quinta-feira, 29 de agosto de 2019


DIANTE DA PÁGINA  BRANCA

                      O princípio da palavra é um ato difícil; é a saída do  silêncio
                                                     Roland Barthes
                                                    

                                                                  Cunha e Silva Filho

                O que posso  dizer, leitor, diante da página  branca? Que ela é simplesmente branca.  Que  não foi  escurecida pelo  impiedoso texto novo: que ela simbolize o silêncio dos que  sofrem, enfim,  o que posso  afirmar de especial  diante da  página branca ? A dor de  Ernest Hemingway (1899-1961)? O silêncio de um  poeta  piauiense  que  escreveu  o mais belo  soneto sobre a Saudade em língua portuguesa daqui e de além-mar.
                Por que um escritor tem medo da página branca se ela não é aquela baleia branca de Moby Dick? O que  diria  da página branca  com referência aos poucos  romances  de O.G. Rego de Carvalho (1930-2013)    um dos quais,  se não me engano,  Ulisses entre o amor e a morte ( Teresina: Meridiano 7 ed rev., 1989),   reformulava ou  modificava até à exaustão?  Ou o caso de Raduan Nassar que  publicou  seu  primeiro livro(romance) e mais duas obras apenas,  deixando, depois,  de produzir literatura Lavoura Arcaica (1975).
                Ou mesmo a história um tanto melancólica de um  bom escritor  piauiense  que deixou de escrever bons e ótimos poemas nas décadas de 1970 a  1990, aproximadamente, e, depois,  pouco ou nada produziu nesse gênero quando, pela idade, ainda bem produtiva e relativamente moço, poderia ter dado sequência a mais  obras?
             E a dor da página branca se torna ainda mais lancinante  quando  vemos, alguns bons,  escritores desistirem  de escrever outros livros, ou mesmo desistirem  de seus  interesses  literários, preferindo  viver a vida  natural das pessoas comuns. Eis uma  questão   de natureza   do fenômeno literário que  bem poderia ser  explorada em pesquisas sobre  dados estatísticos   de autores  que  deixaram, por uma outra razão pessoal ou de outra  ordem,  de produzir  num determinado    gênero ainda em  pleno vigor  intelectual.
               Aliás, um  escritora  norte-americana do passado,    após publicar  seus livros bem sucedidos, chegou a   confessar  que teria sido  muito  mais útil  e feliz  para ela  caso  não tivesse se dedicado tanto à literatura e, ao contrário,  fosse viver  plenamente  a vida em si.  E, assim,  os exemplos da página branca se multiplicariam  em quem sabem andam  se multiplicando  pelo  mundo afora,
             Basta que se faça um exaustivo   trabalho de pesquisa  para se ter um quadro estatístico de quantos  escritores, em todos os gêneros,  desistiram  de escrever,  perderam  o fôlego inicial  ou simplesmente  largaram,  por motivos de foro  íntimo,  a arte  de  criar  vidas.
         Não seriam igualmente a página banca  os verso, os poemas,  os cotos, os romances, os  dramas, do que se fora  para a eternidade e seguramente tanto tinham o que  ainda  produzir. Cite-se  um exemplo, o do  poeta, tradutor, ensaísta  crítico e historiador  Mário Faustino (1930-1962).  Por outro lado,  não seria a página branca   que sopitou  alguns desejos  não  atendidos  de críticos, ensaístas historiadores e pensadores que morreram tão  precocemente?
        A página branca seria  por  ventura o silêncio de um escritor  diante das iniquidades  cometidas  por gente nova (não necessariamente  na idade)  ligada visceralmente à  política brasileira, os chamados malvadezas que  estreiam e logo  começam  a fulminar   o que, no Estado Brasileiro,    estava dando certo  e não se configurava  como um retrocessos nefasto  em áreas  cruciais   ao desenvolvimento do país, um tsunami  feroz  raivoso e grosseiro em nome  de alegado  estado de calamidade financeira de um  país que ainda  mantém as mesmas mordomais   nos  altos escalões  palacianos e nos três poderes   formulados  por Montesquieu (1689-1755)  posto que, em muitos  casos,   malogrados ou deformados    na práxis.        
          A página branca seria sinônimo de silêncio e este,   conforme, ouvi de uma eminente  professora de  filosofia da educação,    chega a um  ponto  de se poder  afirmar ser  impossível não se comunicar, ou seja, o silêncio possui algo também de eloquente  contra atos  errados  e precipitados  na tentativa de resgatar  o buraco negro  da gastança  dos  donos  dos palácios  instalados  em Brasília e pôr a culpa  nos barnabés da Previdência Social.  
