quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A (im)possibilidade de parar de escrever



Cunha e Silva Filho



O Caderno Idéias & Livros do JB, deste sábado, 11 de abril, realizou uma reportagem que, no meu juízo, merece reflexão mais aprofundada, visto que diz respeito à vida produtiva dos escritores de todos os quadrantes.
Brasileiros ou estrangeiros, autores velhos e novos, todos ali se pronunciaram acerca dessa questão vital à arte da ficção literária. A matéria não abordou os criadores de poesia, nem de outros gêneros. Talvez, os editores ainda – assim espero -, possam reservar-lhes uma enquete semelhante.
Porém, o que merece meditação é, na realidade o complicado trabalho envolvendo a capacidade de criação literária. Nesse momento, não posso omitir o que li ou me contaram sobre o romancista e contista norte-americano Ernest Hemingway (1899-1961 ) . Conta-se, não sei se é a verdade da verdade, que ele, a uma certa fase de sua produção ficcional, fora sempre assaltado pelo medo ou pavor mesmo de não poder escrever mais , de não ter assunto para escrever, de recear que a fonte de inspiração lhe secasse para sempre a possibilidade de prosseguir podem do criar ficção. Mesmo se comentou que o seu suicídio estivesse conexionado à impossibilidade de continuar produzindo o que os teóricos chamam de “mundos possíveis”, universos paralelos tão ou mais significativos do que a própria realidade empírica, da qual nós viventes temos apenas uma parcial apreensão dos fatos, das coisas, dos objetos e sobretudo da vida interior dos indivíduos..A literatura teria esse condição de nos transmitir, de forma complementar, a real compreensão da existência e do universo.
É bem possível que, na história da literatura universa,l existam muitos outros exemplos de artistas da palavra se defrontarem com a página vazia, com o esgotamento completo de suas energias criativas no plano da linguagem literária.
Cada escritor convidado a dar depoimentos sobre a sua atividade criadora manifestou sua maneira de lidar com essa questão de poder ou não manter a chama da sua capacidade imaginativa ou inventiva.
Alguns, como Carlos Heitor Cony, já pensam em “por um ponto final’ à sua atividade de ficcionista e até fala em se “aposentar” nesse sentido.Outros, como Moacyr Scliar, que possui uma produção considerável de obras, já não pensam assim. Para ele, só uma condição impeditiva séria o faria parar: a incapacidade física ou mental.
Outros mais, veem o problema apenas com uma observação irônica, ou não dão muita importância a esse tema.
No Brasil, temos o exemplo do autor de Lavoura arcaica (1976) Raduan Nassar, que, ao que parece, deixou de escrever depois do sucesso daquela obra, mas ainda publicou Um copo de cólera (1978).
No Piauí, há o caso de O. G. Rego de Carvalho, ficcionista talentoso, que não passou, entretanto, de tre romances publicados bem-sucedidos. Por outro lado, n o Piauí ainda há um exemplo notórios de escritor que, com idade bem avançada, não deu nenhuma mostra de que irá parar, como William Palha Dias, ficcionista que, aos noventa anos, ainda é exemplo magnífico de com essa idade manter-se intelectualmente ativo.
Assis Brasil, ficcionista e ensaísta de renome nacional, na sua produção geral já ultrapassou uma centena de livros. O JB cometeu uma omissão não o incluindo nessa pesquisa, sabendo que esse escritor, tanto quanto o foi no passado Coelho Neto (1864-1934 ), tem-se distinguido como um notável exemplo de dedicação ininterrupta à atividade intelectual. A opinião dele seria muito valiosa no que concerne ao tema em foco.
A questão da criatividade no domínio da literatura continua de pé. Merece maior discussão por parte de todo escritor.
Essa questão não pode, a meu ver, deixar de fora outros gêneros literários , a começar da poesia, da crônica, do ensaio, da crítica, do teatro, do memorialismo, da biografia, do jornalismo literario e de outros gêneros.
Todos os que usamos da pena, remunerada ou não, a essa questão crucial não podemos ficar alheios, porque o fantasma da ausência de assuntos, de temas, de criatividade, ou melhor, da possibilidade da crise de criação literária não é assim tão raro que possamos colocá-lo em segundo plano. Muito ao contrário. Qualquer escritor, em qualquer modalidade de escrita estritamente literária ou de áreas humanisticamente afins, como a história, a sociologia, a filosofia, a antropologia, a geografia, as artes em geral, em alguma fase da vida intelectual ou artística com ela se defronta. E, a propósito disso, há uma velada cobrança do meio cultural-artístico, ou acadêmico, e do público letrado em geral em cima dos criadores de imagens, mundos, formas e objetos no sentido de que eles produzam sem cessar.
Quando a fonte “seca’, ainda que por vezes temporariamente, é bem provável que muitos desses artistas de várias formas de expressão artística se sintam mais deprimidos pelo fato de se tornarem exemplos de escritores ou de autores fracassados ou de curto fôlego, enfim, de limitada produção. Tal juízo publico, contudo, só prejudica esses criadores, que não têm culpa de não publicarem mais, ou de criarem mais em outros campos da inteligência, levados que são muitas vezes por circunstâncias diversas e de foro íntimo. Me lembro de que recentemente o poeta Ferreira Gullar comentou em jornal que há muito a poesia não o chamava a si. Isso não é nenhum desdouro para um autor em qualquer gênero. Afinal, a criação literária precisa de muitos componentes e fatores favoráveis à fecundação das formas, das imagens e dos mundos nascidos ou provocados no tempo, hora e contingências existenciais, não dependentes da vontade tão-só do criar em si, mas do impulso natural do criador para a construção do objeto estético.
O tempo do ato criador tem o seu próprio e intransferível momento de dar frutos, e frutos amadurecidos que mereçam ser colhidos pelos fiéis amantes da literatura e das artes em geral.

Na sollidão da terra

NA SOLIDÃO DA TERRA


Cunha e Silva Filho



Faz dezenove anos que ali, junto de outros restos mortais, se encontra a memória dos teus ossos, afundados estes no chão de areia da terra, no chão úmido ou seco, dependendo das variações do tempo, que te viu nascer e crescer até à meninice. Ali estão tuas memórias na matéria que ainda resta sabe Deus até quando. Ali estás no sossego da paz do silêncio da solidão absoluta e irremovível. Estás em Amarante.
As estações passam, mas ali ficas, imóvel, não mais como os “esqueletos andantes” de Borges, porém como remanescentes do que foras, do que fizeste ou deixaste de fazer. A vida é um ciclo incompleto. Estão ali ao lado dos teus e de outros cujo destino final é o destino da carne, contudo da carne descarnada pelas mutações biológicas a que todo ser vivente está irremediavelmente sujeito.
Chove, faz frio, faz calor. O vento sibila nas noites sempre solitárias e ali, extremamente sozinho te encontras.
Do vagido às brincadeiras infantis, das muito precoces discussões políticas locais, por vezes exaltadas, por vezes chegando quase às vias de fato, naquela terra ainda rica e esperançosa de progresso continuado até à transformação – que não se cumpriu ainda -, para uma desenvolvida e moderna cidade do interior ( no passado cheia de tantas tradições e de tanto desenvolvimento), a tua presença ágil, buliçosa, com os olhinhos infantis perscrutadores, vivos e brilhantes, parecendo olhos de adulto, tão próprios das crianças inteligentes, fazia-se notar, sobretudo pelo teu pai, comerciante próspero e pessoa calma que logo viu na criança irrequieta laivos de grande inteligência.
A escola, os primeiros professores, os coleguinhas de classe agora sumidos no tempo, as primeiras letras, a dificuldade para andar na fase normal, o espanto pela vida e suas mil descobertas, o encantamento que se fez eterno com a alegria do viver jamais arrefecida até seus últimos dias, o pressentir dos grandes embates de uma vida que não seria transcorrida com facilidades apenas, mas, em grande parte, com lances dramáticos e lancinantes, deixava aquele menino esperto e impulsivo mergulhado na sondagem do futuro, desde a infância, adolescência, mocidade, maturidade até à velhice.
Por todas essas fases passara, como todo o mundo. Fases que lhe deixaram fundas cicatrizes de natureza vária, amorosa, social, profissional, familiar e intelectual.
Os estudos foram prosseguidos na capital, Teresina, depois, em Niterói como interno de padres salesianos; em seguida, em Lavrinhas, São Paulo, como seminarista, faria o curso de filosofia, também da ordem salesiana, cuja conclusão, para a vida sacerdotal, seria feita em Turim, Itália. Para trás, deixara o pai, a mãe, a terra natal. A vida sacerdotal não vingara. Casara-se muito jovem no Rio de Janeiroem 1927.. Dessa união nascera-lhe uma filha. Voltara com a família para Amarante por volta de 1927 ou 1928. Casamento desastrado, pouco durou. A esposa e a filha voltaram para o Rio de Janeiro É claro que a ausência da filhinha o deixou desolado.. Meu pai ficara em Amarante, onde permaneceria até 1947, quando saíra definitivamente de Amarante para fixar residência em Teresina.

A sua volta a Amarante foi decisiva para a escolha de sua vocação. Embora muito jovem, já estava intelectualmente preparado para a carreira que escolhera: o magistério. Definia-se uma vez como um professor nato. E, na verdade, o foi, fato que se confirmou pela brilhante trajetória que conquistou no ensino piauiense durante décadas. Em Amarante, o melhor estabelecimento de ensino era o Ginásio Amarantino, dirigido pelo futuro e principal historiador piauiense, Odilon Nunes. Papai logo foi nele lecionar. O Ginásio Amarantino deixou de funcionar depois de três anos de fundação.Meu pai conseguiu adquiri-lo e, aproveitando-lhe as instalações, fundou, em 1931, o Ateneu Rui Barbosa. Aí iniciou uma profícua e brilhante carreira docente em Amarante.A escola logo ganhou fama pela alta qualidade de seu ensino e pela rigidez com que meu pai a dirigiu.
Na verdade, o Ateneu, oferecia o curso primário completo, o curso de admissão e o curso complementar, ou seja, o último servia a alunos que não pretendiam continuar estudos mais adiantados. Naquela mesma época, papai começara a escrever para jornais de Floriano (Jornal de Floriano) e Teresina, angariando fama de jornalista talentoso e independente. Seu Ateneu Rui Barbosa, por sua vez, continuava preparando inúmeros alunos, muitos dos quais se tornariam nomes destacadas da vida pública tanto no Piauí quanto nacionalmente. Certa vez, com justa vaidade, me dissera: “Meus alunos tiveram sorte, grande parte deles fez figura no Piauí e no país”. Talvez, esse fosse o seu maior orgulho como educador.
Nos idos de 1935, quando ainda residia em Amarante exercendo com brilho a docência no Ateneu Rui Barbosa, sofrera a injusta sentença de prisão por motivos ideológicos. Era o período sombrio do Estado Novo. Sua prisão fundamentava-se em arbitrária alegação de que meu pai fosse comunista. Ora, nunca ele se declarara com tal. Apenas, como é natural, tinha feito leituras marxistas-leninistas em livros que lhe chegaram não às mãos, mas indiretamente, quer dizer, por Amarante, passara um comunista com alguns volumes de conteúdo marxista e, para se livrar possivelmente da polícia, os lançara num canto da casa de papai. Algum delator infame, sabendo do incidente, passou informações à polícia, a qual, vasculhando a casa de papai lá encontrou os ditos volumes. Foi o bastante para incriminá-lo. Ora, defendia-se meu pai, como um jovem professor do interior, só por haver lido tais livros poderia ser indigitado como comunista? Por mera injustiça, papai teve que cumprir um ano de prisão na Penitenciária de Teresina.Relato mais pormenorizado desse período pode se encontrar no livro de papai, Copa e Cozinha (SILVA, Cunha e. Copa e cozinha. Teresina: APL/Projeto Petrônio Portella, 1988). Tempos depois, papai se unira a mamãe. Vieram-lhe muitos filhos A vida era difícil. Praticamente, nada recebia das colaborações para jornais
Seus restos mortais, porém, permaneceram ali naquele canto do campo santo. Não há lápide, nem há epitáfio. Só a campa formada de terra pura. Há tantos anos estive lá, para lhe dar um adeus póstumo. O mesmo ocorrera com o falecimento de mamãe Nem lhes pude ouvir as últimas palavras, os derradeiros olhares amorosos, os peitos arfando e soluçantes.
Em 1947, conforme já mencionei acima, papai mudou-se para a capital. Fora lecionar a cadeira de geografia numa instituição pública de ensino de renome., o Liceu Piauiense Em Teresina, no início, ficara preocupado com a função de professor de um Liceu conhecido pelo alto padrão de seu quadro docente e do nível de seus estudantes. Papai, no entanto, se preparava bem e dispunha de uma excelente formação adquirida com os salesianos e na preparação para a vida sacerdotal. Seus alunos o receberam bem e logo apreciaram a sua alta competência e vocação para o magistério. Em 1951, defende tese para a cátedra de História do Brasil da Escola Normal Antonino Freire. ” Sua defesa de tese foi vitoriosa, mas precedida de muita luta, de muita injustiça e mesmo inveja ou perseguição visando a prejudicá-lo no concurso. No dia de sua defesa, eu, menino, estava presente.Papai, não sei por que razões, costumava me levar a certas eventos ou solenidades de importância para ele.
Aquele homem possuía uma enorme vontade de viver e de produzir nas duas atividades, o magistério e o jornalismo político. Nesta última atividade, quase sempre estava na oposição e essa opção política o colocava em riscos. Um deles custou-lhe uma cadeira de geografia no Liceu Piauiense por combater o governador de então. Sofreu privações.
Sua atuação jornalística se passou em períodos docs mais difíceis da política piauiense, que medeiam entre os anos trinta, quarenta e cinqüenta. Estar na oposição, escrever contra os abusos do poder, afirmar verdades , denunciar podridões do governo eram uma temeridade. Entretanto, aquele homem não se deixava intimidara, nem por capangas que, por vezes, o seguiam, à noite, quando regressava para seu descanso caseiro. Precavido, andava armado, pois sabia do que eram capazes adversários políticos.
Nunca vi aquele homem se queixar das “amarguras da vida” que, segundo ele, o tornariam poeta aos sessenta anos. Me dizia que a dor mais insuportável era a dor física. As dores morais ele não as temia, as suportava estoicamente. Possuía uma grandiosa qualidade, talvez a mais significativa : nos dava a impressão de que não envelhecia por dentro. Nunca se lamentava comigo do que hoje chamam de depressão na velhice. Todavia, contraditoriamente, costumava afirmar que n ele havia uma tristeza que não o deixava nunca. Não conseguia atinar com a origem dessa tristeza interior.
Sua popularidade como jornalista foi crescente tanto entre os leitores em geral quanto entre intelectuais piauienses. Tornou-se membro da Academia Piauiense de Letras. Seu discurso de posse é uma das mais eloquentes peças oratórias que já tive o prazer de ler. Nele aquele homem sintetizou todo o seu pensamento de intelectual, de professor e de um estudioso profundamente ligado às coisas do espírito. Nessa oratória revela suas inegáveis qualidades de tribuno, de conhecedor da filosofia, da história, da cultura humanística e de seu inconfundível estilo claro mas de pensamento sempre elevado.
Escreveu livros, teses, dirigiu a Biblioteca Anísio Brito e o Arquivo Público do Piauí., dirigiu o Liceu Piauiense, produziu um número incomensurável de artigos num largo período de, pelo menos, cinco décadas, artigos geralmente de natureza político-doutrinária e, nos últimos anos de vida, encontrava qualquer oportunidade para escrever versos, principalmente sonetos. Sem ter sido um grande poeta, seus versos, contudo, são plenos de substância filosófica, dignos de meditação, ou, como, uma vez, sobre eles afirmei: são versos que têm o sentimento à flor da pele, são, na maioria das vexes, verdadeiras “lições de vida”.
A lição desse grande e piauiense de Amarante – Cunha e Silva (1905-1990) -, foi de um varão que, acima de tudo, confiava na vida, na ação humana, no progresso da civilização, das ciências e tecnologias. A sua lição, principalmente, foi a de um homem que tinha o dom da alegria perene de viver.
Lá no campo santo, jazem os vestígios desse homem de espírito extremamente associativo que, só pelas leis da natureza, se viu compelido a permanecer na solidão. No entanto, há um consolo, a sua solidão não é completa nem inapelável. No entorno da sua cova, tem ele por companhia a natureza viva que, de quando em quando, faz soprar uma leve brisa sobre ela e, à noite, faz descer, estonteantemente bela e doce, a luz do luar e o brilho das estrelas.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Num claro dia de verão

