terça-feira, 23 de novembro de 2010

Violência urbana: o Rio pede socorro

Cunha e Silva Filho


A situação da violência na bela urbe carioca está passando dos limites. Ainda não foi suficiente a implantação das UPPs para debelar ou arrefecer o terror de que se vê cercado o povo carioca ou aquelas pessoas de outras partes do país e do exterior que aqui escolheram para viverem a sua vida e elegeram o Rio de Janeiro como a cidade do seu coração.
A estratégia de importância inegável que são as UPPs alcançou um objetivo : afastar a bandidagem de alguns morros que compõem as favelas. Acontece, contudo, que nem todos os morros foram beneficiados pela instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora. O número de favelas na cidade é alto e, se não incorro em erro, são quase mil. Nem todas as favelas se situam em morros. Algumas são horizontais e se localizam nos subúrbios e nas periferias.
Os criminosos, geralmente, grupos de traficantes e de outras atividades ilícitas, vendo-se acuados, se deslocaram para outras favelas ainda não ocupadas pela Polícia. A solução fica ainda difícil para a tomada de controle mais amplo da criminalidade. Os marginais, por sua vez, mudam os seus ataques e os seus alvos a fim de compensarem as perdas financeiras de seu capital espúrio com o alto tráfico e o resultado é essa novidade que vem ultimamente atemorizando todos os habitantes da Cidade Maravilhosa, ações de natureza terrorista aqui chamadas de arrastões. Estes costumam ocorrer nas situações de engarrafamentos de vias de acesso à cidade ou em outras vias de trânsito, como a Linha Vermelha, além de bairros tanto da zona norte quanto da zona sul. A audácia dos facínoras é tão grande que praticamente se alastra pela cidade toda em qualquer hora do dia.
Homens fortemente armados de metralhadoras e outras armas potentes, muitas vezes superiores às da Força de Segurança, fazem parar o fluxo dos veículos e, apontando armas para motoristas indefesos, lhes retiram pertences de toda sorte: dinheiro, jóias, celulares, rádios etc, o que houver diante dos seus olhos de predadores. Parecem mais animais famintos à procura de caça para a sobrevivência de espécie. A única diferença é que os animais selvagens o fazem segundo as leis da natureza, ao passo que os delinquentes são levados à prática da barbárie tanto pela facilidade que encontram diante das vítimas que, no momento atual, se vêem abandonadas pela ausência de segurança pública , quanto pela impunidade já por demais conhecida da sociedade brasileira. Ora, se eles, os marginais não encontram obstáculos para as suas ações covardes e desumanas, a possibilidade de agirem mais vezes vai-se multiplicando.
Urge, que as punições de nosso Código Penal sejam revistas sob pena de a paz na cidade do Rio de Janeiro virar um sonho malogrado, sem volta, numa fase de risco urbano em escala de terrorismo, com consequências imprevisíveis para a vida econômica do estado, para a área do turismo e hotelaria e para todas as atividades sociais e culturais dos habitantes da metrópole carioca.
