sexta-feira, 27 de abril de 2012

Um poema de Abram J. Ryam (1838-1886)











Better than gold



Better than grandeur, better than gold,

Than rank and titles a thousandfold

Is a healthy body and a mind at ease,

And a simple pleasures that always please.

A heart that can feel for another’s woes,

With sympathies large enough to enfold

All men as brothers, is better than gold.



Better than gold is a conscience clear,

Though toiling for bread in an humble sphere,

Double blessed with content and health

Untried by the lusts and cares of wealth.



Lowly living and lofty thought

May adorn and ennoble a poor man’s cot;

For mind and morals in nature’s plan

Are genuine tests for a gentleman.





Mais valioso do que ouro



Mais do que grandezas, do que ouro

Mill vezes mais do que patentes militares e títulos

É um corpo saudável numa mente tranquila,

Com prazeres frugais mas agradáveis sempre,

É um coração que as aflições  alheias sentir sabe

Com enorme compaixão para abarcar

Como irmãos todos os homens.



Um consciência sem jaça vale mais do que ouro

Ainda que pelo pão mourejando num ambiente humilde,

Contudo, pela alegria e saúde, duplamente abençoada

E infensa à luxúria e às preocupações com riquezas.



De um pobre uma casinha simplória

Engalanar e dignificar podem

Uma vida de apertos, mas de elevado pensamento,

Porquanto, nos desígnios da natureza, o espírito e a moral

De um verdadeiro gentleman são as mais lídimas provas.





                                                                                       (Trad. de Cunha e Silva Filho)





quarta-feira, 25 de abril de 2012

Paisagem, vida e linguagem em Enéas Athanázio: um leitura de O campo no coração (Final)







Cunha e Silva Filho







Os textos que, com criteriosa seleção e pela experiência de leitor de literatura, ousei incluir no que chamei de “Fronteira entre o conto e a crônica”, ou seja, “A casa fechada” e “Obstáculo inesperado ou o desafio de uma escada”, poderiam situar-se na verdade nessa fronteira, posto que reconheça quão vago, fluido ou mesmo confluente possa ser o esforço do analista ou crítico empreendido numa classificação genológica precisa.

À primeira vista, há um traço comum a ambos: o suspense, particularidade mais da índole do conto propriamente dito, mas, .à proporção que se vai desenvolvendo o ato da leitura, o relato vai desatando um pouco a sua natureza híbrida, do prisma de classificação genológica, quer no tema, quer na composição do texto. Desta forma, ao longo da minha análise, ainda que aponte para uma ou outra classificação, advirto o leitor de que o mencionado hibridismo genológico nos dois textos permanecerá como um desafio classificatório.

Na crônica/conto “A casa fechada,” uma habitação é envolvida por um halo de mistério. O narrador, em primeira pessoa, assim como o possível leitor, partilham desse mistério, assim como, no discurso narrativo, os “moradores vizinhos.” O mistério seria saber quem é o estranho morador da casa, um ermitão sombrio e arredio a qualquer contato com a vizinhança.

Esse personagem é tão o sombrio quanto a casa solitária, cuja característica principal é permanecer “fechada.”Ninguém, na vizinhança, sabe quem seja, Ele continua no seu isolamento de todos, incomunicável. Só num momento do texto, fica o narrador sabendo que o ermitão sai da casa à noite quase invisível. Nele tudo é soturno, indefinível. Porém, o silencioso e soturno ermitão, uma vez sai de casa. Seus trajes, como a noite são escuros. Cobre-lhe a cabeça uma “aba” de boné. Rápido, vai até a um orelhão e faz algumas ligações. Sua fala é baixa a fim de não ser inteligível para ninguém. Depois, vai a uma mercearia que já estava fechando. De volta, leva “ pequena sacola de compras.”

No relato há espaço, tempo, personagens, contudo a ideia de uma intriga não existe especificamente como num conto clássico de um Guy de Maupassant (1850-1893) nem tampouco poderia vincular o relato às peculiaridades estruturais de um Tchekhov (1860-1904), um desconstrutor de enredos e de linearidade narrativa. Portanto, no caso do texto em estudo, e dadas às particularidades de sua estrutura narrativa, me inclino a figurá-lo como um relato próprio do domínio da subjetividade da crônica. Outra marca do texto que poderia reforçar essa dimensão lírica que podemos desentranhar da linguagem do texto na descrição da paisagem e de tudo aquilo que constitui a natureza física, a localização dos objetos, o fluir do tempo, das estações, numa dinamismo e síntese mais apropriados à natureza da crônica, i.e., a introjeção do reino da subjetividade a partir mesmo da natureza do narrador em primeira pessoa, sem a intenção deliberada de construir um mundo do possível, que é o da criação literária, da ficção.

É evidente que o sentido do texto é mais na direção de convocar o leitor a apreciar uma fatia da vida de um personagem excêntrico contada em linguagem fluente, criativa, consentânea com o requisito essencial a uma crônica, que é transformar relatos sobre observações da vida, dos homens e da natureza em peças literária que, pelo seu teor de linguagem, poderão permanecer na literatura.

A circunstância de o autor/cronista trazer para o interior do enunciado citações de dois autores da literatura universal, Charles Dickens (1812—1870) e Fernando Pessoa (1888-1935) não é aleatória. A subjetividade, a forma pessoal de olhar para a existência e suas múltiplas motivações imprimem ao texto traços que mais se amoldam ao que teoricamente entendo por crônica. Essa subjetividade não vislumbra intenções de criar mundos, de instaurar realidades imaginárias com autonomia e status de ficcionalidade, as quais, de certa forma, parecem concorrer, por assim dizer, com o mundo empírico ou o mundo das referencialidades. A essência da crônica tem pé mais fincado na realidade, o que não significa que pode ultrapassá-la ou superá-la, em algumas situações, com elementos hauridos na imaginação. Daí o seu alegado hibridismo de forma literária, daí sua indetermiinação classificatória.

