domingo, 30 de janeiro de 2011

No país das pirâmides

Cunha e Silva Filho


Um rastilho de pólvora parece indicar novos e sombrios rumos para os países árabes. O maior exemplo disso são as recentes manifestações em massa dos egípcios, sobretudo compostas, segundo ressaltou alguém, na maior parte de jovens que, sem prática em questões político-ideológicas mais profundas – porque nasceram em sua maioria sob um regime ditatorial que já dura três décadas – estão, com o sacrifício de suas próprias vidas, se rebelando contra uma série de problemas enfrentados pelo país sem que, no entanto, em tanto tempo de permanência no poder, o ditador Osni Mubarak tenha realizado reformas substanciais na estrutura do país, a começar da mudança do regime político para uma democracia naturalmente há muito aguardada pelos egípcios. Porém, todos sabemos que os ditadores querem morrer no poder, querem se eternizar e não perder, assim, as paradisíacas regalias propiciadas pelos seus cargos.
A História tem demonstrado queditadores, mesmo com o paradoxal apoio de democracias sólidas, como os Estados Unidos, a França, a Inglaterra, não vingaram. Por vezes, demoram décadas, mas se acabam, se exaurem, apodrecem.. Não há nação que, em pleno século 21 – na era das pós-modernidades, das altas complexidades dos meios de comunicação eletrônica, de sistemas de redes sociais planetárias, prontas até a mudar posições e ações governamentais, inseridas até em países de comunicação fechada e restrita - , mais suporte, sem reações imediatas, o autoritarismo dos governos. Povos civilizados e politicamente conscientes não mais admitem que presidentes ou ditadores se eternizem em seus cargos.
Os egípcios se cansaram e querem dar um basta à passividade discricionária do ditador Osni Mubarak. Não é dissolvendo seu corpo de ministros que ele pode, da noite para o dia, melhorar as condições sociais precárias da vida dos egípcios. O buraco é mais embaixo, Prende-se a forma de sistema político. Se Mubarak continua no poder como ditador, quer dizer, enfeixando nas mãos o controle do governo, de nada adiantam mudanças cosméticas. O que muda os destinos políticos de um é país é abraçar o regime de governo democrático, presidencialista ou parlamentarista, com eleições periódicas constitucionais livres e formação de partidos políticos, os quais, com o tempo, irão amadurecendo práticas democráticas e alternativas de partidos no poder. O que não podem fazer é acenar para alguma reformazinha institucional ou relativa liberdade de imprensa, inclusive esta última não pode sobreviver pela metade. Ou existe imprensa livre ou não existe.
O antiquíssimo e misterioso Egito é um país que transpira história com h maiúsculo, com a sua riqueza arqueológica, os seus admiráveis museus, os seus tesouros ocultos, os seus tempos áureos de faraós e das célebres múmias legadas à posteridade, as suas lendárias pirâmides, como a Grande Esfinge, a sua formação de povo com passado conflituoso, com um intrincado e complexo amálgama de antigos povos e invasões múltiplas, de marchas e contramarchas, de colonização ocidental, de sofrimento e de alegrias, de governantes ruins e governantes bons, de monumentos imponentes, da vida turística intensa.
A presença do rio Nilo, atravessando tantas regiões, a ponto de o historiador grego Heródoto ((c. 484? - 420 a. C.) chamá-lo de “dádiva do Egito,” é, pois, parte intrínseca do progresso egípcio, de sua economia, de sua pecuária. Sem o Nilo o país não passaria de uma região desértica e isolada.
Aprendíamos, nos compêndios didáticos, ser ele o mais extenso rio do mundo, sendo o nosso Amazonas seu rival maior em volume d’água.
Por tudo isso, o Egito assim como em outras regiões do mundo, não merece estar passando por esse período tumultuado de governante autoritário e ilegítimo. Seu povo apenas deseja viver com liberdade, com emprego, estudo, saúde, lazer, segurança, que são objetivos concretos e indispensáveis à vida normal de qualquer ser humano no mundo.
Semelhantes ao Egito agitado por manifestações de descontentamento e injustiça social, se encontram atualmente outros países árabes: Marrocos, Tunísia, Jordânia, Arábia Saudita, Argélia, Líbia, Iêmen. Nesses o rastilho de pólvora poderá se estender e gerar consequências desastrosas para o Mundo Árabe, com reflexos diretos e profundos nas relações diplomáticas com o Ocidente e na delicada situação árabe-israelense. Para o aiatolá Ahmad Khatami, diante dos desdobramentos das manifestações anti-governamentais em vários países árabes, essas revoltas que estão pipocando, aqui e ali, bem podem indicar repetição dos mesmos passos que levaram o Irã à revolução islâmica, ou seja, o que ele define como uma revolução com base no Islã, sob a forma de uma “democracia religiosa”.
É bom que se afirme um princípio: de nada vale derrubar um regime ditatorial através de uma “democracia religiosa” que não seja uma real democracia pelo voto livre e sem pressão ou manipulações tendenciosas a um dado partido. Para isso, há mecanismos de fiscalização de órgãos competentes internacionais a fim de acompanharem se existe lisura nos sufrágios. Resta saber se esses órgãos fiscalizadores são confiáveis e não estão a serviço de alguns países hegemônicos interessados num ou noutro partido do Oriente Médio que atendam aos seus interesses transnacionais. Isso é mais complexo do que se pensa.
Fico imaginando o quanto é injusta e inconseqüente a realidade social nesse intrincado tabuleiro de xadrez de países árabes, muitos dos quais riquíssimos em reservas petrolíferas. Seus mandatários, ditadores ou monarcas, vivem o sonho eterno das mil e uma noites, enquanto suas populações, seus compatrícios já há muito enfrentam diversos problemas sociais, além dos de natureza geopolítica, ideológica e religiosa..
Governos com tanta riqueza são, apesar disso, bombas-relógios prontas a fulminar todos entre si, visto que não há governo que, por muito tempo, resista espoliando seu povo ou deixando-o ao sabor do esquecimento e da indiferença. Que se acautelem todos eles a fim de que o rastilho de pólvora não se alastre devastadoramente e sem retorno às prepotências do mandonismo.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Das delícias de ser e de ter sido presidente do Brasil

Cunha e Silva Filho

Foi o próprio ex-presidente Lula - e não faz tanto tempo -, que afirmara ser o maior cargo da Nação algo de não se poder jogar fora. Muito ao contrário. Isso ele o disse e aqui o faço com minhas palavras mas com sentido equivalente.
Agora, fora do Palácio da Alvorada, confortavelmente em gozo de férias numa aprazível área cedida pelo Exército, este nordestino sortudo de 65 anos pode mesmo declarar, aos quatro cantos do mundo, que é uma pessoa de sorte.
Conquanto a reportagem da Folha de São Paul o(23/01/2011) assinada por Simone Iglesias e Márcio Falcão, exiba um título entre cômico e irônico ( “bolsa Palestra”) sua intenção não foi a de crítica ao ex-presidente, ao ex-metalúrgico, homem de fala fácil e traços carismáticos, avis rara de alguém que, vindo de condições humildes, galga a função mais relevante da República e consegue realizar dois mandatos com aprovação quase unânime do eleitorado brasileiro. Não é pouca coisa não. A intenção da reportagem foi, isto sim, a de mostrar as vantagens de um político tanto dentro quanto fora do Palácio do Planalto, quer dizer, no Palácio da Alvorada e na Granja do Torto.
Lula deixou de receber as regalias – e são realmente régias, monárquicas ou quase imperiais. Lula tinha “...centenas de servidores no Planalto e naqueles dois palácios residenciais...”, acentua a reportagem. Porém, não as deixou completamente, pois a condição de ex lhe propicia outras benesses também agradáveis e bem-vindas. Essa nova condição mantém o ex-mandatário com alguns benefícios, e bons, para uma vida folgada, confortável e segura, com bonificações colaterais a ex-presidentes. Por exemplo, Lula, tal como os seus antecessores, pode contar com as seguintes vantagens vitalícias: quatro seguranças, dois motoristas e dois assessores assessores, assim como dois carros oficiais com combustível farto, tudo pago pela União.
Mas, sabemos que Lula dispõe de duas aposentadorias: uma porque perdeu um dedo e outra porque foi anistiado político. Nesta última condição, em virtude de ter sido preso uma semana pelo regime ditatorial. Que beleza! Que fartura! Logo ele que nada tem de comunista nem de esquerdista, embora a imprensa desatenta do exterior teime em tachá-lo de político de esquerda.
A reportagem também informa que a pensão de presidente foi revogada em 1988. Isso me surpreende. Estou mesmo desatualizado. Então ex-presidentes não desfrutam vitaliciamente de seus mandatos exercidos? Os repórteres estão talvez equivocados. Como ex-presidentes não têm pensão vitalícia se, no caso de morte, sua viúvas desfrutam dessas pensões?
Os repórteres declaram que ele, o Lula, perdeu mordomias, mas o próprio texto deles contradiz essas informações já que Lula aumentou, em dois mandatos, seu patrimônio pessoal, que era de R$839.039,52, sendo parte disso resultado de aplicações bancárias. Os repórteres salientam que, se atualizado, o patrimônio, hoje subiria para R$1.036,951,51. Isso é muito para alguém que se beneficiou de duas pensões com valores não tão altos. Alguém, um lulista doentio, argumentaria: “Lula foi deputado!” “Mesmo assim! Não chegou a dois mandatos!. Não teria, por conseguinte, pensão precoce, indecente e privilegiada de congressistas”.
Há ainda um dado que não deixa de ser preocupante: com despesas “pessoais e institucionais” foram gastas vultosas somas, que chegaram à cifra astronômica de R$ 56 milhões através dos controvertidos e polêmicos “cartões corporativos” e com rubricas de ‘gastos sigilosos’. Acho uma indecência e desrespeito à população brasileira esta expressão de natureza cifrada e, portanto, provocando ela mesma desconfianças justificáveis por parte de quem contribui com impostos galopantes para o governo federal.
Lula é mesmo o “cara” de que o presidente Obama fala, palavra que muito tem de sentido duplo. Para quem lida com análise do discurso é um prato cheio.
Lula, a celebridade, no país e no exterior. O homem, monoglota que fala para muitas línguas. Lula, o homem que hoje só pensa em tocar pra frente seu Instituto Lula e construir seu memorial em cidade de São Paulo, quem sabe, segundo sugerem os repórteres citados, em São Bernardo.
Com tempo disponível, Lula, o grande líder, vai fazer palestras pelo mundo afora e seu cachê, já se diz, supera o que cobra o FHC: o de Lula fica em torno de R$ 200 mil, o de FHC, em torno de R$ 90 mil.
Todas estas informações batem realmente com a fala otimista de Lula ao dizer que ser presidente do Brasil é uma delícia. Enquanto isso, os males do país ainda são grandes e gritantes na saúde, educação pública, juros altíssimos, imposto de renda escorchante nos costados da classe média e tantos outros já bem conhecidos do povo que em Lula votou. País dos Bruzundangas. O epíteto ainda é atual.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Um poema de Angela Morgan (1873-1957)