Outro aspecto de alta relevância para a solução do problema seria o controle cíclico das migrações indiscriminadas de contingentes oriundos de diferentes estados brasileiros, que vão inchando os bairros cariocas, à procura de sobrevivência, ondas essas migratórias que, não atingindo seus objetivos, muitas vezes se tornam presas fáceis de aliciadores que as encaminham para engrossar o narcotráfico. As políticas públicas devem partir para ações efetivas, como realizando acordos entre os estados quanto à questão das migrações, de molde a reduzir e controlar melhor o fluxo de entradas nos principais estados que as recebem, o Rio de Janeiro e São Paulo.
Não estou advogando um controle semelhante ao que ocorre entre países, mas uma forma não coercitiva de melhor distribuir as entradas e saídas de populações de estados menos desenvolvidos. Por exemplo:
1) dificultar a migração no que diz respeito aos objetivos da viagem para outros estados 2) razões da viagem; 3) perspectiva de emprego; 4) tempo de permanência 5) data de regresso;6) nível de escolaridade;7) meios de sobrevivência na nova cidade: habitação, alimentação, transporte ;8) desenvolvimento, por parte dos governos locais, de políticas públicas agressivas, visando ao crescimento de mão-de-obra qualificada, no campo e na cidades, e, ao mesmo tempo, dotando o sistema educacional regional de possibilidades de acesso às novas tecnologias da área da informática. Só desta forma os jovens poderiam sentir-se atraídos para permanecerem nos seus lugares de origem e não mais aventurar-se na procura da sobrevivência das grandes metrópoles. Por outro lado, reduziriam com isso os impactos sociais nas comunidades carentes, lugares para os quais em geral se deslocariam, fazendo crescer de forma tentacular as suas já inviáveis demandas de infraestrutura, notadamente, o Rio de Janeiro e São Paulo.
Acredito que essas sugestões são apenas subsídios para que os governos municipais, estaduais e federal, em conjunto, possam limitar, segundo já aludimos, ciclicamente, dependendo da conjuntura, esse contingente populacional que vai seguramente exigir, no seu todo, maiores demandas futuras de infraestrutura urbana, maiores gastos públicos e maior incidência de crimes por razões diversas, inclusive de superpopulação.
Estados brasileiros, como o eixo-Rio-São Paulo, só podem é serem espaços superinchados, com aumento descontrolado de nascimentos, sobretudo nos segmentos sociais de renda baixa, sem escolaridade suficiente, sem visão adequada na condução da vida em família. Só com uma educação mais aprimorada, com habitação melhor, com lazer é que camadas menos favorecidas poderão contribuir para que a criminalidade seja reduzida.
Os recentes arrastões que amedrontam e inviabilizam a vida normal de uma grande cidade, acompanhados de incêndios contra carros particulares e públicos, são uma resposta da criminalidade a um país que, até hoje, não se mostrou capaz de enfrentar a impunidade, o combate sem trégua ao narcotráfico, nem conseguiu pôr termo à entrada, por nossas fronteiras, de armas que irão parar nas mãos da marginalidade.
A ação do Estado brasileiro não pode postergar medidas, de âmbito nacional, que possam a vir minimizar de imediato todas essas chagas sociais que estão nos encurralando cada vez mais para um a vida sem proteção, mesmo que não saiamos às ruas a fim de resolvermos algum problema de nossa vida pessoal ou para alcançarmos o trabalho com o qual ganhamos o pão nosso de cada dia. Impedir o brasileiro de fazer tudo isso é sequestrar-lhe o direito de viver.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