Vejamos, agora, a segunda crônica/conto, “Obstáculo inesperado ou o desafio de uma escada.”Neste texto, existe um pormenor que logo salta à vista: o narrador utiliza um verbo na primeira pessoa do plural, a forma verbal “entramos” (primeira linha do texto). Ora, se aí se inscreve no plural pressupõe-se que ele se acompanha de mais alguém.. Até ao final do relato não há indicações de quem seja, ou quais são os outros possíveis personagens que, pela circunstância da história, deveriam ser a mulher e/ou filhos. O texto porém, silencia esta dimensão. Acredito que seria proposital por parte do autor/narrador cronista.

O narrador é alguém que está entrando numa “pequena cidade” de nome Planalto. Era tarde da noite e fazia frio intenso. O narrador tinha reserva num hotel, mas não havia indicação de endereço para localizá-lo. A cidade era completo silêncio e escuridão. Como encontrar o hotel? Recorreu à ideia de um hospital. Neste tudo estava fechado. Voltou ao carro e percebeu uma mulher com uma criança. Indagou-lhe sobre o local do hotel e ela lhe respondeu que distava “uns três quarteirões” e ficava em cima de um posto”. Lá chegou, mas o encontrou na escuridão. Numa casa ao lado, havia um casal que o observava. Disseram, da janela, como o viajante chegaria ao hotel: passar por um posto e dobrar à direita.Iria encontra uma “portinha estreita com campainha. Seria a entrada do hotel.

Lá chegou. Mas, como encontrar a campainha se tudo estava breu? Voltou ao carro e focou os faróis com intensidade. Conseguiu assim ver a campainha. Tocou-a duas vezes e de uma janela surgiu uma “cabeça desgrenhada” de um homem O viajante gritou-lhe que tinha reserva para aquela noite. O viajante percebeu movimentos lá no alto da janela e o homem lhe dissera onde estacionar o carro e como poderia subir até ao quarto do hotel por uma escada.O viajante retirou as malas e toa a bagagem que trazia. Mas, onde estava a escada que não se via? Com esforço a viu. Era um escada espiralada, estreita e escura, difícil de subir com as malas. Como fazer senão subir? A única solução era primeiro escalar os degraus colocando a mala “três degraus acima” e, em seguida, subir, já que, por ser estreita, não seria possível subir junto com a mala. Teve que fazer esta aventura três vezes até levar tudo para o quarto. Finalmente, se em contra no quarto livre da friagem da cidade .

No dia seguinte, teve que descer a escada de costas, ou “de ré”, como diz o narrador, invertendo, assim, as ações de subida, a fim de não danificar a bagagem. Esfalfado, “suado” e aborrecido, volta no carro com destino a outras plagas.

O texto valoriza o dinamismo das ações dos personagens.No entanto, ficam no ar algumas perguntas do ponto de vista de sua estrutura narrativa. Quem é o personagem que acompanha o narrador-viajante? O que este fizera no hotel entre a noite de entrada no quarto e a manhã seguinte? Por que tudo no texto tem uma atmosfera abafada, pesada, misteriosa até? Esses vazios, a meu ver, são estrategicamente provocadas pelo autor. Não há respostas categóricas para eles. Caberia ao leitor deslindá-las, ele que, em termos atuais, se vem tornando cada vez mais um elo colaborador na recepção do texto literário.

Por algumas características, o texto pode se inserir tanto na classificação da crônica, como no conto. Sendo uma forma “híbrida” segundo ensina Massaud Moisés ( Dicionário de termos literários. 6 ed. São Paulo: Cultrix, p. 131-133, 1992), o texto em questão seria uma crônica se o consideramos como uma narrativa subjetiva, pessoal, valendo-se da “recriação da realidade,” que é a passagem do dado empírico para o do imaginário, conforme antes ressaltei.

Por outro lado, pela secura e objetividade de cunho realista,, pelos elementos constituintes da narrativa – tempo e espaço delimitados, personagem explícitos e personagens implícitos ou fortuitos, por contar um fato ocorrido e seus percalços, por seus vazios relativos a dados sobre personagens, o texto poderia da mesma forma ser rotulado de conto, não de um conto clássico, linear, explícito, fácil de ser reproduzido (R.REIS, Luzia de Maria. O que é conto. 3 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, Coleção Primeiros Passos, 135), mas de um conto com foros de modernidade, inclusive pela utilização de uma enunciação de natureza metaficcional, segundo já salientei neste estudo.

Deste modo, por sua indeterminação genológica, argumento que bem poderia se estender a alguns textos que classifiquei como contos, de vez que entre os dois gêneros existe confluência e não divisão matematicamente compartimentada. Por outro lado, este sempre foi o objetivo principal de uma abordagem ensaística que, como se sabe, tem sempre um caráter aproximativo, um a tentativa, entre outras, de lidar com o fenômeno literário, sem pretensões de todo conclusivas. Longe disso.

Certa vez, o crítico Antonio Candido, discutindo alguns conceitos da teoria literária, a propósito de uma autor brasileiro, declarou serem alguns elementos da narrativa meras terminologias, muitas vezes menos relevantes do que a real grandeza da criação literária, ficcional, que é muita mais ampla no seu alcance.