             Ora,   o  sistema político  não perdeu  as regalias nem quer jamais perde-las  dividindo o sacrifício com  os que logo são escolhidos cinicamente  para serem  os bodes expiatórios  das mazelas  perpetradas  pelos   velhos e novos grupos  dos poderes   instalados  através de  eleições conquistadas, mais  uma vez, tanto com o dinheiro  do Estado  determinado por lei aos gastos da eleições quanto   pelos  sempre renascidos caixas dois  advindos  de fortes  grupos econômicos (lobbies) que   através  das ignominiosas  práticas seculares   “do toma lá dá cá,”   - ainda vigorantes.
             Sim. Não há como ser absenteísta  na política como  erroneamente,   por algum tempo, supuseram ser   Machado de Assis(1839-1908).  Só depois, que um  ensaísta  como Brito  Broca (1890-1965) em livro de titulo Machado de Assis e a política e outros estudos (1957) demonstrou  que,  na obra machadiana,   o que mais se poderia   inferir  são temas de cunho    político e social  -  elementos-chave da sua  ficção. E sem citarmos  também  as suas crônica, na quais  podemos  verificar  situações visíveis  nos relacionamentos  socioeconômicos  do Segundo Império. Não foi gratuito  o que empreendeu, no campo da alta  crítica  de viés marxista  críticos  antigos, como        Astrogildo Pereira(1890-1965), com o seu livro Interpretações (1944)  e  contemporâneos, como  Roberto Schwarz com  obras  como Ao vencedor as batatas (1977).Um mestre na periferia do capitalismo:  Machado de Assis (1990).
         A página em branco  -  retomo -,   se é silêncio. pode ser um silêncio  temporário. Ou pode ser definitivo, dependendo das circunstâncias da vida de cada autor, cada jornalista,  e  cada  articulista, de cada tradutor, de carta cronista  etc. Não a  interpretemos apenas como  um  poço que se esvaziou por ter-se exaurido   o filete dágua que o tornava  fértil  e útil à vida de tanta gente. Não há  explicações  possíveis  porque , na ama do artista,  existem  mil explicações  para que a página ficasse  em branco esperando  por alguma coisa   que a torne  um texto benfazejo  e  e semeador   de esperanças   tanto quanto    audacioso  em suas invectivas diante dos  desmandos dos homens na Terra.  
          A página branca é um momento  de expectativa, de  retaguarda,   de  observações atentas  ante a realidade  que se mostre hostil à dor  dos  injustiçados, dos chamados  humildes e humilhados,  dos desterrados  do bolo sempre  adiado  aos famintos e àqueles que   encontram  abaixo da linha da pobreza, até bem próximos das grandes megalópoles onde  o brilho   dos borbulhantes  cegam  os que pedem  pão  e teto.
          Na página branca  existe  espaço  para as grandes lutas  contra  a força  incontida   dos bem  postos  e dos supostos viventes  sempiternos  da vida  regada às benesses dionisíacas  e moralmente  mal cheirosas   e desumanas. A página branca,  assim,  seria igual a um  combate   em silêncio, subterrâneo,  imune  aos inimigos  das inverdades, hoje pragas  disseminadas, na babel   ruidosa da incomunicação  dos povos  como as   fake news -   patologia   social   degenerativa dos pilares da verdades genuínas  e auspiciosas   que tomou  conta de parte da humanidade  servil  aos interesses  subalternos  do financeiramente  globalizado a todo custo    sem humanidade, com se fosse possível confundir positivamente globalização  maléfica     com humanidade sadia.
          A página em branco  não é a derrota  da germinação  das ideias e do afastamento  pusilânime diante dos desafios  do não progresso,   do retrocesso  cultural,   artístico, educacional,   social, jurídico, econômico financeiro,   científico  e tecnológico, das conquistas   sociais   e  das lutas contra os preconceitos  de toda tipo e máxime contra as injustiças de todo tipo  e natureza. A página branca  é uma pausa  diante  do que não é possível   aceitar como condição  imutável de vida  injusta de um país   diante do espírito de capadócios  individuais  ou  grupais  travestido  de bom  mocismo  praticante de um nova forma de fazer o bem  pelo mal sob o estandarte da esperança verde-amarela.        
 