O lado oculto

O LADO OCULTO


“Sinite parvulos venire ad mihi.”

Aquela família continuava levando a vidinha de sempre desde quando a linda criança, divina criança, nascida após tantos riscos e dores, cada dia que passava dava demonstrações de sua singularidade, se comparada com os amiguinhos da mesma idade.
Lá fora, no chão de barro, brincava com os companheirinhos, seus vizinhos mais próximos. As brincadeiras eram as mesmas das crianças de toda parte, mas nem sempre de todos os tempos.
“Jesus! Jesus!” Quase gritando, chamava-o Maria, aquela jovem suave, de pele clara, de olhos azuis, vinda do Nordeste. O menino de cinco anos, muito claro e com um rostinho fino um tanto vermelho de pegar sol aberto de final da manhã, parou com a brincadeira, que consistia em apostar corrida, de um lado a outro, numa extensão de trinta metros, num terreno que mais parecia um pequeno campo de futebol, desses que, nos subúrbios cariocas, fazem a alegria da criançada.
A criança, arregalando os olhos mais azuis que já se viu na face da Terra, despediu-se dos coleguinhas e correu em direção à mãe.
“Jesus, é hora de almoçar. Você está queimado do sol. Veja como está suado.” Os olhos da criança pareciam brancos de tão azuis. A fisionomia era séria e o olhar dava sinais de quem queria falar alguma coisa importante. Entretanto, permanecia mudo, até distante. Ao exame atento da mãe não escapou toda essa disposição estranha de ânimo da criança. Não teria algo mesmo digno de revelar ?
À mesa simples daquela casa de carpinteiro, sentaram-se para a refeição mãe e filho, cada um com seu prato. Comiam uma pequena posta de peixe que fora fritado atravessado por um pedaço de lenha como se fosse um espeto com fogo crepitando nas brasas por baixo numa pequena área descoberta, que ficava logo atrás da cozinha. O peixe fora comprado na noite anterior por José no supermercado do bairro mais próximo.
Daí a pouco, entra na sala principal um homem magro, de estatura média, com uma barba meio longa e bigode, num rosto crestado pelo sol. Seus olhos denunciavam cansaço. O olhar, sereno e o rosto harmonioso, um tanto largo, tornavam-no uma figura do Novo Testamento, que se completava com uma cabeleira não muito longa emoldurada com belos cachos negros e sedosos.
“Maria, que Deus seja louvado e abençoe nosso filho amado. A manhã foi trabalhosa, mas consegui terminar de fazer quatro bancos e seis cadeiras, que me deram, aliás, muita canseira, porque a madeira desta vez não era de tão boa qualidade. O sucesso dependeu da minha habilidade para tornar esses objetos seguros e ao mesmo tempo confortáveis. O Seu Simeão, que foi quem fez a encomenda, ficou contente com o trabalho. Ainda bem”.
“Venha, José, pra mesa. Já fiz seu prato, está coberto pra não esfriar. Jesus, como vê, está devorando o prato. Brincou a manhã toda, chegou faminto das brincadeiras. “Que bom que tenha sempre essa disposição para comer”, acrescentou o jovem carpinteiro.
José, no almoço, não dispensava tomar meio copo de vinho doce umas três vezes por semana, vinho comprado na vendinha do Seu João. Maria não bebia senão água, refresco ou refrigerante. O marido, porém, era metódico e sabia até onde podia tomar sua bebida preferida.
Jesus, terminado de almoçar, pediu para ir até ao seu pequeno cômodo. Pequeno, sim, mas arejado com uma janela para fora, que dava para os fundos de outra casa. Nele havia uma caminha sempre arrumada e, mais perto da janela, um bercinho que, até aos quatro anos, lhe servia de cama. O quarto era de cor branca. Tudo ali indicava asseios e cuidados maternos. O berço tinha sido feito pelo pai com desvelo e muito amor. Havia ainda um pequeno guarda-roupa para as roupinhas de Jesus e, de um lado, um espaço reservado para alguns brinquedos: bolas, carrinhos de plástico, lápis pretos, lápis de cores diferentes, borrachas, folhas brancas para rabiscos e desenhos do pequeno. Como muita criança, Jesus, com frequência, dormia no quarto dos pais, deitava-se de lado, na cama entre eles. O sono era muito mais doce e protegido.
A casa de Jesus era do tipo popular, com dois quartos, sala, um banheiro, cozinha e área. Construção igualzinha às demais daquela comunidade do morro urbanizado. A palavra “favela” ia cedendo lugar àquela, que não exprimia nenhuma conotação depreciativa. José, todavia, via, no emprego dessa palavra, um modo burguês de designar a mesma ideia para a mesma coisa. Dizia que isso não passava de modismos sociológicos com o fito de suavizar a realidade nua e crua. Apesar de carpinteiro, José era um homem que lia muito jornal e até livros que tratavam de assuntos sociais e históricos. Tinha noções claras sobre estratos sociais, pirâmides sociais, conceitos de mais-valia, sistemas de governo, Era um leitor assíduo de jornais populares, visto que não podia comprar os jornais das elites, estes só lia quando lhe caíam por acaso nas mãos calosas.