O ensaio, em geral, nunca almejou ser uma experiência de tese meramente científica ou estatística. O ensaio e a arte literária não podem perder um componente intrínseco: a sua dimensão estética, seus valores expressivos, semânticos, de construção de linguagem, de composição, de técnicas e estratégias conscientes de sua aplicação e de seus efeitos sobre o leitor, enfim, de sua retórica ficcional.

O volume de contos sob o título O campo no coração não somente em seus pontos altos como nas suas realizações menos ambiciosas, são, a meu ver, e pelo que este estudo suscitou, a resposta do autor a todas as exigências que a Arte lhe faz e lhe cobra em forma de criação literária. Tanto para os textos identificados como contos quanto para os que Machado de Assis conceituou como “a arte do útil e do fútil.” Enéas Athanázio preferiu servir-se, na crônica, da opção pelo “útil.” E não perdeu por isso.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Paisagem, vida e linguagem em Enéas Athanázio: uma lkeitura de O campo no coração (4)




Vejamos, agora, conforme anunciei neste estudo linhas atrás, um resumo-temático de cada crônica do volume em estudo:

a) Um advogado, por dever de ofício, visita um frigorífico e qual não é sua surpresa quando se defronta com uma cena, segundo ele, bárbara, desumana, uma cena que jamais gostaria de ver de novo e que o impediu, durante muito tempo, de comer frango ou qualquer ave : o modo como os frangos eram abatidos por meios mecânicos, “...uma espécie de navalha de lâmina larga e afiadíssima que ia decepando aqueles pescoços de aves...” Para quem ali trabalhava não era mais do que um ato rotineiro (crônica “A degola”, p. 20);
b) Um narrador recorda as peripécias de um ladrão que se tornou célebre por furtar sem nunca ser flagrante. (crônica “O misterioso João da Banha”);
c) A comovente história de um cãozinho de rua maltratado e amedrontado encontrado por um jovem que dele cuidou carinhosamente. Com a morte do jovem pouco tempo depois, cãozinho logo morreu provavelmente de saudade de quem tanto se importou com ele (crônica “Pulga”);
d) Um advogado, em viagem para tratar de assunto de sua área, se encontra numa cidade do Paraná. Encontra um escrivão bairrista para quem a cidade era u exemplo de progresso. Ironicamente, o advogado percebe que, para voltar no mesmo dia, não encontra condução. O lugar não era assim para ele tão “progressista. Termina por aceitar voltar para casa de carona num caminhão que lhe arranjaram (crônica “Progresso trepidante”);
e) Um curioso diálogo entre um personagem-narrador de primeira pessoa, em viagem de negócio, e um catador de lixo sem teto e vivendo em trema privação em face do surgimento de novos e números catadores de lixo.O velho catador lhe pede algum dinheiro e o personagem o atende, porém não o atende quando o catador lhe pede um lugar para dormir. No desfecho da crônica se econtra, a meu ver, um dos sentidos mais profundos do relato: nossa costumeira incapacidade de sermos humanos por completo ( crônica “Moro onde não mora ninguém”). Vê-se que o título da crônica é o mesmo de uma canção popular do compositor e cantor Agepê (1942-1995). Só que na canção, o personagem pobre tem sua casinha num morro, ao contrário do catador de lixo da crônica de Ênea Athanázio, que, por casa, só tem a rua.
f) Um personagem de nome altissonante, desses nomes cujos portadores deveriam ser dignos de se tornar famosos como é comum encontrar-se na escolha que pais de famílias dão a seus filhos, muitas vezes nomes de figuras históricas nacionais ou estrangeiras que, muitas vezes, por serem famosas pelo lado da crueldade, lhes vão causar sérios constrangimento sociais pelo resto da vida, como Mussolini, Adolf Hitler, Nero, Calígula etc. No caso da crônica o nome do personagem, Júlio César de Oliveira e Cruz, seria um desses nomes destinados a vitoriosos na vida.Não foi o caso do personagem da crônica que foi perdendo parte do nome cada vez que, em carta, pedia ao cartório de sua cidade uma certidão para sua matrícula na série seguinte. Sentiu-se mesmo um ser sem identidade. Ora, no último pedido para se fazer a correção, verificou que ainda estava mais errado o nome. O jeito era voltar à sua cidade e tratar do caso pessoalmente. O que o acontecia era o seguinte. O antigo tabelião tinha um estranho costume de anotar numa das paredes, conforme afirmara a filha dele aos risos. Isso o velho tabelião fez até se aposentar, confirmou ela. Antes de ela assumir a direção do cartório, um interino substituíra o pai dela e a primeira coisa que fez foi mandar pintar a larga parede branca onde estavam escritos os nomes de antigas anotações para certidões de nascimento, casamentos e óbitos. O que era “engraçado para a filha do tabelião era justamente flagelo para o jovem de nome pomposo. Não tendo o cartório mais os registros de tanta gente, era o própria pai que de memória ditava à filha o nome da pessoas que necessitavam de uma certidão. A desfaçatez dela era tanta que afirmara ter sido falha de memória do pai para lembrar do nome todo do jovem. A ironia expressa na crônica se dirige à incompetência dos serviços públicos e da burocracia brasileira (crônica O nome, Ah!, O nome!”);
g) Um narrador, em primeira pessoa, relata uma história ouvida de um amigo, um verdadeiro repositório de histórias, Natan Zilef, de apelido Beduíno, muitas delas, segundo ele, criadas pela sua “portentosa imaginação”. O relato faz referência a um colega daquele contador de histórias que, ao contrário de tantos outras colegas dele, com os quais manteve sempre laços de amizade, desapareceu na multidão. Era um jovem de bom caráter, prestativo até ao sacrifício pessoa, além de ser excelente aluno de um internato do qual Natan era também aluno. Não houve tentativa que conseguisse localizar o antigo colega . Ninguém podia dizer o que fim levara o aplicado aluno. Certa feita, anos depois, indo à capital e hospedando-se num hotel, no saguão pegou um jornal para ler e deu com a notícia de um faquir que na cidade se encontrava passando dias e dias “sem comer e beber” numa exposição publica, Sem outro coisa a fazer, decidiu-se a fazer uma visita ao faquir. Qual não foi seu espanto quando, observando bem o semblante do faquir, descobriu que se tratava do antigo e competente colega do internato que havia sumido do convívio de todos. Notou ainda que o faquir, com um ar de alegria, o reconhecera também. Perplexo com o que a vida surpreendia nas suas malhas de caminhos e descaminhos como aquele colega, que tudo tinha para ser uma pessoa bem- realizada, graças a seus dotes e caráter, chegara àquela situação. (crônica “O colega desaparecido”);
h) Um narrador-personagem vai morar por algum tempo uma cidade e, de repente, percebe que tem a sensação de estar sendo vigiado por alguém ou alguma coisa. Não atinha com o que seja. Pergunta a outras pessoas e todos lhe dão uma explicação diferente para o caso. Instaura-se por completo o mistério. O estranho era que a sensação de estar sendo observado acabava logo que ele saía dos marcos da cidade. Uma noite, o narrador e sua família foram dar um passeio pela cidade. Era perto do Natal. A cidade estava iluminada. Conheceram diferentes locais. Ao subirem um morro da cidade, onde havia uma igreja protestante, percebeu um “reflexo de iluminação e descobriu afinal, o enigma do mistério: no centro da cidade, vista do alto, posicionava-se sobranceira a catedral com duas torres enormes parecendo cortar o céu. Ora, vistas dali, duas luzes vermelhas vindo das torres, semelhavam dois “olhos vigilantes,” os quais, para o narrador, ainda lhe pareciam as amedrontadoras “teletelas de George Orwell,” célebre e controvertido escritor inglês, romancista, crítico e panfletário nascido, porém, na Índia, em 1903 e falecido em 1950, autor dos conhecidos Animal Farm (1945) e 1984 ( 1949). . As telelas, em inglês telescreen, de que o narrador fala na crônica aludem a um dos aspectos relevantes da ficção de George Orwell no romance 1984, ou seja, representam a força da telecomunicação empregando uma televisão e uma câmara, instaladas em cada residência, a fim de o governo, o Big Brother, poder se comunicar com a comunidade e, por outro lado, estar vigiando os cidadãos e controlá-los. (crônica “Olhos vigilantes”);
i) Um relato de um jovem de comportamento estranho, com feições germânicas, alto, louro, sempre na escola, um internato, estava isolado, mesmo no recreio. Seu apelido, por seu físico, era Girafa. Figura misteriosa, ninguém sabia ao certo em que série estava, mas concluía-se -se que provavelmente era aluno das séries mais adiantadas. Anos depois, o narrador o encontrara. Estava bem mais velho. O narrador, acompanhado de uma pessoa, perguntou se ela sabia por acaso quem era aquele ex-aluno do velho internato. Foi então que esclareceu o mistério: Girafa foi um aluno que mais tempo passou pela escola, pois demorava três ou quatro anos numa mesma série (crônica “Girafa”);
j) O comovente relato histórico de uma bela e destemida jovem que desejava ser combatente, em igualdade de condições com os soldados, na Guerra do Paraguai. Seu nome: Jovita. À semelhança, mutatis mutandi de Santa Joana d’Arc, a “donzela de Orléans, combatente na Guerra dos Cem Anos, Jovita foi vítima de duas decepções dilacerantes, ser impedida de enfileirar-se como combatente e ser vítima da ilusão de ter sido amada por um engenheiro inglês que conhecera no Rio de Janeiro e que a deixara para voltar à Inglaterra( crônica Os desencantos de Jovita”). (Continua)

