência,  quando de repente  percebi que uma mocinha magrinha,  de olhos  quase  verdes,  de estatura  baixa, pele morena, vestida discretamente  numa  saia  meio  comprida com uma  blusa de tecido leve e também  discreto por dentro,  sentou-se  à minha frente, com um sorriso que não mais  esqueceria. Me  perguntou  sem rodeios,  o que  estudava,  de onde era, e outras  perguntas que   não me vêm mais  à mente  após tantos anos:
    “Você é do Piauí?” “Sim,”  respondi-lhe  com um sorriso  largo e  com certo ar de surpresa.
    “Sim,  sou de Teresina,   estou  me preparando  para o   vestibular  de letras.”
   “Ah, vai  fazer letras, por que não faz outro  curso, mais adequado  para  homens, como  química,  matemática,  engenharia, medicina? No curso de letras só há mais mulher.”
   Lhe  disse que  tinha  vindo para o Rio  fazer medicina, mas larguei  dessa ideia e resolvi  fazer letras, pois me sentia atraído  para os estudos literários. Ela, então,  me cortando a conversa,   me falou que estudava química na  Nacional de Filosofia. 
  “Que bom!, ”   acrescentei.
  Seu nome,  Elza,  Veio do  Piauí, de Teresina e, a princípio,  pensara fazer  enfermagem na Ana  Néri. Foi,  então, que lhe  indaguei: 
  “Se você morava em Teresina, deve ter estudado lá e deve ter conhecido  o meu  pai, o professor Cunha e Silva." 
 “Francisco,  que coincidência,  seu pai  foi meu professor  na Escola  Normal “Antonino  Freire!” 
  A conversa foi crescendo e se tornando  cada vez mais  interessante. Notei que a jovem  dava  mostras de que  sentia  uma  atração  mais forte por mim. Não nego que me agradou  muito  aquele encontro por acaso. Da biblioteca,  saímos  praticamente namorando.Foi um namoro fulminante. Parecia que éramos conhecidos  de longa data
  Soube depois por Elza que ela já me havia   visto  cerca de um ano atrás, sem que eu   percebesse.  Me  contou que, uma vez,  sentada a um dos  bancos de concreto, uma espécie de  pequeno largo, junto  do prédio da Casa d’Italia e  que dava para a Avenida  Antônio Carlos,  de repente viu passar um jovem, seguramente indo  em direção  ao Calabouço.
    Ela  conversava  com uma colega da Nacional de Filosofia e,  dirigindo-se  à colega,  fez a seguinte observação: 
.“Que rapaz  lindo  não é? Ainda  vou  namorar com ele.”
  Este rapaz era eu e, no dia que casualmente  foi à Biblioteca  “Castro Alves,”  acompanhada de uma colega,  se  aproximou  de mim  porque, conforme acentuei acima, já me tinha visto  há meses, e    nunca mais me tinha   visto  desde  aquela  primeira vez  que estava sentada  num  banco ao lado do edifício da Faculdade Nacional de Filosofia.
    Suponho que  o meu sumiço se deveu  a  meros  desencontros  de horários  de minhas idas  ao Calabouço, ou, quem sabe,  o nosso  encontro  real   já estava traçado pela mão da fortuna...
   Páginas atrás, mencionei o nome do  Weyden, um primo  meu, irmão do Wellington e do Norberto,  todos  tinham vindo  para o Rio  à procura de emprego.O último veio  primeiro e foi  morar provisoriamente na casa de uma  tia avó, a tia  Chiquinha,  do lado materno.
    Norberto, depois de alguns empregos mais modestos,  entrou  como  praça da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Casou-se com a Licinha, uma moça que morava e ainda mora   no bairro de Oswaldo Cruz. Teve dois  filhos, um deles falecido  precocemente. Hoje,  Norberto  está  aposentado como oficial  da Polícia Militar.  Tem uma filha médica e dois netos.  É um apaixonado pelo Piauí.   
    O Wellington, trabalhava   no  Laboratório Silva Araújo,  no escritório da Avenida Beira-Mar. O emprego fora  arranjado pela minha irmã Nélia, de que  já  falei  nestas   recordações. Depois,  regressou  a Teresina, tornou-se  escrivão  da Polícia Civil, constituiu família e ainda  mora em Teresina.  
    Tia Chiquinha  morava  também em Oswaldo Cruz no tempo em que vim para o Rio.Wellington,  por pouco tempo,  morou  também com  essa tia,  uma velhinha  bonita, de pele muito branca, alvinha, como se diz no  Piauí. Ela acolhia  sempre os sobrinhos da irmã, a tia Lolosa, apelido afetivo  pelo qual atendia a mãe desses primos.    Quando cheguei ao Rio, o marido dela ainda era vivo. O casal teve muitos filhos.  Me  parece que um só está vivo, o Jurandyr,  conhecido  como Jura. que é solteirão.Tia Chiqinha morava de aluguel. Quando  o casal residia no Piauí,  vivia bem e confortavelmente, mas, no Rio,  sobretudo após a morte do marido,  tia Chiquinha  teve seu padrão de vida reduzido.
    Lolosa, cujo nome verdadeiro era  Aurora  Teixeira e Silva,  foi, na mocidade, uma   mulher  bonita, que conquistou de imediato  o coração do meu tio Luizinho   e com ele se casou. Mais tarde,  modificou  o sobrenome para  Aurora  Cunha e Silva, omitindo o sobrenome “Teixeira,” que, se não erro,  herdara  da parte do pai. Professora  primária diplomada,  ficou  bem conhecida e conceituada por suas qualidades de  professora  em Amarante e Teresina. Inteligente como  era,   tinha  facilidade para escrever  e tinha um espírito elevado. Foi uma grande mãe.  Morava em Teresina,  teve dez filhos, dois deles já falecidos. Tio Luizinho, cujo nome por extenso  era Luís Cunha e Silva, era irmão  de meu pai, o mais novo de três irmãos. Era escrivão de polícia  e, por algum tempo,  saindo de Teresina,  foi  ser delegado  em Palmeirais, município do Piauí.
   Tio Luizinho era  um homem  muito inteligente, lido,  não  obstante  não ter-se formado em curso  superior, assim como o  tio   Enoch, sobre quem adiante  me reportarei. Sabia escrever com  correção, inclusive  por vezes  publicava algum artigo em jornal de Teresina. Amava ouvir o rádio, sobretudo as estações  do Rio de Janeiro da época.Tinha uns olhos  azuis  profundos. Ao deixar Teresina, fui me despedir dele. Se emocionou muito e me desejou  sucessos. Morreu ainda  moço. Na época escrevi para  tia Lolosa um carta de pêsames  e de consolo. Ela ficou muito feliz pelo meu gesto, de vez que a carta relembrava a figura dele, não em termos formais,  mas como  um ente  amado e querido pela família e amigos.
   Havia outro  tio meu, o mais velho, irmão de meu pai, e de tio Luizinho,  o Enoch  Cunha e Silva,  homem de estatura  baixa, tinha   olhos  verdes. Foi ele quem  cuidou dos negócios de meu avô após o falecimento  dele. Porem, ao que todo  indica,  não tinha muito tino  para os negócios,  o comércio, assim como meu pai e tio Luizinho.