Jesus, com cinco aninhos, frequentava a creche da prefeitura, localizada a três esquinas de sua casa. Naquela manhã que corria no descampado, o fazia porque a diretora da creche já havia avisado que, naquela dia, não ia funcionar. Iam fazer reparos na caixa d’água. As crianças, pois, não podiam ficar sem água. Foram dispensadas.
De segunda a sexta, sua mãe o levava à Creche “Menino Jesus”. Lá tomava o café, almoçava, tomava o banho, jantava, passava a manhã e a tarde brincando com outras crianças e aprendendo alguns hábitos saudáveis, sobretudo socializando-se. Tinha até tempo para tirar uma soneca. Além disso, ensinavam as crianças a cantar pequenas canções infantis, algumas brincadeiras sob a vigilância e supervisão das professoras.
Maria ficava descansada, confiante em que seu filho estava seguro e era bem tratado na creche. Não tinha reclamação a fazer, ao contrário só elogios. Além do mais, era uma forma de permitir que ela trabalhasse fora como faxineira em casa de família, em Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro.
Jesus era superdotado. Embora na creche a maior parte do tempo só brincasse, já estava praticamente lendo sozinho A criança tinha a mania de pegar o jornal e ver as palavras, as fotos, a seção de quadrinhos e adorava ver os cartuns que provavelmente não entendia. Contudo, os desenhos lhe chamavam a atenção. Conhecia algumas letras. Diferenciava as maiúsculas das minúsculas, as letras manuais das impressas e todo esse auto-aprendizado já deixava os pais admirados e perplexos.
É bem verdade que José, em casa, quando lia o jornal, chamava a criança e lhe mostrava as letras, pronunciando os sons, juntando-os até tornarem-se palavras faladas. O menininho o acompanhava atento e curioso. Logo se familiarizou com todas as letras e, de certa forma, já estava lendo alguma coisa. O mesmo ocorria com os números, já os sabia dizer até cinquenta.
Essa precocidade da criança enchia de orgulho os corações dos pais.
“Jesus, leia esta frase aqui”. Era um jornal. A criança esperta dizia então: “AMANHÃ HAVERÁ MISSA NA IGREJA DE SÃO MATEUS.” As letras eram grandes e facilitavam a leitura e o aprendizado.
José trabalhava numa fábrica de móveis em Bento Ribeiro, subúrbio da antiga Central do Brasil. Homem trabalhador, íntegro, tudo fazia pela família. Maria não ficava para trás. Esfalfava-se para contentar sua patroa, uma professora universitária de renome. Não havia ninguém que não gostasse daquela faxineira muito asseada, cuidadosa, honesta e pontual.
Um dia, José recebeu uma ligação da creche, pedindo-lhe que comparecesse urgente ao local. Maria, também, recebeu outra ligação. Eram três e meia da tarde de uma sexta-feira.
Os pais de Jesus chegaram ao local com uma diferença de meia hora. Maria chegou primeiro e logo estranhou um aglomerado de gente à frente da creche, que ficava num terreno em plano elevado com relação à rua estreita que a cortava.
“O que foi”? indagou Maria nervosa e com voz rouca no meio daquela gente.
“Houve tiroteio há pouco menos de meia hora entre policiais e traficantes”, dissera alguém ali presente. “Bala perdida.”
“Quem é a criança”, perguntou novamente Maria já desesperada. Só agora, ligou uma coisa com outra. O telefonema!. Se me chamaram aqui era porque algo de muito ruim aconteceu com meu filho. Desvario da vida. Maria mal se aguentava nas pernas, mas, mesmo assim, entrou como um raio na creche. A diretora logo veio ao seu encontro, muito pálida e, gaguejando, contou-lhe o que a santa mãe jamais queria ouvir em toda a sua vida. Bala perdida! Um tiro, saindo de alguma arma de policial ou de bandido entrou pelo buraco de uma janela com vidraça quebrada e foi atingir a cabeça da criança precoce.
Maria caiu desmaiada. José chegava à cena da tragédia, aos prantos, clamando por Deus. Nada mais havia a fazer. O pequeno Jesus jazia inânime com um furo no olho direito. O rosto inchado e desfigurado. Uma chuva repentina caiu sobre a creche. Sangue sobre o rostinho inocente. Seu corpinho ainda estava descoberto. A mãe e o pai gritavam de dor.
Um morador da comunidade balbuciou atônito: “A polícia já informou que o projétil, durante o confronto, partiu de um traficante do morro vizinho.”
A chuva engrossou. Relâmpagos e raios fulminavam no alto do céu repentina e misteriosamente. Tudo escureceu estranhamente no espaço ameaçador daquela tarde. Lá embaixo, na sala principal da creche, o choro era infinito de dor e de desesperança de dois corpos vivos prostrados sobre o corpo imóvel e indefeso do pequeno Jesus.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Um poema de Gamaliel Bradford (1863-1932)