Work - A song of triumph

Work!
Thank God for the might of it,
The ardor, the urge, the delight of it,
Work that springs from the heart’s desire,
Setting the brain and the soul on fire –
Oh, what is so good as the heat of it,
And what is so glad as the beat of it,
And what is so kind as the stern command,
Challengin g brain , an d heart, and had?

Work!
Thank God for the pride of it,
For the beautiful, conquering tide of it,
Sweeping the life in its furious flood,
Thrilling the arteries, cleansing the blood,
Mastering stupor and dull despair,
Moving the dreamer to do and dare –
Oh, what is so good as the urge of it,
And what is so glad as the surge of it,
And what is so strong as the summons deep,
Rousing the torpid soul from sleep?


Work!
Thank God for the pace of it,
For the terrible, swift, keen race of it,
Fiery steeds in full control,
Nostrils a-quiver to reach the goal,
Work, the power that drives behind,
Guiding the purposes, taming the mind,
Holding the runaway wishes back,
Reining the will to one steady track,
Speeding the energies, faster, faster.
Triumphing ever over disaster;
Oh, what is so good as the pain of it,
And what is so kind as the cruel goad,
Forcing us on through the rugged road?


Work!
Thank God for the swing of it,
For the clamoring, hammering ring of it,
Passion of labor daily hurled
On the mighty anvils of the world.
Oh, what is so fierce as the flame of it?
And what is so huge as the aim of it?
Thundering on through dearth aand doubt,
Calling the plan of the Maker out,
Word, the Titan, Work, the Friend,
Shaking the earth to a glorious end,
Draining the swamps and blasting the hills,
Doing whatever the spirit will –
Bending a content apart,
To answer the dream of t he Master heart.
Thank God for a world where no one may shirk,
Thank God for the splendor of Work!


* Angela Morgan, poeta americana


Trabalho – um canção triunfal


Trabalho!
A Deus agradecemos pela força,
Ardor, ímpeto e delícia que dele vem,
Do coração nasce o trabalho do desejo,
O cérebro e a alma inflamando –
Oh, nada melhor não há do que seu calor,
E nada mais alegre não existe do o seu ritmo,
Há algo mais bem éfico do que austera ordem
O cérebro, o coração, a mão desafiando?


Trabalho!
A Deus gratos somos pelo orgulho que dele temos
Assim como pela sua beleza e vitoriosa oportunidade
À vida dando alento e inexcedível abundância,
As artérias excitando, o sangue purificando,
A letargia vencendo e da monotonia o desespero
O sonho estimulando a construir e ousar –
Oh, nada melhor é do que seu ímpeto,
E nada mais prazeroso é do que sua inopinada chegada
E o que tão poderoso é quanto o seu chamado imediato
A alma entorpecida despertando diante da inatividade?


Trabalho!
A Deus somos gratos pelo seu ritmo,
Sua corrida espantosa, sua velocidade, sua intensidade,
Sob controle completo fogosos corcéis,
Narinas se agitando para seu objetivo atingir.
Trabalho, força impulsionadora e cont´pinua,
Os fins orientando, o espírito controlando,
Do fugitivo os desejos refreando,
Impedindo que se afaste do seu curso a vontade,
As energias fortalecendo, , continua, contínua.
Sobre os desastres triunfando sempre;
Oh, nada tão bom como os seus esforços,
Que coisa tão aprazível é quanto seu cruel estímulo,
A atravessar nos obrigando seu caminho?

Trabalho!
A Deus somos gratos pelo seu impulso
Pelo seu barulho, clamoroso qual marteladas,
Paixão pelo trabalho diariamente precipitado
Do mundo sobre as poderosas bigornas.
Oh, existe algo tão feroz quanto a sua chama?
Há lago mais grandioso que seu objetivo?
Sem cessar na penúria e na dúvida ribombando,
Do Criador aos desígnios obedecendo
Trabalho, o Titã, Trabalho, o Amigo,
Para uma finalidade gloriosa Terra sacudindo,
Os pântanos drenando, e as colinas explodindo,
Tudo fazendo o que o espírito almeja –
Um continente separando,
A fim de responder ao sonho do coração do Mestre.
A Deus somos gratos por um mundo no qual ninguém fuja
A Deus somos gratos por este esplendor: o Trabalho!

(Tradução de Cunha e Silva Filho)

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Tragédias anunciadas

Cunha e Silva Filho


Nos tempos de paz e de alegrias nos períodos de férias ou no cotidiano urbano ou periférico tudo parece indicar que se vive o momento presente como se ele fosse a eternidade dadivosa em todos os aspectos da vida. A realidade não é assim. Ela, sem aviso, nos pega de surpresa e nos reserva amargas surpresas muitas vezes. Foi o que se deu agora em três importantes cidades serranas: Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo. Conheço as três mas, com mais familiaridade, o centro de Petrópolis, que lembra cidades europeias, a começar do clima, que muda os costumes da indumentária com mais frequência que no Rio de Janeiro. As três belas cidades são o encanto de turistas brasileiros e estrangeiros. Quem tem mais posses, em geral compra uma casa ou um apartamento por lá, a fim de fugir do calorão carioca. É um refrigério.
Por isso, no passado, figuras importantes da vida pública e cultural lá foram residir ou lá tinha um segundo endereço: Ruy Barbosa, Santos Dumont, Tristão de Athayde. Algumas outras lá lecionaram (Universidade Católica de Petrópolis) como o grande linguista brasileiro Mattoso Câmara, de quem fui aluno na Faculdade Nacional de Filosofia, no curso de Letras e Roberto Alvim Correia, grande ensaísta ligado à cultura francesa, que conheci de vista naquela mencionada universidade e através de seus trabalhos como autor de um ótimo dicionário Francês-Português e Português-Francês, de uma excelente gramática francesa publicados pela antiga FENAME, e sobretudo de ensaios da melhor qualidade..
Pois foi nessas regiões montanhosas e verdejantes que uma grande tragédia acaba de acontecer matando mais de quatrocentas pessoas de todas as classes. A imprensa a classificou como a maior tragédia brasileira no que concerne a catástrofes provocadas por variações climáticas.
As tragédias no país, sobretudo no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e estados do Sul e do Sudeste, se repetem como se fossem uma segunda natureza, ou seja, se tornaram naturais, banalizadas, sem que efetivamente da parte de diversos governos tivessem sido tomadas as medidas preventivas de longa duração, com obras de engenharia de ponta, planejadas por geólogos altamente especializados dos quais não faltam em nossas universidade públicas ou privadas.
Tudo, a meu ver, se resumiria em planejamento, em vontade política séria e não demagógica. Não se tem hoje um Ministério de Integração Nacional? Presumo que essa instituição pública federal conte com um corpo de funcionários competentes,engenheiros, geólogos, técnicos especializados no setor de enchentes, em contenção de encostas, e principalmente em prevenção continuada e vigilante de possíveis sinais de condições meteorológicas que possam, com grande antecipação, prevenir-se contra calamidades de tal porte causadoras de perdas humanas e de danos materiais que seguramente desestabilizarão a normalidade dessas cidades atingidas implacavelmente por tempestades e inundações de proporções gigantescas, praticamente quase destruindo nossas cidades, a sua vida econômica, a sua agricultura, indústria, comércio, lazer, turismo, a vida dos seus habitantes que se veem privados de tudo que conseguiram com sacrifício durante a vida, e sobretudo a perda sem preço de seus entes queridos.
Essas tragédias equivalem a verdadeiros terremotos, lembram tsunamis de água, que invadem violentamente a cidade e tudo que nela existe ou de lama que desce das montanhas com rochas soltas que vão devastando tudo que encontram pela frente, ate prédios de boa construção.
O pior, indiscutivelmente, é o saldo trágico dos mortos, crianças, jovens, adultos, velhos. Nem bombeiros, que prestam um inestimável serviço à vida humana e ao patrimônio privado ou público, escaparam dessa vez e foram tragados e levados pelas águas em fúria.
Esta não é a primeira vez que sofremos tais tragédias. Temo, contudo, que ainda desta vez as providências que sugeri acima ainda não sejam devidamente analisadas e implementadas.
As três belas cidades estão de luto. O povo brasileiro está de luto. O país já não aguenta mais protelações e paliativos. É preciso que, como oportunamente disse um conhecido cantor brasileiro, que não se fique apenas expressando a nossa “emoção”, cumpre que se parta para a “ação.”
O brasileiro é muitas vezes pouco racional, vai muito pelo impulso, pela improvisação, do momento presente, mas não se detém para refletir de modo mais racional, exigindo dos governantes e da sociedade que mudanças sejam feitas , que se cumpram as leis de uso do solo urbano, que não haja complacência com a corrupção burocrática, nem se tergiverse em questões de autorização de “habite-se” em áreas cujo solo é inapropriado para construções, seja de ricos, sejas de pobres.
A lei de planejamento urbano tem que ser rígida, inflexível. Os assentamentos que ainda existem devem ser objeto de análises profundas para verificação da adequação ou inadequação de condições seguras de moradia, a fim de que ações eficazes dos governos municipais, estaduais e federal sejam implementadas sob a fiscalização de órgãos competentes federais com respeito a verbas alocadas aos setores dos governos municipais e estaduais para assuntos de planejamento urbano, habitação, assentamento, e exames geológicos nos casos de cidades cercadas por morros ou atravessadas por serras.
A escolha de técnicos e engenheiros para esses quadros e funções não deve se pautar por indicações políticas, mas sim deve ser recrutada no universo acadêmico das nossas grandes universidades ou, quando não, todo esse know-how de ponta deve servir de consultoria aos governos. As pessoas de poucos recursos financeiros devem ser reassentadas em lugares seguros, onde o perigo de inundações e deslizamentos de terra seja, o quanto possível, zerado.
O país não pode mais esperar de braços cruzados por novas tragédias e sim procurar urgentemente impedir que elas, que não dependem da vontade do homem, pelo menos venham menos violentas e reduzam drasticamente mortes e outros tipos de destruição, porquanto tanto a tragédia quanto os danos materiais nos dão a sensação de que nossas cidades também estão morrendo tão sombria e melancólica é a paisagem que fica diante de nossos olhos em lágrimas.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

