domingo, 31 de outubro de 2010

Um morto ilustre não pode se defender

Cunha e Silva Filho


Não se pode falar de Monteiro Lobato (1882—1921) sem associá-lo à literatura infantil. Isso é já é muita coisa e o suficiente para reconhecê-lo como figura de proa das letras brasileiras. Seu personagem Jeca Tatu foi logo objeto da atenção do jurista Rui Barbosa que nele via um símbolo negativo dos males da nação brasileira: o do homem caipira, abandonado e maltratado pelos poderes públicos, cheio de verminose, vivendo de cócoras, descalço, preguiçoso por conta dos próprios vermes que lhe roíam por dentro.
Essa figura ganhou popularidade pelo país afora, porém uma popularidade que se prestava também para debates políticos, antropológicos sociológicas da constituição do nosso povo no que concerne ao problema da raça e de seus elementos formadores num país que longe estava de identificar e corrigir seus defeitos e suas exclusões, quer dizer, Euclides da Cunha (1866-1909), Lima Barreto(1881-1922), Monteiro Lobato e Graça Aranha (1868-1931), na fase literária a que se convencionou chamar Pré-Modernismo, contribuíram, cada qual à sua maneira, com uma ponderável visão social para melhor aprofundar, pelo viés ficcional, aspectos da realidade brasileira que estavam a exigir mudanças de interpretação isentas de ufanismos e de nacionalismos míopes que só serviam para escamotear as velhas chagas sociais, políticas e culturais que, no mínimo, vinham da República Velha. A vertente social desse período da literatura brasileira é um divisor de águas de estilos literários e de temas relevantes quando a confrontamos com o Parnasianismo e o Simbolismos, movimentos estes por excelência absenteísta nos temas e requintadamente formal na língua.
A primeira vez que tomei contato com a ficção lobatiana foi através do conhecido livro de contos, Urupês (1918), que pertencia à biblioteca de meu pai. Na época, não li o livro. Deixaria pra depois, porém um conto dele, “Negrinha”, o primeiro de um livro de título homônimo, li num manual didático já quando professor do ensino hoje chamado fundamental e médio. Fantástico o conto, e fantástico justamente porque toca num tema polêmico e ainda atual: a personagem central do primeiro conto, ”Negrinha,” que dá nome ao título da obra, é a vítima dos maus tratos da patroa. Nem é preciso dizer por que motivos a patroa a trata assim. Pois bem, essa história põe o dedo na ferida, a do preconceito não só em razão de Negrinha ser pobre, mas também por ser preta.
Numa reportagem de ontem, dia 30 de outubro, no jornal O Globo, leio, estarrecido, uma notícia de um parecer aprovado pelos membros do Conselho Nacional de Educação (CNE), órgão subordinado ao MEC. Segundo esse parecer, a personagem de Lobato, a tia Nastácia, tão conhecida por gerações de brasileiros que se tornaram, desde crianças, fiéis leitores do criador de tantas figuras estimadas por crianças (e adultos), é, agora, vista como um exemplo de construção literária vítima do preconceito racial da perspectiva do “autor.” Ou seja, os membros do CNE, ab initio, cometeram um erro imperdoável, o de confundir autor de carne e osso, no caso, Monteiro Lobato, e narrador, que representa apenas a configuração imaginária que deve ser compreendida do ângulo da narratividade e não a partir da realidade empírica ou referencial.
No mesmo erro incidiu a Secretaria do de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), que, numa “nota técnica” emitiu opinião contrária ao livro Caçadas de Pedrinho,” argumentando que ele só deveria ser utilizado caso o professor esteja preparado(!?)) para fazer a necessária contextualização histórica das causas que provocaram o abominável regime escravagista no país e suas sequelas futuras, as quais resultaram na estigmatização racista ainda de alguma forma resistente entre nós.
Vejo esse incidente lamentável como um sinal perigoso, ou melhor, obscurantista, para que novos casos semelhantes possam ocorrer com os autores brasileiros. Me lembro de que, certa vez, o escritor Darcy Ribeiro foi também vitima de leitura deformada, que via, na fala de um personagem de uma de suas obras ficcionais, conceitos inadequados do ponto de vista “moral”.
Situações como estas devem receber o repúdio dos que prezam a livre expressão do pensamento, sobretudo em se tratando de obra ficcional. Não estamos mais na Idade Média, nem vivemos num país fascista ou numa ditadura comunista, onde se costumava levar livros às fogueiras, apreendê-los ou punir os autores com prisões ou deportações para os Gulags da vida. O Santo Ofício é coisa para ser sepultada de forma definitiva. O Index librorum prohibitorum, que me perdoe o Vaticano, não foi bom exemplo para países que respeitam os direitos de expressão oral e escrita. Acredito até que os Nihil obstat nem mais aparecem nas páginas do verso de livros didáticos dos maristas. Ainda bem.
Por conseguinte, o Parecer do CNE, que deverá ser ou não homologado pelo Ministro da Educação, após a análise da Secretaria de Educação Básica, não pode ser deferido pelo Ministro, porque isso seria um retrocesso para a democracia que se afirma estar vivendo o Brasil.
O livro de Lobato, afirma a reportagem, já tinha sido distribuído a escola públicas do ensino fundamental através do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), entre 1998 e 2003. Cumpre lembrar, segundo a citada reportagem, que a liberação desses livros só se efetuou após seleção aprovada por especialistas recomendados pelo MEC. Como explicar essa mudança agora? Em questões que dizem respeito a seleção de obras para os alunos, cabe aos professores habilitados na área de literatura o encargo de cuidarem de assuntos dessa natureza. Não é porque algum estudante, mesmo de mestrado, com deficiência flagrante dos pressupostos práticos e teóricos de leitura e de conhecimentos sólidos de literatura, venha a fazer leitura unilateral e, aí si, preconceituosa de um autor, que seja levado em conta por órgãos da administração pública na área da educação, e provoque dissonâncias prejudiciais à memória de um dos escritores mais respeitados da história da literatura brasileira, autor querido do público infantil, aplaudido, certa vez, em Buenos Aires por seus méritos de autor para a infância. E não estamos ainda falando do seu papel em defesa do petróleo brasileiro, do ferro, da sua atividade de editor de à frente da Companhia A Editora Nacional. E de outras experiências editoriais, como a Revista do Brasil,
Se observarmos atentamente a condição da escola pública brasileira, quantas mazelas, quantas metas devem ser atingidas para que saia de um situação praticamente crônica que a tornou, aos olhos da sociedade, motivo de piada, de descrédito, tanto em relação à estrutura das escolas em si, a salientar sobretudo a baixa qualidade de ensino e de condições de trabalho, quanto no que tange aos vis salários ainda pagos aos professores brasileiros.Por que o MEC não se volta, isso sim, para esses graves problemas enfrentados pela educação do país? Se o fizesse, não haveria tempo e ócios bem remunerados por técnicos e coordenadores de universidades públicas e de órgãos do MEC para, em leituras apressadas e mal assimiladas, encontrar interpretações literais para textos que exigem um aparato mais complexo além das referencialidades extra-contextuais. É preciso atentar para o fato que não é apenas a aprovação de uma lei contra o racismo entre nós que vai mudar o interior das pessoas. O buraco está mais embaixo, quer dizer, está simplesmente no preparo cívico-moral de nossas crianças, desde a mais tenra a idade, para saber conviver com as diferenças de cor sem que isso implique inferioridade uma ou outra. Instilar a prática da convivência harmônica entre etnias me parece a melhor forma de se cumprir uma lei. O estigma do preconceito deve ser extirpado em definitivo do nosso mundo interior, de nossa ética de cidadania e respeito às alteridades.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Saudade, tempo e memória