   
             
            

sábado, 17 de agosto de 2019

TRADUÇÃO DE UM POEMA DE e.e.cummings (1894-1962)-




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                                 (Trad. de Cunha e Silva Filho)

sábado, 10 de agosto de 2019

ENTRADA POR INSISTÊNCIA


                                Cunha e Silva Filho



Foi no Shopping da Tijuca que aconteceu o que presenciei, hoje, sábado, véspera do “Dia dos Pais.” Sabe, leitor, que, em assunto de datas e outras coisas do gênero, sou mesmo uma negação. Troco as datas, outras vezes só sei do dia especial quase na véspera, esqueço as datas de aniversários de amigo (alguns dos quais nem mesmo querem saber de passagem de ano, sobretudo se mais velhos), até com familiares mais íntimos dou vexame. 
Mas, fazer  o quê ? Lá me vem a calhar essa pergunta imitando o jeito atávico e resignado, especialmente com os poderosos malvados da política brasileira) do brasileiro em geral. Não porque deseje ser assim negligente com as datas que deveriam estar na ponta da língua, ou melhor, da memória pronta. Longe disso. 
De nada, porque sou distraído mesmo, sou gauche. sou “arger” (como diria minha mãe). Nem sei se a grafia é esta, pois não tenho visto, salvo erro meu, essa palavra registrada em verbete nos bons dicionários de língua portuguesa, indevidamente chamados “pai dos burros,” expressão que um professor e tradutor norte-americano, George Reed, residente no Rio de Janeiro, não sei se ainda está vivo, refutava, ao contrário, com veemência como sendo “pai dos inteligentes.” 
Poderei ser capaz até de, no dia do meu aniversário, me esquecer da data, a não ser que o facebook me recorde a tempo. Isso para não me surpreender, ao ouvir de manhã, um dueto da esposa e do filho “Feliz Aniversário!” Aí, a minha sensibilidade de poeta (que chic!, alguém diria) não aguenta a pressão e começa mesmo a molhar as vistas. 
Deus me acuda!, esqueci de desenvolver o tema nuclear da crônica. Que “disparate de todos nós.” ! Assim diria um título de um livro de um velho e esquecido crítico, morador antigo do Méier, o "enfant terrible" de muitos membros do cobiçado fardão do Petit Trianon, nos áureos tempo de judicatura crítica ( “judicatura,” por sinal, me lembra outro crítico, este mais novo, mas também respeitado no seu tempo, anos 1940, 1950, até inícios de 1960.
Pois bem estava na porta da Livraria Saraiva,  conforme mencionei no início deste texto. Eu me encontrava  quase à entrada da porta da livraria. De repente, ouço a voz de uma criança de rosto miúdo e cabelos lisos caindo na testa como se fora um indiozinho da Amazônia (hoje, na TV, informaram que havia queimadas, coisa séria para a nossa Floresta-Pulmão da Terra. A crônica de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) está fazendo falta agora em tempos de embaixadas na terra dos ianques). 
A criancinha, mais insistente ainda, quase suplicando, explicou aos avós “Aqui é uma “biblioteca.” Vamos, vô, entrar! Vamos, vó” É uma “biblioteca.” O avô deixou escapar sem corrigi-la. Aparentavam ser de classe média. Porém, não corrigiram o neto podendo dizer que ali era uma “livraria” e não uma “biblioteca”. Nesse instante, me veio à tona um exemplo de uso da língua por um falante pequeno, de uns três ou quatro anos. 
Para ela, um lugar cheio de prateleiras entupidas de livros seria uma biblioteca, sim. Por que não? Na sua escolinha provavelmente havia uma biblioteca, com alguns livros nas prateleira ou mesmo repousando nas mesas de um sala de leitura, algumas cadeiras e, quem sabe, uns dois sofás para leitura mais descontraída. 
Esse fato me levou a pensar, naturalmente por associação de ideias, num falante brasileiro, que, por exemplo, na conversação com um nativo de língua inglesa, usasse “library” em vez de “bookstore,” ou seja, à memória do falante brasileiro o que primeiro surgiria à mente seria uma palavra parecida gráfica e fonemicamente com a sua língua-mãe. Assim sendo, soltaria logo um “library” e não lembraria de pronto “bookstore”. O “false cognate” ( um dos “pitfalls” do estudante brasileiro de inglês induziria ao erro de comunicação do ponto de vista lexical-semântico. 
Já no caso da criancinha que desejava por força entrar na “biblioteca,” ela apenas havia usado, dentro do seu “horizonte de expectativa” linguístico, um léxico aprendido no contexto social de um espaço (que poderia ter sido vivenciado e aprendido no lar, ou mais provavelmente, na escolinha dela) que seria reservado aos alunos e professores para leituras e com todos os objetos associados ao vocábulo “biblioteca”. Ora, essa realidade linguística da criança, por analogia, ficaria associada à parte mais visível dos preciosos objetos ali expostos numa livraria: os livros. 
Eu não entrei dessa vez na livraria, porém a minha esposa e o meu filho mais novo me asseguraram que a criança havia entrado na livraria. Fiquei apenas lamentando que o avô ou a avó não corrigira o erro léxico da criança no momento em que ela empregou o vocábulo “biblioteca.” 
Uma coisa leva a outra e novamente a associação de ideias me traz à baila o brevíssimo célebre conto, humorístico e ao mesmo tempo levemente dramático de Artur de Azevedo (1855-1908), de título “O Plebiscito” que li, pela primeira vez, no tempo do ginásio, e sobre o qual já escrevi - não tenho certeza - há tempos uma outra crônica. Foram tantos artigos ou crônicas que a gente vai esquecendo. Não disse que sou distraído, leitor? Com esta crônica clumsy talvez amanhã eu não me esqueça de que será o Dia dos Pais. Então, me resta antecipadamente cumprimentá-los: “Feliz Dia dos Pais,” amável amigo e leitor.