ANO NOVO: 2011

Cunha e Silva Filho


As eleições de 2010 se passaram e assim o Presidente Lula com seu segundo mandato.
Durante a corrida para a Presidência, todo cuidado era pouco a fim de que não se falasse em inflação, sobretudo em aumento de custo de vida, que seria, na era Lula, um tabu ou o horror dos horrores do companheiro Presidente, por menor que fosse a porcentagem desse fantasma que, no passado, atormentou, nossa vida econômica e mais ainda a vida do brasileiro de classe média, pobre ou miserável. Portanto, na campanha de Dilma, “inflação” era palavra proibida, proscrita no jargão petista a não ser para afirmar que, nos mandatos de Lula, o retorno dela era algo impensável, pois o combate seria sem trégua. Nesse aspecto, foi uma conquista, tanto quanto o foi nos dois governos de FHC.
Para uma grande maioria dos brasileiros e de observadores estrangeiros, o Brasil era um conto de fadas, não fora atingido pelo vendaval da recessão americana, europeia, pelas bolhas imobiliárias ianques. Os súditos de Lula prestaram-lhe - e ainda o fazem -, vasta vassalagem digna de um súdito britânico e, curioso, incluindo praticamente todos os estratos sociais. Falar mal de Lula era ganhar um inimigo certo ou desafeto implacável. Nunca me incluí nesses milhões de amantes incondicionais do antigo metalúrgico, dessa figura carismática, desse simpático nordestino do interior pernambucano, nascido realmente com a estrela do PT fincada lá no céu de sua terra natal, desse emigrante que, em São Paulo, desejou o que quis e o conseguiu. Tudo, sobretudo no segundo mandato de Lula, era mágico e, com uma varinha de condão, tudo dava certo até nos períodos tempestuosos da imoralidade sem tamanho que foi a história sombria e execrável do “Mensalão” e outros subprodutos de escândalos que, de quando em quando, pipocavam, aqui e ali. Tudo continuava inteiro, no partido, na política e no cargo quase imperial. Era uma apoteose, um furacão de bonança, de alegrias, de feitos e de fatos, contaminando tudo, levando tudo de roldão com o fito de auferir altos dividendos eleitorais. Votos aos milhares.
Tanto assim que a candidata dele, da sua escolha, da sua vontade, saiu vitoriosa. Lula ganhou honrarias, diplomas, títulos de universidades. Presentes aos montões, que de tantos dariam para serem transportados em caminhões. Lula tornou-se o “cara”, na expressão de Barack Obama diante do carisma e do sucesso de seus mandatos. Lula virou biografias, filmes, enfim, conseguiu o estrelato a despeito de ser ele mesmo a estrela do PT cravada nos céus brasileiros. “Nunca houve na história da República um Presidente como...” E assim a história o guardará.
Porém, mal começou o novo mandato com a vitória de Dilma Rousseff, uma ex-combatente da Ditadura Militar, certos aspectos da antiga crônica política brasileira por que já passou o país, parecem retomar seu curso e o seu peso próprio: notícia de retorno de período inflacionário, gordo aumento autoconcedido a parlamentares que, naturalmente, em cascata, será exigido pelos outros dois poderes, executivo e judiciário, além de uma desenfreada disputa por cargos de alta relevância, notícia de concessão de passaportes diplomáticos a filho e neto do ex-Presidente Lula, agora, em merecidas vacaciones numa área de lazer do Exército, seguida ainda da notícia de que um dos filhos de Lula hoje detém um considerável patrimônio empresarial, datando de sete anos para cá, segundo informação divulgada em jornal de grande circulação.
É nesse com texto de país de ainda tantos males e tantas injustiças que me ponho a refletir e me sentir com justificada estado de pessimismo. Então, me pergunto: O Brasil vai dar certo diante dos desníveis de vida social e cultural, diante da calamidade coletiva e crônica no setor da saúde pública, como, por exemplo, entre tantos outros espalhados pelo país afora, no estado de Rondônia onde nem a boa vontade demonstrada por abnegados médicos impede de se constatar uma realidade abjeta e desumana, na qual pacientes, muitos jogados ao chão, sofrendo dores e padecimentos, esperando em vão nos corredores das emergências por uma cirurgia que não se sabe quando vai acontecer, e, não dispondo do mínimo necessário ao atendimento por falhas de infraestrutura? Ou o nosso país em parte ainda é aquele “país do futuro”, de que falava Stefan Zweig (1881-1942)? Ou é ainda a imagem esmaecida daquela obra panglossiana do velho conde Afonso Celso (1860-1938), Por que me ufano de me país?(1900), que eu vim a conhecer há tanto tempo num exemplar da biblioteca de meu pai?
Enquanto isso, no país da pós-modernidade os abençoados membros da alta burguesia e do alto capitalismo, em helicópteros ou outros meios de transportes e regalias, são imperialmente, cuidados, operados e paparicados por médicos sorridentes, atenciosos sabendo estes que polpudos ganhos profissionais estão bem depositados nas suas contas bancárias, visto que é um truísmo afirmar que no país, como em outros de sistemas econômicos semelhantes, há duas medicinas:a do pobre, a do rico e a do riquíssimo. Mercantilismo a serviço dos endinheirados brasileiros que só não se tornam eternos biologicamente neste Planeta porque a alei da morte é justa e implacável. Todos morrem e a riqueza fica entre os sobreviventes que, por sua vez, irão lutar – nunca vão aprender a lição da humildade – pela sempiterna divisão do espólio e dos testamentos com unhas e dentes próprios do capitalismo que engendrou essa mentalidade doentia, egoísta, consumista, festeira e inimiga de quem pensa com o coração e os sentimentos de bondade verdadeira e de solidariedade pura.
Há ainda um fato curioso: se os ricos se dão bem num país, esse mesmo paradigma de vida e de mentalidade se encontra em qualquer país onde a riqueza de poucos se instala em detrimento da miséria de muitos.
Certa vez, olhando para uma fila de ônibus suburbano em que todos pertenciam, para um pouco mais ou um pouco menos, ao mesmo estrato da pirâmide social, não me contive e exclamei: A riqueza vem da pobreza!
Alguém, ao meu lado, com um simples olhar inteligente, comigo concordou e fomos embora.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Poesia e rupturas em Luiz Filho de Oliveira