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Paisagem, vida e linguagem em Enéas Athanázio: um leitura de O campo no coração (3)





Os demais contos da coletânea retratam situações ora dramáticas, ora humorísticas, ora irônicas da condição humana. O espectro engloba igualmente histórias que retomam alguns ângulos que não aparecem no primeiro e derradeiro contos. Desta maneira, dois outros contos se inserem no mesmo espaço regional daqueles contos. Aludo, primeiro, ao conto “Promessa vã e mirabolante”, com enredo em torno da influência do fazendeiro Nhôr Pré sobre questões de eleição. Em seguida, ao conto “O destino da “Primavera,” que explora a decadência e ruína da fazenda homônima, com a dispersão, para a felicidade ou o infortúnio, de alguns personagens conhecidos, como o fiel capataz Aristides, NHõr Pré, entre outros.
Grande parte desse conjunto de contos persegue temas ligados à vida de pequenas cidades interioranas de Santa Catarina ou até do Paraná. São contos mais centrados nos aspectos do enredo (plot), configurando uma diversidade de temas que a seguir relacionamos:

a) O cotidiano das pessoas e seus problemas pessoais (conto O despejo”);
b) Interesses e ambição em casamento sem amor (conto “ Casamento por amor”);
c) A morte de uma velha viúva solitária cercada de mistérios envolvendo heranças (conto “O enterro da velha senhora”);
d) A morte inesperada de um passageiro de ônibus, lembrando, de longe, o clima tragicômico do personagem central de Quincas Berro d’Água, de Jorge Amado (1912-2001), conto “Incidente de percurso”);
e) A curiosa história de um burrico que, se supunha, tinha dor de cabeça ( conto Cefaleia muar”);
f) A influência de fazendeiros na política interiorana, que guarda alguma semelhança com o coronelismo nordestino (conto “Promessa vã e mirabolante”);
g) Decadência econômica, física e moral de uma fazendeiro ( conto “O destino da “Primavera”);
h) A estagnação de um próspero e feliz povoado ao se transformar em
município ( conto “O maior do mundo”).