The rider

I wave my cap., I shake my reins,
I flit across the heather.
The light blood sparkles in my veins,
Mine and my steed’s together.

What turn of fortune’s giddy wheel
Awaits us as we wander,
I do not know. I only feel
Something that calls me yonder.

A merry-hearted maid to woo,
A fox to chase with ardor,
Perchance the flash of bright steel too –
“Strike, boy, and I’ll strike harder.”

I know not, care not, what remains,
I flit across the heather,
The light blood sparkles in my veins,
Mine and my steed’s together.


O cavaleiro

Com o boné aceno, as rédeas sacudo,
A urze, rápido, cruzo.
Em minhas veias brilha fino sangue,
Nas minhas e nas do meu corcel.

Da roda instável da sorte que mudança sem rumo
Nos espera enquanto andamos,
Não sei. Sinto apenas
Que algo pra frente me leva.

De uma donzela divertida enamorar-me,
Uma raposa bravamente perseguir,
Quem sabe, o brilho repentino da espada –
“Ataque, rapaz, e assim o faço com mais firmeza.”

Não sei, pouco me importa, o que resta ainda,
A urze, rápido, cruzo,
Em minhas veias brilha fino sangue,
Nas minhas e nas do meu corcel.

(Tradução de Cunha e Silva Filho)

Nota: Gamaliel Bradford, poeta, biógrafo, crítico e dramaturgo americano.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Da importância de ser avô

Cunha e Silva Filho


Na Rodoviária de Curitiba, estávamos aguardando que meu filho, Francisco Neto, me apanhasse de carro. Minha mulher e eu acabávamos de desembarcar do ônibus. Era uma manhã de sol acolhedor. A cidade pra mim sorri e é um sorriso que não sei explicar do ângulo meramente pragmático, materialista. Você sabia, leitor, que as cidades falam a sua própria língua?. É só atentar pra esse lado de sentir a natureza, quer artificial, quer a natural, composta do solo, das árvores, dos lagos, dos rios, dos pássaros, enfim, de tudo com que a Providência nos prodigalizou. A manhã de uma cidade psicologicamente é diferente da tarde ou da noite. Cada qual nos comunica alguma coisa que se vai instilar no recôndito de nossa alma. Em literatura, há um termo para exprimir melhor essa ideia, a “atmosfera,” sentimento de emoção exercida sobre o nosso ser em determinado lugar ou ambiência.
De repente, assomam lá na extremidade da porta de entrada de quem vem do estacionamento, duas criaturas queridas, meu filho e Amanda, a netinha mais nova, de cinco anos apenas. Lá vêm os dois com passos apressados. Amanda, desvencilha-se da mão paterna e vem correndo ao encontro dos avós paternos. Toda sorrisos que se vão refletir no brilho dos seus olhos verdes. Cada vez que a vejo me dá a impressão de que está maior. A mais velha, Isabella, de dez anos, não pôde vir. Está na escola.
Nos abraçamos e ela logo me entrega duas folhas de papel sem pauta, dobradas em forma de envelope. Abro-os e neles vejo, desenhados, com tinta azul, duas figuras humanas. Nos dois “envelopes”, um nome da remetente que dispensou os protocolos dos Correios: Amanda. Logo descubro quem são os representados nos desenhos: a imagem do avô e da avó. São traços simples mas eloquentes de uma criança de cinco anos que desejou homenagear e dar as boas-vindas à avó e avô. Não lhe interessou fazer as duas imagens de corpo inteiro, mas só do rosto. A avó ali está figurada nos cabelos em forma de uma maçã, no olhar de esguelha e numa linha curva simbolizando a boca. O avô de imediato se descobre: tem um rosto másculo, meio alongado (o meu é arredondado), com alguns fios de cabelos encaracolados ( os meus são levemente ondulados) e o desenho do avô, feito com amor e perspicácia infantil, não esquecera um detalhe importante: nos olhos a presença dos óculos com os quais se acostumou a ver a minha figura.
Em casa, já com a irmãzinha de volta da escola, com os cuidados da mãe, do meu filho e dos avós, a rotina da família era quebrada com aquela amistosa troca de informações sobre o dia-a-dia de uma família reunida. Agora, só brincadeiras do avô com a netinha mais nova, perguntas feitas à mais velhas sobre a vida escolar, os livros lidos por ela (levei-lhe um livro de literatura infantil), os passeios que iria fazer ou que já fizera recentemente e tantas outras coisas aprazíveis que constituem as delícias do mundo infantil.
Há dez anos tenho vivido a experiência de ser avô e por isso posso mesmo adiantar algumas conclusões sobre essa nova fase de minha vida. A condição de avô nos pega de surpresa. Nela nos mergulhamos por inteiro. De certa maneira, ser avô é momento apropriado para refletirmos sobre a existência e o sentido tanto da efemeridade da vida quanto da importância da necessidade da perpetuidade dos seres sobre a Terra. Isto é, o ser avô nos leva à consciência plena da vida entendida na sua totalidade, ou melhor, na sua complementaridade, onde o finito se funde ao infinito formando a unidade do ser. Não é um elo perdido, mas um encadeamento de mistura e de permanência de genes cuja compreensão só pode ser lobrigada com mais clareza à medida que avançamos na nossa vida adulta e adentramos na velhice.
Ao nos tornarmos avô, não se pode negar que há uma nova transformação de nossa natureza psíquica e humana. Passamos da condição de seres que orientam para seres que orientam duas vezes, nossos filhos e nossos netos. Porém, não é uma orientação com o rigor de pai ou mãe. Antes, é uma orientação tolerante, conciliadora, sábia, modelo de dignidade passado adiante, própria de quem já pode ter um olhar mais distanciado, sem os deslizes dos jovens pais, sem os arroubos da paternidade mais diretamente comprometida. A experiência dos avós geralmente se faz proveitosa sem o antigamente chamado “conflito das gerações.” Não, nada disso. O conhecimento que os avós transmitem assenta-se no diálogo seguro, aberto e resultante da combinação do amor incondicional e da vontade de ver o bem-estar dos seus descendentes. Por essa razão, frisei atrás que a maior herança dos avós aos netos é o exemplo de dignidade familiar que – isso sim -, pode ser transmitido através das gerações da mesma família que, com outras famílias, pelo mundo afora, constituirão uma cadeia de união, felicidade e duradoura paz.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Saudades da Cesgranrio