Cunha e Silva Filho


1. INTRODUÇÃO.
Duas diferenças de construção poética saltam à vista após a leitura das duas obras do jovem poeta piauiense Luiz Filho de Oliveira; a primeira, suscitada pelo livro BardoAmar (Teresina, Edição do Autor, 2003, 70 páginas) me conduz como leitor diretamente ao aspecto visual; a segunda, provocada pela leitura de Ondehumano (Teresina, Nova Aliança, 2009, 114 páginas) me leva sem esforço ao universo do léxico, i. e., da palavra, tomada aqui no sentido mais despojado de poiésis, do vocábulo elevado ao estatuto mais nobre do eixo da seletividade (paradigmático) sobre o eixo da combinação (sintagmático), segundo o pensamento teórico de Jakobson sobre o que pensava da função poética. Dessa junção lúcida e lógica advêm as chamadas estranhezas do discurso poético moderno. Essa ideia do fazer poético corresponde, a meu ver, àquele conceito de “imprevisibilidade” de outra linha de pensamento crítico-teórico. Não quer isso significar que, no primeiro livro, o poeta abdique de suas preocupações com o verso enquanto discurso lírico. Longe disso, as duas diferenças são somente componentes básicos nas duas obras mencionadas.
Neste estudo da poesia de Luiz Filho de Oliveira que, a princípio, se destinava a ser um ensaio englobando os dois livros editados até agora pelo poeta, resolvi me limitar primeiro à análise do livro de estreia, BardoAmar, para, posteriormente, me voltar ao exame do segundo livro, Ondehumano. Este critério de apresentar dois estudos separadamente foi adotado por razões práticas e ao mesmo tempo porque fui percebendo que a meu estudo ia crescendo mais em direção ao primeiro livro. Assim sendo, este ensaio abordará a poesia de Luiz Filho em três tópicos :2) Da geometria da capa às desarticulações silábico-semânticas: 3) O poeta no contexto literario brasileiro; 4)BardoAmar: tema/s, linguagem/ns e forma/s.
O papel da crítica nunca deixa de ser uma forma de comparação entre o que se conhece de poesia e o que se passa a conhecer através de autores que vão surgindo. E, para isso, o que interessa em geral ao crítico é saber aquilo que porventura possa trazer de novidade na qualidade do livro que chega e, portanto, do que possa agregar de positivo e de originalidade à história da lírica brasileira.
Confesso que, na atividade crítica, algumas obras me atraem e certamente a outros leitores/críticos por uma circunstância ou outra, mas sem dúvida e, na maioria das vezes, pelo bom ou excelente nível de qualidade literária. É bem verdade que o crítico muitas vezes se empolga por autores que, no futuro, não cheguem a vingar na história literária e até sejam logo esquecidos ou pouco aceitos pela crítica naquela espécie de divisão de maiores ou menores autores. Os críticos não estão imunes a julgamentos precipitados. Acertam ou erram ou erram e, mais tarde, o seu julgamento é reavaliado e, então, os autores que julgou erradamente serão reabilitados ou redescobertos por outros críticos, fato que já aconteceu na história literária brasileira, cujo maior exemplo foi Sousândrade. Outras obras, porém, precisam de que o crítico as procure hoje, amanhã ou mais tarde. São ocorrências que antes pertencem à vida literária, ou melhor, à historiografia literária. Não cabe ao crítico sondar-lhes os reais motivos.
A crítica, segundo já aludi anteriormente, deve estar atenta à produção literária que está surgindo, assim como é sua atribuição tirar do injusto esquecimento bons autores que, por um motivo o outro, não foram objeto de sua atenção. A militância crítica é, por natureza, lacunosa e, por isso inconscientemente injusta. Quando se tem em conta o surgimento de um jovem autor e sua obra chega ao conhecimento do crítico, uma das alegrias deste é verificar que um novo autor está contribuindo com algo de diferente e original que venha de fato somar ao desenvolvimento da produção literária
2. DA GEOMETRIA DA CAPA ÀS DESARTICULAÇÕES SILÁBICO-SEMÂNTICAS.
No início deste estudo da poesia de Luiz Filho tinha chamado a atenção do leitor para um aspecto dominante de BardoAmar: o campo pictórico. Só para alertar, lembro a circunstância de que neste livro o elemento visual se enlaça umbilicalmente em toda a extensão do volume, o que é facilitado por ser o autor quem preparou as ilustrações do livro. Ou seja, é intencional a fusão aqui da palavra poética com a arte visual, remetendo logo ao velho preceito horaciano do ut pictura poesis. Exteriormente, torna-se palpável o largo uso de natureza icônica entre as linhas do desenho e a palavra conotada.
Veja-se o anverso da capa do volume onde se harmonizam intimamente o título do livro e os elementos pictórico-geométricos, já entremostrando, então, rupturas sintagmáticas, recurso amplamente empregado pelo autor. Em BardoAmar, o verbo em forma nominal reduzida do infinitivo se aglutina a uma anacrônica e solene designação da palavra “poeta”, além de que essa mesma aglutinação cria certa ambiguidade – recurso igualmente encontradiço neste poeta - despertando associações, por exemplo, com variadas estruturas possivelmente desdobráveis : “amar um bardo,” “o amor de um bardo” ou até mesmo uma associação virtualmente possível e de valor morfológico, atribuindo a “bardo,” por derivação imprópria, um valor adjetivo.
A par disso, no espaço do mencionado anverso da capa, há um significativo desenho de uma caravela que, por sinal, se repete três vezes mais no corpo do livro. Cabe, neste sentido, uma observação. Na chamada advertência, ou prólogo do livro, Luiz Filho, à semelhança de antigos poetas românticos, à frente Gonçalves de Magalhães, nosso introdutor do Romantismo brasileiro, com os seus Suspiros poéticos e saudades (1836 ), reporta-se a uma viagem, ideia reiterada pelo habilidoso pastiche dessacralizante do terceiro verso do Canto I, Proposição do clássico épico Os lusíadas: “.. bares & mares muito gigantes navegados.” De resto, este tipo de procedimento técnico do autor, ao longo do livro, se vai novamente insinuar junto ao leitor. Quero antecipar que as alusões, tão poderosas hoje na poesia contemporânea e que há tempos já fora prenunciada pelo critico inglês I. A Richards (Princípios de crítica literária. Porto Alegre: Editora Globo, 1967, p.181-185), em BardoAmar se fazem igualmente presentes, em que o antigo, i.e., o passado, em termos de estilos literários, esteticamente deliberado aqui e ali, se mostra fértil, provavelmente naquela mesma linha de pensamento da poesia de Manuel Bandeira (O itinerário de Pasárgada) segundo a qual o poeta apenas desejou prestar homenagem ao legado de ancestralidade lírica.
O texto “Advertência” (p.10), finalmente, embute as pressuposições estéticas e escolhas do autor que, em lentes ampliadas, indiciam uma proposta de poema na qual podem conviver estilos e tempos diferentes (traços de pós-modernidade da lírica contemporânea) de linguagens em diálogo sincrônico ou contemporâneo com as matrizes da nossa formação estético-literária, num amálgama tenso ou irônico-humorístico em construções ousadas que, ao longo do texto, se desconstelam pelas possibilidades fônicas, rítmicas, léxicas e sintáticas, as quais me lembram um dado linguístico de capital importância – a funcionalidade do fonema na formação da palavra, onde a troca de um fonema por outro (paronomásia) resulta noutro vocábulo ou num todo sem sentido na horizontalidade ou transversalidade do ato da leitura. O resultado, além disso, muitas vezes enseja um inteligente, criativo e lúcido jogo semântico. Esta é uma das chaves de leitura que o texto poético de Luiz Filho parece propor ao leitor atento.
A distribuição dos poemas no espaço do livro merece ainda um comentário. BardoAmar se divide em três partes, sendo que o primeiro vocábulo “Parte” sofre desarticulação gráfica de duas maneiras: a) o poeta primeiro o grafa “PART...TE” e, em seguida, o escreve “PAR-TE”. Ora, tanto numa forma anticonvencional da grafia normativa portuguesa quanto noutra, as duas novas formas remetem, enquanto significantes, a novos sentidos, quer dizer, os dois modos gráficos, a par de acenarem para outros acepções, cataforicamente indiciam séries de títulos de poemas que se caracterizam por subversões sígnicas assentes em ambiguidades de espaços poéticos inerentes a essas desarticulações de formas grafemáticas inusitadas, as quais são peculiares à poesia ressignificadora de que fazem parte as vanguardas que surgiram na poesia brasileira contemporânea.
Em outros termos, o espaço poético no qual Luiz Filho trabalha ou retrabalha seus versos aspira a um inegável jogo lúdico-experimentalista no arcabouço dos verso ou dos poemas, criando os estranhamentos ou desautomatismos da modernidade. Neste caso, o autor compele o leitor a uma tarefa conjunta de decifrações ou possibilidades múltiplas no campo semiológico da sintaxe poética proposta.
Colhamos aleatoriamente, para ilustração, um exemplo desta antinormatividade sintagmática ou apenas lexical. “IN... de IN” (1ª parte); “idas e vinhas” (2ª parte); “ a casa: lar” (3ª parte). Não preciso afirmar que, entre este exemplo de atomização vocabular, nem tudo se presta a decifrações possíveis, recordando, aliás, que nem sempre a poesia se faz para o claro entendimento. Ao contrário, muita gente já ressaltou que a poesia é para ser sentida mais do que compreendida Os simbolistas que não me deixem mentir: “Nommer um object c’est supprimer les trois quarts de la jouissance du poème que est faite du bonheurs de deviner peu à peu: suggérer, voilà le revê. C’est le parfait usage de ce mystère que constitue le symbole; évoquer petit à petit um object pour montrer um état d’âme par une série de déchifffrements”( Mallarmé, apud CARVALHO, Ronald de. Pequena história da literatura brasileira. 12 ed. Rio de Janeiro: F. Briguet & Cia. Editores, 1964. Prefácio de Medeiros e Albuquerque, p. 342-343). Ou se não, neste passo do mesmo Mallarmé: “pois deve haver sempre enigma em poesia, e é o objetivo da Literatura, - e não há outro – evocar os objetos. (apud MOISÉS, Massaud. Vol. IV – O simbolismo (1893-1902). São Paulo: Editora Cultrix, 1964, p. 36). Ou, finalmente, a poesia entendida como aquele coup de dés mallarmaico, poesia fundamentada não no tema, mas na estrutura verbo-visual (BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 38 ed.. São Paulo: Cultrix, 2001, p. 476 ).
No exemplo do poema em questão, na voz do “eu lírico” há uma tácito encontro entre dois seres em situação sentimental-amorosa, porém criteriosamente camuflada no espaço do poema onde fonemas fricativos alveolares surdos se alternam em seus correspondentes sonoros ou mesmo em arquifonemas (CÂMARA, Mattoso), ou ainda, em aliterações, alternam o timbre das vogais. Ou seja, no conjunto da peça poemática, o contexto fônico está sempre a sugerir semelhanças de fonemas (aliterações) ou dessemelhanças, e o leitor para isso deve estar sempre com um pé atrás para possíveis intenções sígnicas advindas do todo do peça. Atente-se, ademais, para o fato de que o tratamento “senhora” ecoa para tempos e estilos do velho trovadorismo português (“cantiga de amor”).
O segundo exemplo, “Idas & vinhas”, bastante criativo, faz um jogo de palavras no qual a primeira leitura, se não cuidadosamente feita, redunda numa segunda apreensão sonoro-significativa a partir do título do poema. Os versos aí, construídos com muita originalidade, em humorísticas aliterações ( 1º verso) formam um enjambement com a primeira palavra do segundo verso. Novamente, aqui o duplo sentido expresso pelo vocábulo “vinha” (1º verso), ao qual se poderia associar o verbo “vinha” ou o substantivo “vinha” (= a plantação de vinho, o vinhedo). O sentido humorístico mais uma vez se pode ver no vocábulo “tinto’ (espécie de vinho), combinando com o adjetivo “distinto,” que surpreende o leitor e ao mesmo tempo se desconstrói. Essas estratégias de construções no autor são recorrentes.
Da mesma forma, no segundo verso, “cerebração”, que, no ato da leitura corrente, pode levar tanto para o sentido de “atividade intelectual” quanto, por erro de leitura ou de desconhecimento de paronímias, para o sentido de louvação, “exaltação,” excitação provocada pelo efeito do álcool” (AURÉLIO). Este uso intencional do poeta pela vizinhança fônica de palavras, pelo pun, o nonsense, ganha uma dimensão considerável na economia de sua práxis poética.
No terceiro e último exemplo, “a casa: lar””, outro poemito de título bastante sugestivo, outra vez o “eu lírico” joga com o duplo sentido, recorrendo à atomização ou “desintegração” (BOSI, Alfredo, op. cit. p.477)) vocabular (traços verbo-visuais, entre outros, trazidos pelo Concretismo de 56 e pelas vanguardas vindas do exterior) comportando dois sentidos. No primeiro, o sintagma nominal “a casa: lar” configura um tônus de humor, de vez que o lexema “casa”, é muito corrente se empregado como equivalente de “lar”. É um título engraçado e a um só tempo entrópico. No primeiro verso, se instaura um clima de erotismo e humor, principalmente quando, no primeiro verso, o lexema ”imóvel” traz á tona o sentido mercantilista de propriedade, de lugar de posse, de um dos pilares da sociedade capitalista, em oposição às socialistas, nas quais o imóvel, a propriedade privada, não existe, mas é bem do Estado. No segundo verso, “recanto doce recanto”, que de longe traz à baila a conhecida frase “lar, doce lar”, de procedência cultural inglesa, o “Home, sweet home, there is no place like home”, lugar que é um convite ao sossego e à intimidade, à vida privada ainda outra vez o poeta joga com o duplo sentido, quando se poderia associar “recanto” às suas possibilidades sígnicas, musicais e melódicas. O terceiro verso, retoma o aspecto de erotismo entremostrado no primeiro verso, no qual o corpo, imóvel, se torna movimentos horizontais da carne, unidos de corpo e alma, conforme o advérbio de modo justifica, até graficamente, a sua criação morfológica em desafio à gramaticalidade