Este conjunto de contos expõe toda a perícia do autor em selecionar fatias da vida e do homem do campo que propiciem ao leitor conhecer (e aprender) aspectos da vida rural e ao mesmo tempo poder sobre ele exercitar sua capacidade crítica além do prazer de ler histórias escritas com aquela fluência de uma linguagem de sabor local e escrita com a leveza de um estilo personalíssimo e atual. Não há na sua linguagem intenções de experimentalismos tão em voga em alguns ficcionistas contemporâneos.
Esta não é, me parece, a marca deste escritor. Seu intento estilístico trai muito a herança dos autores que, sem as ousadias e pirotecnias de elaboração ficcional, se distinguem pelo uso correto e dúctil da língua literária, porém com o pé na atualidade e com boa carga comunicativa, aliando a tradição literária à objetividade necessária à natureza de cada narrativa.
Neste ponto, o contista, tanto quanto o cronista, sabe lidar com a clareza, seja descrevendo com mão de mestre a paisagem física e o drama humano, seja narrando montando com espontaneidade os pólos da enunciação e do enunciado, no diálogo vivo e natural e no relato indireto entre a habilidade de fundir narrador em primeira pessoa ou terceira com o domínio pleno do discurso narrativo.
Em outras palavras, o contista ainda por vezes se atira ao trabalho de recorrer a procedimentos de narrar com consciência metaficcional, conforme fazem alguns autores contemporâneos e com o fizera no seu tempo o nosso Machado de Assis(1839-1908), quer dizer, rompendo com o ilusionismo do Realismo e do Naturalismo. Para somente ilustrar este caso, veja-se a enunciação exclamativa, no final da crônica “Obstáculo inesperado ou o desafio de uma escada, explicitamente de natureza metaficcional, ou em outra instância, no conto “O enterro da velha senhora”, no seu último parágrafo:

Como nas novelas, porem, os resultados só seriam conhecidos em capítulos, de forma que o eventual leitor terá que se encher de paciência e esperar. Não tardarão a brilhar as luzes da verdade e aqui estaremos para registrá-las”(p. .28).


Conhecendo mais um pouco da biografia do autor, embora isso seja um pormenor extrínseco no campo estritamente literário,não deixa esta particularidade referencial de contribuir e mesmo arejar a compreensão da função do escritor.
Todas as crônicas do livro agregam diversos temas e situações, segundo mais adiante mostrarei, ao abordar, em resumo, o assunto de cada uma, cujo fito é despertar alguma curiosidade no leitor levando-o a compartilhar com o narrador ( que bem poderia ser o próprio autor) as experiências e reações particulares ou pessoais.
O cronista, como qualquer autor em gênero semelhante, é sempre alguém que tem a vocação seletiva a fim de escolher um fato, um acontecimento, ou mesmo uma percepção, real ou imaginária, que lhe aguce o interesse ou lhe caia como motivação provocadora do ato da criação literária.Ou seja, uma vontade inescapável de escrever numa reação intelectual de natureza - diria – epifânica.
Misturando suas próprias vivências, sua cultura, suas idiossincrasias, suas vivências, o cronista está atento a todos os apelos ou sinais da vida. Por isso, seu leque de temas pode se dirigir a múltiplas possibilidades de apreensão do drama humano considerado na sua totalidade e variabilidade, com cores diferentes ou matizadas prontas a serem representações da existência, ora levando o cronista a este ou àquele acontecimentos, fato, circunstância, em tempo determinado ou vago, traduzidos em discurso lírico, trágico, humorístico hilariante, tragicômico, dramático, de fundo social, crítico, de denúncia, de vontade de se expor, num desnudamento sem amarras, com preconceitos ou sem preconceitos, com visões que comunguem com outrem, ou que são dissonantes de outrem,. Não importam as opções do cronista, ele é senhor de sua própria criação e de sua criatura.
No caso de Enéas Athanázio, e pelos argumentos que formulei no parágrafo anterior, suas crônicas são interessantes, curiosas, irônicas, ilustrativas, articuladas em linguagem apropriada ao gênero, mas que, na sua generalidade, denunciam o estilo de linguagem do autor, desprovido um pouco dos procedimentos utilizados nos contos mais bem planejados e com maior densidade temático-expressiva. (Continua).

terça-feira, 17 de abril de 2012

Paisagem, vida e linguagem em Enéas Athanázio: uma leitura de O campo no coração (2)