Cunha e Silva Filho



Hoje, passando por uma banca de jornal, vi, com espanto, na página de rosto de um exemplar de um jornal carioca, uma manchete que me assustou : “Alunos que fizeram prova do ENEM dão nota zero ao MEC”. Ora, com os constantes disparates dos responsáveis pela preparação das provas, o Inep, órgão do próprio Ministério da Educação, cometidos, se não me engano, desde, pelo menos, o ano passado, fica difícil a situação do Ministério de Educação.
Primeiro, os alunos concorrentes se queixaram, com justiça e por direito, dos quiproquós ( que até parecem uma comédia shakesperiana) da prova no que respeita à marcação das opções nos cadernos correspondentes às matérias. Os fiscais, tendo recebido as reclamações dos estudantes, vieram, então, por ordem dos responsáveis, dirimir as dúvidas e explicar como os alunos deveriam proceder na marcação das respostas. Logo, em seguida, houve nova contra-ordem, e, assim, o caos se instalou
. Na TV, o responsável pela organização do certame veio a público acrescentar novos esclarecimentos e reforçar um pedido aos estudantes solicitando, meio desengonçado e titubeante, que se prejudicados, encaminhassem, via internet, na emana seguinte à primeira prova, suas dúvidas relativas ao exame Mais uma vez, fico perplexo com a posição do organizador do concurso e me pergunto o que faz agora o MEC que não me parece ter reconhecido os desacertos, as confusões diante de fatos que só vêm prejudicar a vida dos jovens aspirantes às universidades após um ano de canseiras e de sacrifícios financeiros e intelectuais.
O MEC, um órgão federal que merece todo o meu respeito, não pode dar exemplo de incompetência precisamente nos tempos atuais onde a tecnologia se encontra bem avançada no trabalho de impressão com perfeição e rapidez sem precedente.
Estamos retrocedendo? Nem na época dos concursos vestibulares feitos sob a responsabilidade da Fundação Cesgranrio, sobretudo quando era seu presidente o Carlos Alberto Serpa de Oliveira houve tanta desorganização.Muito ao contrário. Esta fundação tinha a sua própria gráfica e, além disso, durante bom tempo, publicava um excelente revista chamada Contato, que conheceu vários números nas áreas de português, educação, inglês e estudos socais, a cargo de um competentíssimo corpo responsável. Publicação que tanto ajudou a professores, alunos secundários e universitários. Dela guardo comigo alguns exemplares. Isso apenas é para mostrar o contraste entre a competência daquela época, anos oitenta, na preparação e organização dos vestibulares e o ENEM que está aí atordoando e confundindo os candidatos ao ensino superior.
Não tenho certeza, mas é bem provável que o ENEM tenha sido inspirado no sistema americano de seleção para ingresso na universidade. Só que nos Estados Unidos, a seleção acontece mesmo antes de o estudante concluir o senior high school (equivalente ao nosso ensino médio) ou seja, quando ainda estão no junior high school (equivalente ao nosso ensino fundamental) Esse exame se chama lá SAT (sigla para Scholastic Aptitude Test). As escolas, em que estão os alunos, após realizarem aquele tipo de exame, enviam os resultados a faculdades da escolha dos alunos. Na avaliação entram diversos componentes, a aptidão do discente em habilidades verbais, numéricas e analíticas. Se aceitos, o aluno já fica sabendo em que faculdade irá cursar o ensino superior. Há também universidades que exigem um outro tipo de SAT, denominado achievement test, que consiste em avaliar o candidato através de algumas disciplinas específicas: matemática, física, química, biologia etc. Uma universidade pode ainda exigir um histórico escolar, onde se vê o desempenho em notas do estudante.
Os estudantes brasileiros não podem ser vítimas da inoperância do órgão que zela pela organização do ENEM e dele cuida. Providências devem ser tomadas urgentemente pelo Ministro da Educação atual sob pena de o exame em vigor cair no descrédito dos milhares de alunos que nele procuram, esperançosos, o caminho de sua futura vida profissional, o seu destino e a sua integração na sociedade. Não podemos negar-lhes isso, sobretudo nessa fase decisiva da juventude. Aguardamos com urgência urgentíssima - urge acentuar -, a solução desse impasse pelas autoridades do MEC.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Um poema de Henry W. Longfellow (1807-1882)