Num claro dia de verão


Cunha e Silva Filho


Recentemente, nesta coluna apresentei uma tradução minha bilíngue de Paul Verlaine, fornecendo, além disso, algumas indicações biobibliográficas e temáticas desse grande poeta francês. Adiante, segue outra que ousei preparar-lhe, caro leitor amante da poesia de todos os tempos, a tradução de outro poema do mesmo autor.
Nesta peça, um pequeno poema de apenas doze versos, testemunhamos um exemplo da elevada carga de subjetividade repartida entre dois seres para quem o sentimento amoroso não se sustém apenas com a sensualidade da carne, mas também, servindo-se dos elementos da natureza, no espaço físico da terra, combina-os sobretudo com a natureza do Universo, apelando para os elementos que se situam nas alturas (o sol, o ar, o azul do céu,a noite e as estrelas).
Esses elementos concretos, animizando-se, são elos que, eufóricos, contribuem para plasmar o clima geral de harmonia entre os amantes na Terra, concorrendo para que o encontro do amor seja completo na sua beleza física e na sua sensualidade velada, um ato, enfim, de harmonia , de alegrias e de comunhão com o Cosmos.


Par em clair jour d’été

Donc, ce sera par um clair jour d’été:
Le grand soleil, cúmplice de ma joie,
Fera, parmi le satin et la soie,
Plus belle encore, votre chère beauté.

Le ciel tout bleu, comme une haute tente,
Frissonnera somptueux à longs plis
Sur nos deux fronts hereux qu’auront pâlis
L’émotion du bonheur et l’asttente,

Et quando le soir viendra, l’air sera doux
Qui se jouera, caressant dans vos voiles,
Et les regards paisibles des étoiles
Bienveillamment souriront aux époux.

Num claro dia de verão

Com efeito, será num claro dia de verão:
O grande sol, cúmplice de minha alegria
Tornará, entre o cetim e a seda,
Ainda mais bela vossa inigualável beleza.

Tal como uma elevada tenda, o céu de um só azul,
Estremecerá, suntuoso, em longas pregas
Sobre nossas duas frontes que, felizes,
Pálidas se entremostrarão com a
Emoção da espera e da felicidade,

Ao cair da noite, doce será o ar
Que, acariciando vossos véus, se contentará
E os olhares calmos das estrelas,
Num largo sorriso aos amantes, se alegrarão.

A questão do autor e do leitor no ensaio

A questão do autor e do leitor no ensaio

Cunha e Silva Filho


Aproveito-me de uma pequena e arguta observação de Milan Kundera, conhecido ficcionista de A insustentável leveza do ser, extraída de uma releitura de um precioso livrinho de Samira Chalhub, A metalinguagem. Está no capítulo 7, Col. Princípios, p. 64. Kundera O que, me interessa por enquanto aqui é o seguinte: (...) O romance não é uma confissão do autor, mas uma exploração do que é a vida humana. (...)
Este trechinho, que usarei como mote das minhas considerações, de alguma maneira pode atender a especulações teóricas concernentes ao autor empírico, aquele com registro civil em cartório, o homem de carne e osso, que elabora um romance ou um poema, ou uma crônica, ou uma peça teatral, enfim, uma obra de arte, de maior ou menor grau na qualidade artística. Porém, o que me diz mais de perto nesta discussão é a questão de se poder vincular o autor de um texto crítico à sua produção O que me instiga como especulação é saber se o autor crítico pode ser desvinculado de determinado texto de cunho ensaístico, ainda que o último seja permeado do discurso polêmico sério-irônico.
A minha hipótese de trabalho dirige-se particularmente para a questão de defesa de perspectivas de um trabalho cuja autoria se vê objeto de uma leitura por parte de outro autor que, pela natureza de seus comentários ou análises, poder-se-ia classificá-lo como crítico, não importando o nível de grandeza ou não das ideias.
A minha tese neste particular inclina-se a considerar o componente pessoal, biográfico, como aliado no jogo do debate sempre que seu autor julgue estar sendo injustiçado quanto às idéias e tomadas de posições teóricas que lhe pareceram plausíveis no momento da escrita de um trabalho acadêmico. O caráter da polêmica se torna mais acirrado na medida em que o autor atacado julgue impertinentes ou mal compreendidas as ponderações de um leitor tomando-se em conta o contexto e o tempo da escrita de seu estudo.
Como separar autor e obra de conteúdo teórico no momento em que a pessoa física do autor se comporta filosoficamente dentro de uma unidade de causa e efeito de um objeto provocado pelo mundo interior do autor, do seu universo intelectivo, afetivo, emocional, de sua formação intelectual e aprendizagem e até mesmo de suas implicações geracionais?
Uma obra não é um produto espontâneo, e principalmente um ensaio não é um artefato ficcional, no qual o expediente artificial da figura do narrador inventado pelo escritor sente-se livre para dar asas à imaginação. O autor empírico não é uma “criatura-texto” (op. cit., p. 65). A estrutura do ensaio, assim como o seu derivado, a polêmica, em absoluto pode sofrer a clivagem da pessoa do autor e do seu pensamento especulativo, mesmo que este resvale para o campo da emulação e do tom sério-irônico.
Tudo vai depender da gravidade da situação que se criou à revelia do autor. Tudo depende do como fazer, do como dizer, do tom enunciativo, da semântica empregada ao lidar com um texto de natureza teórica, ainda que este não atenda às expectativas de determinado leitor. Resenhar um texto exige certos protocolos de leitura. Um simples comentário feito às pressas e com pretensões por vezes doutorais não passa de um enunciado falho e injusto. É preciso saber generalizar, é preciso saber usar dos registros lingüísticos adequados e que não resultem em ruídos na comunicação, sobretudo da parte de quem lê textos literários e mais ainda textos teóricos.
Lembremo-nos daquele sermão de Vieira no qual o grande orador sacro discorre sobre a relação de contigüidade da parte e do todo, uma lição de filosofia e de argúcia de argumentação barroca. Por conseguinte, o autor e a sua pessoa civilmente considerada, dentro de certas situações emocionais ligadas a constrangimentos de fundo desvalorativo e com implicações graves de auto-imagem, e não sendo ele tampouco um monge budista ou um São Francisco de Assis, só poderia recorrer ao recurso, nem sempre bem-vindo, da autodefesa que, no campo da história literária, se convencionou chamar polêmica.
Vida literária: desabafos
Cunha e Silva Filho

No início de minha vida literária, quando os sonhos eram dourados e parecia que todos iriam dar certo, eu pensava ser a vida literária o melhor dos mundos possíveis.
No entanto, acordei, mais tarde, dos sonhos e dos entusiasmos juvenis. Hoje, penso diferente Piso mais em terra firme, deixo as ilusões para trás. Descobri, além do mais, outra coisa: a vida literária só nos interessa por certos ângulos. Entre estes mencionaria autores, temas, movimentos literários. Descobri também como são diferentes os gostos, as preferências.
Descobri ainda que, no que respeita a autores e a gêneros, somos impelidos a pensamentos contraditórios, a falar meias-verdades. Descobri, finalmente, que há uma grande cisão entre autores e suas obras. Ah, como são diferentes essas duas partes, e quão raro é o encontro harmonioso entre um caráter digno e uma obra digna!
A grande conclusão a que cheguei sobre a vida literária é que nela não medra em grande medida a amizade pura. Amiúde, sou obrigado a afirmar que a comunidade literária não prima pela simpatia mútua. Para muitos a literatura começa e termina em si mesmos. O narcisismo impera e impede, pois, que os membros dessa comunidade realizem a travessia para o outro. Cada escritor, a uma certa altura de sua vida, se torna uma ilha humana cercada de pares sem tabula redonda que, por sua vez, só cuidam dos seus interesse e de seu sucesso.
Um vez, um professor meu, em aula de literatura, deixou escapar essa confissão algo pessimista: -“ Estamos aqui porque gostamos do que fazemos e do que escolhemos., mas ninguém se importa com a literatura. Não somos nada fora dos muros da universidade. Veja , ao nosso lado, uma faculdade de engenharia. Que valor nos dariam seus cultores, tão diferentes de nosso objetivos, de nosso trabalho?
A vida literária não é nem nunca foi uma comunidade coesa, solidária. Por que, então, isso? Porque, no nosso meio, há vaidade, gerações diferentes, orientações diferentes, formações culturais e ideológicas diferentes. Isso tudo jamais conduzirá a cumplicidades vividas sob o signo da amizade e da sinceridade espiritual.
O que existe, de fato, são grupos, subgrupos, que se encastelam e que pretendem sobrepor-se aos outros, seja conspirando entre si, seja procurando abafar as conquistas alheias, tentando silenciá-las pela inveja, pelo despeito, pelo isolamento, pela ocultação proposital, inimiga da cultura, obscurantista e parcial. Aquele mesmo professor que fez a observação acima referida, noutra ocasião, aproveitou para fazer este comentário: -“ Ah, eles, os intelectuais, têm os grupos deles, os seus admiradores, o seu cortejo de fãs; nós, de nossa parte, fazemos o nosso grupo, nos admiramos entre nós, e é dessa maneira a vida literária...”
A par de grupos e gerações que não se entendem por múltiplas razões, há ainda as antipatias individuais entre escritores. Os motivos delas são também muitos. Demos um exemplo do último. Há bons e até ótimos escritores, preparados, que têm uma obra respeitada – ninguém pode negar - de que não gostamos pelo caráter, pelas atitudes, pela prepotência, até mesmo pelo estilo de escrita. Sabemos que, por dever de ofício, devemos ler suas obras, mas a antipatia que nos causam é tamanha que o nosso subconsciente rejeita nossa aproximação com eles pelas suas obras. É terrível constatar isso, mas é um fato que acontece e acontece muito.Sei que o dever do ofício repugna essa nossa posição diante deles. Mas, somos mortais e, portanto, sujeitos a essas falhas
Essa situação já vivi e bem sei o quanto difícil é superá-la, se é que possamos fazê-lo na vida prática. Assim como, na vida social, há os inimigos cordiais, na vida literária os há igualmente Em certa época da vida acadêmica da PUC-Rio de Janeiro, disputavam, pela hegemonia, dois grupos de alunos: os admiradores de Gilberto Mendonça Teles e os de Afonso Romano de Sant’Anna. Só não sei o que pensavam cada um desse dois escritores.
Muitos erros de perspectiva de juízo critico se cometem na vida literária. Fulano é o melhor romancista, o melhor crítico, o melhor poeta, o melhor dramaturgo, o melhor cronista, o melhor historiador, etc., etc. Ora, isso não passa de uma falácia, de uma opinião meramente opinativa que carece de substância lógica. Não passa de puro subjetivismo e entusiasmo inconsistente, apressado e injusto. . “Tudo é relativo”, como naquela história dos esquimós das regiões geladas do Norte. Como se sabe, todos são homens de pequena estatura. Mas, havia, entre eles, um que era mais alto do que os outros e, por isso, era chamado de “gigante”.
Essa diferença o colocava em posição privilegiada entre seu povo, a ponto de sozinho, gabar-se de que poderia defender todos. Um dia, porém, correu um boato que barco de estrangeiros se aproximava da praia. Foi aí que os pequenos esquimós, com medo dos invasores, procuraram o “gigante” deles para que fosse enfrentar, cara a cara, os estrangeiros. Quando estes vissem o gigante ” dos esquimós, iriam logo fugir em direção ao seu barco. Ora, ocorre que, quando os invasores , que eram noruegueses e negociantes, homens fortes e de quase dois metros de altura, mostraram-se para o pretenso “herói-gigante” esquimó, este não perdeu tempo, saiu correndo amedrontado... Conseguimos livrar-nos desses preconceitos, desses juízos, frutos mais de camaradagem e igrejinhas, exemplo típico de provincianismo? Provavelmente, não. Somos criaturas falhas, incompletas, contraditórias, sujeitas a afirmações ligeiras e, por serem ligeiras, injustas.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A leitura crítica e a peerda da inocência