Ressalte-se que, igualmente no derradeiro conto, avulta a força da história proveniente dos recursos do discurso narrativo, notadamente os de natureza léxica, ortoépica e prosódica.
A trama é simples. Um capaz é chamado pelo fazendeiro Elísio Leite Preto, alcunhado Nhôr Pré, a fim de cumprir uma missão sigilosa e arriscada - a de chegar até ao terreno de Jardelino Procópio, compadre de fazendeiro e lhe “levar” uma “reconvença”, ou seja, uma mensagem , uma espécie de plano de contra-ataque, naturalmente com recomendações para que o compadre não fosse vítima da surpresa de uma cilada arquitetada por inimigos e por motivos políticos. Nhôr Pré, antes, numa viagem à cidade, havia colhido informações de que seu compadre estava em perigo de vida, sobretudo porque, segundo afirmação de Nhôr Pré, Jardelino era pessoa boa e sem maldade na cabeça. Note-se que, no discurso de Nhôr Pré, discurso conduzido pelo narrador-protagonista, Aristides, há um trecho que funciona como índice do que realmente ocorreria com o amigo e compadre: “Coisa de violência, incêndio, não sei bem, mas coisa séria, intriga de políticos.” (grifo meu , p. 7)..
Entretanto, a grande sacada deste conto, segundo já mencionei, é a linguagem literária assumindo, em toda a extensão da trama, um lugar sobranceiro, decisivo no desenrolar da narrativa. A viagem de Aristides, do lugar de partido até as terras de Jardelino Procópio, ou Siô Jardo, reveste mesmo características de autêntico personagem no conto, porquanto é a partir do discurso do protagonista, dos obstáculos por ele encontrado durante o trajeto, junto de seu cão Jasper, seu fiel escudeiro, que todo o poder da narração toma vulto e cresce em importância do prisma artístico, seja na descrição da paisagem estuante, seja nas reflexões de Aristides, no seu solitário monólogo
É aqui precisamente que o discurso do narrador-protagonista pôe em cena o seu fulgor, a sua variedade na descrição da flora, fauna, da terra, da mata, dos rios, dos campos. Esta maestria na descrição engolfa o leitor no espaço do enunciado, transfundindo tudo em visualização de cores, de formas, de tons com o objetivo de dar verossimilhança à narração e ao dinamismo dos passos do personagem em direção ao lugar de destino.
Tal descrição só se concretiza por força do domínio da linguagem, da combinação entre a mímesis prosódica, ortoépica e léxica dos regionalismos locais à exuberância, quase excessiva - poder-se-ia afirmar - desse componentes linguísticos inseridos no discurso narrativo, a ponto mesmo de nos dar a sensação de um quase dialeto se consideramos o texto na sua inteireza. São inúmeros os vocábulos que assinalei durante a leitura, praticamente quase todos desconhecidos do meu repertório passivo da língua portuguesa. No corpo da narrativa constituem mesmo uma espécie de ruído na comunicação caso não esteja o leitor acompanhado de um bom dicionário de expressões regionalistas de Santa Catarina, ou mesmo de estados vizinhos do Sul do país. Não são somente substantivos, mas adjetivos e verbos.
Poderia aqui falar, no que tange ao uso da linguagem regional no conto, num avanço do autor em relação a escritores regionalistas do Sul, como Valdomiro Silveira (1873-1941)) e Simões Lopes Neto(1865-1916), este último, por sinal, citado em epígrafe (as epígrafes dizem muito das preferências de um autor) a uma das crônicas, “A degola,” ficcionistas que, no período Pré-Modernista, já incorporavam no discurso narrativo o uso dialetal das formas de linguagem. Ou seja, poder-se-ia falar com respeito a Enéas Athanázio, em ficcionista que, no conto em estudo, já liberta o texto sequestrado do texto sequestrador? ( Schüller, Donald. Teoria do romance. São Paulo: Ática, 1989). Acredito que sim, pois Aristides, o narrador-protagonista, toma as rédeas da linguagem da sua condição cultural e daí eu haver acentuado que, neste primeiro conto do livro, a linguagem literária joga um papel privilegiado na urdidura do conto.
Do discurso do narrador é que extraímos a riqueza das imagens naturais de uma descrição resultante sem dúvida da íntima familiaridade do autor com o campo, o interior da sua região de origem e das raízes de sua alma nutrida memorialisticamente daquele substrato intacto, sedimentado na memória da infância e reabsorvido na vida adulta em forma de pintura da memória, tal como indica o próprio o título do livro, retirado da última frase do derradeiro conto: “Tinha o campo no coração” (p.57).
Ensaísta como é, o autor sabe bem dosar o desenvolvimento de suas histórias, em geral curtas, com exceção do conto que estou comentando, que perfaz sete páginas, seguido do último, que só tem três, mas, por outro lado, pela brevidade dos textos, os demais não passam de uma página e meia, atingindo em apenas uma página, um mini-conto, portanto, de título “Despejo.” Desta forma, a sua arte de contar bem se enquadraria nos moldes da tão falada brevidade da short story.
Assim como em algumas crônicas do livro, que, mais adiante, comentarei, os contos guardam, via de regra, um insuspeitado desenlace. Apesar do índice apontado para uma possível tragédia no desfecho do conto em questão, à medida em que a história se vai aproximando do final, não deixa de surpreender o leitor, pelo clima de tristeza e esforço inútil despendido pelo narrador-protagonista, aquela cena fatídica do destino que teve o velho amigo e compadre de Nhôr Pré. Todo o clima do conto se resume na enunciação final: “Cheguei tarde demais.””(p.13)
O conto “O retorno” (p.55-57), conforme anteriormente referi, retoma a paisagem do campo, das coxilhas, do interior.Bem mais curto, a história repete o lugar já conhecido da fazenda “Primavera”. O tempo da narrativa adiantou-se. Aristides, o capataz, envelhecera um pouco e a narrativa ocorre no ponto em que um jovem membro da família de Nhôr Pré se encontra num trem em direção à sua terra natal.
O narrador, em terceira pessoa, descreve, pela perspectiva do jovem, a viagem de trem entrecortada de finas observações ao que se passava dentro e fora do trem: pessoas, paisagens, objetos, enfim, toda a movimentação e ao dinamismo de uma viagem dessa natureza.
Aguarda o jovem o velho e conhecido capataz, sempre disposto a servir aquela família de fazendeiros. Por três gerações assim havia feito. Chegando à Vila, o jovem, cujo nome não nos é revelado pelo narrador, logo tem um desejo: o de montar o seu cavalo preferido, de nome Luar de Prata. Em seguida, ele, Aristides e o fiel cão Jasper partiam a caminho da “Fazenda.”
O valor deste conto patenteia-se num sentido único: as recordações múltiplas de um personagem que, tendo se afastado dos campos, das coxilhas, enfim de todo o ambiente rústico-rural e ao mesmo tempo belo daquelas paisagens, ergue seu olhar para tudo o que vivera na infância, em todos os sentidos, no momento em que agora se encontra na fase da mocidade
Este é o sentido que prevalece como fulcro de interesse do conto e como a melhor forma de compreender o que realmente perdera, ou seja, sua verdadeira vocação de campeiro, que se agasalhava no mais recôndito do seu espírito. Este conto, como se vê, retoma um velho tema na literatura, a questão entre o campo e a cidade, tema que tem se manifestado tanto na ficção quanto na poesia, com são exemplos marcantes, para ficarmos na literatura portuguesa, Eça de Queirós (1845-1900) na ficção e Cesário Verde (1855-1886), na poesia.
O comportamento da linguagem, porém, neste derradeiro conto da coletânea, e em virtude da natureza do seu narrador e do ponto de vista do personagem-chave, não se apresenta, contudo, com a mesma intensidade e vigor da linguagem do conto inaugural. Não que a linguagem seja aqui menos literária, menos cuidada do prisma artístico.
O contista se revela mais forte, mais vigoroso num universo que dele exija maior inventividade, ousadia, no vocabulário, na sintaxe, no discurso narrativo. Pelo visto, a criação literária ganha maior desenvoltura sempre que o autor faz mobilizar todos os seus recursos expressivos e estilísticos combinando novas formas e técnicas no domínio da linguagem com o jogo de uma trama bem articulada ou até mesmo sem trama aparente. (Continua)