    Pessoa  humana, calma, foi, por mais de uma vez,   prefeito de Amarante e, pelo resto da vida,  foi  fiscal de renda. Pessoa  discreta,   honesta,  de  princípios   firmes. Casou-se  com uma mulher notável  pelo valor  humano,   a tia  Maricô, uma mulher santa,  que só enxergava nos outros  bondade. Tinha belos olhos  verdes e deveria ter sido bela quanto   jovem.
   O casal teve três  filhas:  a Dioneia, a mais velha,  a Valdineia e a Maria Nilza, a mais nova e a mais bela das três,  falecida ainda  moça. Maria  Nilza  era professora,  assim como o é Valdineia, agora aposentada e a  única sobrevivente das três. Valdineia e Maria Nilza se tornaram  professoras primárias.Quando adolescente,  sentia-me enamorado de Maria  Nilza, talvez por sua  beleza,  sua doçura,  sua feminilidade. Era mais velha do que eu.
   Todas nasceram com  olhos verdes, belíssimos. Tio Enoch ainda teve dois filhos: o Valdo e o Netinho. Não me  lembro se o Valdo  tinha  olhos verdes,  contudo, é possível que fossem. verdes. O primeiro  nasceu com  um problema  de nervos. Ficara  interno  no Meduna,  hospital psiquiátrico, em Teresina dirigido  pelo  Dr. Clidenor de Freitas Santos,  que pertenceu à Academia Piauiense de Letras e era homem  ilustrado. Uma vez,  fui  visitar   o Valdo com a minha prima, Maria Nilza, sempre linda. Netinho possuía  olhos muito azuis, tinha  ótima aparência, e um  palestra   fascinante. Era um  cronista ambulante de Amarante,  sabia tudo sobre a sua época, o passado de Amarante,  a vida da política  do município, a vida  íntima das pessoas. Era um arquivo  vivo  de informações  sobre a sociedade de Amarante.     
  Na minha infância e até no princípio da adolescência,  tio Enoch, quando  vinha a Teresina, sempre visitava meu pai. Conversavam  por horas. Se davam muito bem. Sua chegada à minha casa era sempre aguardada  com  ansiedade e tinha  um motivo  maior  que fazia a alegria da  criançada. Sempre  ao se despedir,  abria a carteira e dela tirava uma  boa   quantia em dinheiro, segundo ele,  para repartir entre nós. Quanta alegria para nós!
    Meu pai e seus irmãos  nasceram em berço de ouro, em Amarante,  onde meu avô era comerciante  de peso e um homem respeitado  por todos.  Segundo me contou meu pai,  o meu avô  Manuel  Alexandre e Silva, hoje nome de rua em Amarante,  era de estatura baixa,  tinha olhos  azuis, uma  aparência solene num rosto  bonito com uma bela cabeleira. Foi assim que o vi  numa foto  de família, ao lado de  vovó  Candinha.
   Papai me dizia que meu avô foi um pai extremoso. Gostava de  tomar banho no rio Parnaíba, à noite, num tempo que me dá inveja. Vovó Candinha,  ou melhor,  Cândida  da Cunha e Silva.  Foi a única avó que conheci ainda viva. Tinha eu três anos e estava perto de sair  de Amarante, porquanto meus pais foram  residir em Teresina.
    Em Teresinha, muito velhinha, já prestes a se despedir  desse “vale de lágrimas, a sua figura vem  à  minha lembrança como  algo esfumado, com alguém  que não tive o  prazer  mais  intenso de beijar a fronte querida, os cabelos branquinhos,  a voz  carinhosa, cheia de cuidados comigo, conforme eu  narrei em parte numa  crônica do meu  livro  As ideia no tempo. (1)Papai me contou  que era descendente de cearenses. Subiu ao Céu  bem  idosa. Me vem, agora, à mente   a tarja  preta colocada numa  das mangas  do paletó de meu pai, em sinal de luto. Eu era menino.  Morava na  Rua  24 de Janeiro, centro de Teresina.
  O Weyden era o mais  próximo  amigo  meu. Companheiro  das aventurosas  romântico-amorosas nas noites de Teresina, cujo  epicentro  era o adro e os fundos  da Igreja de São Benedito e de lá o dom-juanismo  adolescente  partia  para outras  partes da cidade, Cada um  com uma  mocinha  cheia de amor para dar, ainda que fosse por uma noite  só.   
     Éramos como dois irmãos,  primos pelo lado materno e paterno. Weyden  gostava de cantar  em inglês ou  cantar canções de  conhecidos   artistas da época,  todos praticamente  do Rio de Janeiro ou São Paulo.Tinha bossa também  para fazer  a gente rir das piadas que sabia tanto  contar, me matando de rir, fora as imitações que  fazia de figuras  diversas. Era danado  para encontrar os defeitos físicos dos outros e com esta matéria, na minha companhia,  fazíamos as traquinagens,  provocando,  ocultos  pelas janelas ou portas semi-abertas,  quem  passasse por acaso  pela rua. Morria de rir de suas  brincadeiras e sátiras.
    Outro hábito que tinha era  falar em inglês  comigo por onde passássemos – um forma de  esnobismo  ingênuo de adolescentes   sem rebeldia.Mesmo no Rio,  quando estávamos juntos,  falávamos em inglês diante dos balcões de bares do Catete, bairro da Zona Sul do Rio. Os garçons,  ignorantes,  se entreolhavam embasbacados. Dizia o Weyden  que era para passarmos  por gringos, tirando  onda com  as pessoas  que se encontravam  perto de nós.   Ele não tinha tanta fluência, mas dava para se safar porque era  inteligente e  espirituoso.
    No Rio de Janeiro, morando por pouco tempo na casa de tia Chiquinha, Weyden,  por algum tempo,  continuou com a   nossa amizade. Depois, tomou  rumo sozinho,  foi morar na Glória, Rua  Benjamim Constant, zona sul,  bairro bem peerto do Centro   do Rio. arranjou emprego e nossos  encontros foram se rareando. Weyden   é inteligente,  tem boa  voz e sempre  esteve  ligado  à atividade de rádio. Tornou-se radialista, creio, primeiro em  Goiânia,  onde morou, depois que deixou o Rio de Janeiro e, de volta a Teresina,  firmou-se como  um conhecido  radialista e homem  relacionado com a imprensa local.
    Desde adolescente,  demonstrara  ter vocação para o rádio. Uma vez,  acompanhando, em campanha política   o meu pai, candidatos a cargos   políticos e eu, numa cidadezinha do interior do Piauí,  subiu a um improvisado  palco  sobre  um caminhão e discursou  para  os ouvintes que se aglomeravam diante  do carro.
    Discursou, primeiro,   meu pai e, em seguida,  usaram da palavra outros   oradores.  Ocorreu, na ocasião,   um fato pitoresco.  Meu pai me pediu que usasse também da palavra Não aceitei, alegando  ser tímido, encabulado. “O que eu tinha para falar? Nada,”  pensei comigo. Me deixaram de lado,  uma vez que  da minha “oratória” não iria sair nada,  nem que invocássemos  o talento do grande  Demóstenes.  Não tinha assunto nem interesse  em dirigir  algumas  palavras  de agradecimentos  aos que  estavam  formando  uma pequena   assistência. Entretanto, compensei minha timidez participando de um baile de interior, com  dança, forró e tudo. O bom  foi que havia ali  moças bonitas  para um  breve namoro  de   uma única noite.(Continua) 