Ai do homem sem saudade!
Alceu Amoroso Lima, Meditação sobre o mundo interior


Para M. Paulo Nunes

Cunha e Silva Filho


Não concebo como intelectuais, escritores, supostamente indivíduos sensíveis aos sentimentos, emoções, possam dar pouca importância a assuntos conexionados à saudade, tempo e memória, fundamentais veios hoje largamente investigados nos estudos literários por pesquisadores acadêmicos ou não acadêmicos.
O tempo é um a categoria literária no qual estão embutidas a memória e a saudade. Se alguém, por deficiência de sensibilidade, não valoriza o passado do prisma memorialístico nem sobretudo a saudade, é porque não habituou os ouvidos às ressonâncias estéticas que só nos podem vir do que se fixou indelevelmente na memória. Por conseguinte, sempre que o escritor recaptura memórias imaginadas ou mesmo vividas, ele o faz, não para simplesmente denunciar os erros pretéritos, mas principalmente para tentar recapturar aquilo que, para algumas pessoas, está sepultado.
Os mais proeminentes memorialistas, quer nacionais, quer estrangeiros, não reconstroem o passado, através da escrita, só motivados a cotejá-lo com o presente, sempre uma duração de natureza temporal instável e fugidia. Ao contrário, o passado vale na medida em que recompõe o que está disperso abstratamente. A função do memorialista se reveste da maior importância e, muitas vezes, muito pode ajudar os historiadores que, na memória literária, vão encontrar subsídios relevantes a fim de preencherem gaps históricos muitas vezes mais habilidosamente narrados ou recriados pela imaginação criadora. Os romances históricos estão aí não só para deleite estético, mas como alternativas fecundas para um outra visada dos acontecimentos históricos.
O tema da saudade, sentimento de fundo tão visceralmente romântico, cujas raízes mais delicadas podemos remontar à literatura galega, o qual, a partir dessa origem, se espalhou admiravelmente por várias literaturas do Ocidente, com relevo sobretudo para as literaturas portuguesa, espanhola e brasileira, numa influência poderosa e recorrente até aos tempos atuais, dificilmente não se torna um dos mais prezados pela alma brasileira, dessa alma que, para Ronald de Carvalho (1893-1935) “nascia de três grandes melancolias, sendo uma delas a saudade portuguesa (Cf.CARVALHO, Ronald de . Estudos brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A./MEC, p.71). O próprio termo “saudade” que, para os filólogos de procedência lusitana, não tem equivalência semântica rigorosa em outras línguas, constituindo para eles um exemplo de idiomatismo da língua portuguesa, encontrou entre nós um vasto campo temático a ser explorado, sobretudo a partir do introdutor do Romantismo brasileiro, o poeta Gonçalves de Magalhães (1811-1882), com a obra inaugural desse estilo literário, Suspiros poéticos e saudades (1836) e, em especial, com as obras de Gonçalves Dias (1823-1864) e Casimiro de Abreu ( 1839-1860) O mesmo tema da saudade magistralmente foi retomado, na literatura brasileira, por do Da Costa e Silva (1885-1950), poeta piauiense da fase epigônica do Simbolismo, de resto, poeta que escrevia em estilos múltiplos com inegável abertura para as formas modernas, sendo ele mesmo o autor do mais belo soneto em língua portuguesa sobre a saudade..
Subestimar o tempo, a memória e a saudade como possibilidades para o desenvolvimento da produção literária brasileira constitui, a meu ver, um reducionismo empobrecedor. Se o Romantismo é um dos estilos literários mais fecundos da literatura Ocidental, e com um papel inestimável até nos estudos filológicos assim como em outros domínios do saber humano (vide o pequeno e notável estudo de Sílvio Elia, O Romantismo em face da filologia.: [Porto Alegre]: Instituto Estadual de Cultura, Secretaria de Educação e Cultura. Cadernos), o tema da saudade, por tabela, é um dos vetores mais sólidos desse estilo, não se podendo, pois, conceber – vale frisar - a ideia de minimizar um veio dessa magnitude só porque comparações com o estado das coisas do presente não foram solucionados por desídia e falta de visão da administração pública.
A motivação de temas e gêneros literários são construções pessoais, subjetivas, cujo espaço maior e intransferível é o das afetividades, da captação da realidade através da ressignificação, pela memória do adulto, de fragmentos, pedaços e retalhos da memória, pessoal ou histórica, transformada, na complexidade da representação simbólica da escrita literária, em espécime literária de um dado gênero, que pode ser a crônica em suas várias possibilidades temáticas, o memorialismo, o romance histórico, o romance tout court, a novela, o conto, a poesia, a peça teatral.
O compromisso do escritor é, antes de tudo, com a linguagem literária e suas implicações diversas, não se excluindo o dado social que, por sua vez, é índice inequívoco de que, ao expor aspectos memorialísticos do ser do escritor, não está sonegando os desacertos do presente e seu desconforto com a destruição do que era bom do passado e podia ser preservado se não fosse a ação deletéria do homem impulsionada pela avidez econômica sem sustentabilidade. Daí sua procura do que foi tragado pelo tempo, seja do ponto de vista das relações humanas, seja do que se transformou em ruínas no presente: construções, manifestações culturais, hábitos, sociabilidades etc. As emoções agradáveis do passado não podem responder pelo desatinos da insensibilidade do presente.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Um poema de Patience Strong (1907-1990)

Punchinello


Do you face the future
With a breaking heart?
Be a Punchinello,
Laugh, and play your part –

Give a brave performance
When the curtains rise,
Smile, and face the music
With a gay disguise.

No one wants your sorrow,
No one wants your tears,
Let your song go ringing
Down the empty years –

Let them hear your laughter,
Let them see you act,
Though the soul within you
May be torn and racked.

Sham and fake and glamour,
Life is a circus show!
Masquerade of pleasure,
Grief, and want and woe –

Though your dreams have ended,
And Love’s has gone,
It’s a non-stop programme
- And the show goes on!


Polichinelo

Encaras o futuro
Tendo, sangrando, um coração?
Polichinelo vai ser,
Ri, o papel teu desempenha –

Ousado, mostra teu desempenho
Quando levantarem as cortinas,
Sorri e a música enfrenta
Com uma máscara de alegria.

À tua dor ninguém atenção dará,
Tuas lágrimas ninguém ver desejará,
Deixa que se espalhe a canção
Pelos vazios anos vindouros –

Que os teus risos ouçam,
Que a tua arte vejam,
Ainda que, lá no fundo d’alma,
Despedaçado, atormentado, sentir-te possas.

Simulacro, engodo e glamour,
A vida, um mundo circense!
Mascaradas de prazeres,
Aflições, carências e desgraças -

Posto mais sonhos não acalentes,
Assim como finda está do Amor a alegria,
Que nada mais é senão eterno programa
- Continuar deve o show!