domingo, 15 de abril de 2012

Paisagem, vida e linguagem em Enéas Athanázio: uma leitura de O campo no coração (1)



Cunha e Silva Filho


O escritor de Santa Catarina, Enéas Athanázio, reuniu vinte e dois textos ficcionais no seu mais recente livro, O campo no coração (Balneário Camboriú, SC.: Editora Minarete, 2012, 59 p.).
Pelos dados obtidos em livros e na Internet, assim como em pesquisas de blogs e sites de literatura, vejo que algum material reunido no livro já tinha sido editado virtualmente ou talvez por algum veículo impresso. Não sei se todos os textos selecionados o foram igualmente. Porém, o que me interessa criticamente é o resultado da seleção feita pelo autor.O que se via levar em consideração para análise vem a ser esse conjunto a que o autor deu forma e consistência, considerando temas e formas de composição narrativa.
Escritor com uma vasta e variada bagagem em sua produção literária, compreendendo os gêneros do conto, novela, crônica, ensaio e pesquisa histórica, Enéas Athanázio é um autor que, me perdoe o leitor pelo lugar-comum, dispensa apresentação, inclusive no estado do Piauí, onde é conhecido e estimado, tendo mesmo sido agraciado com o título de “Cidadão Teresinense” e bem assim se tornado sócio-correspondente da Academia Piauiense de Letras.

Nada disso lhe foi outorgado gratuitamente, mas sim por merecimento, quer pela atenção que sempre deu à literatura piauiense, quer pelo seu desvelo com os valores culturais daquele estado nordestino. Seu raio de ação intelectual se faz assim bem presente na vida literária piauiense, escrevendo sobre autores piauiense e até mesmo sobre questões que dele mereçam uma palavra de apoio e solidariedade, como é exemplo o belíssimo artigo que escreveu em defesa da cidade de Amarante, partilhando do mesmo sentimento de repúdio contra aqueles que desejam/desejavam destruir essa cidade de inegável valor histórico-literário-cultural, berço do maior poeta canônico do Piauí, Da Costa e Silva (1885-1950) e de outros grandes intelectuais ali nascidos.

O projeto oficial seria destruir Amarante mergulhando-a nas águas de uma usina hidroelétrica desnecessária, sem respeitar a vontade soberana de seus habitantes.
Uma coincidência me fez aproximar-me do autor. Quis o destino – segundo diria um escritor – que o filho repetisse o mesmo feito paterno. Nos anos oitenta, meu pai escreveu um artigo (hoje diria resenha) sobre um livro de Athanázio, O mulato de Todos os Santos (Curitiba: Gráfica Editora Veja, 1982, ensaios acerca de Lima Barreto). Agora, o filho encontra-se na mesma posição e em campo intelectual igual, ou seja, tecendo opinião apreciativa sobre o mesmo autor. Mero acaso ou motivos que estão além de nossas possibilidades de entendimento?
Dos textos que compõem O campo no coração, empregando o termo “texto” naquela acepção que a teoria literária define qualquer peça literária prestes a ser objeto de uma análise ou crítica (GRAY, Martin. A dictionary of literay terms. 2nd. edition. Essex, England: Longman York Press,1992, p. 287), diria que dez se ajustariam na categoria do conto, enquanto que os demais se distribuiriam assim: dez textos classificaria como crônicas e dois se posicionariam na fronteira entre o conto e a crônica. Desta forma, esta divisão se apresenta como segue:

1) Contos: “A reconvença” (p.7-13), “Promessa vã e mirabolante” (p.15-16) , “O destino da Primavera” (p.17-18), “Casamento por amor” (p. 21-22), “ O maior do mundo” (23-24), “O enterro da velha senhora (p.27-28), “Cefaleia muar” (p.29-30), “Despejo” (p. 41), “Incidente de percurso (p. 45-46), “O retorno (p.55-57) ;
2) Crônica: “A degola” (p. 19-2), “O misterioso João da Banha” (p. 25-26), “ Progresso trepidante” (p.31-32), “Moro onde não mora ninguém” (p.33-34), “O nome ah! O nome! (p.35-36), “O colega desaparecido” (p.37-38) “Girafa” (p.39-40), “Olhos vigilantes” (p. 47-48); “Pulga” (p.51-52), “Os desencantos de Jovita (p.53-54).
3) Fronteira entre a crônica e o conto: “A casa fechada” (p.43-44), ‘Obstáculo inesperado ou o desafio de uma escada” (p. 49-50).