3) O POETA NO CONTEXTO LITERÁRIO BRASILEIRO
Em carta do autor a mim endereçada, o poeta fornece alguns dados paratextuais sobre os motivos de sua experiência não só quanto ao início de seu interesse pelo gênero poético mas também como chegou a publicar seus poemas e mais outras razões que o fizeram trilhar a solitária aventura do que já se chamou a mais pura das formas literária.
Já anteriormente havia lido alguns textos em prosa do autor, os quais me provocaram uma sensação de estar diante de um escritor avesso ao conservadorismo ou à gratuidade. Quer na prova vazada de estranhamentos, sobretudo no modo de colocação dos pronomes oblíquos e de outras excentricidades de usos gráficos e léxicos no corpo de seu discurso, que não sei se, no futuro, vai dessas expedientes se afastar - o que para mim seria melhor quando se tratasse do ensaio ou mesmo da crônica, com o faz tão bem Ferreira de Gullar na crônica ou no ensaio (ele, que já foi tão subversivo e experimentalista na poesia), quer sobretudo na poesia, na qual sem esforço percebemos uma disposição de trabalhar a linguagem nos estreitos limites da literariedade e com uma vantagem a mais: respeito, ousadia e dignidade intelectual.
Juntei as duas partes, os textos lidos na sua coluna do site Intertextos, de Dílson Lages, e a leitura dos dois citados livros. O resultado, no geral, é promissor. Além disso, acrescentaria um pormenor curioso. Segundo o autor, Ondehumano enfeixa poemas anteriores ao experimentalismos de BardoAmar que, de certa maneira, inverte o processo de continuidade da segunda obra.
Ou seja, enquanto vivência poética, o segundo livro cronologicamente deveria ser virtualmente o primeiro, visto que, segundo aduz o poeta , “é um livro experimental mais sóbrio” se comparado ao primeiro. Para simplificar, do meu ângulo de leitor, Ondehumano, a despeito de incluir grande parte de poemas anteriores ao primeiro livro, é, todavia, o que, a meu juízo, servirá como coerente avanço no percurso poético de Luiz Filho ainda que seja um pouco cedo demais para um julgamento mais conclusivo das possibilidades futuras de seu estro, sem cair numa espécie de fatalidade que tem acometido poetas piauienses que, depois de publicarem um número pequeno de obras no gênero poético, ainda dispondo de muitos anos pela frente, silenciam praticamente ante o futuro de seu projeto poético no início tão promissor. Não resta dúvida, entretanto, de que Ondehumano é, até agora, a constatação mais consistente de um talento com indicativos seguros, vias nítidas e potencial criativo aberto e pronto a desenvolver novos temas e formas de elaboração no domínio do verso.
Delimitemos, porém, o alcance lírico de BardoAmar e procuremos, então, sondar—lhe as especificidades de um autor que deu seus primeiros frutos no difícil e competitivo domínio da poesia aproximadamente na faixa dos vinte anos (oh!, com estava longe da verdade contemporânea o historiador literário inglês John Burguess Wilson (English literature: a survey for students ( Longman, ninth impression, 1970, p. 11), ao vaticinar, erroneamente, como, aliás, outros, o futuro da poesia: “Não existe um poeta vivo que consiga viver de poesia. Mau sinal que talvez acene para a inexistência de um futuro para a poesia.” Sua produção editada é diminuta se confrontada com os anos de sua convívio com a musas.. Isso, porém, não vem ao caso quando o que pesa para a literatura é a qualidade do que se escreve e, nesse particular, Luiz Filho com apenas dois livros já me permite um julgamento favorável, segundo anteriormente assinalei.