(Tradução de Cunha e Silva Filho)

* NOTA: Patience Strong é pseudônimo da poeta inglesa Winifred Emma.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Sobre opiniões

Cunha e Silva Filho


Considerando-se todos os aspectos da vida, aí incluindo homens, objetos, coisas, meio ambiente, artes em geral religião, correntes filosóficas, teorias críticas em geral, política, modas, sexualidade, entre outros exemplos suscitados pelo momento presente da escrita, há um denominador comum permeando o conceito geral de opinião emitida: dependendo das circunstância do interlocutores, alguns indivíduos se mostram muito frágeis, muito tolerantes em relação aos outros com quem estão sustentando um diálogo, uma conversa ou mesmo um papo informal.
Se o interlocutor é conhecido, mas não chega ao nível de amizade, as informações trocadas, os juízos expressos viram muitas vezes amenidades, sem que tenham algum peso das verdades mais profundas, dos argumentos mais convincentes, das visões mais justas sobre um dado tema ou questão.
O diálogo, então, assume um nível superficial, só de convenções, avesso que fica ao tom polêmico, ao embate dos pontos de vista. Nenhum dos dois interlocutores está naquele lugar, naquela hora propenso a desavenças. Desta forma, tudo que diz ,de parte a parte, é apenas ouvido ou respondido com um sorriso, às vezes escondendo uma sutil ironia ou discordância, sem prejuízo para o agradável momento de descontração ou de atualizações de ambos sobre o passado, o presente e o futuro, que não pertence a nenhum dos dois, mas a Deus.
Sempre gostei de ouvir entrevistas com pessoas experientes e cultas expondo pensamento sobre um determinado tema. Entretanto, tenho observado que, em entrevistas, as perguntas podem ser inteligentes, porém os entrevistados, ao responderem, dão a impressão de que não desejam afirmar o que realmente pensam, tergiversam e, ao final, não revelam o que no fundo sentem ou pensam sobre isso ou aquilo. Quando a pergunta diz respeito a uma opinião sobre alguém, para elogiá-lo ou não, os entrevistados preferem o elogio cômodo.. Eximem-se, assim, das repostas que desagradam a pessoa-alvo das indagações.
Hoje, ninguém deseja mesmo enfrentar com coragem, com sinceridade e sem medo de que suas repostas acarretem melindres, reações explosivas de descontentamento, susceptibilidades em terceiros. Há um certo horror atual ao confronto, sobretudo no campo das ideias e em qualquer área do conhecimento. Lembro o leitor de que o tema que, agora, levanto se circunscreve ao âmbito das opiniões em conversas mais leves entre os indivíduos que não se situam nos rituais dos meios acadêmicos.
Até posso perceber e mesmo compreender esse lado leniente entre locutores e interlocutores. De parte a parte, não se tem em vista ferir ou ser indelicado com quem se estabelece o circuito de uma conversação. Por outro lado, não posso deixar de reconhecer que os diálogos mantidos nesse tom contemporizador tem lá suas inconsistências, seus vazios, seus silêncios, seus fiapos de hipocrisia ou de falsa concordância.

A natureza das opiniões casuais, por si mesma, se constrói de defesas implícitas, de não querer penetrar na zona do conflito. Por isso, é cuidadosa, parece perder sua personalidade e sua real essência – lugar privilegiado no qual se encontram descobertos o véu da fantasia e do convencionalismo -, quer dizer, os espaços intelectuais sem interditos, que se tornam abertos aos avanços em direção ao conhecimento produtivo nos vários domínios do conhecimento humano, seja na ciência, na técnica e nas investigações epistemológicas.
As opiniões são apenas momentos artificialmente criados a fim de que a roda do convívio interpessoal se mantenha no cotidiano da vida, sobretudo nas sociedades afluentes de hoje, onde todos correm apressados para algum lugar e indiferentes aos indivíduos à sua volta. Perto estão todos num mesmo espaço, ainda que agradável, mas ao mesmo tempo afastados estão todos uns dos outros.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A verdade de cada um

A verdade de cada um

Cunha e Silva Filho

No caldeirão de tantos partidos políticos e candidatos de todas as cores, chega-se a um ponto em que a questão política ou vira fanatismo, ou credo religioso. Neste caso, torna-se impossível atingir-se um nível ideal de compreensão do que existe nos bastidores dos dois lados da campanha presidencial. Fica sempre uma dúvida que se instala na cabeça de cada um.
No fundo, não se sabe, ao final, quem está com a verdade, i.e., quem está dizendo aquilo que de concreto vai fazer em prol do país, quem é íntegro e não mistifica e, assim, várias perguntas podem vir à tona: Quem é sincero e quem é vilão? Quem realmente quer o nosso bem, individual ou coletivamente? Quem está se aproveitando da ignorância do povo? Qual a consciência política de quem vai votar? Quem manipula e quem é manipulado? Todas as classes sociais, por mais intelectualmente exigentes que sejam, não estão imunes de erros. Todos pensam que estão certos e com o candidato certo. De parte a parte, na questão político-partidária, a última palavra nem sempre é a que está certa.
A mídia aí está pronta a mostrar erros e acertos dos dois lados. A paixão cega, em matéria de política e no fogo cruzado da campanha, sobrepõe-se à razão. Só vê o que deseja ver. Ou é oito ou oitenta. Para o bem ou para o mal.
Quanto aos segmentos sociais mais elevados ou elevadíssimos, as chamadas classes média, média baixa, média alta, ou a endinheirada burguesia, vê-se que estão bem divididos e se autoproclamam da direita, da esquerda, do centro, da centro-direita, numa mixórdia de dar dor de cabeça a qualquer cientista político.Alguns debandaram-se para o Serra, outros para a Dilma, outros mais para a Marina Silva. O quadro se complicou. Tudo na campanha é possível de se ouvir e de se fazer. Um candidato é vitima de uma bolinha de papel que lhe atinge a cabeça e logo em seguida lhe atiram um objeto mais pesado. Na candidata da situação, não sei se é verdade, jogaram uma ducha d’água na cabeça ou um grupo de militantes da oposição, exaltados, lhe vieram cobrar reivindicações que a deixaram irritada.
O Presidente Lula deu uma de Nero e culpou os próprios correligionários de Serra como os mandantes dos arremessos da bola e do objeto não identificado.A decência política foi jogada no lixo.
Tenho ojeriza a fanáticos políticos de ambos os lados. São pessoas que agem tresloucadamente. Sua arma é a violência, o palavrão, a gritaria babosa, as ameaças de confrontos físicos, a batalha campal, que nada constroem. Não raciocinam, apedrejam. Não pensam, agem bestialmente. Esquecem-se de que são pessoas da mesma pátria, da mesma língua. A vitória conquistada com a barbárie não é conquista, mas retrocesso, covardia, desvario. Não une os brasileiros, divide a Nação. Aos fanáticos políticos, inimigos do diálogo e da argumentação sensata, o meu repúdio de brasileiro descontente com todos os atos impuros dessa corrida à Presidência. Que o povo brasileiro dê a vitória do candidato ao mais alto cargo do país imitando eticamente, pelo voto, a resposta, à hora da morte, de Alexandre Magno (356 a. C. – 328 a.C.), rei da Macedônia, aos generais que lhe perguntaram a qual deles daria sucessão: “ao mais digno.”

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Umpoema de Anatole France (1844-1924)

La mort d’une libellule


Um jour que voyais ces sveltes demoiselles,
Comme nous les nommons, orgueil des calmes eaux,
Réjouissant l’air pur de l’éclat de leurs ailes,
Se fuir e se chercher par-dessus les roseaux,

Um enfant, l’oeil en feu, vint jusque dans la vase,
Pousser son filet vert, à travers les iris,
Sur une libellule; et le réseau de gaze
Emprisonna le vol de l’insecte surprise.