A leitura crítica e a perda da inocência
Cunha e Silva Filho
Bem me lembro das primeiras leituras adolescentes e, consequentemente, dos meus primeiros comentários analíticos de algumas obras lidas. Foram poucos esses comentários pretensamente críticos. Eles se seguiram logo após as chamadas “apreciações” que meu professor de literatura, A. Tito Filho (1924-1992) - festejado e admirado mestre da geração que frequentou o Liceu Piauiense na primeira metade da década de sessenta -, costumava propor como trabalho escrito a nós alunos. “Apreciações.” Era assim que as chamava, exigindo-nos um tipo de pequeno ensaio a ser desenvolvido individualmente pelos alunos e nos quais pudéssemos demonstrar capacidade de pesquisa e originalidade de pensamento Podiam ser de um tema determinado mas quase sempre ligado a literatura, como, por exemplo, um movimento literário, a obra de um escritor, um tema social ou político da atualidade de então.
Lembro-me de que um deles foi um paralelo entre parlamentarismo e presidencialismo. Como não era tão forte em política, recorri à ajuda de meu pai, catedrático de História do Brasil e jornalista visceralmente político. O autor de Teresina , meu amor (1973) não era de dar nota alta. Achava-o rigoroso, mas o respeitava pelo brilho das aulas, pelos gestos, voz e enorme facilidade de expressão. Nos seduzia pela vocação de orador. Mais parecia um lecturer em sala de aula
As “apreciações”, no entanto, serviram como meus primeiros passos na prática da linguagem escrita e de natureza ensaística, que logo me encaminhariam aos comentários ingenuamente críticos ou mesmo a tentativas de fazer ficção. Quanta audácia juvenil! Ah, como aquelas queridas “apreciações’ me foram úteis no futuro! Naquele período inicial de encantamento com o texto literário, comecei a não apenas ler um monte de textos nacionais ou estrangeiros em tradução portuguesa, alguma poesia em livros didáticos, mas também muita leitura das chamadas fotonovelas da época, destinadas mais a mocinhas românticas, que me seduziam porque combinavam a fotografia das ações, de tramas rocambolescos, destacando a voz (escrita) do narrador, os pensamentos íntimos dos personagens, os cortes, entre as cenas que mais pareciam um filme impresso. Funcionavam como ersatz das atuais novelas de televisão, assim como, remotamente, desempenharam função semelhante aos célebres folhetins do século oriundos da França e, depois, imitados aqui pelos nosso primeiros romancistas do século 19.
Aquelas fotonovelas eram repletas de histórias de amor, sofrimentos, renúncias, traições, heroísmos e outros ingredientes sentimentais, glamurosos ou não. Delas havia vários títulos, “Capricho”, “Sedução”, “Ilusão”, Grande Hotel” e outras, fora os gibis com suas maravilhosas tiras em preto e branco ou coloridas, com suas histórias e suspenses, seus medos e terrores. Já naquela época havia da minha parte de leitor um interesse bem acentuado pela linguagem dos textos, dos diálogos, da trama, do “sentido da obra,” conforme a entende hoje Tzvetan Todorov1 jamais poderia renegar aquela experiência de leitor de fotonovelas, cujo hábito provavelmente tenha vindo da minha irmã mais velha, a Sonia Setúbal Cunha e Silva, naquela época, leitora voraz, cinéfila fidelíssima que, por algum tempo, dedicou-se a escrever no jornal “Estado do Piauí” sobre a sétima arte. Acredito que a falta de teatro em Teresina na época foi responsável pela paixão nossa (de toda a família) manifestada pelo cinema. Era mesmo esse “sentido da obra’ que me aguçava o interesse naqueles anos idos e vividos. Nada mais.
Me recordo de que, por volta dos dezesseis aos dezoito anos, a minha leitura de autores se inseria nesse tipo de aproximação com o texto literário, i. e., um texto para mim era visto como experiência de vida, como conhecimento, como um despertador de emoções. Não havia ainda se apoderado de mim a leitura como compreensão metalingüística, nem como meta-literatura. Mais me importava era a fruição das pessoas que, no texto, falavam, sonhavam ou odiavam tanto ou tão mais do que na vida empírica.
Quando, por exemplo, lia contos de Coelho Neto (1864-1934) ou de outros autores e sobre eles me debruçava, deles extraindo comentários, fazia-o sem imposições teóricas que me afastassem por demais da fruição do texto ficcional ou do poema. Havia, sem dúvida, grande dose da audácia e da naïveté juvenis que, por isso mesmo, não me tolhiam aquela espécie de “impressionismo” incipiente e imaturo. Só um fato me parece hoje decisivo e mesmo positivo: meus comentários se distinguiam, sem que eu próprio disso desse conta, pelas espontâneas forma de olhar para um texto sem a armadura teórica de hoje. Só o prazer da leitura me bastava.
Alguns autores costumam dar pouca ou nenhuma importância aos escritos da fase da imaturidade. Não penso assim. A fase imatura de nossa produção literária é justamente aquela que exprime a visão do autor no passado que, na realidade, lhe vai permitir discernir como ele, ainda não assoberbado com um inumerável arsenal teórico, trabalhava na sua investigação crítica diante de uma obra literária em qualquer gênero que fosse.
Me vem à mente. Agora, o quanto os estudos mais profundos e complexos da teoria literária influenciam e são responsáveis por essa perda da pureza e da inocência
Uma professora ainda muito jovem, assistente de Augusto Meyer (1902-1970), que tive na Universidade do Brasil (hoje, UFRJ), me fez uma observação que para mim foi na época uma surpresa e ao mesmo tempo uma abertura ao conhecimento da fundamentação teórico-literária. Ele propôs à minha turma um trabalho de análise literária a ser realizado individualmente. A mim coube um poema de Cecília Meireles (1901-1964). Determinou a data de entrega dos trabalhos. No dia da devolução dos trabalhos, pude verificar que, no final da minha análise manuscrita, ela me chamou a atenção para uma deficiência que encontrara no meu trabalho. Apesar de me dirigir um elogio sobre a minha sensibilidade de lidar com o texto poético, me advertiu para uma certa pobreza de recurso teóricos de interpretação de texto.
Era a pura verdade. Descobri que, no curso secundário – e no meu caso fiz o científico -, não dispunha de formação maior em teoria literária, pelo menos ao nível de conhecimento médio. A crítica que me fez tinha procedência, porquanto me abriu os olhos para a valorização do domínio teórico, sério e em bases sólidas, sem o qual a análise se apequena, ainda que o analista seja dotado de algum talento para o exercício da análise e interpretação do texto literario.
Esse depoimento que, agora, trago à atenção do leitor, por linhas inversas, vai exatamente ao encontro daquela ponderada queixa de Todorov, ou seja, a teoria jamais pode ser subestimada nos estudos literários nos curso de letras e até mesmo no ensino médio de boa qualidade, mas, ao mesmo tempo, quando atinge a hipertrofia no uso de seus recursos e técnicas, haverá forçosamente uma espécie de perda da inocência na relação do analista com o texto, perda do amor ao texto e, de certo modo, perda do prazer transmitido pela vida que há no texto, perda pelo gosto do que se lê e pelo amor que o leitor deve e tem que sentir no processo da leitura, que, por sua vez, é um processo de revelação do viver, do sonhar.
Enfim, da leitura como vivência, experiência, crescimento do repertório existencial do leitor, forma permanente de sedução provocada pela força do texto, num pacto silencioso entre ele e o leitor, que, até então, se via livre dos condicionantes gerados pelas variadas e múltiplas técnicas e approaches no estudo da obra literária, mais ou menos, mutatis mutandi, naquela direção, e método de análise fria, formalista e cerebral que, uma vez, Álvaro Lins (1912-1970)2 reprovava como defeitos visíveis no new criticism anglo-saxônico, norte-americano e até em alguns apressados seguidores brasileiros.
Obviamente, Lins, um crítico aberto às novidades, lúcido, de modo algum repudiaria a nova crítica feita com seriedade e sensibilidade voltadas para o fenômeno estético-literário.Tanto assim que no seu ensaio comparativo sobre T.S. Eliot (1888-1965) ele menciona e comenta, com conhecimento de causa, grandes nomes da crítica inglesa e norte-americana. A sua restrição compreendia apenas as falsificações que encontrara entre nós. Reprovava, no entanto, os exageros desvirtudores do “autêntico new criticism estrangeiro”, daqueles que faziam da práxis crítica da nova crítica uma espécie de “ the lemon-squeezer school of criticism” – definição de T.S. Eliot que para Lins era carregada de “espírito satírico demonicamente devastador”.3 O fato é que, voltando à questão central deste artigo, sem dúvida, as várias e diferentes correntes da crítica contemporânea, com sua metodologias cada vez mais complexas paradoxalmente, até certo grau, foram responsáveis por essa quebra da aura que tem envolvido o relacionamento do leitor especializado, dos estudantes de letras, do professor universitário, principalmente, com a alta complexidade do processo da leitura, a qual, n o ambiente acadêmico universitário, objetiva, é óbvio, preparar bons analistas, ensaístas , críticos de textos que, todavia, vão sofrer inapelavelmente uma forma de redução do prazer estético-comunicativo ao aproximar-se da obra literária no tocante ao que Todorov chamou, convém repetir, “o sentido da obra”.
A formação teórica na análise crítica, ipso facto, de certa maneira equivale a uma perda da inocência. Sem retorno. Este é preço do domínio dos saberes teóricos dos quais todos os que neles somos introduzidos ou por ele assimilados, não podemos sair ilesos. Infelizmente.
Por outro lado, o leitor comum, sem os condicionantes meta--críticos e a alta sofisticação do instrumental teórico múltiplo, cultural, geográfica e temporalmente, é bem provável que, nessa questão, seja o vencedor.
NOTAS:
1 TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Difel, 2009. 2 LINS, Álvaro. Teoria literária. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1970. A referência diz respeito aos ensaios do capítulo IV “O autêntico ‘new-critcism’ no estrangeiro”(p.119-132 ;ao capítulo V , “A desimportância do ‘new-critcism’, em arrivistas e carreiristas, dentro do Brasil” (p.132144) e ao capítulo VI, “Relógio universal e Quadrante brasileiro”. (p.144-150. 3 idem, ibidem, p. 136.