Pela faixa etária, Luiz Filho se colocaria na geração de poetas do final dos anos oitenta aos inícios dos anos noventa. Quer dizer, geração de poetas bem atravessados pelos tempos da pós-modernidade, da experiência cibernética, de uma indústria cultural cada vez mais tentacular em razão dos avanços vertiginosos na área tecnológico-eletrônica, em tempo de economia globalizada, em tempo também de ameaça cíclica de instabilidade econômica e de hegemonia midiática, principalmente via Internet.
O poeta viveu também na carne, posto que, pela idade, ainda imatura para a compreensão de tantas mudanças estruturais e políticas no país, os últimos anos da ditadura militar, as primeiras manifestações da redemocratização política nacional, assim como testemunhou o período pós- Guerra-Fria, a Queda do Muro de Berlim, o esfacelamento do Comunismo russo, a Guerra do Golfo Pérsico, as ditaduras na América Latina, entre outros fatos e mudanças no país e no mundo. É que n o século 20 das últimas décadas o poeta se situa como indivíduo e como jovem intelectual ansioso por expressar seu sentimento poético histórica e culturalmente contextualizado. Sua poesia não pode fugir a esses condicionamentos de uma época.
BardoAmar, de resto, é livro premiado em 2000 num concurso realizado pela FUNDEC e se classificou em segundo lugar. Antes, fora selecionado num “Concurso de Poesia Antero de Quental,” no II Festival de Inverno de Educação de Itajubá, Minas Gerais. O concurso lhe valeu participação em antologia.
Um dos fascínios pelos quais o texto em poesia me seduz vem a ser a imensa possibilidade de releituras de um mesmo livro graças, é claro, ao poder de síntese inerente ao gênero. Daí ser a leitura poética para o critico uma atividade muito mais concentrada, mais visceral, a que vai corresponder um mergulho mais denso e totalizante do objeto poético. Na prosa, fica mais difícil essa prospecção vantajosa à hermenêutica. Por esse motivo, no trabalho de análise de um volume de poemas, devido em geral à exiguidade do número de páginas, o instrumental crítico torna-se muito mais fácil de operacionalizar, o que nada tem a ver com as dificuldades intrínsecas também à prosa.
Não seria gratuito ou ingênuo afirmar-se ao jovem escritor de hoje, seja na prosa, seja na poesia, que o esforço despendido na composição de uma obra literária demanda muito maior suor intelectual do que no passado, aqui entendido como um vasto e variado período abrangendo, com se sabe, vários séculos de tradição literária e especialmente quando se leva em conta as vanguardas europeias que reconfiguraram drasticamente os estilos literários a elas anteriores.
Em outras palavras, o poeta, o ficcionista, o teatrólogo de hoje, quer desejem ou não, não podem evadir-se da contingência de ser uma simples partícula dessa considerável cadeia de estilos e linguagens literárias inserida, formando o circuito da tradição ou cânone, e, ademais, agravada por vezes pela ideia da chamada “angústia da influência” formulada por Harold Bloom, que não deixa de ser uma espécie de “pedra no meio do caminho” de novos autores na seara da poesia.Desta forma, Luiz Filho, por seu turno, não pode assim ser uma exceção a essa conjuntura da história da literatura universal.
No movimento paradigmático das letras brasileiras, indissociável daquele circuito de tradição ocidental e divisor das águas entre o conservadorismo e a ruptura convocada pelos defensores do Modernismo de 1922 com a sua histórica e exaustivamente citada e pesquisada Semana de Arte Moderna de 22 no Teatro Municipal de São Paulo, o passado foi, na primeira fase do movimento, vigorosamente rechaçado e a literatura brasileira genuína(?) passaria a ter seu marco zero a partir daquele ano-símbolo.
Contudo, a história literária do país sofreu, em linhas gerais, a partir de 1945, principalmente na poesia, uma forma de retrocesso em relação aos princípios fundamentais da nova estética impiedosamente transgressora que caracterizou os primeiros anos dos modernistas históricos, tendo à frente um Mário de Andrade, um Oswald de Andrade, entre outros. Já na segunda fase do Modernismo, na década de 30 do século passado, a virulência iconoclasta arrefeceu e aparou os seus iniciais ímpetos corrosivos face ao passado e iniciou uma nova postura estético-temática, procurando um equilíbrio onde nem se voltaria mais às fontes parnasianas anacrônicas nem tampouco se permaneceria irredutível nos limites estreitos dos experimentalismos e pirotecnias inócuas. Procurou-se, antes, uma via ou vias renovadoras que exprimissem literariamente um Brasil sintonizado com a sua cultura, suas tradições, com a sua língua e com os seus modos de tentar aproximar o mais possível do povo a realidade da nação, com seus problemas peculiares, muitas dificuldades e incertezas políticas e econômicas num país que, para dar um só exemplo significativo, viveria os embates da Revolução de 30 liderada por Getúlio Vargas e, na mesma década, sofreria um retrocesso político com o Estado Novo sob novamente a tutela de Vargas com todas as sequelas de males inerentes a uma Estado ditatorial e, contraditoriamente, de conquistas no plano social, sobretudo na área dos direitos dos trabalhadores. Por outro lado, a questão da inserção do povo na ficção e nos principais gêneros literários brasileiros precisa de ser um tanto relativizada, visto que os movimentos literários têm caráter hierarquizante e mesmo elitista quando os entendemos como mudanças estéticas de cima para baixo, de uma elite intelectual para a qual o povo pode ser matéria de temas e de linguagens mas delas não coparticipam do tripé autor+obra+ leitor, este último sendo quase sempre sujeito passivo ou externo pelas próprias condições de penúria cultural e escolaridade que o impossibilita à fruição dos bens culturais das elites intelectuais. Esse é o grande dilema entre a vida intelectual e o povo, o homem comum, o operário.
Os escritores que, em 1945, não se afinaram com algumas conquistas estéticas de 22 e de 30, procuraram, ainda que de forma não uniforme nos seus preceitos estéticos, reagir contra as formas variadas tomadas pelo Modernismo e suas diferentes manifestações estéticas inovadoras, numa atitude que os levavam a uma espécie de Neoparnasianismo, ressuscitando o uso do soneto, da métrica, da rima e das imagens plásticas, corpóreas, concretas e objetivas no que concerne aos temas e a uma linguagem refinada, aristocratizante. Entretanto, cumpre ressaltar que as “geração de 45” não desejou, entre os inúmeros adeptos de sua estética, uma mera cópia do velho Parnasianismo. Nem tampouco isso seria possível em termos absolutos, pois a poesia brasileira, após o vendaval modernista, jamais seria a mesma e é nesse ponto que surge um poeta que, embora se inclua na “geração de 45”, logo seguiu um caminho independente. Falo de João Cabral de Melo Neto cuja práxis poética não confirmou a tendência geral daquela geração, preferindo, consoante pondera bem Sílvio Castro ( in: História da literatura brasileira,volume 3, Lisboa, Publicações Alfa, p. 256, 1999) deixar sua poesia permear-se de algumas influências da geração poética de 30, muito fértil também na ficção, sobretudo com os romances nordestinos de 30.
Sendo assim, Cabral pagou tributo à poesia de Carlos Drummond de Andrade pela vertente social, de Augusto Frederico Schmidt no que concerne a uma “aparente falta de informalidade compositiva” (CASTRO, Silvio, op. cit., ibidem) e ainda até de Murilo Mendes quanto ao aproveitamento da “informalidade compositiva dos poemas imagísticos”, não sem antes serem por João Cabral “criticados e negados”(idem, ibidem). Quer dizer, João Cabral, tanto quanto outros poetas da “geração de 45”, após negarem conquistas expressivas do Modernismo de 22, não deixam, entretanto, de reaproveitarem “dialeticamente” valores que provêm desse mesmo marco histórico decisivo aos futuros avanços estético-formais da poesia brasileira.



4. BARDOAMAR: TEMAS, LINGUAGEM/NS E FORMA/S

A profusão grafemática que se espraia por toda a extensão da primeira parte, incluindo poemas de diferentes extensão, que vão de 15 versos até poema de um só verso, reforça e reafirma as intenções do autor para a importância atribuída à visualização, à maneira do Concretismo de 56, com seus correspondentes recursos verbivocovisuais e bem assim a outros recurso trazidos pelas vanguardas brasileiras( Poema-Processo, Poesia Práxis, Neoconcretismo).
Só que em Luiz Filho há um passo dado a mais,: o recurso de desenhos de figuras e de objetos, ou partes do corpo humano não-figurativos, como no enigmático poema “cama suma” (p.21) introduzido por traços geométricos (um retângulo encimado por linhas geométricas figurando uma cabeça humana usando óculos e exibindo uma forma de boca. Sobre a cabeça (masculina? feminina?), os cabelos (?) semelham raios elétricos O retângulo inclui formas de ângulos, num dos quais existe um par da letra “y” (?) simetricamente colocados um do lado do outro. . O poema a que corresponde àquele geometrismo vale mais pelo seu ângulo semiológico do que pela sua apreensão lógico-analítica, onde a palavra poética fala mais de si do que pela captação da mensagem decodificada. Seria antes um mero jogo abstracionista pela sua irredutibilidade cognitiva.
Na primeira parte, ao todo composta de 28 poemas, há que se notar, inicialmente, a forma gráfica da escrita manual impressa. Nesta antesala do conjunto de poemas se estabelece o mood em que formas de linguagens vão delimitar a fronteira dos dois temas dominantes desses versos: a viagem e o amor que simultaneamente lhes vão insuflar vida como criação poética
Entretanto, - convém acentuar bem - aqueles temas não são convocados arbitrariamente. Cumpre desentranhar-lhes, e aqui estou me reportando ao poema de abertura, “BardoAmar”( p. 18) que dá título ao livro, o alcance: a viagem e o amor de que se cogita falar aqui não é a real, a empreendida em confortável embarcação. De resto, o índice icônico – a ilustração de uma caravela – bem reforça os meus objetivos de entendimento do poema, consoante, mais adiante, comentarei.Antes é uma viagem pelas palavras, ou seja, pela poesia, com todas as suas reverberações. A viagem seria, para completar, a do encontro do amor, liame indissociável entre Arte e Sentimento. Sob um pano de fundo histórico, remetendo às conquistas portuguesas ultramarinas, na melhor hipótese à tona vem a epopeia lusíada. O poema é constelado de lexemas alusivos àquela viagem: “cenas líquidas”, “caminho”, “tormentas”, “amarras”, em fusão com “velozes”, “velas”, “a mar”, expressão esta última que também remete ao verbo “amar”, caso houvesse a aglutinação dos vocábulos, expediente gráfico muito comum em Luiz Filho.
Deste primeiro poema para os seguintes, a inflexão se dirige mais fortemente para o terreno do sentimento amoroso, a começar do sugestivo poema “faróis” (p. 18). O “eu-lírico” desse poemito de três versos neste ponto divisa um lugar procurado e seguro. Já a esta altura, se constata um tipo especial de construção sintático-poética que, no mínimo, me dá a sensação de emprego latinizante, aquela construção na qual a ordem dos termos oracionais se faz entendida pela subordinação às flexões das declinações. Em outras palavras, a combinação dos termos oracionais rompe drasticamente a estrutura plausível de um verso tradicional, dir-se-ia de dicção romântica, parnasiana, simbolista ou mesmo moderna. E isso não é de modo algum motivado por figuras de construção – tropos - violentamente transgressoras da ordem direta do discurso referencial, como hipérbatos, anástrofes e sínquíses, empregadas, sobretudo, na poesia clássica e no Barroco.
O estranhamento da construção em alguns poemas de Luiz Filho se situa mais no terreno do mimetismo rítmico-melódico da sintaxe poética. Talvez seu propósito seja mesmo o de propiciar o choque, o estranhamento, a desautomatização, a desestabilização nos hábitos usuais do leitor de poesia de corte conservador para adequar-se ao mood do poema à maneira de José Albano, Manuel Bandeira ou Da Costa e Silva, por exemplo, com seus conhecidos poemas trecentistas (Bandeira), os Vilancetes e Palimpsestos (Da Costa a e Silva) e os sonetos de sabor camonianos (José Albano). Vê-se que se tem diante de nossos olhos um artista do verso sintaticamente hermético, criando opacidades em todos os sentidos e estratos da linguagem. Este experimentalismo arrojado, a meu ver, só possui uma única vantagem: transformar a dicção poética por meio dos sentidos, pelas sensações rítmicas, melódicas, pictóricas, causadas no leitor, lembrando de perto por vezes alguns preceitos dos simbolistas buscados em Verlaine: “De la musique avant toute chose.”
O segundo poema, “Poesia na morada do aluno” (p.19), pela desarticulação de sílabas e pela rearticulação e ressignificação daquelas resulta numa curiosa e original paródia do conhecido e antológico poema de Oswald de Andrade: “Amor/humor”, isto é, aquele poema no qual , abaixo do título (“Amor”) se segue um único verso-poema. Não é gratuito o título do poema de Luiz Filho, que parece inspirado no título da obra de Oswald de Andrade Primeiro caderno de poesia do aluno Oswald de Andrade (1927), do qual consta o poema “Amor”
Na reinvenção de Luiz Filho, o humor já presente em Oswald de Andrade, ainda se radicaliza mais e cria novos sentidos e possibilidades conceituais via humor, além de ser acrescido dos próprios reforços metalinguísticos (sobretudo os utilizados na publicidade como fazem sugerir as letras em maiúsculas) e poéticos. As alterações morfológicas, as justaposições, os sinais de pontuação ( reticências, ponto de exclamação, bem como ainda o início de cada linha poética em letra minúscula que, pela primeira vez, encontrei no excelente poeta português Vasco Graça Moura, a disposição espacial deslocada dos vocábulos “amor” e “humor” não simétrica e com o primeiro verso oswaldiano partido, demonstram a perícia da apropriação para outras mudanças compositivas a partir de um poema-fonte. Para concluir: a dupla leitura que o poema parodizado, no contexto fonológico, poderia assumir caso se pensasse da perspectiva co-particpante e lúdica do leitor ao trocar o fonema vibrante alveolar em maiúscula (“R”) pela lateral alveolar, redundaria num vocábulo que, subtextualmente,, nos salta à vista: “amolação,” numa permuta de fonema bem afim com o sentido geral humorístico-parodístico do 3 º verso do poema. Veja-se o o poema na sua inteireza:

a-MOR
HUMmm...
a MOR ação!

Em outras palavras, o terceiro verso adquire o duplo sentido pela injeção de novo semantema e de nova desarticulação silábica entre o primeiro e o terceiro versos. Finalmente, o próprio título pode ainda ser lido no seu duplo sentido se porventura o leitor co-participante deseje justapor os elementos morfológicos do sintagma “na morada”: “namorada’, criando, destarte, mais um terceiro novo sentido: “ poesia , a namorada do aluno, que dá panos para muitas mangas interpretativas cujo epicentro é a arte poética em si.
O que se segue a estes dois poemas é uma continuidade transgressora da estrutura sintática de versos, aliada a outras invenções de desarticulação silábicas, de inserções de desenhos esquemáticos, habilmente ilustrados pelo autor. Tudo isso reitera um elemento diferenciador da poesia do autor e que serve de sustentação aos procedimentos compositivos de seu verso: a capacidade de produzir novos sentidos e de revesti-los de uma sintaxe que lembra a construção latina, segundo já mencionei.
O fato mais inusitado do aspecto de estranhamento do verso de Luiz Filho é cantar o amor carnal tendo o cuidado de não chocar nunca o leitor nos seus melindres moralistas, contudo produzir erotismo em meio a rupturas de malabarismos de imagens que mais prevalentemente se pressentem do que gratuitamente se apresentam ao leitor. De resto, o poema de Luiz Filho, antes de tudo, e já o frisei, solicita a participação do leitor, constituindo, muitas vezes, um esforço de coautoria diante das direções apontadas no corpo do poema, segundo se pode ver igualmente no segundo livro dele, Ondehumano.
Um bom exemplo é o poema “conjogal”(p.27), no qual o poema visualmente representa a forma de um jogo da velha.É bem inventivo e que exige maior habilidade participativa do leitor. Naturalmente, esse tipo de poema visual, assim como outros na extensão do livro, amealha o que de bom se legou das vanguardas europeias e das suas derivações no Brasil: os grafemas, a espacialidade horizontal, diagonal e vertical, a circularidade, o lado ideogramático que remonta à Antiguidade e, no Simbolismo brasileiro, encontrou diversos cultures, inclusive Da Costa e Silva e Elmar Carvalho, entre outros autores piauienses.
O mesmo poder-se-ia afirmar do poema “misteros” (p.25) . Neste poema também o grafismo que, no caso, é uma imagem preta, ou melhor, um desenho, nos conduz visualmente para aquele conhecida figura da “Wife or mother-in-law” que W.E. Hill insere no American Journal of Psychology e que está reproduzida por Antônio Gomes Penna na obra Percepção e aprendizagem.( 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1968, p. 14). Se olho para esta figura de um ângulo dado, percebo, no desenho que introduz o poema, uma figura de um objeto em forma fálica e meio em curva, com uma extremidade lembrando uma cobra. Se, por outro lado, observo de ou outro prisma o desenho escuro, vejo um perfil humano em branco e com sua sombra escura ampliada.
O título, vocábulo criado artificialmente por aglutinação, provavelmente formado de “mistério” + “eros.” aponta para o tema da iniciação sexual. A ambivalência, um das constantes da poesia de Luiz Filho, é a espinha dorsal de inúmeras formas lexicais ou fônico–estilísticas. Os quatro versos que constituem o poema se revestem, na sua disposição sintática, de um caráter de descoberta (da poesia?) ou do dionisíaco prazer do sexo.
Não poderia deixar de comentar último poema desta 1ª Parte, o da páginas 30-32, sob o título “Amarração.” Formado de 12 estrofes em tercetos e com extensão assimétrica, me parece o mais belo poema desta parte. Leio-o em voz alta, com o o faria com um poema de Poe, e percebo seu ritmo, sua melodia, sua musicalidade e, por acima disso, um misterioso halo notálgico-amoroso. Poema feito de muitas camadas superpostas. Poema-síntese servindo a muitas chaves de leituras.
No campo semântico, no atrevimento de foras verbais irradiando células semânticas, no tema do amor liricamente bem urdido, nas camadas fônicas (aliterações), nas alusões intertextuais exógenas e endógenas, tendo como ponto referencial o poema épico camoniano, a mitologia desconstruída pelos novos tempos pós-modernos, a referência direta ao título do segundo livro do autor (dado intratextual), conforme se vê no 3ªº verso da 9ª estrofe poema pleno de alusões diretas, indiretas e desconstruídas nos sentidos, e nas formas lexicais, operando ressignificações originais e inesperadas. “Amarração” reúne três temas: o amor, a linguagem e a poesia. Sua leitura é pluridimensional e, como todo poema bem realizado, não se exaure aos caprichos do leitor ou do critico.
A poesia de Luiz Filho - já se pode até aqui tentar extrair uma conclusão provisória em suas linhas gerais -, é a de um artista do verso ao qual o leitor deve estar continuamente alerta, particularmente do ponto de vista intelectual, dado que sua dicção encerra pelo menos dois traços constantes: a surpresa e a duplicidade ou multiplicidade semântica, compreendidas nas ousadias sintáticas do discurso lírico, gerando sentimentos díspares e forte humor e/ou ironia no seu universo poético, num vigoroso e original ludismo fonético, fonológico, visual, espacial e, acima de tudo, numa predisposição infensa às decifrações explícitas e lineares ao se tornarem objeto de exegeses do seu espaço interno de expressão significativa (mensagem, conteúdo, ideologia e cosmovisão) e sua exterioridade significante esteticamente formalizada (retórica e todos os elementos constitutivos do verso, do poema ( estrofe, aliteração, cadência, ambigüidades, mood, ritmo, métrica (se houver), gênero poético, tropos, estrutura, entre outros artifícios da arte versificatória, considerado esta na sua acepção temporal mais ampla possível). A poesia de Luiz Filho tende, no geral, a oferecer resistências e obscuridades inquietantes.
A segunda parte, se o leitor bem notar, a maneira de subtítulo retoma invertidamente os três últimos vocábulos do verso final da “I PARTE”: “em mar fragil mar”. Nesta parte, o tipo de escritor muda para um outro tipo impresso, não o manual impresso da primeira parte.
Os poemas da segunda parte reunidos em número de 27, aceleram ainda mais as estratégias de desconstrução e, desta maneira, se vão impondo aos olhos do leitor com toda a riqueza provinda do lirismo amoroso, ainda que continuadamente de natureza carnal, transfundido em inovadoras formas de elaboração poemática, em ousadias metalingüísticas, metapoéticas, aliando beleza de sentimentos a beleza de linguagem.
O caráter de rupturas poéticas em Luiz Filho é traço diferencial entre ele e outros poetas de sua geração. Todas essas subversões no verso operacionalizadas pelo seu estro são na realidade modos de cultivar poemas medularmente modernos mas não radicalmente destituídos daquilo que a grande herança da poesia antiga lhe ensinaram e foi antropofagicamente por ele assimiladas, sendo para mim este o grande caminho que poetas que se querem modernos deveriam buscar. Não ler e aprender com o passado me parece uma atitude leviana e contraditória a um só tempo.
No verso de Luiz Filho pressente-se o quanto sua natureza poética aqui e ali, dialoga com a tradição, seja com a Antiguidade, grega ou latina, seja com a poesia provençal, com o quinhentismo camoniano, com o Arcadismo (Tomas Antônio Gonzaga)com Oswald de Andrade – presença nele forte -, com Carlos Drummond de Andrade, entre outras vozes da lírica brasileira e universal.
Na segunda parte, tudo se torna possível em termos de experimentalismos, nos quais as palavras como que assumem o controle de si mesmas, espécie de silêncio do verbum, onde as palavras são capazes de criar e recriar sentidos insuspeitos em códigos cifrados. Instaura-se, agora, o reino dos hermetismos e dos malabarismos obscuros à Mallarmé, combinando, segundo já ressaltamos, características simbolistas com ludismo, ironia, humor e subtextos indevassáveis a olho nu.
Nesta instauração de avanços ousadíssimos do discurso poético, Luiz Filho se torna um virtuoso. Entretanto, a persistir nestas estratégias de virar pelo avesso a função poético-comunicativa, ele se arrisca a perder-se no puro hermetismo indesejável ( e aqui estou com José Guilherme Merquior, ao falar da poesia humilde de Bandeira) a um poeta que aspira ao entendimento sem abrir mão da qualidade e originalidade dos versos.
Não lhe posso sonegar a invejável tendência à inventividade, à disponibilidade para novas formas de diálogo com o leitor, com a poesia e consigo mesmo. Não é possível não se comover com os versos do poema “amamos” (p. 40):

Amamos

quando não se-sentem
passado & presente
o verbo nos-arremessa ao mágico

neutralizando nosso espaço de sujeitos
ao acaso & próximo... só
o advérbio mente ao tempo

Ou não se divertir com o poema “Caro Prato” (p.43):

Caro Prato


Sem nenhuma etti ..........................Queta

O amor fugiu do card...............Ápio

E quem pagou o p......................Ato?