The old house by the lindens
Stood silent in the shade,
And on the graveled pathway
The light and shadow played.

I saw the nursery windows
Wide open to the air;
But the faces of the children,
They were no longer there.

The large Newfoundland house-dog
Was standing by the door;
He looked for his little playmates,
Who would return no more.

They walked no under the lindens,
They played no in the hall;
But shadow, and silence, and sadness
Were hanging over all.

The birds sang in the branches,
With sweet familiar tone;
But the voices of the children
Will be heard in dreams alone!

And the boy that walked beside me,
He could not understand
Why closer in mine, ah! closer,
I pressed his warm, soft hand.


A janela aberta


Ao pé das tílias, a velha casa
À sombra, silenciosa, continuava,
E, no caminho cascalhento,
Brincavam luz e sombra.

Dos quartos das crianças, janelas via
Bem abertas, arejadas;
Mas os rostos infantis,
Não mais ali se viam.

Do Terra-nova o amplo canil
Junto à porta situava-se;
Pelos pequeninos companheiros procurava ele,
Que não mais voltavam.

Sob as tílias, não mais caminhavam,
Nem mais no saguão já brincavam;
Contudo, só sombra, silêncio e tristeza
Por toda a parte ficavam.

Nos ramos cantavam os pássaros,
Com conhecida e doce melodia;
As vozes infantis, porém,
Só em sonhos ouvidas são!

E aquele menino que comigo andava,
Entender nada podia
Por que, junto a mim, ah! bem juntinho,
A suave, calorosa mão lhe apertava.

(Tradução de Cunha e Silva Filho)