Os espinhos da crítica literária

Os espinhos da crítica literária
Cunha e Silva Filho
A crítica literária em jornais, chamada de rodapé, que, no país, se cultivou quase sempre com brilhantismo, conheceu seu apogeu a partir do Modernismo com a atividade desenvolvida por intelectuais, entre outros, como Tristão de Athayde, Agripino Grieco, Álvaro Lins, Afrânio Coutinho, Temístocles Linhares, Sérgio Buarque de Holanda, Wilson Martins, Antonio Candido, só para ficarmos com alguns nomes mais antigos. Desse pequeno grupo só Candido e Wilson Martins ainda estão vivos. Nem todos eles mantiveram-se como críticos exclusivamente, de vez que dividiam a judicatura crítica com o magistério. E até por vezes como diplomata por certo período, como é o caso de Álvaro Lins. Porém, do grupo mencionado só dois podemos dizer que, salvo engano, cultivaram quase com exclusividade os rodapés: Agripino Grieco e Wilson Martins. Este último exerceu também a docência superior, no país e no exterior.
Cada um deles, por sua vez, possuía sua linha de pensamento crítico, que ia desde o humanismo estético-filosófico de abertura para uma crítica expressionista (Tristão de Athayde), ao impressionismo de cunho satírico (Agripino Grieco), ao impressionismo humanístico de visão arejada e original (Álvaro Lins), à nova crítica de base anglo-saxônia (Afrânio Coutinho), ao humanismo impressionista renovado e aberto às novas tendências crítico-sociais de alcance universal (Temístocles Linhares), à crítica de base erudita e histórica (de Sérgio Buarque de Holanda), ao impressionismo erudito-historiográfico (de Wilson Martins), à crítica sociológico-estético-formal (de Antonio Candido), considerando essas classificações da maneira mais esquemática possível.
A minha intenção nesse artigo é apenas refletir em torno das implicações do crítico com o seu objeto de trabalho intelectual: julgar obras nos diversos gêneros. A função do crítico pressupõe uma posição delicada junto não só aos autores, mas também junto aos próprios críticos. No primeiro caso, ao crítico cabe responder aos valores ou ausência de valores estéticos de uma obra fundamentado na sua experiência de leitor e de seus recursos de abordagem do fenômeno literário. Neste caso, recai sobre ele a responsabilidade de orientar leitores e ao mesmo tempo de mostrar qualidades ou deficiências de um autor desde que não caia no vezo demolidor.
O que não deve fazer o crítico é não ser honesto no que respeita a autores Não estou convencido da afirmação de que um autor não dê nenhuma atenção aos críticos. Aos autores interessa, sim, o julgamento de um crítico sério e competente. A cosmovisão (Massaud Moisés) constitui parte essencial da atividade crítica. Para que ler uma obra literária senão para lhe extrair dados da experiência de vida e modos de compreender o mundo, os homens e a própria Arte? No segundo caso, o papel do crítico, diante de outro ou outros críticos, segue linhas de concordâncias ou de discordâncias teóricas, o que necessariamente não significa que um crítico seja, por si só, adversário de um outro intelectualmente.. A história literária brasileira tem demonstrado que alguns críticos, por razões de linhas estéticos diferentes, se tornam inimigos e, às vezes, passam até à inimizade pessoal. Citaríamos os exemplos das polêmicas entre Sílvio Romero e José Veríssimo, ou mais próximos de nós, entre Álvaro Lins e Afrânio Coutinho, Nelson Werneck Sodré e Wilson Martins ou entre críticos sociológicos e críticos estruturalistas ou de outras correntes do pensamento crítico. As rivalidades muitas vezes chegam a tal ponto que, em referências acadêmicas bibliográficas, um não cita o outro.
Os julgamentos críticos criam ressentimentos, aversões mútuas, que são guardados para sempre e sobretudo para algumas ocasiões em que o crítico rigoroso ou mesmo injusto, tendo criado muitos inimigos na vida literária, não consegue ter acesso a determinadas instituições culturais dependentes de escrutínios para nelas ingressarem
A atividade crítica é também desgastante física e intelectualmente dado que, com o crescimento demográfico e cultural do país nos últimos quarenta anos, pelo menos, seria impossível dispor-se de rodapés com críticos acompanhando a produção editorial do país nos vários gêneros literários. São muitos os autores em todo país.. O que ocorreu foi o surgimento das chamadas resenhas, que, semanalmente pelo menos, comentam as novas publicações.. O trabalho da crítica mais densa ficou circunscrito aos muros das universidades. Daí também que o crítico literário não remunerado seja obrigado a exercer a crítica esporadicamente, muito embora desejasse escrever com muito maior assiduidade sobre os livros que recebe. O que, no mínimo, pode fazer é agradecer a gentileza de alguns autores lhe enviarem livros pedindo comentários.. Acredito que a solução em parte seja, a médio ou longo prazo, que o crítico, dentro de suas possibilidades, vá reunindo aos poucos artigos ou ensaios para posterior publicação em livro.
O fato de o crítico ou ensaísta não dar pronta resposta a uma quantidade enorme de livros que recebe deve-se a essa impossibilidade de um trabalho que, em outros tempos e outros contextos culturais e editoriais, pudesse ser realizado nos moldes dos antigos rodapés de jornais dos principais centros hegemônicos do país.

Na Escócia deixei meu coração

NA ESCÓCIA DEIXEI MEU CORAÇÃO


Cunha e Silva Filho


O título acima pertence ao poema. “My heart‘s in the Hightlands, do poeta escocês, Robert Burns (1756-1796). Burns se situa no período pré-romântico da literatura de língua inglesa. Seu lirismo, de acordo com a crítica , é o seu lado poético mais visível. Morreu jovem e na miséria, aos trinta e sete anos.Distingue-se sua poesia pelo individualismo, sentimento e profunda comunhão com a Natureza. Dos seus temas se destacam aqueles que descrevem a beleza da paisagem escocesa. Consideram-no o maior poeta escocês.
Jovem nascido no interior, foi instruído pelo pai em Ayrshire. Trabalhou no campo, mas, ao lado disso, teve tempo para estudar latim, francês, matemática e ler os grandes escritores e poetas. Além de grande lírico, for um poeta da revolução no sentido de rebeldia contra convenções moralistas e rigorismos religiosas presbiterianos e Entre suas obras mais importanates estão The Banks of Doon, Mary Morrison, To Mary in Heaven, The Cottar’s Satuday Night, To a Montain Daisy e The Jolly Beggars.
No poema mencionado, que a seguir, apresento ao leitor em tradução bilíngüe, sinto algum parentesco temático-sentimental com o famoso poema “Canção do exílio,” de Gonçalves Dias (1823-1864).
MY HEART’S IN THE HIGHLANDS
Farewell to the Highlands, farewell to the North,
The birth-place of valour, the country of worth;
Wherever I wander, whereever I rove,
The hill of the Highlands forever I love.

My heart’s in the Highlands, my heart is not here;
My heart’s in the Highlands, a-chasing the deer
A-chasing the wild deer, and following the roe.
My heart’s in the Highlands wherever I go.

Farewell to the mountais, high-covered with snow,
Farewell to the straths and green valleys below,
Farewll to the forest and wild-hanging woods,
Farewell to the torrents and loud- pouring floods.

My heart’s in the Highlands, my heart is not here;
My heart in the Highlands, a-chasing the deer;
A-chasing the wild deer, an d foloçwing the roe,
My heart’s in te Highlands wherever I go.

NA ESCÓCIA DEIXEI MEU CORAÇÃO

Adeus, Escócia, adeus, montanhoso norte, noroeste.
Berço valoroso, terra benfazeja.
Aonde quer que eu vá, onde quer que vagueie,
Para sempre hei de amar as colinas escocesas.

Deixei lá meu coração, não aqui.
Está lá, sim, nas montanhas, caçando cervos,
Caçando cervos selvagens, atrás das cervas também.
Lá deixei meu coração, não importasse aonde fosse.

Adeus às montanhas cobertas de neve,
Adeus aos amplos vales, aos verdes vales lá embaixo.
Adeus às florestas e aos bosques cerrados,
Adeus às correntezas e às rumorosas enchentes.

Deixei lá meu coração, não aqui.
Lá ficou meu coração, caçando cervos e seguindo as fêmeas,
Aonde quer que eu vá, meu coração deixei na Escócia

No sebo da São José

"Sonnet" III, de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa : "sonnet" III

Cunha e Silva Filho

Caro leitor, a seguir transcrevo o “sonnet” III, de Fernando Pessoa, com a tradução na sua forma bilíngue, segundo venho, a intervalos, fazendo nesta Coluna:Sonnet III

When I DO THINK my meanest line shall be
More in Times’s use than my creating whole,
That future eyes more clearly shall feel me
In this inked page than in my diect soul;
When I conjecture put to make me seeing
Good readers of me in some aftertime,
Thankful to some idea of my being
That doth not even with gone true soul rime;
An anger at the essence of the world,
That makes this thus, or thinkable this-wise,
Takes me my soul by the throat and makes it hurled
In nightly horrors of despaired surmise,
And become the mere sense of a rage
That lacks the very words whose waste might’suage.

Soneto III

Quando, DE FATO , PENSO que o mais simples dos meus versos há de ser
Mais útil no Tempo do que o meu próprio ser,
Que aos olhos do futuro hão de entender melhor
A minha página escrita do que minha própria alma,
Quando imagino poder ser visto porBons leitores da posteridade,
Graças a alguma idéia saída do meu ser,
Que nem mesmo rime com a minh’alma autêntica e esquecida;
Uma raiva, como essência do mundo,
De mim se apodera, ou dessa forma refletir me faz,
Pela garganta me toma a alma e a atira
Aos horrores noturnos e aos cismares desesperados,
Tornando-se puro sentido de uma raiva
Carente das palavras certas, cujo desgaste aliviar pudessem.

Nico, o mecânico

Nico, o mecânico

Cunha e Silva Filho

As amizades que começaram bem jamais devem ser interrompidas, a não que, da outra parte dela, não haja nenhum interesse pela continuidade da amizade. Ao longo da vida, já me ocorreram casos de pessoas, de cuja amizade privei, que, com o temo, se foram sumindo n a poeira da estrada, ou melhor, da vida. Posto que procurasse tentar reatar a velha amizade, nenhuma sinalização verde havia do outro lado. O jeito era mesmo deixar pra lá.
Soube hoje que um amigo, o Nico, falecera no início deste mês, de um enfarte. Ainda cuidaram de levá-lo pra uma cidade com recursos médicos melhores, Guarapuava, no interior do Paraná. Contudo, lá não resistiu aos esforços de salvação. Aqui entre nós, Nico nunca deu bolas pra saber se tinha algum problema cardíaco. Uma vez, minha mulher, tirou-lhe a pressão. Estava altíssima. Comia de tudo. Comida pesada: churrasco, costela, salame, lingüiça no café da manhã, sempre servido com fartura. Não aconselho a ninguém que passe muito tempo sem procurar os amigos e ver se estão bem, eis um conselho que gostaria de dar às pessoas. Esse aspecto da realidade –a morte - , que é doloroso, mas que tem que ser encarado de frente recebe um tratamento especial e com forte convencimento na ficção machadiana, sobretudo em Dom Casmurro (1900)
Não sei um especialista do grande escritor, porém é flagrante um dado do enredo desse romance, a quantidade de mortes de personagens que, ao longo da narrativa, se vão anunciando ao leitor. Faz-me pensar que, de propósito ou não, Machado de Assis (1839-1908), diante da quantidade de notícias de morte de personagens, parece lembrar ao leitor que a vida se tece de mortes no entrecruzamento de nossas relações de amizade ou mesmo de mero conhecimento das pessoas. Vejo que, com isso, o grande narrador, usando desse subterfúgio, almeja despertar nos homens, não sem um refinado humor quase mórbido, a consciência de que somos mortais, frágeis criaturas que a terra há de comer. Pulvis est, leitor, parece sussurrar-nos, ao ouvido, Machado.
Conheci Nico, hipocorístico de Nicodemo,seu nome de batismo(seu nome completo era Nicodemo Langner), era uma cinquentão, um típico senhor do interior paranaense, da cidade de Irati, com aquele sotaque e expressões marcantes do homem do Sul do país. Homem simples, vida simples, pobre, mas de pobreza digna, cuidadosa de sua família, de seus filhos e netos, seus piás. Mecânico de carros, fosse automóvel, fosse caminhão, ou outro veículo motorizado. Não era um mero mecânico pé de chine Era mesmo um mecânico com M maiúsculo, apaixonado pelo que fazia.
Na mocidade, fizera cursos na sua área de atividade. Trabalhara como mecânico de um grande empresa, se não me engano a Volkswagen do Brasil, do seu estado. Ganhava bem, mas, tempo depois, preferiu trabalhar por conta própria. Diria melhor, quase própria, visto que, na sua oficina, não muito distante de sua residência, dispunha de auxiliares para tocar o seu negócio. Tinha seu próprio automóvel, um velho carro, um Chevette, bem cuidado, bem dirigido. Sentar-se, no banco de carona com ele na direção, era estar seguro de que nada de ruim me ia acontecer. Por várias vezes, estive em sua modesta oficina, onde havia sempre carros para serem consertados, ou pintados de novo, ou serviços de lanternagem a serem feitos.
Na verdade,Nico, à altura que o conheci, gostava mesmo era daquele serviço de lanternagem, para o qual usavam um outro termo que me foge à memória. Descendente de alemães de mistura com polacos, Nico era um homem baixo, sanguíneo, de olhos verdes, meio calvo, bonachão, inteligente. Nico sabia de tudo sobre a cidade de Irati, berço natal do poeta Foed Castro Chamma, que me parece, anda meio esquecido, como tantos outros grandes poetas brasileiros ou não. O mal da literatura é que ela, com o tempo, se transforma num repositório de “esquecidos”. Por falar nesse poeta, de Nico recebi um presente, que é uma revista contando a história da cidade ( a cidade se tornou município paranaense em 2 de abril de 1907) e onde há uma nota jornalística não-assinada transcrevendo trechos do poeta referentes a uma reportagem sob o título “Foed Castro Chamma e a consciência mítica do mundo”, publicada na revista Leitura, do Rio de Janeiro, na década de sessenta.
Os trechos transcritos dão ao leitor a idéia da alta qualidade do pensamento do escritor sobre o fenômeno poético, além de elucidar os seus processos criativos. A publicação da revista sobre Irati, de 1967, presta homenagem ao sexagésimo aniversário da cidade.Volto ao assunto central da crônica. Conheci Nico porque há tempos comprei uma casa em Irati, pois, naquela época, nesse lugar morava meu filho mais velho. Até pensei que iria demorar-me lá por algum tempo, o que não ocorreu. É aí que entra a história do Nico, que era vizinho meu. A casa dele fora herança paterna. O pai possuía um bom terreno que, aos poucos, foi vendendo, para construções de casas modestas. Uma delas ficou pro Nico. Nico, muito espirituoso, era um verdadeiro contador de piadas dos mais variados tipos. Sua memória era excelente e, se não me engano, quando não tinha mais repertório de estórias pra contar, improvisava-as com muito talento e graça.
Essa característica era a mais saliente de sua personalidade, e será aquela que guardarei nas minhas lembranças do amigo. E veja o leitor que sua vida pessoal não foi fácil. Perdera um filho muito jovem num acidente de moto quando voltava pra casa. Nico era daqueles pais que tudo faziam para que nada faltasse pra sobrevivência da família. Trabalhava pesado, com horário rigoroso na ida e volta, diariamente, pra sua oficina. Para a família, a falta será inestimável. Podia-se dizer que todos dependiam dele. Era mesmo um pai “arrimo” da família..
Na oficina, me explicava tudo sobre carro, como consertar, desmontar, desalmogar, pintar, alinhar etc. Sua vida profissional era aquele mundo de peças, de ferramentas, de carrocerias, de pneus, de carros amassados, latas de tinta parafusos, motores pelos cantos do lugar, enfim, inúmeros objetos de trabalho completamente desconhecidos pra mim. Eu, que nada entendo de carro, nem mesmo pra dirigir, por educação, ficava atento àquelas explicações expostas num jargão técnico que para mim era grego. Mas, entre uma explicação técnica ou outra, costumava contar uma piada ou falar sobre a cidade de Irati, sobre a vida política do município, seu povo, seus defeitos e qualidades de lugar pequeno.Conhecia a cidade como ninguém e era, ao que me parecia, bem relacionado, pois, nas mercearias, longe ou perto de sua casa, comprava mantimentos com dinheiro ou até pra pagar depois. Tudo me indicava que Nico era um sujeito querido.
Nico, mecânico, lanterneiro,, grande contador de piadas, respeitoso, fundia traços do homem simples brasileiro, mas de um homem com visão dos fatos sociais. Amava a vida da forma que o destino lhe traçou. Tinha um sonho: ver os netos jogadores de futebol, não em Irati, mas nos times importantes de Curitiba ou mesmo dos melhores times brasileiros. Avô coruja. Levou consigo, contudo, os sonhos da Terra, do que aqui pôde fazer na sua vida modesta e digna. No céu, contará piadas que obviamente encantarão os anjos.