Le fin corsage vert fut percé d’une épingle;
Mais la frêle blessée, en un farouche effort
Se fit jour, et, prenant ce vol strident qui cingle,
Emporta vers les joncs son épingle e sa mort.

Il n’eût pas convenu que, sur une liève infame,
As beauté s’étalât aux yeux des écoliers:
Elle ouvrit pour mourir ses quatre ailes de flamme
Et son corps se sécha dans les joncs familiers.


A morte de uma libélula

Certa vez, vi essas esbeltas mocinhas,
Como as chamamos, orgulho das águas calmas,
Deliciando-se no ar puro do brilho de suas asas
Evadirem-se e se procurarem por sobre os caniços.

Uma criança, o olho afogueado, veio até ao vaso,
Através dos íris, uma rede verde estender
Sobre uma libélula e a rede de gaze
Impedir do inseto surpreendido o vôo.

Foi, por um alfinete espetado, o fino corpinho verde;
Porém, a frágil criatura ferida, com um enorme esforço,
Alento recobrou e, alçando voo, estridente singrou,
Em direção aos juncos, levando o alfinete e a morte.

Sobre uma cortiça infame, não lhe convinha,
Aos olhos dos escolares, a beleza exibir:
Abriu, então, pra morrer, as quatro asas de chama
E, nos juncos familiares, o corpo secou.

(Tradução de Cunha e Silva Filho)

domingo, 17 de outubro de 2010

O intelectual e a política

Cunha e Silva Filho


O que sucintamente procuro discutir neste artigo é a relação conflitante entre o pensamento político e o intelectual. Ou seja, por que intelectuais, diante de fatos praticamente indefensáveis, se põem na defesa de algum partido e outros lhe são hostis e advogam ideias opostas?
O tema é polêmico e ao mesmo tempo implica, em princípio, uma contradição unilateralmente apresentada, que por isso mesmo se torna próxima daquele fanatismo tão comum nas discussões sobre futebol e religião.
A minha hipótese tem como fio condutor de raciocínio o seguinte: por que homens com inteligência brilhante e boa ou excelente formação cultural se mostram tão paradoxais a ponto de enxergarem apenas o lado positivo de um governo e propositadamente omitem os seus desacertos político-governamentais, aqui envolvendo lideranças, planos de governo e outros aspectos relevantes?
Alguém, então, poderia me interpelar: Isso não é pluralismo de ideias e de doutrina partidária? Não é fecunda a divergência de opiniões a que cada indivíduo tem direito? Do contrário, se todos pensassem de forma igual, não seria isso desastroso ao debate vigoroso e produtivo ?
Sim e não. A história, contudo, nos dá exemplos suficientes na elucidação dessas indagações. Veja o caso do filósofo alemão Heidegger, cujo nome terminou ficando associado ao nazismo. Veja um outro, o do poeta Jorge Luis Borges em relação à ditadura argentina. No Brasil, houve o exemplo de um dos mais completos ensaístas que o país já deu, o do crítico literário, pensador e diplomata José Guilherme Merquior, que, no governo do General Médici, foi assessor do Chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu e, mais tarde, no governo Collor, foi um dos principais assessores, para assuntos econômicos e ideológicos, introduzindo. as ideias neoliberais, o chamado “social liberalismo’ ao lado de Roberto Campos.
Essa posição de desconforto, na qual o intelectual é posto diante dos impasses políticos, não é de hoje. Haja vista o exemplo do poeta Carlos Drummond de Andrade que, em 1930, no início da ditadura Vargas, foi chefe-de-gabinete de Gustavo Capanema, assim como acompanhou este quando, durante três meses, foi Interventor Federal em Minas Gerais.
A verdade é que, em se tratando de orientação político-ideológica, não há como conciliar intelectuais e vida política. Neste sentido, o que resulta é a sensação de que posicionamentos antagônicos mostram-se quase sempre permeáveis às ambiguidades no instante em que explicitamente os intelectuais pensam sobre partidos políticos, a política e a militância política, principalmente quando escrevem livros, colaboram para jornais ou revistas com trabalhos a favor ou contra candidatos a cargos políticos. Nessa ocasião, é que revelam com nitidez o seu alinhamento político e suas próprias contradições.
Me recordo de que, no auge das divulgações do chamado “Escândalo do Mensalão”, o “Jornal do Brasil”, numa página especial, publicou magníficos artigos de Ivo Barroso, poeta e renomado tradutor, do ficcionista Antônio Torres e, na coluna de Fausto Wolf, outros tantos artigos desassombrados desse saudoso jornalista e escritor.
Eram artigos fundamentais à compreensão da realidade brasileira e, em particular, dos episódios deploráveis de escândalos e denúncias que pipocavam no governo do Presidente Lula. Além de corajosas, essas matérias vinham a se constituir, assim, como o deslanchar de outros futuros escândalos de malversação do dinheiro público, tráfico de influência, nepotismo e outros males que grassaram no governo federal. Enquanto isso, intelectuais simpatizantes ou filiados ao PT, possivelmente constrangidos com os desastres do governo, cada um a seu modo, se afastaram da militância doutrinária do partido, ou preferiram permanecer na neutralidade do silêncio. O leitor inteligente sabe a que pessoas me refiro.
A contradição – ponto crucial da minha hipótese -, consiste em verificar que, nos dois mandatos do Presidente Lula, tendo sido amplamente divulgados os já mencionados sucessivos escândalos e denúncias de corrupção, que se arrastam em outros episódios até hoje, intelectuais conhecidos e respeitados saem a campo em defesa cega do governo federal, bipolarizando, desse modo, entre eles e os da oposição, as duas posições e reforçando a contradição em causa. A partir de então, o papel do intelectual da situação, que se esperava fosse imparcial aos acontecimentos condenáveis e altamente lesivos aos interesses da nação e do estado democrático, se altera e cede vez às paixões e interesses pessoais e sectários. Passam alguns a defender o partido de sua opção com argumentos e retórica habilmente articulados e encontrando uma ardilosa fórmula de transformar erros e desacertos em procedimentos corretos.
Na minha condição de leitor, o que mais me surpreende vem a ser a capacidade que as estratégias discursivas construídas revelam de tendenciosas e de mistificadoras, fazendo silenciar verdades, fatos e acontecimentos que pertencem agora à cronologia da história política brasileira nesta primeira década de um novo milênio.