NOTA:

(1) A partir deste parte, deixaremos de empregar  a forma coloquial "pra"" e derivados substituindo-os  pelas equivalentes   formas   de linguagem  culta. Revisaremos, neste caso,   todos os textos  precedentes de Apenas memórias. O emprego, entretanto,  daquelas contrações limitar-se-á    a enunciados em discurso direto.



segunda-feira, 11 de maio de 2015

Apenas memórias (14)



                             
                             Time  and patience conquer everything.
                                            JOHN   PAYNE


        Cunha e Silva Filho


Ingresso na Universidade: 1966. Chegara o dia do resultado das provas  para o ingresso no curso de letras. Não é preciso  dizer que meu coração  batia  acelerado a fim de ver, afixado, num lado  da entrada da Casa d’Italia, o resultado  dos exames com a lista dos  aprovados e classificados. Na Casa d’Italia, que pertencia à Embaixada da  Itália,   funcionavam os cursos de letras e outros cursos  de bacharelado e licenciatura, como  química,  física,  biologia,  entre outros que  compunham  a Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil.  
        Estava  acompanhado de minha ainda  namorada, a Elza. Entramos  no prédio e logo divisamos  várias  folhas  de tamanho  ofício na parede, ao lado  esquerdo de quem  entra. Procurei  pelo  meu curso, olhando atentamente  as modalidades  oferecidas: português-literatura,  português-francês,  português-latim..  e parei numa lista, a  que me interessava: a da modalidade português-inglês.A princípio, não vi meu nome entre os primeiros classificados,. Fui baixando os olhos até encontrar  - que alegria e alívio! – o meu nome por extenso na lista dos  classificados. De repente,  o meu  colega e amigo Dirceu, presidente da  CESB, aparece no recinto e, vendo minha alegria,   me deu um  abraço  caloroso, fraterno,  de amizade  pura,  de companheirismo: “Parabéns,   Francisco! Alegria geral. Um  colega, por sinal  piauiense, educado e  inteligente que chegara pouco depois,  foi ver também o resultado  dos  exames.Optara pelo   curso de português -literatura. Entretanto,  seu  nome não  constava da lista dos classificados naquela modalidade. Mas, a roda da vida tem seus mistérios e suas surpresas, além  de alegrias  e sucessos  futuros.Engolira a decepção. Soube que tentara provas para o mesmo curso  noutra  universidade  federal e, nesta,  saiu-se bem e classificado. Anos depois,  se tornara  professor no mestrado e no doutorado de uma conceituada  universidade pública. Fez carreira  brilhante, publicou livros, enfim,  foi um  vitorioso porque tinha vocação  e talento  genuínos  para  os estudos literários  em alto  nível.
     Ainda morava na CESB naquele ano. Porém,  não posso me furtar  a  retroagir ao ano de 1965 e sobre ele narrar alguns  fatos  que julgo  dignos  de  relembrar neste vaivém  que são estas anotações.     
   Já aludi  às circunstâncias  da minha preparação ao ensino superior de letras, e por isso  convém  frisar bem  a importância enorme  que  dei ao meu convívio na CESB.
   Dirceu, um apaixonado pela oratória,  não perdia vezo de mostrar suas qualidades de tribuno e de dinamizador  cultural  da Casa. Juntou, uma noite,  um grupo de colegas da Casa para  uma tertúlia  literária, na qual  cada um poderia  dar sua contribuição, seja discutindo sobre um tema,   seja  recitando uma poesia de um autor  preferido, seja apenas participando  como  assistente.  Formava um  mesa. Presidia  os  trabalhos. A mim coube recitar de cor  um  poema, o célebre soneto  “Saudade,” de Da Costa e Silva ( 1885-1950), o poeta mais festejado  do Piauí, que, anos depois, seria  matéria do minha pesquisa de Mestrado na UFRJ, num estudo  que tem como  recorte o tema da  saudade na obra do poeta
   Dirceu abriu a sessão e, em seguida,  recitou um poema de Castro Alves.Fomos aplaudidos. A noite foi festiva  e o clima  transpirava só  literatura.
   Dirceu ainda  fundou um  jornalzinho cultural  da CESB. Não me lembro do nome que lhe deram, contudo,  não passou   do primeiro número.Nele  colaborei com um  artigo de cujo tema não mais me recordo. A edição  era artesanal,  com  os textos   impressos em  mimeógrafo. Fora bem  planejado graficamente, tudo a cargo do inquieto e zeloso  Dirceu. Constava de poucas  páginas, na primeira das quais exibia um texto  editorial escrito por Dirceu. Naqueles anos  não havia o costume de se xerocar  documentos  ou  algum  texto  do qual desejássemos uma cópia.
    Por não  ter tempos atrás, mesmo nos anos de 1970, o costume de  tirar cópias  de algum artigo ou   textos é que perdi  vários artigos de jornais de Teresina com publicações minhas, as primeiras e outras posteriores dos anos  de 1970, 1980 e 1990, inclusive um artigo  saído no  Estado do Piauí, sobre o  romance de Oscar Wilde,  The portrait of  Dorian  Gray.
   No Arquivo  Público do Piauí, não o encontrei e, até hoje,  sinto a falta  do artigo, que foi tão bem  recebido  por um leitor  meu,  o  Jeremias  Abreu,  cuja memória  reverencio do fundo do coração, jornalista  que publicou um bilhete para meu  pai, em que  falava  bem do meu  artigo. Jeremias, a quem infelizmente  nunca conheci  pessoalmente, era um intelectual  que usava o pseudônimo de Drumond. Na realidade,  eu tinha  o artigo  guardado  comigo, mas, uma vez,   o emprestei  a uma coordenadora de um Colégio na Penha, bairro da Leopoldina, subúrbio do  Rio de Janeiro Entretanto,  ela não o devolveu  a mim. Alegou que o tinha perdido sem querer. Naquele  Colégio, trabalhei  como  professor de  português, literatura e inglês.