domingo, 27 de setembro de 2009

"Sonnet" II de Fernando Pessoa

“Sonnet II de Fernando Pessoa

Caro leitor, dentro do possível, de quando em quando, trago à sua fruição poética,, um soneto traduzido do genial autor de Mensagem(1934). Veja abaixo:

Sonnet II

If THAT APAPARENT part of life’s delight
Our tingled flesh-sense circumscribes were seen
By aught save reflex and co-carnal sight,
Joy, flesh and life might prove but a gross screen.
Haply Truth’s body is no eyeable being.
Appearance even as appearances lies.
Haply our close, dark, vague, warm sense of seeing
Is the choked vision of blindfolded eyes.
Wherfrom what comes to thought’s sense of life? Nought.
All is either the irrational world we see
Or some aught-else whose being-unknown doth rot
Its use for our thoght’s use. Whence taketh me
A qualm-like ache of life, a body-deep
Soul-hate of what we seek and what we weep.

Soneto II


Caso AQUELA APARENTE parte das delícias da vida
Que abrange nosso dolorido sentido carnal fosse vista
Por qualquer coisa, exceto como reflexo e carnal visão conjunta,
A alegria, a carne e a vida não passariam de uma tela espessa.
Felizmente, não é um ser visível o corpo da Verdade.
A aparência ilude, ainda como aparência.
Por sorte que o nosso sentido de visão profunda, escura, vaga e cálida
Seja a visão sufocada de olhos vendados,
Consequentemente, que vem a ser o sentido da vida para o pensamento? Nada.
Tudo não é mais do o mundo irracional visível.
Ou de qualquer algo mais cujo ser-desconhecido por força apodrece
Com o uso quando empregamos nosso pensamento. Daí me vem
Um sofrimento incerto da vida, um ódio d’Alma tão profundo
Quanto o do corpo para o que procuramos e pelo qual choramos.

"Sonnet" I de Fernando Pessoa

Tradução de um “sonnet” de Fernando Pessoa


Cunha e Silva Filho


O lendário Fernando Pessoa (1888-1935), lido e relido por multidões de leitores daqui e de além-mar, tão famoso quanto Camões (1524-1580) analisado e mais analisado por diferentes exegetas, em Portugal, no Brasil e em outros países, considerado, enfim, um bardo especial famoso pelos seus heterônimos e ortônimo, um poeta valendo por vários poetas, glória lusófona, com produção em prosa e verso cuja obra parece estar sempre crescendo pelo surgimento de novos produções, teve ainda fôlego para escrever versos em puro inglês, em francês e ainda foi tradutor de “O corvo,” “Annabell Lee”, “Ulalume’ de Edgar Allan Poe (1809-1849) e “Da Antologia Grega”, a partir da versão inglesa de W.R. Paton.
No que tange aos seus poemas ingleses, deixou a seguinte produção que, até onde pude pesquisar, não foi grande: English Poems I-II (Antinous e Inscriptions, III (Ephitalamium) e 35 Sonnets (1918). Pelo menos é isto que ele revela em carta de 18 de novembro de 1930 a Gaspar Simões. Essa informação faz parte de uma ‘Nota Preliminar” do poeta da seção Poemas Ingleses constante da Obra Poética, volume II da Editora Nova Aguilar, 1977, organização , edição e notas de Maria Alieta Galhoz e de uma Cronologia da vida e da obra de Fernando Pessoa, de João Gaspar Simões. Releva assinalar uma observação que Pessoa faz quanto à composição desses poemas. Segundo ele, os poemas ingleses apresentam grande complexidade de composição, sobretudo os sonetos, esclarecendo, além disso, ao leitor que este precisaria de conhecer profundamente a língua de Shakespeare(1564-1616).*
Informa ainda Pessoa que os poemas citados , Antinous e Ephitalamium constituiriam com outros três poemas um “pequeno livro” englobando o que ele denomina “o círculo do fenômeno amoroso” A esse “círculo, por sua vez, Pessoa designaria de “ciclo” imperial, assim distribuído: 1) Grécia, Antinous; 20 Roma, Epithalamium; 3) Cristandade, Prayer to a Woman’ body; Império Moderno, Pan-Eros; Quinto Império, Anteros. Os três últimos, acrescenta ele, se achavam inéditos.”**
Aos meus leitores, , transcrevo abaixo o primeiro soneto, daquela série de 35 sonetos, e, lgo em seguida, como de costume, a minha tradução bilíngüe. Vejam ele segue o esquema rimatico do soneto shakespeariano ( ababcdcdefefgg), i.e., duas quadras seguidas de um dístico final:
Sonnet 1

WHETHER WE WRITE or speak or do but look
We e are ever unapparent. What we are
Cannot be transfused into word or book.
Our soul from us is infiniteley far.
However much we give our thoughts the will
To be oor soul and gesture it abroad,
Our hearts are incommunicable still.
In what we show ourselves we are ignored.
The abyss from soul to soul cannot be bridged.
By any skill of thoughts or trick of seeming.
Unto our very selves we are abridged
When we would utter to our thooughts our being.
We are ur dreams of ourselves suls by gleams,
And each to each other drems of others’ dreams.



Soneto 1

SE ESCREVEMOS ou falamos, ou apenas olhamos
Somos sempre indefinidos. O que somos
Não se pode transfundir numa palavra ou livro.
Permanece infinitamente distante de nós mesmos,
Por mais que permitamos à nossa alma pensamentos,
Fica distante a vontade de nossa alma e gestos.
Incomunicáveis ainda são nossos corações.
Aquilo que de nós revelamos não exprime o que somos.
Pois não pode existir ponte no abismo de alma a alma.
Seja qual for a argúcia do pensamento ou aparente artifício.
Apenas somos a síntese de nossas próprias subjetividades.
Quando transmitíssemos a idéia de nosso ser ao nosso pensamento
Somos os sonhos de nós mesmos, almas de brilhos vagos.
Os seres entre si sonham com os sonhos dos outros.


NOTAS

* Op. cit., p. 587-588. Não foi minha intenção desta vez fazer comentários mais pormenorizados à Nota Preliminar que, como já afirmei, é um esclarecimento sobre os poemas ingleses, em forma de carta, de Fernando Pessoa ao crítico João Gaspar Simões

** Op. cit., p. 589.

No sebo da São José

NO SEBO DA LIVRARIA SÃO JOSÉ
Cunha e Silva Filho
Estive ontem, como venho fazendo há tantos anos, visitando o sebo da São José, dirigido pelo Gernano que a quem minha mulher chama de Seu José, levada seguramente por associação de idéias, e pela proximidade com o nome da antiga Livraria São José. Germano começou a trabalhar na São José ainda bem moço. Depois tornou-se antigo funcionário do famoso livreiro Carlos Ribeiro, proprietário da conhecida Livraria São José, que também foi editora, reduto de intelectuais do passado, não só os da capital carioca como os que vinham sobretudo do norte e nordeste. O sebo do Germano deriva dessa velha e respeitada Livraria do Carlos Ribeiro. Aliás, toda a minha família conhece o Germano, meus filhos, um dos quais quase foi afilhado dele. A amizade com ele partiu da minha mulher que, nos anos sessenta, visitando a Livraria São José, em companhia de algumas amigas da FNFI (Faculdade Nacional Filosofia da Universidade do Brasil, hoje, UFRJ, foi apresentada ao Germano. Elza gostou tanto do atendimento do jovem Germano dispensado a ela e a suas colegas de universidade, frequentadoras da livraria, que logo aderiu ao vício também de frequentar essa casa de livros. Foi pelas mãos de Elza que eu também fui apresentado ao Germano, ou melhor, ao Seu José, como respeitosamente minha mulher o trata. A antiga Livraria São José ficava na própria Rua São José e desconfio de que a razão social do ramo de livros se deve também por contiguidade e aproximação física com a bela Igreja de São José, na qual meu filho mais velho se casou.. Aquele entorno no passado se chamava Morro do Castelo, o qual foi demolido, sofrendo , com o tempo, completa transformação paisagístico-arquitetônica. O velho sebo remanescente da São José localiza-se hoje na Rua 1º de Março, Centro do Rio. Não é preciso dizer que visito esse sebo por várias razões, inclusive a da amizade que fiz com seu proprietário, que hoje , além de seus funcionários, conta com a operosidade da sua filha, formando com o experiente pai ,uma espécie de sociedade de negócios regida por laços de amor paterno-filial.. Todos que moramos no Rio de Janeiro sabemos o quanto de sebos existem espalhados pela cidade, zona sul, subúrbio, zona norte, zona oeste, sebos ao ar livre, nas calçadas, nas esquinas de ruas movimentadas. Até livros-guia existem para orientar os amantes de livros, como O bem organizado Guia dos sebos das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, de Antonio Carlos Secchim, que, na realidade, inclui mais quinze cidades brasileiras.O guia traz uma boa introdução sobre a origem dos sebos como locais de venda de livros usados e de obras raras. Nem sempre o sebo é rigorosamente uma livraria de livros velhos, pois é possível encontrar alguma publicação nova e não usada. Antes do guia de sebos de Secchim, foi editado pela UFRJ um guia desse gênero, mas bem limitado em seu escopo, já que só abrangia a cidade do Rio de Janeiro. A edição for organizada por Wellington de Almeida Santos que, como Secchim, é professor da UFRJ. O Sebo da São José, antes de ir para o atual endereço, por algum tempo se instalara na Rua do Carmo, também Centro do Rio.O costume de ir aos sebos é antigo. Escritores, estudantes, pessoas interessadas em culturas habituam-se às visitas aos sebos. Acredito, porém, que hoje, com a venda de livros usados via intern et, os sebos ao vivo estão tendo alguma decaída em suas vendas. As vendas virtuais, segundo me informaram, estão dando mais lucros. Mudanças de tempos e de hábitos. Sinto nostalgia? Sim. Sobretudo do tempo de estudante de Letras e, depois, mesmo do tempo em que iniciara, muito jovem, o magistério. Comprei muitos livros; achava-os ,naqueles anos, mais baratos. Hoje, penso que os livros usados se valorizaram e, por isso, são mais caros. Não é só o prazer de comprar esses livros usados que nos faz ir aos sebos.Há o prazer de encontrar uma obra que há tempos procurávamos. Eureka! Além disso, é agradável quando podemos travar um bom relacionamento com o livreiro, principalmente quando ele tem bom humor, é solícito, dá bons abatimentos que nos contentam e, sem nenhuma dúvida, nos fazem voltar. Nos apegamos às vezes a certos sebos que tudo fazemos para, primeiro, lá passarmos a fim de verificar se o estoque possui o que procuramos O ideal seria se todos pudéssemos ter o mesmo sebo e desfrutar o convívio com o livreiro amigo e camarada, além da alegria de encontrar o livro desejado.

sábado, 26 de setembro de 2009

As sete idades do homem

As sete idades de um homem

Cunha e Silva Filho


O objetivo deste artigo é publicar mais uma tradução minha na forma bilíngue, como venho, de vez em quando, fazendo nesta Coluna. Desta vez trago ao leitor uma passagem da comédia shakespeariana As you like it 1 Não analisarei aqui a comédia como um todo, mas apenas farei mais adiantei alguns comentários gerais sobre a obra de Shakespeare a fim de melhor contextualizar a minha tradução.
A passagem traduzida é considerada como a mais famosa da comédia em questão e diz respeito à fala de Jaques, um dos senhores a serviço de um honesto Duque da França, que foi banido dos seus domínios por Roderick, seu irmão mais jovem e usurpador.