sábado, 16 de outubro de 2010

O universitário, a avaliação e o crescimento intelectual

Cunha e Silva Filho

Um grande erro cometem alguns educadores e avaliadores acadêmicos no tocante à vida do estudante quando este, por uma razão ou outra, não apresenta, ao longo de seu curso de graduação (denominação, de resto, hoje mais usual por influência ou imitação do termo “graduate” de universidades americanas, antigamente mais conhecido entre nós pelos nomes de bacharel e licenciado) um desempenho bom ou excelente dentro de um padrão uniforme de notas ou graus.
Alterando as circunstâncias impeditivas de o discente mostrar todo o seu potencial durante o curso superior, esquecem alguns educadores que o aluno pode, anos depois, demonstrar todo o seu talento e a sua capacidade de aprimoramento, galgando posições de relevância na vida profissional e na mesma área em que concluíra seu curso escolhido.
Não se lembram alguns educadores de que os discentes podem surpreender seus antigos professores, sobretudo, os que não apostavam na competência dos ex-alunos. Lamentavelmente, os professores demonstravam estar despreparados para sentir as reais habilidades de alunos que, no juízo deles, não prenunciavam nenhum êxito profissional. Eram docentes aos quais faltava o necessário descortino para auscultar as potencialidades dos alunos sob sua orientação. Sei de alguns que chegaram ao ponto de desestimular jovens alunos que, no futuro, provaram ser justamente o contrário do julgamento deles. A história da educação brasileira precisa dar fim a essa discrepância pedagógica distorcida, nociva e apressada.
As considerações que aqui trago à atenção do leitor se devem a um aspecto da vida acadêmica ainda preso à questão da exigência, em concurso público, do histórico escolar do candidato além do respectivo diploma de graduação. A mesma exigência se estende aos diplomas de pós-graduação stricto sensu (mestrado, doutorado, pós-doutorado).
Ora, o histórico escolar de um educando graduado em universidade brasileira não é fator determinante na avaliação do candidato na situação levantada e defendida nesse artigo, quer dizer, o universitário pode ter tido um desempenho médio ou de altos e baixos na graduação e, no entanto, no histórico do mestrado ou doutorado, exibir um bom ou excelente rendimento. Ou, por outra, não é seu histórico passado, em outra fase de seus estudos superiores que balizará sua competência atual, porém o que, aos olhos do presente mostra a evolução do candidato e sua produção intelectual. Por conseguinte, o passado do estudante não deve e não pode ser tomado como fator desabonador do candidato que realizou grandes progressos na sua carreira e dentro de sua estrita área de atuação.
Desta forma, no exame de avaliação em concurso público, não vejo como imperativo e indispensável a exigência do histórico escolar da graduação que, a meu ver, não pode nem deve influenciar na avaliação do candidato desde que não se perca de vista a argumentação que aqui defendo. Reitero que muito mais pesam os anos posteriores do candidato – porque isso ilustra o quanto a inteligência e o amadurecimento do indivíduo, em determinada área do conhecimento, pode alcançar no concernente ao seu desenvolvimento intelectual - do que as circunstâncias vivenciadas pelo aluno ao tempo da sua graduação.
O aperfeiçoamento e a determinação a que chegou o candidato a concurso público antes reforça um motivo a mais para aplaudir-se a trajetória por ele percorrida. Isso mostra o quanto o ser humano é capaz de, com força de vontade e desejo de superar-se, atingir níveis muito mais complexos durante a sua vida útil como profissional, estudioso e um ser em constante transformação nos seus valores adquiridos, na sua vida produtiva e na sua condição de sujeito e agente dinâmica, ética e culturalmente considerado.
Por conseguinte, na avaliação do candidato devem-se priorizar os componentes dinâmicos e atualizados do indivíduo. Neste se devem buscar dados ponderáveis do ser na sua essência presente e na perspectiva de construtivas realizações. Que sejam minimizados aspectos da pessoa humana balizados meramente a partir da imaturidade temporária tão comum aos jovens. Importa o presente da individualidade adulta já forjada com o necessário crescimento que só os anos mais tarde se encarregaram de modificar e aproximar daquele nível ideal sonhado e, muitas vezes, a duras penas conquistado.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Um poema de Thomas Hardy (1040-1928)

The Shadow on the Stone


I went by the Druid stone
That broods in the garden white and lone,
And I stopped and looked at the shifting shadows
That at some moments fall thereon
From the tree hard by with a rhythmic swing,
And they shaped in my imagining
To the shade that a well-known head and shoulders
Threw there when she was gardening.

I thought her behind my back,
Yea, her I long had learned to lack,
And I said: “I am sure you are standing behind me,
Though how do you get into this old track”
And there was no sound but the fall of a leaf
As a sad response; an d to keep down my grief
I would not turn my head to discover
That there was nothing in my belief.

Yet I wanted to look and see
That nobody stood at the back of me;
But I thought once more: Nay, I’ll not unvision
A shape which, somehow, there may be.”
So I went on softly from the glade,
And left her behind me throwing her shade,
As she were indeed an apparition –
My head unturned lest my dream should fade.


A Sombra na Pedra


Fui até à pedra druida
Que, branca e solitária, no jardim resiste,
Para as sombras mutáveis parei e olhei
Que, por alguns instantes, ali surgem
Da árvore vizinha num balanço rítmico,
Alguma forma toma no meu devaneio
Igual à sombra que uma cabeça e ombros
Do jardim cuidando se projetam ali.

Atrás de mim, senti-a,
Sim, dela aprendi, com o tempo, a grande ausência suportar,
Assim, lhe falei: certeza tenho que atrás de mim estás,
Como, apesar de tudo, até aqui chegar consegues?”
Silêncio absoluto quebrado apenas por uma folha caindo
Como se fora uma triste resposta; e, para meu pesar amenizar,
Vontade não senti de me voltar pra atrás a fim de descobrir
Que não havia nada do que pensava.

Entretanto, olhar queria e ver
Que, por trás de mim ninguém estava;
Contudo, uma vez mais pensei: “Não, ver não quero
Uma forma que, de algum modo, possa ali estar.”
Assim, do atalho suavemente me afasto
Deixando sua forma atrás de mim projetando-se,
Como se verdadeiramente um aparição fora –
A cabeça firmei para que do sonho não despertasse.


(Tradução de Cunha e Silva Filho)

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Momentros de spleen

Cunha e Silva Filho


Não pense o leitor que o spleen dos românticos do século 19 acabou em definitivo. Não, não acabou, pelo menos pra mim, de quando em quando, me bate à porta e vem com toda a força. Da mesma forma, não sei se o verdadeiro spleen romântico que assolou os espíritos dos jovens poetas ocidentais daquele século só a eles dizia respeito.
Julgo que não, pois com intensidade ele me vem ao meu pequeno mundo interior, e me deixa em desalento à maneira do “mal do século”. Vem de uma tristeza que não tem uma explicação maior, já que o sentimento de descrença se nutre do instante presente, do fortuito, de certas ilusões e desilusões inconfessáveis nos períodos difíceis da existência.
O Brasil é um país que atualmente vai melhor na economia, na vida dos menos favorecidos, e tão quanto ou mais na dos favorecidos pelo berço de ouro, pelo grande capital.
No entanto, o país não vai bem politicamente, sobretudo porque, avaliando ângulos da vida brasileira, o quadro que dele tenho é patético. Essa avaliação me leva à seguinte constatação: cada vez mais sinto que os homens, que deviam unir forças em direção a genuínas convicções, se dividem inescrupulosamente, falseando verdades e fatos de quem está no poder, e o mais grave é que, de lado a lado, pouco de grandeza humana se oferece de bom.
Os homens estão divididos, a sociedade está se tornando errática do ponto de avista político. Isso não é um fato novo. Vem de longe. Vem de sempre, aqui e além-fronteiras.. Sem limites e sem tempo. Questão universal. O país, em todos os seus momentos mais problemáticos, sempre mostrou divisões espúrias, contraditórias, inconciliáveis. Todos pensam a partir do seu próprio umbigo, e o umbigo humano é pleno de vaidades.
Não há, a meu ver, saída para essa clivagem político-ideológica – raiz da condição irreconciliável. As duas margens do rio não se entendem. Há que procurar uma saída para uma “terceira margem”, a daquele personagem roseano. Não se confunda terceira margem com terceira via.
A pós-modernidade cada vez mais está confusa, pois ela se alimenta das superposições espaciais, temporais, das assimetrias, da indiferença e, principalmente, do individualismo exacerbado. E mais: ela sobrevive não da transparência, mas das zonas cinzentas. Não aprecia a claridade solar, mas a penumbra, o lusco-fusco. Filia-se ao caos, promove-o e, assim, mantém-se no domínio de si própria.
Nessa ambiência de superposições, de aberturas e fechamentos pra todos os lados, na contrafação, no jogo das aparências de supostas verdades, a nossa era, o nosso tempo, o temo presente, o “homem presente” drummondiano, se vai desgastando, esfacelando-se no que há de mais lídimo na existência: o respeito à verdade, ao relacionamento entre os indivíduos.
A nossa contemporaneidade deu as costas à autenticidade das pessoas. Ninguém é visto mais em sua pura verdade humana. Nos tornamos servos da indiferenciação dos gestos, das ações. Tudo se fragmentou, até o amor que de virtuoso passou a exercitar o mero interesse gerado pelo endeusamento dos bens do parceiro. Amor contratual. Amizade contratual. Sexo contratual. Não se quer mais a amizade genuína, incondicional, desinteressada. Não se quer mais o amor do tempo do Romantismo. Vive-se hoje a ausência quase completa da elevação dos sentimentos. Onde estão os amigos, que não mais nos querem? Fugiram para os seus nichos, para suas torres de marfins, para seus castelos medievais. Hoje, só vejo a multidão sem rosto, apressada, anônima. Estou perdido no meio dela e por isso, vivo o outono do spleen tardio.