   No ano de 1965, alguém me falou ou eu mesmo  li em jornal -  que o IBEU (Instituto Brasil-Estados Unidos)  abrira  inscrição para seleção de candidatos a um  curso chamado de   undergraduate, a ser feito numa universidade norte-americana. Duraria um ano e meio.Aquela instituição   ficaria encarregada de  realizar as provas dos candidatos. Haveria três etapas: uma prova  escrita e de múltipla escolha, uma prova  de conversação e uma entrevista. Não pensei duas vezes,  me inscrevi na sede do IBEU, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana.
  Marcaram uma manhã para a prova   escrita, se me recordo bem,  com  100 questões. Depois da prova escrita,  faria a prova de conversação. Combinaram  o dia do resultado dessas provas para outro  dia. Por mim,  tinha me saído bem na prova escrita e um pouco  menos na prova oral.
   Voltei ao  IBEU para saber o resultado  dos exames. Havia sido aprovado. E mais.  gabaritei a prova  escrita e, na oral,  obtive  sete. Marcaram  outro dia, uma semana  depois,  se a memória não me falha  a memória,   para a entrevista e me avisaram que teria que  preparar um curriculum vitae em inglês e juntar a ele  cartas de recomendações de antigos professores meus para  serem entregues  no dia da entrevista a ser realizada um mês depois, se tanto.
   Ora, no meu caso,  tinha  um bom vocabulário adquirido com muita leitura que fizera  em Teresina  e que sempre  fiz pela vida afora. Tinha uma  fluência  razoável e pouca   ou quase nenhuma   experiência  de composição  escrita. Posto tenha sido  aluno excelente em inglês em Teresina,  as aulas  de inglês, nos moldes tradicionais  da época,  não  exercitavam nem a conversação nem a redação no idioma de  Keats. Essa última habilidade só se fazia em bons  cursos  de ensino de inglês, que não havia  em Teresina ainda até o meu período de curso  científico.
    Todavia,  assim mesmo,  me abalancei com todo o empenho  a redigir  o curriculum vitae. Tinha consciência  de que o texto  continha  alguns senões  de construção   frasal, de uso incorreto de  preposição.Era o que podia apresentar na entrevista. Ainda  o mostrei, a pedido do meu amigo Antônio de Almeida, a  uma conhecida dele    para que  desse alguma opinião acerca do meu  texto..  
   Era uma  moça que tinha feito  curso de  especialização ou mestrado na França na área de história  natural.  Me parece que, como assistente,   dava já aulas,  no curso de sua especialização,  na Faculdade Nacional de Filosofia. Ela olhou o texto e me fizera uma observação, no meu entender, um tanto crítica: “Esse teu  curriculum  dá bem a entender que foi  escrito em inglês  por um brasileiro.” Não lhe dei   resposta  à ironia.
  Quanto às cartas de recomendação,  logo  escrevi a meu pai para que ele solicitasse ao meu professor de inglês, o único que tive  em Teresina,  meu saudoso  mestre Francisco Viveiros. Não demorou nem um mês a fim de que chegassem às minhas  mãos, além das carta do professor  Viveiros,  duas outras cartas mais, para a minha grande alegria e honra. A do professor  Viveiro era escrita em inglês, em rigoroso  estilo de carta oficial. Me vêm à memória  alguns fragmentos do seu  conteúdo  “To whom  it may concern: Francisco da Cunha e Silva  Filho  was an  exceptional student during  all the time  I was  his  high  school  English  instructor. [...]  I am sure he will certainly be  a good representative   of a Brazilian  student in the United States. […] He is congenial […]” As duas   outras cartas  foram dos profesor  Lysandro  Tito de Oliveira, meu  professor  de geografia no Domício (Ginásio  Des.  Antônio Costa) e do professor Domício Melo Magalhães, de história. Ambas  recomendando-me  efusivamente  ao governo  norte-americano devido aos meus méritos de bom estudante do meu tempo de ginasiano.Vibrei com as cartas e é pena que não tivesse tirado cópias  delas  para o meu arquivo futuro, mas naquele tempo...
  No dia aprazado para a entrevista no IBEU,  atendeu-me uma senhora  de meia idade,  muito  fechada, secarrona e muito impessoal,  desse tipo  tão encontradiço  de Mises  no circuito do meio educacional em todos os níveis de ensino. Leu meu  curriculum e fez  o seguinte reparo: “Por que você não pediu alguém que  melhorasse a construção em inglês? Há alguns erros de sintaxe. Em seguida,  me fez  uma série de   perguntas pessoais. Acrescentara que o curso  undergraduate seria  em forma de bolsa,  ou seja,  gratuito e incluía alojamento numa universidade,  mas as despesas  pessoais ficariam  por minha conta. Não lhe dei nenhuma  resposta sobre  esse último  item. Finalmente,  ela me  dissera que aguardasse  o resultado final  da entrevista dentro de alguns dias.
    Meus amigos  da CESB e outros   do Calabouço  estavam todos  felizes  e torcendo  pelo curso que iria  fazer na América.Já tinha mesmo sabido  que embarcaria num navio  da  marinha  americana. Inclusive,  já estava em ritmo de despedida   com meus amigos e conhecidos. No entanto,  o carteiro  bate à porta da velha CESB com a correspondência  endereçada aos moradores. Uma das cartas era para mim e, pelo endereço do remetente, vi que era do IBEU. Abri, nervosamente,  a carta, que me dizia mais ou menos, entre outras coisas  isso: “Prezado  Francisco da Cunha e Silva Filho; Lamento  dizer-lhe que sua   bolsa  para cursar o undergraduate não foi  aprovada. No entanto,  Você, se  quiser,  pode  tentar  outra vez no próximo ano, já que suas possibilidades não foram  canceladas”

    Para um jovem de dezenove anos aquilo foi um jato de água fria, um desapontamento. Uma  quebra de sonhos e ilusões  . No ano seguinte,  não mais tentei, porquanto  ingressara no curso de letras.Tinha  um longa e penosa  estrada a percorrer pela frente e com  muitos  dissabores,   lutas,   cansaços  e perseverança inquebrantável. No curso de letras,  teria que ser uma rocha  para resistir  a tantos   embaraços  e  incompreensões  de  alguns mestres,  do sistema  burocrático  superior e mesmo de injustiças.(Continua)

sábado, 9 de maio de 2015

Apenas memórias (13)