All the world’s a stage,
And all men the men and women meerely players:
They have their exists and their entrances;
And one man in his time plays many parts,
He acts being seven ages. At first the infant,
Mewling and puking in the nurse’s arms.
Then the whining school-boy, with his satchel
And shining morning face, creeping like snail
Unwillingly to school. And then the lover,
Sighing like furnace, with a woeful ballad
Made to his mistress’ s eyebrow. Then a soldier,
Full of strange oaths, and bearded like the pard,
Jealous in honour, sudden and quick in quarrel,
Seeking the bubble reputation
Even in the cannon’s mouth. And then the justice,
In fair round belly with good capon lined,
With eyes severe and beard of formal cut,
Full of wise saws, and modern instances;
So he plays his part. The sixth age shifts
Into the lean and slipper’d pantaloon,
With spectacles on nose and pouch on side,
His youthful hose, well saved, a world too wide
For his shrunk shank; and his big manly voice,
Turning again toward childish treble, pipes
And whistles in his sound. Last scene of all,
That ends this strange eventuful history,
Is second childishness and mere oblivion,
Sans teeth, sans eyes, sans taste, sans every thing2


O mundo é um palco,
E todos os homens e mulheres são meros atores:
Têm suas saídas e suas entradas;
No princípio, apenas uma criança
Miando, vomitando nos braços de uma babá.
Depois, vem o escolar, com a sua pasta, reclamando aos gritos,
Com o rosto fresco da manhã, se arrastando qual lesma,
Desgostoso de ir para a escola.
Mais tarde, surge o amante,
Suspirando que nem uma fornalha, compondo tristes baladas
Às sobrancelhas de sua amada.
Tempos depois, vem um soldado
Cheio de estranhos juramentos, peludo como um leopardo
Zeloso de sua honra, pronto e rápido para uma briga,
Na procura de vã notoriedade
Mesmo diante da boca de um canhão.
Passa o tempo. Agora, é a vez dos sentimentos de justiça
Mas de barriga cheia de suculento capão forrada
Com olhar sisudo, barba de corte conservador,
Dono de sábios conselhos e de exemplos atuais:
Dessa forma, cumpre seu papel.
Na sexta idade, se enfia em calças e em chinelas simples
Agora, usa óculos, bolsa de lado;
Num mundo muito vasto, as meias juvenis, bem conservadas,
Não são de mais valia paras para suas pernas agora finas.
Sua voz viril e portentosa
Volta aos sons agudos de criança, agora pia, vira assobio.
Última cena de um desfecho de uma estranha e episódica história:
Volta a ser criança. Vai-se a antiga memória saudável:
Sem dentes, sem visão, sem paladar, sem nada.


A passagem, que o leitor acaba de ler, se insere na vertente cômico-irônico desta peça shakespeariana, valendo-se de uma reflexão sobre as fases de vida de cada um de nós mortais. A retomada do tema, em clave filosófica, soaria como aparente tautologia, não fosse a reflexão contida na fala do personagem que, ao invés de considerar as três fase conhecidas de nossa existência – infância, juventude e velhice, jocosamente as desdobra, sem nomeá-las mas conceituando-as, em imagens, em sete, a saber, pré-infância, infância, juventude, mocidade, maturidade, velhice e senilidade. Embora o tema seja de alcance universal, sua apreensão se torna fácil na consciência comum dos indivíduos.
No entanto, o lado jocoso que, a princípio, lhe dá a forma do gênero comédia, ao mesmo tempo sofre uma ruptura dessa dimensão cômica para uma dimensão séria, tremendamente realista ao deslocar a atenção do leitor para as implicações filosóficas daí decorrentes. O poeta, ao reforçar a tautologia daquelas três principais fases da existência humana, nos obriga a repensar nossa frágil condição de finitude, de temporalidade limitada. O que o bardo inglês nos deixa perceber, através das considerações do monólogo de Jaques, ao satirizar todas as fases de idade do homem, é a regra (universal) a que todos estamos submetidos, sem exceção. Ninguém escapa, a menos que morramos cedo, a essas fases de mudanças, pois a nossa condição de viventes segue uma lei implacável, a lei natural, biológica. As sete idades do homem, sendo um retrato, segundo frisei, em parte cômico e em parte irônico, da vida, ao brincar assim com a humanidade, desnuda ao mesmo tempo a trágica dimensão universal do ser associado à decrepitude devastada pelo tempo inexorável como a afirmar com lucidez cristalina e niilismo macbethiano: - Todos passaremos por isso irremediavelmente.
Na passagem em análise, reafirma-se a universalidade da visão global do pensamento de William Shakespeare, conforme tem sido tantas vezes evidenciada por estudiosos de sua obra. Shakespeare, poeta trágico por excelência, na comédia não perde sua qualidade de notável poeta de todos os tempos, simplesmente porque, como sabem todos os estudiosos e conhecedores de sua obra, trouxe para o bojo de suas produção literária uma gama de sentimentos humanos que atravessam o tempo e não envelhecem, porquanto fazem parte da própria situação do homem na Terra: o amor, o ódio, a bravura, a inveja, o poder, a amizade, a covardia, a falsidade, a usura, a traição, os quiproquós, as situações confusas, os desencontros, que sempre estarão presentes no complicado jogo das relações entre as pessoas. Quer dizer, seus temas são parte indissociável dos sentimentos eternos.
Shakespeare, como outros geniais escritores, consoante assinalam seus exegetas, não se notabilizou pelo traço da originalidade da imaginação de temas. Antes de tudo, o que ele fez magistralmente foi pesquisar fontes históricas, literárias, populares já existentes. Dessa matéria se serviu para compor suas obras, suas tragédias, suas comédias, seus sonetos, sua lírica, e, a partir desse meticuloso trabalho de adaptação daquelas fontes disponíveis, retrabalhou temas e situações da vida humana. Nesse reaproveitamento reside sua capacidade de superar o material pesquisado, de dar-lhe mais riqueza e vigor no aprofundamento dos temas e na diversidade de formas de linguagem. Nisso, vejo sua originalidade e sua contribuição como dramaturgo clássico e grande psicólogo da alma humana,, insuperável enquanto existir vida no planeta.
A originalidade em Shakespeare provém dominantemente de seus recursos técnicos no uso da linguagem poeticamente trabalhada, sem nenhum preconceito no emprego dos diversos registros da língua inglesa. Sua dicção poética revigorou a língua inglesa, modernizou-a para a época. Penetrar na leitura do teatro shakesperiano, nas suas peças trágicas, nas suas comédias hilariantes, na variabilidade de seus personagens, na sua poesia lírica, é uma oportunidade ímpar para compreender o quanto a criação literária se torna um poderoso instrumento de entender a vida nos seus mais diferentes e complexos aspectos independentemente dos séculos.
John Burguess Wilson3 alude a uma afirmação de um escritor francês que, aliás, não cita, sobre o valor da obra de Shakespeare: ‘Depois de Deus, foi quem mais criou..’ O próprio Burguess Wilson chega a esse juízo consagrador: “Ele [Shakespeare] vale por dez homens.” Para finalizar, eu acrescentaria: vale por dez homens de máximo valor na história da literatura mundial.

Notas:
1 SHAKESPEARE, William. The complete works of William Shakespeare. The Cambridge Edition Text, as edited by William Aldis Wright, including the Temple Notes. Illustrated by Rockwell Kent, with a Preface by Christopher Morley. Philadelphia: The Blakiston Company, USA, 1936, p. 677.
2 Quanto ao sentido de base niilista, corrosiva, sobre o destino dos homens não há como não associar esse monólogo de Jaques ao famoso trecho de Macbeth:, Act 5, Scene 5, op. cit., p.1053.
(... )
Life’s but a walking shadow, a poor player
That struts and frets his honour upon the stage
And then is heard no more: it is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifiying nothing.

3BURGUESS WILSON, John. English literature – a survey for students. London:
Longmans, 9 th impression, 1970,p.103.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Um "sonnet" de José Albano

Um “sonnet” de José Albano


Cunha e Silva Filho


José de Abreu Albano (1882-1923) foi uma figura solitária de poeta, até mesmo uma figura excêntrica. Ao contrário de outros poetas brasileiros que procuraram filiar-se às correntes poéticas de seu tempo, Albano preferiu o caminho da contramão da História. Nasceu em Fortaleza, no Ceará e bem cedo foi estudar na Europa, em Paris, Londres e Áustria. Na Europa morreria pouco mais de quatro décadas depois. Portanto, sua vida foi curta, mas cheia de movimentações , viagens por diversos países, inclusive regiões asiáticas, em parte pelas funções exercidas, como a de secretário do Barão do Rui Branco, em Londres e a de “vago attaché” em diversas embaixadas no exterior. Tais dados biográficos estou colhendo de um ensaio magnífico – “José Albano” de Agripino Grieco1
José Albano teve educação esmerada, aprendera, na Europa, várias línguas antigas e modernas, compunha poemas em inglês de esmerada expressão. Todavia, o que mais lhe deu notoriedade era sua inusitada forma de escrever poesias que o tornavam um poeta anacrônico, um vate cuja identificação melhor se deu com uma estrutura poética que mimetizava processos de composição de Camões ou de Petrarca. Essa forma de imitação longe estava de ser servil. Sua admirável cultura humanística, sua fina inclinação para absorver ou assimilar o quinhentismo, sobretudo Camões, livraram-no de mero epigonismo forçado e ralo de criatividade. Pelo contrário, o alcance de seus poemas, pela íntima convivência de leituras dos clássicos, o fizera ombrear-se com a mais requintada expressão da poesia quinhentista. Massaud Moisés2 diria que isso não seria mera influência que sobre ele exerciam a leitura e o conhecimento apurado das técnicas do verso clássico, mas uma “empatia’ que o predispunha a compor seus poemas com se fosse um contemporâneo de autores do quinhentismo principalmente lusitano. Sua dicção poética se deixava espontaneamente infundir do espírito, do estilo, dos temas e das formas puras do verso camoniano. Era um experimentalismo, se é que assim poso definir, só realizado mercê de um talento genuíno e criativo. Esta forma de poetar de maneira arcaizante nele, a meu ver, era orgânica, ao contrário do que ocorreu com Da Costa e Silva, no qual o experimentalismo era mais uma forma de exercitar-se poeticamente talvez pelo simples gosto de se testar escrevendo versos de sabor clássico. Da mesma sorte, o fazia Manuel Bandeira com seus poemas à feição do século 16.3 Em ambos, além do fundo nostálgico-romântico, havia a predisposição ao ludismo experimentalista, à mera recriação da experiênica técnico- formal com o fazer poético, afastando-se, pois, da famigerada inspiração. Em ambos a fatura poética vem do trabalho incansável de sondagem, de especulação com a linguagem, ou seja, como exercício metapoético.
Alfredo Bosi,o situa entre os epígonos do Parnasianismo, ou seja, no Neoparnasianismo, junto de poetas como Goulart de Andrade, Martinns Fontes, Hermes Fontes, entre outros.4 Manuel Bandeira o considera “fora dos quadros da poesia brasileira” e literariamente o classifica como um poeta de sabor quinhentista, um cultor privilegiado dos valores mais puros da língua portuguesa, verdadeira obsessão dele.5 De minha parte, diria que seu intertexto foi com os clássicos, pouco se importando em poetizar como os seus pares dos séculos 19 e das duas primeiras décadas do século passado.
Bandeira ainda se reporta às duas fases de sua poesia: a mística e a pagã, representada, respectivamente, pela obra Comédia Angélica, assente no louvar as raízes cristãs e pelo poema “Triunfo”, explorando temas da Grécia mitológica e pagã.
A crítica , em geral, tem reconhecido o real valor desse poeta “inatual”, que, segundo as palavras de Graça Aranha, que o conheceu na Europa, “... desprezava a vida moderna”.6
O velho crítico Agripino Grieco7, no ensaio citado linhas atrás, entre afirmações pessoais de atilada percepção crítica faz referência à observação pertinente de Luiz Aníbal Falcão segundo a qual o poeta, rival em pé de igualdade com os poetas do quinhentismo, nunca embaralhou o lado de desequilíbrio de sua personalidade com a lucidez intelectual na fatura de seus poemas. É que, no domínio da criação estética, o lado aparentemente bizarro do poeta como que se anulava. Saíam vitoriosos os poderes e mistérios das Musas durante a recriação genial de um universo poético configurado na distância do tempo e do espaço. Seu talento o impulsionava a realizar-se poeticamente no contexto espiritual deslocado da sua própria contemporaneidade. Era esse o seu espaço poético em que se sentia confortável e no qual mergulhava fundo em direção a um mundo feito de razão, equilíbrio , pureza da língua e universalidade, além de devoção e incondicional culto a Luiz Vaz de Camões. Um de seus poemas é considerado pela crítica como um dos melhores que a humanidade produziu.
José Albano deixou as seguintes obras: Rimas de José Albano – Redondilhas (1912), Rimas de José Albano – Alegorias (19120, Rimas de José Albano – Canção a Camões e ode à Língua Portuguesa (1912), Comédia Angélica de José Albano(1918) já mencionada, Four sonnets by José Albano with Portuguese-Translation (1918), Antologia poética de José Alano(1918). Bandeira reuniu, organizou e prefaciou ´os poemas todos do poeta sob o título Rimas de José Albano. edição da editora Pongetti, Rio de Janeiro (1948)8
A grande crítica sempre reconheceu o valor altíssimo da poesia de Albano, ainda que, conforme lembra Massaud Moisés9, o peta está a merecer novas leituras e, se possível, estudos atualizados sobre o seu verso.
O soneto de José Albano10, cuja tradução bilíngue segue mais adiante, embora siga a estrutura de número de versos respeitando o modelo do soneto shakespeariano, não o faz no que concerne ao esquema rimático. O soneto inglês se constitui de catorze versos, distribuídos em três quartetos e um dístico final.11 Sua disposição de versos na página se faz sem espacejamento, e não como n o soneto em língua portuguesa, calcado, de resto, no modelo de forma fixa italiano no qual.os quartetos e os tercetos se dispõem graficamente em “corte nítido”12, ou seja, espaçado.
Albano, entretanto, no que diz respeito à disposição da estrutura estrófica e espacejamento, dessa forma poética, segue as lições do soneto shakespeariano e spenseriano, i.e., três quartetos seguidos de um dístico final, segundo acima frisamos. Todavia, Albano, com relação ao dístico, não o dispõe pelos dois esquemas do soneto inglês: a) soneto shakespeariano a b a b c d c d e f e f g g; b) soneto spenseriano: a b a b c d c d e f e f g g. Atente-se para o fato de que nesses dois tipos de sonetos, as rimas são emparelhadas. José Albano, no entanto, no soneto aqui ilustrado, opta pelo esquema a b b a a b b a c d e d f d, quer dizer, no tocante ao dístico final, não se alinha nem ao soneto shakespeariano nem tampouco ao spenseriano.
Manuel Bandeira, tão aberto por vezes às formas livres, no “Soneto I”, tanto quanto no “Soneto II” de sua obra, revela-se rigoroso estribando-se no modelo shakespeariano13. “The sonnet” por mim traduzido e ora apresentado ao leitor, na forma bilíngue que venho modestamente adotando nas minhas traduções desta coluna, confirma a competência de José Albano em expressar-se liricamente na língua inglesa. Neste soneto, Albano tematiza a fugacidade do Tempo e a condição da pessoa humana confrontada entre o dilema da perda das realizações (dreams, sonhos) e o da perenidade inescapável dos sofrimentos e aflições da vida. Segue, abaixo, o texto de José Albano:

Sonnet

How sweet it is after the strife of day
To rest profoundly in the arms of night,
Forgetting sorrow, dreaming of delight
That dwelleth in the heavens, far aways
The winged thoughts leave this dark earth and stray
It’the above the stars so pure and bright,
Trying to filch one ray of golden light
Which strangely glimmers on the Milk Way.
But Time, full of fierce wrath and cruelty,
Doth hurry on each hour that comes and goes,
And swifltly do our happy moments flee.
Night fades away and with it ends repose
And risng morning brings relentlessly
Death to my dreams and life to all my woes.

Soneto

Após a luta quão doce é o dia
Nos braços da noite repousar profundamente,
Olvidando tristezas, sonhando com a delícia
Que nos céus habita longinquamente
Pensamentos alados deixam esta terra escura, perdendo-se,
Tão puros e brilhantes, no alto das estrelas,
E roubar procuram um raio de áurea luz
Que estranhamente brilha na Via Láctea,
O Tempo, contudo, cheio de incontida fúria e crueldade,
Passa, veloz, a cada hora que vai e vem,
E leva para longe os nossos instantes de felicidade.
Esvai-se a noite e com ela o descanso finda.
E incansavelmente, cada manhã traz.
A meus sonhos morte e a todos as minhas aflições, vida..

NOTAS
1 GRIECO, Agripino. “José Albano. In: --- São Francisco de Assis e a poesia cristã. Prefácio de Donatelo Grieco. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1968, p. 283-292.
2 MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. Vol. II – Realismo e Simbolismo. Ed. ver. e atualizada. 4. ed São Paulo: Cultrix, 2004 , p. 205.
3 Sobre esse assunto, ver meu Da Costa e Silva: uma leitura da saudade. UFPI/APL, 2006, p. 47-48.
4 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 38. ed São Paulo: Cultrix, 2001, p. 220.

5. BANDEIRA, Manuel. “ Apresentação da poesia brasileira. In: -- Poesia completa e prova. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 4. ed reimpressão, 1986, p. 594-596
6 MOISÉS, Massaud. Op. cit., p.205, nota 12
7 GRIECO, Agripino. Op. cit., p. 286-287. Aníbal Falcão é autor do livro Do meu alforge. Rio de Janeiro, s.ed., 1945 Consultar: MOISÉS, Massaud e PAES, José Pulo. (org.) Pequeno dicionário de literatura brasileira. 2. ed São Paulo: Cultrix, p. 21..
8 MOISÉS, Massaud.Op. cit., p.205.
9Idem., ibidem.p. 207
10 Apud MATOS IBIAPINA, J. De. From Facts to grammar. Porto Alegre: Editora Globo, 1933, p. 129-130.
11 CUNHA, Celso e CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 2. ed Rio de Janeiro; nova Fronteira, 1985, p. 690-692.
12 KAYSER, Wofgang. Análise e interpretação da obra literária - Introdução à Ciência da Literatura. 7. ed. portuguesa totalmente revista pela 16 ed. alemã por Paulo Quintela. Coimbra: Arménio Amado, Editora, 1985, p. 98.
13 BANDEIRA, Manuel. Op. cit., p. 252
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A poesia de Sonia Leal Freitas: aspectos gerais

A poesia de Sonia Leal Feitas: alguns aspectos


Cunha e Silva Filho


1. INTRODUÇÃO

Por circunstâncias várias, nunca pude acompanhar de perto a produção literária do Piauí nos seus diversos gêneros literários. Daí se explicar o meu quase completo desconhecimento de novos nomes de escritores daquele estado surgidos nos últimos anos e, por conseguinte, do nome de Sonia Leal Freitas. Desconhecimento que, agora, confesso deplorar, sobretudo porque a poetisa, nascida em Teresina, nunca me havia chegado ao conhecimento, seja através de amigos intelectuais, seja por estudos críticos de sua poesia.
Para qualquer estudioso da literatura brasileira é sempre lamentável que essa grande lacuna permaneça inalterável nesse imenso mar de escritores pouco ou nada conhecidos do público brasileiro, muitos dos quais de nível bom e mesmo excelente. Escritores que, isolados nas suas regiões de origem, sofrem uma espécie de avaliação redutora por parte da crítica de estados brasileiros que detêm maior peso hegemônico na avaliação da produção cultural do país: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul.
O exemplo de Sonia Leal Freitas, neste sentido, se me afigura paradigmático. A leitura do único livro de poesia por ela deixado, O cedro do Éden - que belo título! -, me surpreende e até me comove pela alegria de o haver lido.
A obra foi publicada em 2002, numa edição feita em Fortaleza, cidade na qual a autora fixara residência desde 1974. Sonia Leal Freitas teve formação primária, secundária e superior em Teresina. Cursou Letras. Ainda em Teresina exercera também o magistério superior de Letras Em 2008, infelizmente, veio a falecer prematuramente.
Consultando as conhecidas historias literárias piauienses disponíveis, nada encontrei sobre a autora quanto a informações biobibliográficas. Apenas encontrei um breve registro sobre ela no verbete do Dicionário biográfico de escritores piauienses de todos os tempos, de Adrião Neto1 que informava sobre o estado natal da escritora, bem como referia ser ela uma contista premiada em 1985, pela participação no Concurso de Contos “João Pinheiro”, além de ter sido seu conto “O menino do Horto das Oliveiras” incluído na coletânea Outros contos piauienses.2
Pesquisando na minha biblioteca, encontrei aquela coletânea e constatei que Sonia Leal Freitas se classificara em segundo lugar no mencionado concurso. Até então, não sabia que era também poetisa. Vim a sabê-lo porque seu esposo, Francisco Rodrigues de Freitas,que conheci em Teresina, me enviara recentemente um exemplar de O cedro do Éden, juntamente com dados biográficos desta escritora.Verificando, depois, a útil mas incompleta “Divisão Periódica da Literatura Piauiense”, um encarte preparado por Herculano Moraes, vejo que o historiador situa a autora entre os poetas do período literário por ele denominado “Milenismo.” Em parte, se fez justiça à autora.
Além de O cedro do Éden, os dados me informam que a poetisa escreveu as seguintes obras, a serem brevemente publicadas: Antologia de contos, O conto infantil e Amana

2. ASPECTOS GERAIS DA POESIA DE SONIA LEAL FREITAS.

Antes de tudo, devo, por obrigação da função crítica, antecipar um julgamento que não posso silenciar diante da leitura de O cedro do Éden: é uma obra magnífica por todos os prismas pelos quais possa aquilatá-la. Nas linhas adiante procurarei justificar esta premissa.
Poucos livros de poesia, pelo menos da produção poética que tive oportunidade de ler, me deixaram tão forte emoção estética quanto esse conjunto de poemas reunidos em livro. Não se pense que esteja sendo muito condescendente com a profunda estesia que seus versos me provocaram..
Na lírica brasileira, há grandes vozes poéticas que admiro pela qualidade e elevado nível da expressão poética. Cecília Meireles seria uma delas.
Contudo, é fato que algumas obras, em qualquer gênero da literatura ou das artes em geral, parecem nos convocar à aventura do prazer da leitura, e sobretudo de uma (re)leitura que imprime em nós uma vontade de levar adiante o ato de ler com uma velocidade que nos causa espanto.
Ou seja, o ato da leitura desta autora provoca encantamento, não só pela absoluta perfeição da linguagem que lhe infunde uma forma artística original, fluente, mas também pelos artifícios retóricos com que plasma seus temas em peças artísticas avessas aos artificialismos forçados diante dos quais a obra literária não se sustenta nem nos convence.
A obra literária só é durável e eterna quando nela existe o sopro da vida, quando nos impele a pensar e a refletir sobre a visão do mundo nela espelhada, quando problematiza questões cruciais sobre a Natureza, os problemas da existência, os de ordem moral e filosófica. Só é perdurável a obra que, em alto nível de perfeição artística, põe em discussão outros temas fundamentais: o sentimento amoroso, a vida e suas limitações temporais, a morte em suas variadas formas de interpretação por parte do artista da palavra, a dimensão espiritual e as contradições inerentes à condição do homem na Terra, o ser do escritor e o seu principal instrumento de comunicação, a linguagem.
Minha convicção é que esse julgamento preliminar não foi ditado simplesmente pelo entusiasmo e fruição do leitor com a palavra poética da escritora. Foi, sim, pela qualidade da obra. Até parece que a obra procura o crítico por afinidades e sobressaltos com a novidade do texto.
Estou pensando, agora, num livro estudado e admirado por leitores e críticos. Refiro-me ao Eu (1912) de Augusto do Anjos (1884-1914). Obra única do poeta paraibano que nem por isso o impediu da consagração em definitivo devido às suas altas qualidades literárias e à sua inegável originalidade.
Sonia Leal Freitas é poetisa, ao que me consta, conhecida apenas regionalmente, e mesmo assim creio que em círculos bem restritos. Entretanto, esse único volume de poemas, pelas virtualidades de que se reveste seu discurso lírico, tem uma grande possibilidade de conquistar maior espaço de reconhecimento crescente de leitores de poesia e da crítica em particular Nele me surpreendem a soma, a combinação de elementos estéticos e técnicas de composição que o tornam um livro singular, de estranha e misteriosa beleza, à altura da grande poesia lírica brasileira.
Mário Faustino (1930-1962)3, uma vez, reprovava o excesso do sujeito lírico encontrado em muitos poetas brasileiros. Quer dizer, o poema auto-centrado na subjetividade como se toda matéria poética só pudesse ser poetizada por aquela entidade literária.
Em O cedro do Éden. do primeiro poema, “A ave da noite” até o derradeiro do volume, “A voz sonante”, é aquele sujeito lírico que se faz voz dominante, reforçado ainda pela voz feminina plenamente identificada pelas desinências correspondentes, não obstante em alguns poemas possamos encontrar o diálogo entre um “eu” e um “tu”.
Numa primeira tentativa de comentar o livro de Sonia Leal Freitas, penso que a hipertrofia do sujeito lírico não prejudica em nada o nível da mensagem. Nem tampouco sua dimensão estética. Vejo essa opção apenas como aquilo que, na ficção, se chama ponto de vista do narrador. Faço um parêntese no que concerne ao lirismo tout court predominante na autora. Há um poema nesta obra que se distancia do lirismo puro, porquanto seu recorte possui algo de epicizante, que nos perturba pela sua força de heroicidade. Falo do poema “Saga” (p. 259), de inquietante beleza. Longo poema de quase 4 páginas sem contarmos o verso de cada página.
A opção da autora pela subjetividade na exploração de sua temática se prende antes a uma lógica interna dos seus poemas: a de falar de si como construção de uma voz pessoal que procura atingir tanto a sua individualidade, os fundamentos da sua essência, de sua ontologia, diante do desafio do mistério do Cosmos, quanto permitir a travessia, a transitividade, para uma voz universal, dentro do espaço lírico da objetividade do ser para uma voz universal de corte religioso, da lição aprendida no convívio íntimo com os textos da Sagrada Escritura. A salvação existencial da sua subjetividade tem como eixo central a abertura para a fé cristã, num ritual composto de anjos, Nossa Senhora e Deus, enfim, de um ritual litúrgico, de unção cristã. Ressonâncias de Alphonsus de Guimaraens (1870-1921)? Talvez. Daí o tom por vezes bíblico do seu estro. A salvação, porém não vem com facilidade. Atrás de dela se veem alguns percalços, com a consciência lúcida da passagem efêmera pelo nosso planeta, que a faz afirmar profeticamente: (...) “Meu ato de viver, portanto,/não será breve, nem será longo”.4
O universo poético de Sonia Leal Freitas depreendido em O cedro do Éden se compõe de 49 poemas num livro de 284 páginas. À primeira vista, o que nos prende o interesse é a extensão de cada poema. Ao contrário do que fazem João Cabral de Melo Neto (1920-1999), ou outros poetas mais contidos, as linhas dos versos na poetisa piauiense se distribuem, em geral, pela largura do espaço da página. São, portanto, versos livres, longos, sem economia do espaço branco da página. Esta disposição visual, generosa, de cada verso exala um certo gosto pela solenidade do tom da mensagem lírica, e ao mesmo tempo nos dá uma leve impressão de que a poetisa está narrando e não cantando em versos. Veja-se como abre seu primeiro poema, “A ave da noite”:

A ave da noite rasga a tenda do meu abrigo
e despeja um grito estreito, longo, a língua do punhal.
Caminho dentro dele num corredor comprido sem fins e
sem saídas.
Invento a minha fuga e salto dentro do vulcão medonho
que me vomita em postas.5

(...)