Em cima do muro

Cunha e Silva Filho


Hoje, à noite, pela Bandeirantes, haverá um debate do segundo turno entre os candidatos ao cobiçado cargo da presidência da República do Brasil. Não sei se outro canal de TV também ainda realizará outro debate. Dizem os entendidos em política que o de hoje será definitivo, decisivo à vitória de um ou outro, e mostrará, ademais, a competência real dos candidatos, já que o tempo pras perguntas, réplicas e treplicas será maior, dando, assim, mais possibilidade de aprofundamento às questões levantadas no debate. Uma coisa, contudo, paira no ar e principalmente na consciência travessa do eleitor que, mais do que nunca, se torna agora o bem móvel mais apetecido de ambos os concorrentes. No fundo, creio que todos os eleitores, excetuados os fanáticos dos dois lados, ainda lutam intimamente com uma boa margem de indecisão quanto à escolha de Dilma ou Serra.
Sabe-se que principalmente deste novo meio de comunicação globalizada vindo pra ficar, a Internet, o internauta vem sendo bombardeado de mensagens relativas aos dois candidatos, as quais, pelo seu conteúdo, quer pulverizando a dignidade de um e de outro, quer lhes fazendo o panegírico de virtudes e qualidades, exerce um forte apelo, com seu canto de sereia, às convicções do eleitorado, até mesmo de eleitores que têm senso crítico acima da média daqueles oriundos de baixa formação cultural.
Tanto a candidata Dilma Rousseff quanto o José Serra, através das aliciantes estratégias de marqueteiros ou mesmo de opiniões escritas de figuras de projeção intelectual dos diversos setores sociais, políticos, culturais, religiosos, acadêmicos, são favorecidos e chancelados de tal sorte que, ao final, o eleitor, mesmo politizado, fica um tanto indefinido pro ato final de digitar o nome do candidato na urna eletrônica.
No fundo, entendo que a verdade política nada possui de racionalidade ou lógica, precisamente porque, ao decidirmos por um candidato, sofremos as pressões inconscientes, subliminares, influências da família, de amigos, de colegas de trabalho, de interesses inconfessáveis e – por que não declarar – de medo de mudanças caso um candidato de oposição vença o pleito. O desconhecido, o novo possuem algo do mistério, do imprevisível, do incerto. Na situação em que se encontra o país, com economia estável e avanços no poder de compra de parcelas menos aquinhoadas da sociedade, o cidadão eleitor receia alterar o time vencedor. Não lhe agrada o tiro no escuro. Lá no mais profundo do nosso sentimento íntimo, pesamos todos esses componentes formadores de nossas decisões para o ato da escolha sem volta..
No jogo dialético entre as acusações de campanha de ambos os candidatos, do que lemos na imprensa, do que ouvimos nas TVs, do que tomamos conhecimento nas redes sociais pela Internet, afora as ponderações, segundo salientamos, de amigos, familiares e de setores representativos da sociedade em geral, do nosso repertório cultural e de experiência de vida, não resta dúvida de que, na última decisão, na solidão da urna eletrônica, exista uma vontade, ainda que meteórica, de permanecermos numa espécie de terceira falsa opção: a de ficar em cima do muro.
Certa ou errada, essa é a vontade que se apodera de mim e pressinto que de outros cidadãos brasileiros diante da grande esfinge eleitoral, da qual dependerá o bem-estar do país e de seu povo ou o fracasso de um novo governo.
Em decorrência dessas argumentações e de outras, vejo o quanto é espinhoso compreender as múltiplas motivações que conduzem os indivíduos a escolherem seu candidato. Evidente é que me reporto aqui aos eleitores íntegros e responsáveis ante a decisão derradeira de sua vontade política.
A incerteza, o estado de ânimo de ficar em cima do muro fazem parte da natureza humana. Seria uma atitude reprovável? Talvez não inteiramente. Está mais para um “lavar as mãos à Pilatos. Quer dizer, se uma maioria se decidiu por alguém, entre duas alternativas, que valha a maioria. Ao lavar as mãos, alguém pode se sentir aliviado do peso da consciência de um possível e lamentável erro. Reconheço, no entanto, ser paradoxal esse raciocínio, porquanto ele se instala no terreno da omissão e esta pode ser prejudicial se tomada por um número considerável de votantes.
O eleitor, reconheço, é um ser humano, sujeito ao engano, um ser, portanto, imperfeito, confuso, volúvel e contraditório. Além disso, a possibilidade de permanecer em cima do muro não deixa de ser uma abstração, um ato em potência até saudável, que, de quando em vez, pode se insinuar nas consciências individuais face ao mal-estar das incertezas geradas pelo ceticismo dos desapontamentos e desenganos do eleitorado diante dos políticos do país.

domingo, 10 de outubro de 2010

Resultados de pesquisas (provisórios)