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

HÁ TEMPO PRA TUDO "NA RODA DO TEMPO"


Cunha e Silva Filho
              


             Diz um já velho, mas não tão velho quanto o meu já fragilizado dicionário de francês do Roberto Alvim Corrêa (1901-1983), manual prático para o ensino do francês, que “...il y a temps pour tout, pour le travail, pour le plaisir.” Sim, concordo com essa frase, mas não na ordem em que ela propõe esse pensamento simples e desataviado. Posto que falando de um tema tão caro a mim, o tempo, tema complexo, que renderia novas obras, quer de memórias, quer de filosofia. 
Infância adolescência, mocidade, maturidade e velhice são fases sucessivas na cronologia, no calendário, na divisão do anos, meses, semanas, dias até frações mínimas matemáticas que não consigo entender nem calcular. Não nasci para ser matemático. 
            No entanto, aquelas fases não podem ser cronológicas, quando a nossa mente, o nosso mundo interior, sobretudo o afetivo, o amoroso, o do Cupido, nos atira flechas que nos atordoam e nos levam às epifanias inimagináveis de explicar as inversões das idades no que concerne aos dilemas do amor, com todos os seus absurdos, contradições e delícias dionisíacas. Quer dizer, sempre que, na vida, entra em cena essa soma de elementos díspares de que somos alvos. 
            Sobretudo ainda quando os tempos do nosso mundo interior recusam a horizontalidade e mergulham por vezes, fundo, na verticalidade ou mesmo na simultaneidade, ou ainda nas anacronias, ou seja, nas analepses e prolepses tomados esses termos, no campo da teoria literária, do tempo ficcional proposto por Gérard Genette (1930-2018). Que me perdoe o Krónos (grego: Tempo), não estimo a cronologia em si, medida friamente com o fluir inexorável da nossa travessia física pelo Planeta Terra, que é duríssima e irreversível em todos os sentidos praticamente. 
            O que intento discutir nesse artigo é se o tempo do trabalho, ou em outros termos, da produção cultural, pode ser prejudicado pelo tempo do prazer, i.e., se lhe causa danos ou retrocessos, ou se pode, caso seja nocivo e aderente, recuperado por um espírito determinado e avesso a vícios crônicos. 
             E, no caso de reabilitado, se o sujeito interessado pode ser efetivamente recuperado às condições anteriores às vicissitudes no terreno movediço, em geral, socialmente refutado e mesmo mal interpretado por condicionamentos ainda preconceituosos quando entram em jogo inversões etárias no âmbito do sentimento amoroso. 
            Todavia, quero ressaltar que a divisão entre o trabalho e o prazer não se confina somente ao tempo do que o poeta francês Alfred de Musset (1810-1857)) no poema “Le poète,” por sinal, há poucos dias, por mim traduzido e postado aqui, chama de “libertino.” Diria, aproveitando essa alusão romântica, todos as idades têm direito ao sentimento do amor, ainda que arrostando todos os óbices e incompreensões. Obviamente, que os erros cometidos em todas as idades devem ser também matéria de compreensão, desse que não sejam erros contra a integridade física dos indivíduos envolvidos ou contra as extrapolações de natureza moral do que a lei estatui.
            Tem-se visto que, na prática, na individualidade do ser, a produtividade, sejamos explícitos agora, intelectual, tende a sofrer uma sensível redução na qualidade e quantidade e cai na medida em que os antigos hábitos planejados foram se reduzindo ou se desviado do seu curso normal no que tange aos seus projetos .. 
             Dentro deste contexto de prioridade dada a um lado, seja o do trabalho, ou do outro, o do prazer ou hedonismo, em detrimento de um ou de outro, sem buscar o equilíbrio, onde reside a virtude das ações e comportamentos do indivíduo, alguma coisa se põe em risco, em sinal de alerta, e cabe de imediato ao indivíduo interessado restabelecer aquele equilíbrio sob pena de afundar-se na inércia, na confusão e até mesmo no constrangimento próprio.
             Dependendo das contingências individuais, a ordem a ser obedecida pelo espírito determinado, é tentar, com os cuidados necessários e a prudência como lema, encontrar a saída mais plausível sem fazer sofrer pessoas queridas que não merecem ser postas em segundo plano. Nem tudo o que o nosso mundo interior quer falar pode ser concretizado na oralidade do discurso e nas relações íntimas entre os que são agraciados com a reciprocidade do amor e do respeito.
             Por outro lado, em face das inversões etárias entre o homem e a mulher seria, no mínimo, ausência perversa de sensibilidade não se permitir que o sentimento amoroso ou afetivo, sem quebra do decoro e da responsabilidade e discrição, seja coartado no nascedouro em razão de nossos tabus, frutos da ignorância e de um atavismo secular castrador. 
             O tempo do trabalho e do prazer não pode ser ameaçado ou ridicularizado somente porque uma temporalidade horizontal, embutindo a ordem biológica, arraigada a ultrapassados modos de comportamento humano, deva constituir um conceito ético contrário a novos tempos mais naturais e mais espontâneos, possíveis de coexistir com a beleza e a felicidade de todos os indivíduos, respeitando sua dignidade íntima e intransferível.

sábado, 3 de agosto de 2019

Carta imaginária a meu pai, Cunha e Silva(1905-1990),no 114º Ano de seu Nascimento



                  

Rio de Janeiro,  03 de agosto de 2019

       
Querido pai:

           
           Antes de tudo,  me permita  por esta  relembrá-lo de que hoje é  seu 114º aniversário de nascimento. Esta data o Sr. não a esquece, não é? Espero que não. Sei que outros familiares possam tê-la lembrado  por estas bandas internéticas  e   que hoje é dia  diferente,  dia de festejá-lo ainda que  pela dimensão  do espírito, a qual  -  seja dita  essa verdade -,  ao fim e ao cabo,  é o que vai  mais importar  entre a terra e o céu.
        A notícia  que lhe dou  é que  o meu livro Apenas memórias  já foi  editado  em 2016. Recebeu várias resenhas favoráveis de gente que conhece literatura. Está  esgotado e, antes que me esqueça  do fato,    o  espalhei  pelo mundo através das facilidade de sites internacionais, como a www.academia.edu.com – Francisco da Cunha e Silva Filho.
          Repito o que  escrevi na carta anterior: já pode  verificar que  a sua presença   encantadora, em varais passagens  da obra,  tem lugar  sobranceiro por muitos motivos,  principalmente pelo amor  que sempre   manifestei  por sua  pessoa. Alguns dos seus dados  e da família  já corrigi. Também aumentei   um pouquinho  o número de páginas e tentei  livrar as Memórias  das malditas  gralhas do autor ( mea culpa)   e da editora.  
         Fomos dois  grandes amigos, na inocência de três anos em Amarante, na adolescência  durante quinze anos em Teresina e, através de  uma  longa correspondência de mais de duas décadas, com  alguns poucas   visitas minhas  a Teresina e duas visitas suas  ao Rio.
        Quis,  contudo, o destino  que vivêssemos  separados pela distância  entre o Rio – cidade que tanto  amou e nela permaneceu estudando  por seis anos  -  e Teresina. O único  consolo  foi  a nossa  longa correspondência por escrito com tantas  cartas, mais suas do que as minhas,  trocando   carinhos,  elogios,  contando  os sucessos seus e  eu relatando os meus, numa amizade  que  crescia com o passar doa anos  e com a chegada da minha  mocidade  que o Sr. conheceu  em  boa parte,  não o suficiente para   ver meus  maiores sonhos   realizados. Pelo menos   um dos seus  desejos que almejava para seu filho  -  fazer o mestrado  - se concretizou. Mas, fui muito mais adiante do que o Sr. imaginava. Até mesmo  já pertenço à Academia Brasileira de Filologia,   Cadeira  nº 3, e escrevo  para o exterior.
          “Filho, quando vais fazer o mestrado, quero  te ver  professor universitário.” Não sabia, meu pai, que só  um ano depois, em 1991,  ingressaria eu  no mestrado e que só em 2015,  concluiria o Pós-Doutorado. Foi tudo muito árduo  e aflitivo. Nem bolsa  a que tinha direito  ganhei, Tive que  gastar com livros  e  material  de computador   às minhas minguadas  expensas,  pois não era professor  de uma universidade  pública, cujos  pesquisadores  têm  prioridade  na aquisição de bolsas dos  nossos conhecidos fomentos, CNPq e CAPES. Acho isso injusto.
           A dor  maior  para mim sentida foi  me ter deixado na conturbada   Terra sem que lhe pudesse dar o último   beijo na testa amada e envelhecida  à altura dos seus oitenta e cinco  anos,      o último abraço forte,   o último aperto  de mãos -  apertar aquelas mãos   lindas que  tinha, as mais bonitas de Amarante, enfim,   o último   olhar     pedindo a Deus que o Sr.   não me deixasse só, no estado de abandono  e solidão   absoluta e inconsolada.
         Mas, nesta carta agora,  pai,  há outras coisas que , bem sei,  foi bom que não  presenciasse e delas não participasse como  jornalista combatente e intrépido.
        Ainda bem que a sua saída da cena da vida brasileira o poupou de assistir a tantos  dissabores da política brasileira, sobretudo  dos mais  escandalosos acontecimentos  do baixo clero  da  politicagem que o país tem vivido no domínio  petista em agora,   nos primeiros meses da era Bolsonaro,   com  os desacertos  e  o autoritarismo  desse novo governante.       
            Certeza tenho  de que  não ia  aguentar calado  à derrocada ética e à patuscada  preparada  nos circos mambembes  que se instalaram  nos centros do poder, lá em Brasília, nessa era Bolsonaro, dublê do Presidente  Trump ( Isso seria de esperar da inteligência  política de ambos e das trapalhadas  mil)  que   ainda  parece persistir  com  os novos quadros de políticos   recém-chegados  e já nos dando sinais   evidentes  de que a coisa  não mudou em nada,  pelo menos nos privilégios  e benesses de deputados. 
          Assim como,  no  poder Judiciário,   as mordomais  continuam inabaláveis,  com gastanças  faraônicas de mordomias  e suntuosidade à custa dos miseráveis   pagadores de impostos, dos mais humildes  aos mais  velhacos.
         Bem fez a Providência  Divina  que o livrou  de  ver  tanta podridão disseminada  pelos quatro cantos do país manifestada  em  várias   formas: impunidade,  violência  gigantesca  e sem perspectiva de solução,  delinquência juvenil sem  redução de maioridade pelo menos  por  tempo  determinado, economia   escangalhada  por culpa  da roubalheira  do desvio do dinheiro  público, volta da inflação ( com aumentos  escorchantes dos preços dos remédios,  da alimentação,  das tarifas gerais),  cujos efeitos  deletérios já se fazem sentir nas camadas baixas e médias da sociedade, juros altos  determinados  pelo  governo  federal, onda de     desemprego, fechamento  de lojas  por falta   de compradores.