             Cunha e Silva Filho



   Ao longo do  período  venturoso   que passei na CESB,  evoluindo  nas amizades   com os meus  companheiros  de alojamento, é obvio que alguns  colegas  se   me tornassem mais  íntimos   do que outros. A filtragem da amizade é uma coisa curiosa. Está muito  relacionadas a ideias afins  compartilhadas entre amigos   tendo  como  base  de sustentação  o nível de liberdade,  de confiança,  de admiração mútua que se  estabelece  entre dois ou mais amigos.   
    Tentando ser o mais  possível justo  com a minha consciência,  vejo  a figura altaneira,  inteligentíssima  de Antônio de Almeida, aquele  jovem baiano de Ilhéus grande amigo  que encontrei lá na  Casa. Talvez  em muitos aspectos, ele fosse mais amadurecido  do que eu. Ao saber que me ia casar,  logo  lobriguei-lhe no olhar uma nuvem  de  tristeza e, agora,  depois de tantos  anos decorridos,  a interpreto   com mais clareza. Antônio de Almeida sabia que eu ainda  era muito jovem, mal tinha  completado  vinte e um anos.
   Nem compareceu à cerimônia  do meu  casamento, em 15 de  julho de 1967  na Igreja  Nossa  Senhora da Glória do Largo do Machado. Dos meus colegas da CESB, lembro apenas que estiveram presentes o  maranhense Raimundinho e o  paraibano  João Ernesto, aquele  que  gostava   de  latim, tinha sido   por um tempo,  seminarista na terra natal. Estiveram  também  presentes  os amigos  de Elza, alunos dos cursos  de licenciatura de química da Faculdade Nacional de Filosofia e outros da Faculdade Nacional de Química Industrial.    Outro que compareceu, através de um convite  da  Elza, foi o ex-governador  do Piauí,  João Clímaco de Almeida, o Joqueira,  que,  por sinal  se encontrava no  Rio de Janeiro por algum motivo.Ela  conhecia seu secretário e, por intermédio dele, num simples e casual  encontro na Cinelândia,   enviou o convite ao  governador piauiense.
    Após a cerimônia, preparamos uma   pequena e modesta   festa  para alguns convidados, realizada no  lindo bairro de Santa Tereza. Ao final da festa,  fui, com alguns amigos,   para a Cinelândia,  conversar  um pouco. Depois,  já era tarde da noite,  regressara para a CESB.  Minha esposa  voltara para um pensionato na Rua Pererira a Silva, em Laranjeiras, aprazível bairro da Zona Sul. 
       Na vida de dois enamorados e em hora solene e histórica que,  por vezes,  se torna única como no nosso  caso,  Elza me falara ter uma conhecida  que se prontificou a tirar fotos   dos principais  lances da cerimônia. Todas as fotos  que alegou  bater   foram extraviadas, segundo a colega de véspera. a qual  dizia ser    funcionária do Itamaraty. Acredito que tudo não passou de um  farsa, uma hipocrisia, um fingimento. Aquelas fotos  do clássico álbum de um casal jamais tivemos  para mostrar a nossos filhos,  netas e amigos.  Não contratamos um fotógrafo  profissional por razões financeiras. Olhe como são as coisas, pouco empo depois, Elza, conversando com um fotógrafo, o Sr. José,   que tinha  um estúdio de fotos no Catete,  bairro da Zona Sul,  perto  do Centro  do Rio, ouvira dele: "Menina,  por que você não me falou antes,  eu teria feito  todo  o trabalho  da cerimônia em todos os passos.Já era tarde e como dói aqui pensando num  poema de Carlos  Drummond de Andrade (1902-1987).
    Só fiquei na  querida  CESB por  apenas um dia mais. Cuidei de arranjar uma  morada  a fim de  começar  uma outra etapa   de minha vida  pessoal. Uma amiga da Elxa  nos colocou à disposição um a casa  velha mas confortável  para passarmos uma semana  de lua de mel. Era na Tijuca,  justamente  no  bairro   que,  muitos anos depois,  iria   residir.
    De regresso  a Teresina,  o  governador  Joqueira  transmitiu ao meu  pai  a notícia de meu  enlace. Papai  não aprovou,  alegando que  eu era muito jovem e ainda não estava  preparado  para o casamento. Mamãe deve ter tido a mesma  opinião sobre o  acontecimento.   Por outro lado,  em  1927, com  vinte e dois anos,  meu pai igualmente  se casara no Rio de Janeiro. A história aí se repetiu. Com o tempo, meus pais foram  aceitando, porém não completamente.
     Realmente,  aos vinte e um anos,  somos muito jovens para o casamento e,  no meu caso, com uma agravante,  não tinha ainda me formado nem  tinha  emprego  certo,  porquanto  vivia  de bico,  dando aulas particulares de português  e inglês pra amigos  que conheci no Calabouço.
   Alguns  bons amigos farão sempre parte de nossas relembranças como, entre tantos,    o  maranhense  João Nepomuceno,  um moço esforçado, trabalhador,  que cursava,   se não incorro em lapso  de memória,  contabilidade numa faculdade. Morava, num pequeno  apartamento,  na época, em  Botafogo. Suponho que na  Rua  Marquês de Abrantes. Toda vez que lhe ia dar aulas,   almoçava  com ele e era sempre bem tratado. Guardei sua  lembrança  no meu coração.
  Volto  a falar de meu saudoso amigo  da CESB, Antônio de Almeida. No dia seguinte ao meu casamento,   depois que acordei,  Antônio de Almeida  se dirigiu a mim e, sem papas na língua,   me  afirmara que  tinha   feito  algo  precipitado. Não era tempo pra casamento. “E a faculdade? E o emprego? E a moradia?  Como  vai  resolver tudo isso, Francisco?” Me calei, pois sabia que, no fundo,  ele estava  certo e  só queria o meu bem. 
       Entretanto,  me despedi  de todos os que estavam  presentes naquele dia. Não me  lembro de ter dado um abraço apertado no meu  amigo  de Ilhéus,  misto de filósofo e de historiador,  leitor  assíduo de Will Durant,  apaixonado  pela  música clássica,  uma inteligência de  menino precoce. Estou a me  recordar  de um dia que com ele fui a uma favela de Copacabana, bem no alto de um morro, de onde se descortinava  a paisagem  da bela  praia  de Copacabana, um deslumbramento, um encanto da natureza soberana. É que lá  morava um irmão dele, a quem  fomos visitar.  Antônio de Almeida  tinha  bom gosto em tudo, até na  escolha de amigos. 
   Se dava bem com as camadas  pobres tanto quanto  com  gente abastada, como aquele estudante  de engenharia  da PUC-Rio, educado, simples,  morador de um  amplo e luxuoso apartamento da Avenida Atlântica. Uma vez,  me levou pra conhecer  o estudante de engenharia. Tomamos café juntos. Ele nos pôs à vontade. Um café farto   nos foi servido   pela  doméstica. Eu fiquei meio acanhado  durante o café e,  ao cortar um pedaço de queijo,  estava comendo  a casca dura quando fui  aparteado  pelo  estudante: “Francisco,  não precisa  comer  a casca,  tire-a e coma  apenas  o  queijo.  “Que gafe a minha!” Os dois  apenas  riram e sem ironia.
    Dele gostava muito um amigo comum, muito mais velho que nós, mas  pessoa  culta,   inteligente,  conhecedora de história universal, adorava  literatura, e de grande memória,  Chamava-se Wismar. Não me lembro bem,  mas  acho que Wismar  trabalhava na  Imprensa  Nacional.
   Uma  simpatia  de  pessoa. Carismático,  era um  incondicional  amigo  de Antônio de Almeida. Sabia também que  tinha uma grande  admiração por mim,  como se fosse um  pai  presente ou  um tio  querido. Da última vez que o vi – acredito que foi numa rua  perto da Mem de Sá -,   ele me havia  prometido  ofertar um dicionário ou uma enciclopédia  de escritores universais  publicado em inglês. Combinamos de nos encontrar no Centro do Rio,  mas, por um contratempo, não consegui realizar o encontro e pegar o exemplar.Dessa data em diante, nunca mais  revi o  querido  amigo.
   Foi chegado o dia  dos exames para a Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi).  As provas se realizaram  num antigo  prédio do Tribunal Eleitoral,  prédio antigo,  com  uma entrada em  duas escadarias conduzindo ao interior  do andar  de cima. Hoje, aquele prédio,  depois demolido,  abriga  o arranha-céu construído  pela Academia  Brasileira de Letras, Petit Trianon, que fica ao lado dele  e a ele tem acesso, visto que a ABL mantém  dois ou três  andares  do espigão para acomodar  algumas seções  da  Casa de Machado de Assis.
    Não me membro se  estava   nervoso e apreensivo com  as provas. Senti que me ia dar bem em  todas as etapas. Me recordo da prova de ditado, feita por uma professora   que iria me lecionar  gramática inglesa em dois cursos   que faria com ela.
   A professora  era a Regina Pinto. Séria, vestida com elegância, já madurona – lembro-me mais dos lábios dela, finos,  com leve toque  aristocrático,   entrara na sala da prova, que aconteceu no   auditório  daquele prédio do Tribunal onde, ainda teria aulas com o famoso   linguista brasileiro, Mattoso  Câmara Jr., chamado merecidamente  pelo  também  linguista Francisco Gomes de Matos,   o "Pai da Linguística" no Brasil.           
    Estávamos todos  sentados calados, esperando pelo momento em que  ela  iniciaria  a leitura  um tanto  pausada  e com  voz  firme de acento britânico. Era um texto  de extensão  média. A leitura não se fazia com repetição de frases. Quem não acompanhasse,  estaria  em maus lençóis. (Continua).