Praticamente quase todos os poemas do volume iniciam-se com uma idéia primeira que, no seu desenvolvimento, se vai irradiando, ampliando seu foco inicial, através de uma sequência de conceitos e situações, geralmente em tom filosófico, sentencioso, de andamento solene. Quer dizer, o poema multiplica conceitos, como se almejasse congregar um amplo espectro de aforismos.
Dessa maneira, poder-se-ia constatar que a sua poesia pretende alcançar um objetivo: sondar, aprofundar a compreensão dos seres, individual ou socialmente tomados, numa dimensão, enfim, englobando a Natureza, o Universo. Vejam-se esses versos do poema “Alento”:

E vieste pedir-me o alento de palavras novas?
Não existem palavras novas para denominar a tua perda.
No teu exemplo, todas as palavras são antigas.
Já nasceram com os sentimentos dos homens:
gêmeos univitelinos em parto de dor e desespero.
Este novo que procuras está esperando
no ângulo de onde o teu desejo comanda a tua vida.

Qual é a tenda dos anjos operários de Deus?
Os anjos não estão aí para tanger as nuvens.
Nem para deitar pontes sobre precipícios.
A vida se arruma no trato dos seus próprios cuidados.
O que compete aos anjos é o dom da perspectiva.
Da tua perspectiva, inclusive.
Ou julgas que permaneces mergulhado na mesma manhã
de ontem?
Ou de há vinte séculos?
(...)

Aprende a sentir, nos cheiros que se soltam
e nos sons sobrepostos desta hora matutina,
o trabalho que a vida faz por ti, em ti.6
(...)

A esta altura de meus comentários, duas perguntas se me impõem no deslinde de alguns aspectos da poética de Sonia Leal Freitas: a) Onde se coloca, no panorama da poesia brasileira contemporânea, o estro desta artista? ;b) Como se comporta esta poetisa diante dos vários movimentos e manifestos poéticos do Modernismo de 22 até nossos dias? Pelo tempo de vida da poetisa, falecida no ano passado, aos sessenta e um anos, obviamente ela pôde acompanhar ou tomar conhecimento da poesia dos anos 70 e dos novos rumos da produção poética brasileira enquanto viveu. Não tenho dados concretos para saber qual foi a sua participação em Teresina no circuito da poesia local na década de 70. Mas, com certeza, todos os movimentos de vanguarda foram do seu conhecimento, pelo menos através de sua formação literária e em especial de seu aprendizado no campo poético: o Concretismo de 56, o Neoconcretismo, o poema processo, a poesia práxis, a poesia marginal, bem como as múltiplas tendências por que passou a poesia brasileira contemporânea7.
Ora, a tudo isso provavelmente esteve atenta e nem pôde sair ilesa dessas mudanças de rumos de dicção poética. de sua época e de sua geração. Quer-me parecer que dessa modernidade se beneficiou a sua poesia, mas ressalto logo que o seu discurso lírico foi buscar seu ponto de apoio, sua logística, na grande tradição do verso brasileiro e da tradição poética ocidental.
Indiscutivelmente, Sonia Leal Freitas domina um discurso lírico plantado na modernidade, sem, no entanto, fazer concessões mais ousadas ou radicais assentes na experiência a partir do Concretismo.
Seu percurso é de outra natureza. Prefere o caminho poético historicizado, de que a sua dicção está permeada. Em outras palavras, sua discursividade no campo da poesia está atravessada pelas sucessivas poéticas da tradição literária, não só na atmosfera de seus poemas de versos longos e majestosos, fortemente servidos de elevadas vozes do passado remoto ou mais próximo de nós. Estlisticamente, sua poesia é polifônica, não dispensando as raízes gregas mitológicas e poéticas (Homero) e ressonâncias que passam inegavelmente por Camões, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Fagundes Varela, Augusto dos Anjos, os nossos simbolistas, sobretudo Da Costa e Silva, Augusto dos Anjos, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, entre outras vozes líricas, sem se falar nas contaminações, pela via da prosa de ficção (Miguel Cervantes), da Bíblia, para ficar só nestes exemplos de seu repertório de intertextualidades.
Da mesma sorte, o substrato poético das vanguardas brasileiras deixou marcas significativas em Sonia Leal Freitas. Da tradição e das vanguardas soube extrair com equilíbrio e lucidez aquilo que lhe será decisivo para dar forma, sentido e dimensão à modernidade do seu verso. Modernidade entendida como uma forma de inserir-se no mundo dos nosso dias, com todas as suas enervações e perplexidades ante as forças da vida social que arrasam com os resquícios dos valores da pessoa humana em estilhaços de individualismo mórbido, excesso tecnológico e tentativa de anulação das subjetividades. O repto da artista da poesia só poderia reduzir-se à agonia existencial, à solidão e à arte como lenitivo.
Um dado expressivo no seu verso é o peso qualitativo do seu domínio da linguagem e mais ainda da linguagem literário-poética. Poucas vezes, me surpreendi com poetas cuja perfeição e maestria no uso da arquitetura de poemas mantêm uma regularidade de excelência tão constante quanto percebo nesta poetisa:
(...)
Mais tarde –
quando já não despertar comigo o redemoinho de ser humana.
e de não entender minhas razões e ansiedades,
e de por isso sofrer quando trago tanta beleza jorrada
dos poros da terra
- que eu seja um ninho quente, numa árvore do caminho,
para onde voltar, à noite, os passarinhos, cheia de amor,
cantando de saudade. (“Amanheço”)8

Ora buscando a tradição nos temas e na própria linguagem, ora se voltando para o experimentalismo de seus processos e técnicas de composição, Sonia Leal Freitas reitera sua atualidade em alguns poemas de magistral elaboração, nos quais o eixo do poema se concentra nas funções poética e metalinguística da formulação jakobsoniana, num exemplo de maestria formal-semântico-lúdica conseguida graças às lições bem assimiladas dos movimentos de vanguarda a partir do Concretismo de 56, segundo já salientamos, sem contudo, radicalismos estéreis ou pouco eficazes. São exemplos disso os poemas “Mor fologias”(p. 157), “Desvela-mente” (p. 79), “Línguas-gem” (p.117). São poemas de grande inventividade, que merecem análise mais profunda.
Recursos comuns de viés vanguardista são os exemplos nos quais a poetisa desarticula vocábulos, que, por isso, sofrem alterações semânticas ou caem no espaço da ambiguidade.
Outro recurso digno de registrar no estro da poetisa é o tratamento dispensado largamente por ela na criação da sua imagética. De resto, a metáfora nesta autora se apresenta como uma das forças-motrizes de sua poesia. Seu campo metafórico merece estudos especiais que extrapolam os limites destes comentários.
Sua sintaxe espaçosa, muitas vezes de corte aristocrático, a leva a um uso peculiar aos poetas parnasianos, simbolistas, sendo igualmente encontradiço em Da Costa e Silva, a saber, o emprego do infinitivo antecedido de preposição quando , no português do Brasil, usamos a forma do gerúndio, o campo semântico constelado de vocábulos de alta frequência no Simbolismo, como “catedral”, “sangue”, palavras maiusculadas, vocabulário litúrgico, “astros”, “Nada”, “siderais”, etc., etc.
Um último aspecto que desejo ora levantar diz respeito a alguns temas de sua poesia, e deles mencionaria: a vida, encarada do prisma pessoal, o amor, a amizade, a família, a solidão, a morte. Esta última se manifesta como uma tema recorrente e com uma dimensão que me parece um vaticínio. Outros temas acrescentaríamos: a terra natal, a Natureza, o rio Parnaíba, as injustiças sociais, o sinfronismo, a “ânsia de imortalidade,” os dois últimos tão presentes em quase todos os grandes poetas.
Um pormenor final, no que tange à tematização de seus poemas e que aqui pretendo salientar mais uma vez. Sonia Leal Freitas, a despeito de todas as contradições ou aporias do seu estro, torna evidente um ponto de apoio aos seus problemas, dores e aflições: a religiosidade, sobretudo nos exemplos vinculados diretamente a referências do velho e do novo Testamento.Isso lhe será refúgio e tábua de salvação. Entretanto, a solução das angústias da condição humana, no plano pessoal da artista, é poetizada em amplo espectro de argumentação, contraditória ou não.
Cada tema ventilado se manifesta poeticamente de maneira cuidadosamente contida. Por exemplo, ao poetar sobre o rio Parnaíba, ou sobre sua terra natal, como o fizeram outros autores de sua terra, sobretudo Da Costa e Silva, nos poemas belíssimos “Rompe a trovoada numa cavalgada imensa...”(p. 279) “Regressos” (p.235) “Memórias” (p. 143), praticamente as notações topográficas não se dão pela nomeação direta, explícita. Há, sem dúvida, uma emoção estética, porém o tema se desdobra de forma comedida, sem arroubos nem ostentações. Em “Regressos” (p.235), o verso “escorre entre a cantiga de dois rios,” o poema não nomeia o rio Parnaíba e o rio Poti, tanto quanto o Piauí não é claramente citado. Em “Memórias” acontece a mesma coisa. Neste longo poema, retomam-se referências da paisagem, do telurismo, das pessoas queridas (ambiente familiar), da terra natal da poetisa. Poema rico de sugestões, aliando descrição à narração sobrepondo quadros distintos: natureza, vida família, novamente natureza, e voz autobiográfica,9 compondo memórias. O sujeito lírico, no presente, vai ao passado da infância da autora que, por seu turno, torna-se presente, mas um presente na memória de adulto, tal qual no poema de Manuel Bandeira, “Profundamente.”10 A terra natal se vai pouco a pouco se configurando pelos nexos vocabulares identificadores : “chapada”, o “rio”, as “reses,” o “pasto”, o “coqueiral,” os “cajueiros”, até culminar no sintagma “céus da minha terra”. Tudo se processa no poema em pequenos quadros, descritivos , narrativos ou na retomada da voz subjetiva. Repete-se aí , em parte, o tema do ubi sunt? bem presente no mencionado poema bandeiriano. A poetisa, mais uma vez, nesse poema, para além do forte lirismo, mantém certa discrição no extravasar a saudade doída de sua torrão natal. Não nomeia de imediato, prefere a emoção velada e silenciosa

3. CONCLUSÃO.

As linhas atrás não tiveram a pretensão de aprofundar a análise da multiplicidade de ângulos que a poética de Sonia Leal Freitas está a merecer da parte da crítica especializada . Apenas toquei em alguns pontos ou tópicos que lograssem propiciar uma visão global da sua poética. Sua obra, pouco estudada ainda, se coloca, assim, como um desafio à argúcia dos estudiosos e pesquisadores da poesia brasileira. Sua poesia, complexa em muitos planos, não só no domínio da linguagem, dos temas, da sua “retórica poética”, mas nos altiplanos da filosofia, da psicanálise, do estudo das influências nacionais ou estrangeiras sobre o seu verso, oportuniza um vasto território de sondagens e de arqueologias nos fundamentos da epistemé de seus processos de criação literária.
O que não se pode omitir é a certeza de que sua voz poética acresce e dignifica, pelo seu elevado nível, a produção da poesia piauiense de todos os tempos e confortavelmente se posiciona no seleto grupo dos grandes líricos brasileiros. O cedro do Éden, pelo número grande de poemas nele reunidos, me dá a impressão de estar diante de suas “poesias completas.” Não é obra de estreia, mas de consagração definitiva.


NOTAS:

1 NETO, Adrião. Escritores piauienses de todos os tempos: dicionário biográfico. Teresina: Halley, S. A., 1995, p.123.
2 FREITAS, Sonia. “O menino do Horto das Oliveiras”. In: Outros contos piauienses.Teresina: Projeto Petrônio Portella, 1986, p. 49-52.
3 Ver FAUSTINO, Mário. De Anchieta aos Concretos. Org. Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
4 FREITAS, Sonia Leal. O cedro do Éden poesias. Fortaleza: S.M L.R., 2002, p. 153.
5 Idem, p. 11-12.
6 Idem, p. 21.
7 Consultar MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. 5º Modernismo. 3 ed. ver. e aumentada. São Paulo: Editora Cultrix, 1996. Ver capítulos “Vanguardas”, p. 427=439., “Atualidade”, p. 513-517. Consultar também BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 38 ed. São Paulo; Cultrix, 2001. Ver a seção “Poesia ainda”, p. 485-488.
8 FREITAS, op. cit., p. 27-28.
9 Ao me referir à voz autobiográfica me apoiei em Alfredo Bosi, quando ele propõe, com muita lucidez , no estudo da poesia brasileira dos anos 70, três tendências dentre outras: “o discurso poético, a “fala autobiográfica” e o “caráter público e político da fala poética”, op. cit., p. 487. Creio que a poética de Sonia Leal Freitas engloba essas três tendências, sem querer aqui absolutizar esse enquadramento.
10 O tema do ubi sunt? é analisado com brilho por Davi Arrigucci Jr. na Terceira Parte, capítulo 7, seção 3 do seu estudo sobre Manuel Bandeira, Humildade, paixão e morte – a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo; Companhia de Letras, 1990, p. 217-225.