        E esse quadro  de aumentos de custo devida  persiste na era  Bolsonaro assim como  o arrocho salarial  excetuando  os  dos donos do Poder. Veja o exemplo, no Rio de Janeiro, de velhas lojas da Rua da Carioca fechando as portas, política de ajuste fiscal    com mão de ferro a fim de  tapar  os buracos   da arrecadação  em declínio e, por tabela,  para  cobrir, com  o sacrifício  forçado  do contribuinte,  os rombos  das estatais  das quais  saíram  as milionárias  propinas  para encherem  os bolsos  ou as contas  milionárias  de partidos que apoiam   o governo federal     e políticos  corruptos.
          O Sr, meu pai,  que passou  por prisão  durante a ditadura  Vargas,  por  longos anos   de  ditadura militar-civil, por períodos de normalidade  democrática, não alcançou os dias mais perversos  da ditadura  econômica,  dos escândalos do Mensalão, dos assaltos  à Petrobrás   e da mais  deplorável   situação de decadência ética da vida  pública brasileira. Imagine se o Sr. visse  o que fizeram com a Previdência  que teve a culpa de ser o bode expiratório  da gastança  dos três poderes. Fazer uma reforma Previdência ara que possa surtir efeito daqui a dez anos  é uma piada de péssimo gosto do  tiranete da economia,  o superministro neoliberal   do Bolsonaro que surgiu no cenário  econômico de não sei que lugar.
          O Sr, ficaria  perplexo com a qualidade de ministros  empossados pelo   Presidente Bolsonaro. Na maioria  é o que há de mais    mediano . Também iria ficar  apreensivo com o número de militares que   passaram a fazer  parte do era Bolsonaro. Afinal de contas,   o governo  é civil  ou   misto? Não é bom sinal.
          Outra coisa terrível,   foi o governo  atual  não concordar com os altos   índices  de  desmatamento (já constatado no  atual  governo)  da Amazônia,  duvidando da capacidade  de um diretor do INPE,  que  é cientista  reconhecido  junto com  outros  da Instituição. O que será dos “Pulmões do Mundo,” pai? Esse fato é gravíssimo. E já tendo repercussão   internacional.  A Floresta é dos brasileiros  e não de um governo de plantão  que se atropela  nas pernas  e  afirma    coisas  estapafúrdias.
          Jamais, meu pai, iria  imaginar que pudéssemos   chegar a este ponto em que nos encontramos, não por nossa  causa, mas  por culpa da   imoralidade de práticas  de   nossa política, as quais   definem os modos de governança  feitos à base de barganhas mútuas entre o governo federal  e os partidos sem princípios democráticos firmes.
        Se o Sr. se encontrasse ainda entre nós,  teria, assim,  que redobrar  e retemperar  a sua retórica de jornalista desassombrado, cuja trajetória  esteve  quase sempre na oposição e, portanto,  foi vítima no seu tempo  de  perseguições ao ponto de ser demitido  de um  famoso colégio  público em Teresina  por um  governador  do Piauí a  quem  combatia com muita coragem os erros e injustiças de administração
       .Com muitos filhos para criar, sofreu aflições  e privações e, se não fossem uns poucos amigos, as atribulações seriam  ainda piores. Com ânimo forte,  aguentou todos  os percalços e  infâmias  dos governantes desafetos.
            O Sr., meu pai, grande e bravo  jornalista, segundo A. Tito Filho (1924-1992), outro ilustre jornalista e intelectual  do Piauí,   nunca “baixou o topete” diante dos poderosos,  e,  na história do jornalismo  piauiense,    provavelmente tenha  sido  o jornalista  mais  prolífico do seu estado natal.
           Sendo um jornalistas  que sempre  escreveu  freneticamente  à mão (sem nem mesmo   ter aderido à máquina de escrever) e ao correr da  pena, não pôde  alcançar a era do computador, da internet,  dessa maravilhosa e gigantesca    enciclopédia  virtual de âmbito universal, que é o Google,  das celulares, do tablets, dos e-books e de outros mil gadgets que os  milagres tecnológicos dos algoritmos  vêm inventando e tornando  possíveis – para deixarem nós idosos (agora sou idoso, pai) em polvorosa  sobre como  irão  manipular tanta engrenagem   complicada  aos nosso olhos  já cansados.      
           Porém,  estou certo de que  essas conquistas  do mundo eletrônico  teriam a sua aprovação,  pois sempre foi  um homem que tanto  amava as humanidades quanto  as ciências, como são provas  o   belo discurso de posse, na Academia Piauiense de Letras, da cadeira  nº 8 que,  pelo seu talento e suas qualidades de  intelectual,  soube  conquistar e  tão bem a   dignificou. Por enquanto é só, entre tantas outras coisas boas e ruins, que gostaria de lhe contar. Porém, ficam  pra depois. 
      Aceite, meu querido pai, os cumprimentos   pelo seu  114 º aniversário de  nascimento.
       Com as saudades do filho