quinta-feira, 7 de maio de 2015

Apenas memórias (12)




                                                       Cunha e Silva Filho

          

        O problema da moradia  estava  solucionado. Fora um alívio para mim, já que a moradia foi sempre, no Rio de Janeiro,  algo  difícil e caro. Aquele abrigo  confortador da CESB   me foi de ajuda incomensurável. De 1965 a meados de 1967, morei  naquela  Casa de estudantes. Só saí  porque me tinha casado   em  julho de 1967 e por isso  não havia mais razão  para   permanecer por  mais  tempo  na  querida  Casa que me abriu  as portas. Teria que procurar outro  rumo  na nova condição de  precocemente  casado.
        Dois anos e meio bem vividos  num convívio  amistoso com  os outros  colegas  residentes. 1965 foi um ano de intensos estudos, de preparação para o  vestibular  de  letras na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, a ser realizado  no final daquele ano. Se aprovado,  iniciaria o curso em  1966.
         Deixara totalmente a ideia  de ser médico  para trás,  página virada, nada tinha a ver comigo a não ser nos planos  de mamãe que, tendo  lá suas razões,   valorizava  muito  a carreira  de médico, se espelhava nos  ilustres médicos  piauienses  que,  em geral,  tinham  uma vida   confortável  e mesmo  com luxo, morando  em residências   elegantes e, acima de tudo,   gozando de   alto  prestígio  na sociedade  teresinense. Já  a carreira de professor era uma velha conhecida de mamãe, que sabia  quantas  dificuldades  financeiras  tivera  meu pai  por ter   escolhido  ser  professor. Magistério para ela  significava  aperturas financeiras,   vida  limitada,  atividade  não  justamente  reconhecida   pela sociedade, sem falar que meu pai  tinha  uma família   de onze filhos.
         Não me  lembro se  transmiti  em carta a papai  a minha decisão  de  não fazer   medicina e sim  letras. Posto que preferisse uma vida  mais   folgada  pro filho,  no fundo sabia  que  a minha escolha  tinha sido  certa apesar dos grandes  percalços que iria  enfrentar  no futuro   da atividade docente.
        Meu pai e minha mãe não atinavam que,  para  cursar medicina, teria que ter apoio seu financeiro  e uma mesada  era a última coisa   que  poderia   acontecer. Mesada era para os filhos  das famílias de classe média  alta  ou  da burguesia   teresinense que vinham  fazer medicina no Rio de Janeiro. Poucos  jovens  transporiam  essa barreira financeira; era quase  impossível,    porque  o curso  médico  tomava  o dia todo do estudante, além de  despesas com livros  caros  que teria que fazer, sem falar  num aluguel ou compra de um apartamento  para o  filho  rico.
         Em outros textos  memorialísticos, (1)  já me havia   referido  ao conselho  de um amigo  piauiense, o Rodrigo  Ayres,  que  vim a conhecer   no  Rio e Janeiro. Logo  percebeu  pelas nossas conversas   que  a minha  inclinação seria para os  estudos  de  literatura e línguas.  Se não me engano, foi  ele mesmo   que me indicou a  Faculdade Nacional   de Filosofia  da Universidade do  Brasil, que ficava na Av. Antonio Carlos, Centro, bem perto do  restaurante  Calabouço.
      Rodrigo viera do Piauí  pra  estudar  no Rio. Se alojaria  na casa de uma tia,   no bairro  de Laranjeiras,   Zona   Sul da cidade. No tempo em que o  conheci,  fazia direito na Faculdade Cândido  Mendes,  na Praça  Quinze, Centro. Contudo,  no segundo ano,  decidira  mesmo  o que  lhe impunha a vocação: medicina.  Preparou-se pro vestibular. For aprovado, mas ficara   excedente. Sua vaga  iria   ser noutra  parte do país,  se não estou   enganado, no  Pará. Me recordo bem  que dispunha entre meus livros,  de  obras de física do professor  da PUC-Rio, M. P. Maia, autor  conhecido  na época. Lhe ofertei  os volumes de física e de outras  matérias  que seriam  exigidas  no vestibular de medicina. Rodrigo, uma vez,  me arranjara pra dar aulas particulares de inglês para um primo dele mais velho, que era  funcionário do Banco do Brasil e também  morava com a mãe, tia do Rodrigo.  Fizemos  uma boa amizade e, nessa  época mesmo, ele conheceu  minha futura  esposa.
       Naquele primeiro ano  na CESB,  meus estudos    eram feitos  parte  da noite  nessa  Casa; de dia,  ia para a Biblioteca   Castro Alves, meu local   mais  frequente. Entretanto,  me repartia  também  entre a Biblioteca Nacional, Biblioteca do  Ministério do Trabalho e Biblioteca do  MEC, no majestoso   Palácio Gustavo  Capanema, tudo isso  no Centro. As disciplinas  que seriam exigidas  no vestibular de letras seriam:  inglês,  língua  portuguesa e latim. Estudei  sozinho, porquanto  não podia   arcar  com  um cursinho  preparatório  para aquela  área.
       Nos primeiros dias  frequentando o Calabouço,  pra  regularizar minha situação de comensal, tive que  ir  à seção de atendimento  ao estudante, que ficava  num prédio  por detrás do qual  havia o salão enorme  do restaurante e  outras dependências  oferecendo  diferentes  serviços. Logo que  entrei numa sala separada por um balcão  de atendimento,  vi um  rapaz meio  magro,  moreno,  de  boa altura, cabelos   escuros, meio lisos, curtos. Logo reparei que  estava falando  em inglês  com um rapaz com aparência  de estrangeiro,  talvez   um americano. 