Cunha e Silva Filho


Por mais de uma vez, já falei sobre o carinho que sempre dispensei prodigamente aos meus amados livros didáticos..Parece uma obsessão. Mas, não é. È pureza afetiva, desejos de acariciar, de cuidar, de protegê-los até onde me sobrarem forças e lucidez. No decorrer dessa travessia, entre perdas e ganhos, ganham estes, contudo aquelas como doem para lembrar o sentimento de um verso drummondiano.
Me tinha prometido empreender uma longa e cansativa pesquisa, que consistia em readquirir aqueles livros do meu tempo de ginasiano e do curso científico. Só que o meu “recorte”– pomposo jargão acadêmico – pendia mais , o melhor, apenas se inclinava às áreas de estudos vinculadas às minhas preferências mais fortes, sobretudo para aqueles anos já agora distantes: literatura, a língua portuguesa, as línguas estrangeiras, que estudei na adolescência em Teresina.
Obviamente, a minha pesquisa, ou melhor dizendo, as pesquisas nada tinham a ver com a CAPES, o CNPq ou outras instituições de fomentos que concedem bolsas de estudos. Não, leitor, a minha bolsa é livre e desimpedida. Não sofre restrições nem é recusada, PIS só depende da minha vontade, esforço do sacrifício do dispêndio financeiro pessoal. Poder-se-ia chamá-la de auto-pesquisa, para a qual existe uma exigência intransferível: só a mim cabe toda a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso. Também creio que ela jamais seria aprovada pelos doutos, consultores ou orientadores das instituições de pesquisa no país. Tampouco me renderia dividendos pecuniários ou proeminência acadêmica.
Estou me lembrando do que li sobre Odilon Nunes( 1899-1989), o maior historiador piauiense, em recente estudos dos historiadores e pesquisadores piauienses Fonseca Neto e Teresinha Queiroz e pela mestranda em História do Brasil da UFPI, Iara Conceição Guerra de Miranda Moura publicados na revista Presença, nº 44, Ano XXIV, 3º Quadrimestre, do Conselho Estadual de Cultura e da Fundação Cultural do Piauí, sob a presidência do ensaísta M. Paulo Nunes. Os três autores focalizam a vida e principalmente a obra daquele eminente estudioso e pesquisador da história piauiense e o que me chamou a atenção na biografia de Odilon Nunes era a sua admirável dedicação aos estudos, praticamente feitos por conta própria, gastando dinheiro do próprio bolso, em sua ingente e laboriosa atividade de autodidata, debruçando-se nos arquivos da Casa Anísio Brito, hoje Arquivo Público do Piauí, antigo arquivo, biblioteca e museu .
Porém, não quero afirmar com isso que ela seja feita sem os inúmeros cuidados das pesquisas oficiais ou acadêmicas.
Tampouco me servirá como um item significativo a ser acrescido ao meu curriculum vitae ou o prestigioso Lattes.

Resumindo ao máximo, os resultados foram os seguintes até à data presente:
1) Alguns livros procurados foram - não sem muito esforço – encontrados, em especial, os referentes a línguas estrangeiras.
2) Me foi de extrema valia o que encontrei na internet através das benditas livrarias virtuais, às quais tributo nestas linhas minhas homenagens e meus mais sinceros agradecimentos.
3) A pesquisa me ajudou num outro aspecto: além de encontrar exemplares dos meus livros didáticos perdidos, aproveitei o ensejo para completar as coleções de algumas obras. Foi prazerosa essa conquista.
4) Pude chegar a uma conclusão inestimável: os livros antigos, bem escritos e bem dosados, por exemplo, das décadas de 30, 40, 50 e 60 abrangidos no meu recorte, me foram de extremo proveito, intelectualmente falando, visto que aproveitei a oportunidade pra lê-los na íntegra, hábito não muito comum entre os estudantes. Resultado: ganhei em aprimoramento cultural. A experiência didático-metodológica do passado também nos ensina, e como!
5) Pude ainda comprovar o quanto me foram preciosas essas obras encontradas depois de tantos esforços nessa “caçada aos livros”.
6) Melancolicamente, nessas pesquisas um objetivo não consegui lograr: colher dados biográficos da maioria de seus autores. Compreendi que autores didáticos se tornam praticamente anônimos e efêmeros, notadamente hoje com um mercado editorial gigantesco e altamente competitivo e, agora, ainda mais com os avanços da impressão virtual e com o mercado de livros estrangeiros.
7) Me vi compelido a acrescentar mais um aspecto, a meu ver, fundamental: como conseguir localizar livros que, por uma ou outra circunstância, especialmente a relacionada a mudanças de domicílios, perdi ou – quase aos prantos – deles fui obrigado a me desfazer? Guardadas as diferenças, semelha à perda de um amigo.No meu caso particular, há, pelo menos dois ou três pequenos volumes que há anos venho tentando encontrar, o que me entristece profundamente. Até uma vez escrevi uma crônica de título “livros perdidos” que faz parte de um livro meu As ideias no tempo. Me pergunto: Onde estaria aquele livrinho, Coração(Cuore) de Edmundo de Amicis (1846-1908) que me causou constrangimento com o dono ao perdê-lo não sei onde? Onde estaria aquele oiutro opúsculo sobre expressões idiomáticas, de Neif Antonio Alem, com elucidações magistrais? Onde estaria aquele outro velhusco livrinho propositalmente contendo expressões idiomáticas do inglês, de Hubert Coventry Bethell?

Segundo se pode deduzir, minha biblioteca cresceu, não em espaço, mas no numero de títulos. Não sei até aonde vou chegar com as constantes reclamações domésticas...
De qualquer maneira, até agora, as pesquisas me proporcionaram mais prazer do que outra coisa, . Por exemplo, o velho dicionário de J. L. Campos Jr., do qual já lhe falei, leitor, nesta coluna. Um verdadeiro achado!
Não pense, leitor, que terminei as pesquisas, segundo indiquei no título a este texto. Vou, portanto, continuar fazendo minhas escavações arqueológicas. Quem sabe, algum dia terei terminado essas pesquisas das memórias biobibliográficas de um antigo aluno que não arrefeceu até hoje o prazer de amar os livrinhos didáticos que tanto me fascinaram desde os bons tempos do Domicio e do Liceu piauiense.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Arlequinadas da política nacional

Cunha e Silva Filho



Não é de hoje que as eleições brasileiras se deixam levar pela falta de bom senso, para dizer o mínimo inclusive do TSE. Há algum tempo atrás, a presença do índio Juruna, eleito deputado federal, virou também uma espécie de piada nacional. Sua marca registrada era carregar consigo um inseparável gravador. Ele próprio, depois, foi alvo de críticas que nele viram espertezas e oportunismos para um cargo cheio de privilégios. Sua vida familiar e afetiva tampouco o ajudou, Não teve boa atuação parlamentar, pois lhe faltava o mínimo indispensável ao exercício do mandato.
Outros exemplos semelhantes se seguiram, nos quais era evidente a ausência de critérios na escolha de candidatos aos partidos, mais propensos estes a incluírem alguém despreparado e, assim, facilmente manipulável. Esses candidatos, por sua vez, em geral logo se revelaram meros oportunistas que ascendiam aos mandatos visando só ao poder e às regalias, as chamadas mordomias auferidas pelas funções públicas de “representantes” do povo.
Um dado real nessa sociedade de espetáculos é o fato de que alguns setores da sociedade, sobretudo provenientes da indústria cultural, a qual, por si mesma, já coloca o indivíduo no centro das atenções do público, como a televisão, o rádio, o cinema, o teatro - e aí se incluem artistas dos diferentes gêneros, atores, cantores, apresentadores, jornalistas, líderes religiosos, jogadores de futebol e de outras modalidades, sem muita dificuldade conseguem eleger candidatos a mandatos políticos.
Não diria todos, mas boa parte deles é levada à política por oportunismo e pelas benesses propiciadas generosamente pelos cargos que irão ocupar. Não que sejam impedidos de se candidatarem, mas a verdade é que a prioridade deles não é o bem coletivo e sim o individual. Os eleitores, despolitizados e principalmente formando a massa invisível dos espectadores e dos fanáticos pelos seus ídolos, naturalmente são presas fáceis desse oportunismo midiático.
O último exemplo desse tipo de candidato acolhido por um partido é o do humorista conhecido pelo nome de Tiririca que, na eleição de agora, recebeu mais de um milhão de votos em São Paulo. O que é mais vergonhoso para a nossa democracia é o fato de que, além disso, foi o mais bem votado daquele estado (e no país todo!) para um mandato de deputado federal do mais importante estado brasileiro.
Falou-se que o Tiririca é analfabeto e, desse modo, teria sua vitória anulada caso, num exame de escolaridade a ser feito pelo Tribunal Eleitoral, se comprove que o eleito seja incapaz de ler e escrever. Aguardemos.
Porém, a vitória em si do candidato não é o fato mais grave. O que é mais grave é a atitude do eleitorado paulista que nele votou, alegando ter sido um voto de protesto. Ora, voto de protesto para dar prerrogativas a uma pessoa que nem mesmo se leva a sério é uma prova irrefutável da irresponsabilidade da população às instituições públicas do país. O caso do Tirica iguala-se àquele mesmo chamado voto de protesto que se deu ao macaco Tião. Eleição não é brincadeira. Enquanto homens de valor, com experiência política e comprometidos com o bem-estar do país se candidatam e não recebem dez por cento dos Tiriricas da vida, parte ponderável do povo de São Paulo dá mostras de completa imaturidade política nesse triste e vexatório episódio que são o milhares de votos dados a um humorista de terceira categoria, o qual bem provavelmente está dando a esta hora boas gargalhadas a um eleitorado arlequinal, ou seja, eleitores que, pelo seu comportamento leviano, se tornam objeto execrável de seu próprio ato de bufonaria.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Um poema de Oliver Wendell Holmes ( 1809-1894)