                              Cunha e Silva  Filho

NOTA:

A  carta acima foi modificada e atualizada. 

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

TRADUÇÃO DE UM POEMA DE ALFRED DE MUSSET ( 1810-1857)





           O POETA*

No tempo de estudante
Em nossa solitária sala,
À noite,  acordado, ficava.
Diante da  mesa,  sentar-se  veio
Uma pobre criança  vestida de preto
Que  lembrava ser meu irmão.

Belo e triste o seu olhar,
Pelo castiçal banhado e,
No meu livro aberto, veio ler.
Inclinou a fronte sobre a mão
E ali ficou até o amanhecer.
Pensativo  qual um doce  sorriso .
Quanto  anelava   ter  meus quinze anos!
Com passos lentos caminhando 
Num bosque debaixo  de uma urze,
Ao pé de uma árvore,  sentar-se veio
Um jovem vestido de preto
Que lembrava ser meu irmão.

Indaguei-lhe sobre o meu caminho;
Numa das mãos um alaúde segurava,
Na outra um ramalhete de rosa.
Saudou-me como um amigo
E, dando meia volta,
Apontou-me  com o dedo a colina.

Na fase em que cremos no amor
Um dia, sozinho, no quarto me  encontrava
Minha primeira   tristeza debulhando. 
Ao canto da minha  lareira, sentar-se veio
Um estranho vestido de preto
Que lembrava  ser meu irmão.

Parecia    melancólico e inquieto.
Com uma das mãos  o céu mostrou,
E com a outra um gláudio segurava.
A minha dor parecia partilhar 
Porém, exalando um suspiro, 
Evanesceu qual  num sonho.

Na fase em que somos libertinos,
A fim de,  num festim,  brindar
Uma taça uma vez  levantei.
Diante de mim,   sentar-se veio
Um convidado vestido de preto
Que parecia ser  meu irmão.

Sob o casaco sacudia
Um fato vermelho esfarrapado
E sobre a cabeça uma  murta seca.
Seu braço magro procurou  o meu
E a minha taça, ao tocar a dele,
Na minha frágil mão se estilhaçou.

Um ano após, à noite,
Ao pé do leito, no qual  meu pai
 Exalara o último suspiro, me achou ajoelhado.
Veio  ter à cabeceira do leito
Um órfão vestido de preto
Que parecia ser meu irmão.

Os olhos debulhados em lágrimas
Iguais aos anjos dos sofredores
De espinhos coroado se achava
Na terra estendido, seu alaúde,
Da cor de sangue sua púrpura
E, no peito,  o  seu  gláudio.

Lembro-me muito bem
Que sempre o reconhecia
É uma estranha visão.
Quer seja, todavia, anjo ou demônio,
Por toda parte vi essa sombra amiga.
Durante todos os meus anos.

Mais tarde, cansado já  de padecer,
Para renascer ou  morrer,
Decidi-me  por me exilar da França.
Cansado estava de caminhar,
Quis partir e procurar
Da esperança os vestígios.

Em Pisa,  ao sopé dos Apeninos,
Em Colônia, diante do Reno,
Em Nice, na vertente dos vales,
Em Florença, aos fundos dos palácios,
Em Brigues,  com os velhos  chalés,
No seio dos Alpes desolados.

Em Gênova, debaixo dos limoeiros,
Em Vervey, sob as verdes  macieiras,
Em Havre,  diante do Atlântico,
Em Veneza,  no pavoroso Lido,
No qual vem morrer o pálido Adriático
Sobre a erva  dum túmulo.

Por toda parte,  sob estes vastos céus
Meu coração e meus amigos  deixei
Sangrando como uma eterna chaga.
Por toda parte onde o coxo Enfado
Com ele  a minha fadiga  arrastando
E  me levando até a uma grade .

Por toda parte, sempre a  mesma 
Sede de um mundo desconhecido
De meus sonhos segui a sombra
Por toda parte em que, sem ter vivido,
Revi o que havia  visto,
A humana face e suas mentiras.

Por toda parte, na qual, pelos caminhos,
Nas minhas    mãos  pus a minha fronte
E qual uma mulher solucei 
Por toda parte,  em que,  como um carneiro
Que, na moita  deixa a sua lã,
Senti minha alma desnudar-se.

Por toda parte onde  quis dormir
Por toda parte, onde quis morrer,
Por toda parte onde toquei a terra,
Pelo  meu caminho sentar-se veio
Um infeliz  vestido de preto
Que parecia ser meu  irmão.

Quem,  então, és tu, tu que nesta vida,
No meio do caminho,  sempre encontro?
Em tua melancolia, não posso  crer
Que seja um mau Destino.
Paciência suficiente revela teu  doce sorriso.
 Em tuas lágrimas   muita piedade há.
Vendo-te,  a Providência  amo.
Do  meu sofrimento  é irmã  a tua própria dor.
Com a Amizade se assemelha. 