        O jovem  meio magro demonstrava ser   nordestino e parecia estar  dando  explicações ao estrangeiro sobre o funcionamento  do restaurante.Tendo  atendido  ao estrangeiro,  se dirigiu a mim, me perguntando  o que  desejava. Contei-lhe que  era  estudante e precisava de   regularizar minha situação de comensal.     Durante  nossa conversa,  lhe  falei sobre a minha  situação financeira, que não era nada boa, dando-lhe a  entender que  precisava de um emprego , ou um bico pra suavizar  o meu problema . Ary Medeiros, - era este o nome do jovem magro – me prometeu  o seguinte: ele andava  dando aulas  de inglês numa sala de um prédio do  Centro, numa daquelas ruas  que  desembocam na Rua Primeiro de Março.
        Aqui não me recordo se ele chegou a  me testar  pra saber  se realmente tinha condições de  ajudá-los nas aulas que estava    ministrando. Só sei que  cheguei a dar poucas   aulas. O curso não fora adiante.
       O que mesmo de importante  se aproveitou  desse conhecimento  meu com  o Ary Medeiros  for  o início de uma  amizade que dura até hoje, sendo que,  por muitos anos,  deixamos  de ter contato, uma vez que  fui morar em outros  bairros e, depois, por longo tempo,    no subúrbio da Leopoldina.
        Tornando-me  mais íntimo de  Ary, no ano  de 1965, já me preparando  pras provas  da Faculdade de Filosofia,   mais uma vez,  se mostrou  aquele amigo  constante  e solidário. Procurei saber  como seriam  as provas  de ingresso  à Faculdade de Filosofia, especificamente para o  curso  de letras denominado  Português-Inglês. Constariam de uma  prova escrita de língua portuguesa composta de questões  gramaticais, de uma prova   de  latim na qual se  pedia uma  tradução de um texto clássico e,  quanto ao  inglês,  iria  enfrentar  três  tipos de provas:  um ditado, uma versão e uma composição.  
       Conversando  sobre  esses exames,  pedi ao Ary que me ditasse, de vez em quando,  textos  em  inglês  a fim de verificar  como  me sairia  neles.  De boa vontade,  me prometeu fazer o que lhe pedira. Os ditado eram  feitos, ao ar livre,  na Avenida Beira-Mar,  sob a sombra  de árvores frondosas. Sentávamos  ao chão, um  de frente pro outro, eu, encostado ao tronco de uma árvore. Me saí bem nessa  empreitada. Aplausos!
     Ary, em Natal,  estudara inglês no IBEU (Instituto Brasil–Estados Unidos) e, como  fora  excelente  aluno, fora convidado  a lecionar  inglês no próprio IBEU  do qual  ainda era aluno.  Na época em que o conheci, sua fluência   era tão boa que, às vezes,  não  entendia  alguma coisa   durante alguns diálogos  que  mantive com ele.
        Eu estava  exultante,  sabia que tinha condições de enfrentar  os exames e me sair bem nas provas. O meu amigo  Ary,  natural de Rio Grande do Norte, fora aluno  marista em Natal, se não me engano,     tinha cursado  assistência social na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.    Sempre prudente,  me  avisara   que encontraria  muita concorrência de pessoas  preparadas  com as  quais  ia disputar  as vagas limitadas pro curso de letras. Que não pensasse que seria fácil a aprovação e classificação. Ele tinha razão.
     Naquele mesmo ano - 1965 - em que  começava a fazer refeições no Calabouço,  travei amizade com  um jovem de dezoito anos, chamado  José Ribamar  Garcia, o qual, como o  Antônio de Almeida,  o Ary, o Dirceu, o Wísmar, o RodrigoAyres,  o Raimundinho,  entre outros,  teria  um lugar  permanente no meu pequeno círculo de amizade.
      Meu encontro  foi  o que se poderia   chamar  de amizade à primeira  vista. Ribamar Garcia,  conforme  costumo chamá-lo,  não sei se dentro  do refeitório ou fora dele,   principiamos  um  papo alegre,  com aquelas  perguntas   costumeiras  de  começo de relacionamento   social. Lhe disse que era  do Piauí, de Teresina, mas nascido em Amarante interior do Estado. Falei que estava me preparando  a fim de cursar  letras, portuguê-inglês,  na Universidade do Brasil (depois chamada  Universidade Federal do Rio de Janeiro,  UFRJ). “Ah, Francisco,  também sou  piauiense, de Teresina. Estudo inglês na Cultura  Inglesa e trabalho  num  escritório aqui no Centro” Vou fazer  direito. Faço um cursinho  pré-vestibular.
      Me lembro de  que a conversa  foi continuando mesmo depois que  saímos  do Calabouço. Garcia,  muito jovem, pele clara, voz vibrante, gestos rápidos, já dava sinais de que seria um homem batalhador,  decidido, ousado.Tínhamos, - me perdoe o leitor o lugar comum -   toda a vida pela frente. Caminhando e conversando, ele me convidou a ir ao local de trabalho. Acho que era uma clínica médica. Nos despedimos com certa efusão.  Curioso,  nem ele nem eu  externamos  o sentimento  íntimo de que  gostávamos   visceralmente  de literatura  e de escrever em gêneros literários  diferentes. Ele,  ficcionista,  eu,  ensaísta, crítico. Nem ele ficou sabendo, então,  que, em Teresina,  eu  publicara  alguns artigos  em jornais. Por outro lado,  lhe falei que meu  pai era o professor Cunha e Silva. “Cunha e Silva? Ele foi um dos  meus examinadores  no  Liceu Piauiense! Grande figura! Me recordo que  comentara  sobre a admiração  dele pelo  professor  Arimathéa Tito Filho,   um intelectual  piauiense sempre  objeto da admiração  de seus ex-alunos.