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Um conto e uma conjunção

Cunha e Silva Filho


Era na Rua Arlindo Nogueira, espaço da minha memória recorrente por motivos já por muitas vezes mencionados nos meus escritos. Apesar da pouca idade, fiz boa amizade com um senhor idoso, de cujo nome não me lembro mais. Vou deixar mais pra frente e seguir o conselho de Álvaro Lins (1912-1970)
O meu amigo, pela distância do tempo, vejo mais agora como um personagem saído de um romance ou conto regionalista dos anos trinta. Poderia ser José Lins do Rego (1901-1957), Graciliano Ramos (1892-1953), Raquel de Queiroz (1910-2003) ou outro.
Vou me explicar com o leitor por que essa lembrança me vêm à tona. Há muitos anos, depois que deixei Teresina, um dia me despertou a ideia – melhor dizendo, uma tentativa - de escrever uma narrativa, um conto inspirado naquele senhor velho.
O fio do conto situava-se no domínio da gramática. Sem ter, àquela época, a consciência do que hoje denominamos metalinguagem, o fulcro da história centrava-se numa função jakobsoniana. Toda vez que entretinha conversa com ele, meu amigo costumava repetir a conjunção “ao passo que”. O uso exaustivo que dela fazia me chamou logo a atenção. Não era algo que pudesse passar despercebido. O homem tinha mesmo especial mania ou predileção pelo conectivo, agora mais conhecido, pelos linguistas modernos, como conector.
Como era engraçado o amigo velho reiterar a dita conjunção naqueles diálogos cheios de experiência interiorana, recheados de histórias que passavam oralmente de geração para geração! De engraçado chegava a virar histriônico. Mal continha a vontade picaresca de um riso, ou mesmo gargalhada. “Ao passo que.., ao passo que..., ao passo que..” O abuso da conjunção parecia ecoar pelos quatros cantos daquela acanhada Teresina. Ah, meu velho amigo velho, como me divertia aquele vaivém em cena da conjunção! “Ao passo que” era, com efeito, a súmula da proporção ou do contraste do idioleto do amigo velho!
Hoje, penso que meu amigo e vizinho da mesma rua, sem menos dar conta do real sentido da expressão, a usava infinitamente como forma de dar alguma aparência de bom usuário da língua. O certo é que a expressão conectora, de tão repisada, passou a ser parte inseparável de sua figura simplória e cordial.
Se não me engano, tinha vindo de Piripiri, cidade piauiense. Era casado e tinha um filho, um rapazola, e duas filhas moças.
Morava numa casa simples e acolhedora. A porta sempre aberta como se quisesse dar boas vindas a todos que ali fossem bater .Eu próprio o visitava com assiduidade.
O amigo velho, quando não estava ocupado dentro de casa, às tardezinhas, tinha o hábito de sentar-se numa cadeira rústica na calçada, em frente de sua casa. Ali via a passagem de todos, recebia os cumprimentos de conhecidos e amigos. Se eu por acaso ali passasse, ali ficava por uma boa meia hora, indo, depois, me encontrar com colegas, mais adiante, na outra esquina.
Sua fisionomia era típica daquele homem do interior, semiletrado, mas dono da sabedoria dos mais velhos. Era disso que eu gostava. Homem afeito a acordar cedo quando vivia em Piripiri, a ver os primeiros raios da manhã em contraponto com a leve brisa que soprava dentro de sua casa de tijolo, mas com telhado de palha.Os cabelos lisos e brancos, a barba sempre por fazer. O corpo magro. A simpatia em pessoa.
No entanto, o que me ficou dele foi aquele uso da conjunção e um outro fato nada agradável. Essas duas coisas me levaram a escrever o conto com o título “Ao passo que”.
Um dia qualquer do nosso convívio, o filho do meu amigo, o Piripiri, aos prantos, veio até à minha casa avisar que seu pai acabara de falecer. Que eu desse um pulo na casa dele. Lá fui, nervoso e apavorado com a notícia intempestiva. Meu amigo estava deitado na cama do quarto do casal. A esposa, ao lado, chorando e passando-lhe as mãos nos cabelos. As duas filhas não sabiam o que fazer. Só havia choro e tristeza. Inânime, pálido, com os olhos fechados, ali estava o meu amigo. A casa, agora, estava apinhada de vizinhos, amigos, curiosos de passagem pela rua.
Seu filho, Piripiri, apelido familiar daquele rapazinho da minha idade, me pediu um favor: que ajudasse a vestir o pai com roupa nova, uma blusa de manga comprida, cor de rosa, e uma calça de gabardine azul, se não me falha a memória. Aceitei o encargo. Piripiri me agradeceu enternecido, em lágrimas. Não me recordo do seu nome de batismo. Voltei pra casa desolado. Só me lembro de que a morte do meu amigo foi, se não a primeira, a mais forte experiência daquela época e por uma razão a mais, a que já fiz referência: ajudei a tirar a roupa do meu amigo. Nunca pensei que tivesse coragem de fazê-lo. Vê-lo despido e morto foi muito difícil e trágico pra mim naquela idade.
Vestimo-lo da melhor forma possível. Piripiri penteou-lhe os cabelos, arrumou-lhe carinhosamente as vestes. Tudo em silêncio. Estava pronto para receber o carro funerário. Não fui ao cemitério pra lhe dirigir o último adeus e as minhas preces.Todos esses fatos procurei transfundir literariamente no conto, com algumas tintas de tragicidade e de lirismo. Assim, se construiu o conto. Um amigo escritor o leu aqui no Rio. Gostou do entrecho, mas fez sérios reparos quanto à técnica narrativa. O conto nunca foi publicado e, ademais, o perdi em mudanças.