Quem és tu,  então?  - Não és meu anjo bom,
Jamais vens me avisar   de alguma coisa.
Meus males vês ( é algo estranho!)
E sofrer não me ficas  vendo
Há vinte anos que surges na minha vida
E eu nem saberia como  te  invocar.
Quem, então,  és,  se é Deus que te me envia?
Sem da minha   alegria partilhar, para mim sorris.
Reclamas de mim  sem que  me venhas  consolar!

Essa noite  também te vi surgir.
Era uma noite  triste.
Batia, na minha janela, a asa dos ventos.
Solitário  estava sobre o meu  leito curvado.
Dali contemplava para um recanto querido
Ainda tépido  após um  beijo ardente.
Sonhava  qual uma mulher esquecida
Sentindo a vida  estraçalhada
Que lentamente se desmanchava.

Reunia  cartas da véspera
Cabelos, fragmentos d’amor.
Todo este  passado nos meus  ouvidos gritava
Do dia suas eternas sementes
Estas   relíquias sagradas contemplava,
Que me faziam  tremer  a mão:

Lágrimas do coração devoradas  pelo coração,
E que os olhos que as haviam derramado
Amanhã  não mais reconhecerão!

Juntei,   num pedaço de buril,
Estas ruínas dos  dias ditosos.
Dizia para mim que, na terra, o que dura
É uma mecha de cabelo.
Como um mergulhador em  mar profundo
Perdi-me com  tanto  esquecimento.
Para todos os lados,  o meu olhar para ali dirigi
E, longe dos olhos do mundo,  sozinho,  chorei.

Do círio negro fui  pôr o sinete,
Sobre este frágil e amado  tesouro
Fui entregá-lo e, não podendo  nele crer,
Chorando ainda  dele duvidei.
Ah, fraca, mulher,  orgulhosa,  insensata.
Apesar de ti,  dele não te  olvidarás.
Por que estas lágrimas,  esta garganta oprimida,
Estes soluços, se não amavas?

Sim, esmoreces, sofres, e choras.
Tua quimera, no entanto,  fica entre nós dois.
Pois bem! Adeus! Contarei as horas
Que de vós me separarão.
Parti,  parti e deste coração  glacial
Arrancai o orgulho satisfeito
O meu  ainda tenho  jovem e vivaz
E muitos males nele  encontrar poderão
No mal que me tenham  causado.

Parti,  parti! A Natureza imortal
Não vos quis tudo dar,
Ah, pobre criança que bela desejais ser
E perdoar  não  sabeis.
Quem vos perde não perde tudo
Lançai ao vento  nosso consumado amor -
Deus eterno! Tu que tanto amei,
Se partes,  por que me amas?

De repente,  porém, vi, na noite sombria,
Sem ruído,  brilhar uma forma,
 Sobre a minha cortina
Uma  sombra vi passar
 E no meu leito sentar-se  veio.
Quem és tu, pois,   tépida e pálida visão
Sombria   figura vestida  de preto ?
Que queres de mim,  triste pássaro passageiro?
É isso um sonho vão?  É a minha própria imagem?
Que, no meu espelho,  percebo?
Quem és  tu,  espectro da minha juventude,
Peregrino que nada deixou?
Dize-me por que sempre  contigo me  deparo?
Sentado a uma sombra  por onde já passei?
Quem és tu, então,  visitante solitário,
Assíduo  hóspede de minhas  dores?
Que tens feito, então,  para me seguires  na terra?
Quem és tu,  então, quem és tu,  meu irmão?
Que não assomas senão num dia de tristezas?


                A  VISÃO

_Amigo,   o nosso pai é  teu.
Nem o anjo  da guarda sou.
Nem dos homens o mau destino,
Aqueles a quem amo, nem sei
Nem sei para que lado seus passos vão.
Nesta pouca lama onde estamos.

Não sou nem  deus nem demônio,
E, quando me chamaste de irmão,
Tu, pelo meu nome,  me chamaste.
Aonde fores, contigo estarei,
Até o derradeiro dia de  tua vida.
Quando, sobre a tua pedra,  me sentarei,

Teu coração o céu me confiou.
Quando, na   aflição, encontrares, ,
Pelo caminho te seguirei.
Vem para mim sem inquietações.
A tua  mão, contudo,   tocar não posso.
Amigo, a Solidão sou eu.
                                         (Trad. de Cunha e Silva Filho)
*NOTA:
         O poema  “Le poète”  constitui um dos quatro  poemas sob o título Nuits. Desta vez, por ora,   não lhes apresento  a  tradução na forma bilíngue, consoante tenho feito  há tempos,  por se tratar de um  texto mais longo. A seguir, segue a fonte da qual extraí  o mencionado  poema:
LEBAILLY, Nathalie & GAMARD, Matthieu. Présentation, notes, questions e aprèstexte établis. Nouvelles à chute.  Classiques & Contemporains.  Magnard. www.classiquesetcontemporain.com