     Outra vez,  conversando  com Ribamar Garcia, me convidou a ir ao seu  apartamento, um prédio  ainda hoje existente no Largo do São Francisco, Centro. O apartamento  divida,  se não erro,  com um irmão dele mais velho, João Alfredo Garcia, que me parece, naquele tempo,  já trabalhava  no Banco do Brasil,  pessoa  educada que conheci tempos  depois num encontro de piauienses em Santa Tereza,  bairro   velho  sobranceiro  ao Centro  do Rio, por onde, naquela  época se chegava de bondinho Ah, tempos dos bondinhos que trafegavam  pelas ruas do Centro,  do subúrbio e da Zona Sul carioca! Saudosos  bondinhos! Nos seus  dias finais! (2) Se assim o desejássemos,  podíamos      entrar no bairro a pé por outra passagem, através de   uma conhecida  escadaria, na  Lapa. 
   O tempo passou.  Ribamar Garcia se tornou advogado conceituado,  membro da OAB, da qual foi  conselheiro. Garcia fez brilhante carreira de advogado trabalhista.  Dirigiu durante trinta anos  o Departamento  Jurídico das Casas Sendas.   Montou, depois,  o seu próprio   escritório de advocacia na Rua Treze de Maio, onde milita até hoje sempre com a garra  e a disposição que o caracterizam.     
   Contudo, a faceta que mais  me interessa no amigo é a de  escritor, de ficcionista,  de contista,  romancista,  cronista, com  uma produção  bastante considerável em números  de livros. Atualmente,   é  um nome  consagrado não só no Piauí, mas em outras partes do país.
   O nosso reencontro  se deu  ao tempo em que eu já  estava   casado com a Elza e com dois filhos, Francisco Neto e Alexandre. Exercia intensa atividade docente em escolas  públicas e privadas no Rio de Janeiro. Uma vez,  estando com a  Elza,  o avistei saindo de um prédio da rua Almirante Barroso. Elza também o viu, mas não  me decidi a me aproximar dele julgando que  não me ia   reconhecer talvez.
    Mais uma vez,  entrando num  edifício altíssimo da  Rua Treze de Maio, me deparei com ele. Elza estava comigo. Por sinal,  ela o conhecia dos tempos em  que, ainda estudante secundarista,  fazia refeições no  Calabouço e  era estudante de uma amiga dela, a  Justina. Justina  cursava pedagogia  na  Nacional de Filosofia. Desta vez,  resolvi  cumprimentá-lo. Ele, vestido num terno  elegante,  ainda  bem moço, nos reconheceu. Trocamos algumas  palavras cordiais e ele mesmo me convidou a subir ao escritório dele.
    Foi ai que  se deu realmente o reencontro de dois amigos. Ele naturalmente  pensava que  só me dedicava inteiramente à minha  carreira de    professor inglês. Foi, então,  que lhe disse:  “Há tempos,  aliás, desde  Teresina,  que lido com  literatura   e escrevo para jornais  de Piauí.” Não sei se isso  o surpreendeu. Ele, por sua vez,  me confessara  queda mesma  forma   tinha escrito  um livro, um pequeno livro  de memórias sobre Teresina,  numa  exposição  deliciosa,  rememorando, com pinceladas vívidas,   a paisagem humana e urbanística  de Teresina. Antes de sair,  me ofertou  um exemplar daquele livro de estreia, mas sem autógrafo, cujo título  é Imagens da cidade verde. O livro, de capa  modesta,  fora impresso por conta  própria,  numa gráfica da Rua dos Inválidos., Centro do Rio.Abaixo do título se lia ”Depoimentos” e, ao pé da capa, o nome do autor.O título na capa, com  letras grandes e de cor verde, se sobrepunha ao mapa do Piauí. Nunca vi tanta simplicidade e tão bom gosto na ilustração  modesta e criativa de uma pequena  obra.Era dedicado, como o autor tem feito com  toda a sua produção, aos seus pais, só que neste  opúsculo a dedicatória se estendia ao nome de seu irmão, João Alfredo Garcia,  aquele mesmo  que com ele compartilhava  um apartamento  no Largo do São Francisco.
   Este livro, atualmente,  está na  terceira  edição, lançado pela Litteris Editora,   que tem  editado toda a sua  obra, embora alguns títulos tenham  sido publicados, em edições   anteriores,  por outra editora.De uma pequena obra inicialmente com  72  páginas,  Imagens da cidade verde se foi ampliando com novos textos e melhorando em todos os aspectos. Na sua mais recente edição, a 3ª edição, 2008, contém 104 páginas.
   Imagens da cidade verde,   a meu ver,  junto com  Em  preto e branco, Entardecer e Filhos da mãe gentil,  formam uma quarteto  do que de melhor  fez Ribamar  Garcia no campo  da crônica memorialística e da prosa de ficção. Tive  o prazer e a honra de poder  resenhar  boa parte de sua obra.
  O amigo  Ribamar  Garcia tem uma qualidade:a solidariedade nos momentos mais  espinhosos da vida de um amigo. Digo isso por experiência própria. Além de amigo  certo, foi um  grande filho, tem sido um grande pai, um avô cuidadoso e atencioso,  com seus filhos todos  bem  postos na vida ou se encaminhando bem na vida. Ribamar Garcia pode-se incluir como um  autêntico self-made man. Chegou ao Rio de Janeiro ainda  bem adolescente.
  Posto que, durante  tanto  tempo tenha sido seu  amigo e, de certa forma,  o considero  um irmão, já que irmãos  há só no sangue, mas não na alma,  com Garcia às vezes  discordo,   me irrito, mas algo  acima de nós permanece  sólido: a amizade.Esta o tempo e o espaço não apagarão.  

Nota: 
 (1) Cf. As ideias no tempo, op. cit., p. 27-29.
(2). Idem, p. 195-197.