Ou essoutro com ressonâncias oswaldianas(p. 35):

Voz nua à lua nativa

contrassopram em mim
lembrn cãs de ti
a selvar-me salvagem

como tupis amórfagos
ritos em vocação nova:
Catiti!

Na 3ª parte, com subtítulo “mas novo vinha mais”, formada de 32 poemas, retoma-se a grafia manual impressa, com exceção do poema “Cartier Latin”(p.51) no qual o signo linguístico se forma do pictórico e da frase distribuída nos seus termos em forma de um quadrado, figurando uma conhecida marca de relógio francês incluindo ao mesmo tempo, no branco do quadrado, as expressões “Cartier Latin”, disposta na horizontal e “AmoRoma”, disposta em “L”. Ou seja, o poema se contém nos próprios signos linguísticos em que nas suas associações (a frase explícita circundando a forma do relógio é a melhor indicação para isso) ao sentimento do amor e lugares europeus conhecidos. Convém notar que a grafia do sintagma “Cartier Latin,” referindo-se ao relógio, amplia o nome da marca associando-a ao famoso bairro francês Quartier Latin. Neste poema, todos os elementos visuais, gráficos e comunicativos, em conjunto, despertam a curiosidade do leitor e lhes aumenta a carga plurissignificativa.
Nesta parte os aspectos temáticos já conhecidos se tornam mais resistentes às delimitações sígnicas e de comunicabilidade. As ousadias semânticas, na composição dos poemas, se deixam resvalar para um universo humano ( ou concreto) englobando intenções várias e, muitas vezes, trabalhando mais em direção ao discurso lírico, embora com mensagens cifradas, nas quais “eu-lírico” faz questão de manter-se ora nas suas camadas opacas, ora na fragmentação de uma“ poiésis” que se constrói para si mesma . Ao contrário da primeira parte, os poemas agora encontram o centro do seu espaço literário e procuram o seu próprio locus feito das meias falas e dos meios sentidos, mas sem desistir de sua capacidade de girar em torno do seu eixo concêntrico a prerrogativa do ato da palavra concentradora da potência da criação poética. Nesta parte, o discurso lírico como ato comunicativo deixa de o ser e se liberta para uma dimensão metapoética, i.e., para o primado da morada da metáfora.
Não falta, outrossim, como já se viu em outros poetas, por exemplo, em alguns poemas de Ferreira Gullar, essa radicalização para atingir o incomunicável -, como é o caso do poema “versão in (subliminar)”, à página 39, que mais me lembra uma vetustíssima inscrição em caracteres latinos.

Poeta ubíquo, nas fontes do dialogismo atemporal nem por isso deixa de ser uma artista do verso bebido nos tempestuosos e voláteis tempos pós-modernos, antenando-se ciberneticamente e pondo no seu verso a experiência e o contato dos meios eletrônicos cada vez mais sofisticados e em constante mutações plurifuncionais. Inserido de corpo e alma na pós-modernidade, a poesia de Luiz Filho planta-se no tempo presente, numa atitude que poderia repetir a natureza orgânica do poeta Drummond como o mais representativo artista do verso que tomou para si o tempo presente, na poesia e na prosa, como matéria primacial de sua poética. Instalando-se no tempo presente, o poeta Luiz Filho se deixa impregnar do “aqui e agora”, primado do instante, no afã de se afirmar e firmar o seu objeto poético feito da matéria humana e dos produtos e e conquistas do nosso tempo desagregador.
Daí seus poemas deixarem rastros e ressonâncias que falam da mídia eletrônica, como exemplarmente se vê em “e-meu.a.mar...”(p.53)

e. te –frequento. Rede.em.hiperfrequências : e.telas
e. tinto. Meus. Impulso. Sobre. Teus. Acessos: e. teclas
e . macro. mensagens. Qe. Te-navegam: in. loco

Ou no poema “inserto” (p.54):

Desligada

A máquina n o certo

Não grava


A grav

Idade desta memória

Salvo em ti quero estar

Na 3ª parte do volume é que o grande encontro da Poesia com o Amor ocupa seu lugar privilegiado, quer como crispações do sentimento amoroso, quer como manifestação de uma poesia que se concretiza convocando o que possa, dentro dos limites criativos e expressionais do poeta piauiense, o que existe de singular e de imprevisível no uso da língua em sua manifestação literária.
Segundo venho discutindo neste ensaio, a poesia de Luiz Filho de Oliveira, amalgamando o duplo sentido, a ironia, a ambiguidade, compõe uma gramática poética que invade sem amarras o espaço literário do gênero, através da invenção pura, pensada e mentada como o fazem sempre os grandes mestres nesta seara das letras.
Da leitura de seu poemas, particularmente da sua derradeira parte, sai-se com a sensação de que as possibilidades do verso contemporâneo muito podem ainda fazer no que concerne à inventividade a fim de lidar com os imenso veio temático e expressional disponível nos campos fonológicos, léxicos, semânticos, sintático, estilísticos e ideológicos. Para tanto, é necessário o talento para as criações vocabulares (neologismos, criações vocabulares, recriações com fundamento na formação diacrônica da língua portuguesa, sobretudo dos primeiros anos da formação da língua e da literatura portuguesa, não com intenções gratuitas ou de exibicionismo, mas para atender a exigências de novos sentidos, novas maneiras de percepção da vida, dos objetos e dos sentimentos entre dois seres desde quando um homem e uma mulher se encontraram pela primeira vez na Terra e se amaram.
Não resta dúvida de que as recorrentes ousadias linguísticas presentes em toda a extensão do livro de Luiz Filho não devem se repetir n este ritmo e nessa frequência, visto que, até para os experimentalismos há limites além dos quase a poesia, que, para mim, é ato comunicativo esteticamente elaborado para fin s de fruição da emoção e do conhecimento do mundo, instrumento de provocação de estesias, redundará em meras formas de malabarismo vazios que, como se deu com as vanguardas ocidentais e suas ramificações nacionais, que se esgotaram, não obstante deixando profundas marcas que avançaram o processo de atualização da poesia brasileira contemporânea. Todas as vanguardas e movimentos de rupturas têm seu momento de fecundidade e de avanço no que tange às suas conquistas de modos de comunicação poética.
Fico, porém, feliz que, em Ondehumano, segunda obra de Liz Filho, haja tomado uma nova direção de práticas de realização poética que recapturam e adaptam o antigo renovando-o sempre através de um lirismo com o pé na modernidade da velha/nova poesia à procura da perpetuação e consolidação do verso rejuvenescido, revitalizado, inovador, reoxigenado e ao mesmo tempo servido por uma estética de comunicação lírica formando uma ponte entre o indivíduo e a sociedade, entre o indivíduo e a história humana, contemporâneo, exprimindo o hic et nunc deste tempo de todos nós.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Em BardoAmar existe uma unidade temática e uma unidade formal. Quer dizer, o livro é uno desde que sua compreensão dependa das partes que, em conjunto, o configuram como um todo unificado.
O tema, evidentemente, nele é o amor, porém não amor platônico, sublimado. Trata-se apenas do amor carnal, físico, sensual, avassalador, dionisíaco. Baco é sua referência principal, assim como o lexema “vinho” é sua obsessão neste livro cheio de surpresas e de indiscutível beleza, não só estética mas humana, não só humana, mas poética, e a poesia nele constitui forte leitmotif - razão de ser talvez do livro. Uma obra todo poesia, para resumir.
Se as duas primeiras partes do volume já insinuam sentimentos líricos, elas, no entanto se contaminam por vezes de um certo antilirismo, embora versem dominantemente sobre o amor, mas um amor mais regado a vinho e a erotismo. É de notar que os subtítulos das três partes abrangem, por sua vez, uma sequência cujo desfecho enunciativo se dá na terceira parte: “mas novo vinha mais.”
Tudo o que precede a terceira parte vai ter seu ponto alto de alcance lírico e estético exatamente nesta última parte. Parece que o poeta estava estrategicamente preparando o leitor para essa passagem inaugural de seu voo lírico num espaço poético no qual, o dueto, amor-poesia explode, por assim dizer, por todos os cantos tanto no espaço físico da página quanto sobretudo na estrutura dos poemas. Ao crítico seria difícil precisar onde o amor acaba e a poesia principia, porquanto nos poemas o amor canta a poesia e a poesia canta o amor. Estão entrelaçados. Não se partem, se unem. E, no saldo de julgamento da obra de estréia, saem vitoriosos o autor e sua poesia.