The mysterious visitor


There was a sound of hurrying feet,
A tramp on echoeing stairs,
There was a rush along the aisles, -
It was the hour of prayers.

And on, like Ocean’s midnight wave,
The current rolled along,
When, suddenly, a stranger form
Was seen amidst the throng.

He was a dark and swarthy man,
That uninvited guest;
A faded coat of bottle green.
Was buttoned round his breast.

There was not one among the all
Could say from whence he came;
Nor beardless boy, n or ancient man,
Could tell that stranger’s name.

All silent as the sheeted dead,
In spite of sneer and frown,
Fast by gray-haired senor’s side
He sat him boldly down.

There was a look of horror flashed
From out the tutor’s eyes;
When all round rose to pray,
The stranger did not rise!

A murmur broke along the crowd,
The prayer was at an end;
With ringing heels and measured tread
A hundred forms descend.

Through sounding aisle, over grating stairs
The long procession poured,
Till all were gathered on the seats
Around the Commons board.

That fearful stranger! Down he sat,
Unasked, yet undismayed;
And on his lip a rising simile
Of scorn or pleasure played.

He took his hat and hung it up,
With a slow but earnest air;
He stripped his coat from off his back,
And placed it on a chair.

Then from his nearest neighbor’s side
A knife and plate he drew;
And reaching out his hand again,
He took his teacup too.

How fled the sugar from the bowl!
How sunk the yellow cream!
They vanished like the shapes that float
Upon a summer’s dream.

A long, long draught, - an outstretched hand, -
And crackers, toast, an d tea,
They faded from the stranger’s touch
Like dew upon the sea.

The clouds were dark on many a brow,
Fear sat upon their souls,
And, in a bitter agony,
They clasped their buttered rolls.

A whisper trembled through the crowd, -
Who could the stranger be?
And some were slent, dfor they thought
A cannibal was he.

What if the creature should arise, -
For he was stout and tall, -
And swallow down a sophomore,
Coat, crow’s-foot, cap, and all!

All sullenly the stranger rose;
They sat in mute despair;
He took his hat from off the peg,
His coat from off the chair.

Four students fainted on the seat,
Six swooned upon the floor;
Yet on the fearful being passed,
And shut the chapel door.

There is full many a starving man ,
That walks in bottle green,
But never more that hungry one
In Commons-hall was seen.

Yet often at the sunset hour,
When tolls the evening bell,
The student lingers on the steps,
That frightful tale to tell.


O visitante misterioso


Com passos apressados um som havia,
Nos degraus um ruído pesado ecoando,
Na extensão das naves um a atropelo havia, -
Hora das preces.

Igual a uma onda oceânica à meia-noite,
Aquele atropelo humano prosseguia,
Quando uma forma estranha de súbito
No meio do aglomerado se via.

Era um homem moreno e sombrio,
Aquele hóspede inesperado;
Um casaco verde-garrafa
O peito abotoava-lhe.

Entre os ali presentes ninguém havia
Que dizer pudesse de onde teria vindo;
Do jovem imberbe ao ancião,
Dizer quem era aquele estranho ninguém saberia.

Mudos todos tal qual mortos amortalhados,
Não obstante risos zombeteiros e cenhos carrancudos,
Num átimo, ao lado de um senhor grisalho postou-se
Ali estouvadamente assento fez..

Foi-lhe lançado um sinal de horror
Pelos olhos do tutor;
Quando, ao seu redor, todos para orar ergueram-se,
Este ato o estranho homem não repetiu!

Da multidão um murmúrio tomou conta,
Terminaram as orações;
Com pés ruidosos e passos medidos
Cem pessoas a descer se põem.

Por nave sonante, com degraus rangentes
Passando vai a longa procissão
Até que todos juntos os lugares tomam
Ao redor da mesa dos Comensais.

Ali sentou-se aquela medonha figura,
Todavia, impávido e sem ser convidado,
Sobre os lábios um sorriso crescente
De mofa ou prazer ostentava.

O chapéu tirou e o pendurou,
Com um semblante lasso, porém sério,
O casaco tirou
Numa cadeira o depondo.

Depois, do lado do vizinho mais próximo
De um faca e um prato pegou
E de novo a mão estendendo,
Uma chávena igualmente apanhou.

O açúcar da tijela rápido sumiu!
Do creme amarelo nada sobrou!
Evaporaram-se como formas flutuantes
Num sonho de verão.

Um longo, longo sopro, - com a mão esticada, -
Bolachas, torta, chá
Com um simples toque do estranho desapareceram
Como orvalhos no mar.

Logo se turvaram os semblantes,
De suas almas tomou conta o pavor
E, numa agonia amarga,
Seus amanteigados pães amassaram.

A multidão num murmúrio percorreu, -
Quem seria esse homem?
Emudeceram alguns, pois pensaram
Tratar-se de um canibal.

E se a criatura levantasse, -
Já que era forte e alta, -
E engolisse um calouro,
Casacos, pé-de-galinha, boné, o diabo!

Muito mau-humorado, levantou-se o estranho.
Os circunstantes, sentados, em mudo desespero.
Do cabide o estranho o chapéu retirou,
Da cadeira, o casaco.

Do próprio assento desmaiaram quatro estudantes,
Seis desfaleceram, no chão caindo.
Entretanto, por eles passou o horrendo ser
Da capela a porta fechando.

Homens há famintos, e muitos
Que em cores verde-garrafa caminham.
Nunca, porém, mais aquela insaciável criatura
Viram no salão dos Comensais.

No entanto, amiúde, ao pôr-do-sol
Quando o sino, à noite, toca,
Nos degraus se demora um estudante
Para aquela espantosa história narrar.


(Tradução de Cunha e Silva Filho)