À crítica releva lidar com uma função básica, a síntese e, como tal, pretendo desenvolver alguns comentários analíticos dignos de observação no tocante aos meios de expressão literária e de visão do autor tendo como objeto os textos referidos acima.
Sendo assim, vejo como dois pontos altos da ficção de Enéas Athanázio em O campo no coração, os contos “A reconvença”, o conto inaugural da coletânea e “Retorno”, o derradeiro do volume.
A leitura dos dois contos referidos, principalmente, a do primeiro, “Reconvença”, de imediato desvela as virtudes estilísticas do autor. Nele desponta como componente narrativo e traço dominante a atenção propiciada à linguagem, i.e., o conto prende a nossa curiosidade justamente pelo que o torna um texto esteticamente bem realizado e, no processo de sua escrita, desempenha um papel saliente e decisivo a sua natureza metalinguísitca. A função metalinguística o absorve por completo e por isso provoca no leitor atento um estranhamento, um choque na leitura voltado para as virtualidades da linguagem-objeto.
O último conto da coletânea, “Retorno”, repete em menor intensidade, as qualidades do primeiro conto. Retoma o mesmo tema, o mesmo espaço geográfico, assim como faz reaparecer o mesmo personagem, o capataz Aristides, narrador-protagonista no primeiro conto e, agora, personagem secundário, acompanhado sempre do cachorro Jasper vivendo um tempo de narrativa ulterior. (continua)

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Crime de Estado



Cunha e Silva Filho


Na tevê ouço a voz de um repórter informando a tragédia de um filho da Hélade, um senhor aposentado. Nem me dei conta do seu nome. Pouco importa saber desse dado biográfico. É um grego comum, do povo, daquele mesmo tipo de um velho grego que conheci na Vila da Penha, o qual ficava muito contente quando lhe dizia que, num livro (livro emprestado a alguém e não devolvido, ou seja, livro perdido) de linguística de um autor americano, encontrara eu alguns diálogos apresentando de um lado da página conversações em grego moderno com alfabeto latino, tendo da outra metade da página a tradução em inglês. Eram temas do dia a dia.
Mais de uma vez fora à casa dele, conversar e aproveitar para aprender algumas frases básicas, por exemplo, cumprimentos: “Kalimeras sas, Kalisperas sas, kalinikta sas!” Via a alegria estampada no semblante dele toda vez que eu repetia acertadamente a frase em grego. Julgo que chegara ao Brasil no fim da Segunda Guerra e aqui se casou com um brasileira e formara família. Era um homem inteligente, amistoso que sentia orgulho de sua nacionalidade.Falava português com fluência, mas lhe notava um leve sotaque. Tinha estatura mediana. Estava entrosado com os modos brasileiros e cariocas de viver. Não me lembro de sua profissão.
Fizemos uma certa amizade, sem intimidades. Me lembro de um detalhe. Uma de suas filhas fora estudar grego na Faculdade de Letras da UFRJ. Perdi contato com a sua família, Mais tarde, quando não mais morava perto do velho grego, me contaram que ele havia falecido.
Mas, volto ao início desta crônica. O senhor aposentado suicidou-se hoje ou ontem, não sei ao certo, porque lhe subtraíram parte dos salário de aposentado que, segundo ele, lhe deixava, na velhice cansada de anos de trabalho, em condições de penúria. Não sei se tinha família. Porém, é bem provável que a tivesse.
A Grécia, para atender às exigências de ajuda da União Europeia, tem imposto severo aperto financeiro aos cidadãos gregos. O governo determina que os salários da população sejam diminuídos e, absurdamente, estabelece que impostos sejam aumentados assim como o custo de vida. É uma contradição inominável, injusta, criminosa. Não é pelo desejo e culpa do povo que a situação financeira do governo chegou à bancarrota. O endividamento da Grécia, como de outros países que compõem a União Europeia, se deve a razões de gastos excessivos da parte do Estado, à incompetência de seus dirigentes e provavelmente à corrupção – essa praga tão disseminada no mundo hoje mais do que antigamente. Não me venham economistas dizer que a grave situação de alguns países europeus tenha sido criado pelos minguados salários de barnabés ou mesmo da população em geral. A gastança se origina muitas vezes mais das más administrações, das aventuras financeiras de natureza especulatória, dos investimentos que só visam ao lucro de endinheirados do mundo econômico fruto - é bom que se saliente sempre - da globalização neoliberal, que dá mais peso aos chamados investimentos de Bolsas de Valores instituidoras do lucro fácil, da usura galopante, da alta burguesia mundial cuja diferença entre seus seguidores tem como diferença apenas a língua de cada país.
Nos EUA, na Europa, em alguns países ricos em petróleo, até na China comunista mas capitalista nas suas expansões de exportação de produtos para outros países, inclusive para o nosso, esses Shylocks pós-modernos têm as mesmas características e as mesmas metas: o enriquecimento a todo custo, doa em quem doer, sobrepondo-se com mão de ferro aos aspectos morais e éticos em suas tentaculares garras de ambição desmedida, criando os chamados multimilionários, senhores do mundo, donos do poder internacional. São esses os fatores determinantes do que está acontecendo com a União Européia, com países como a Grécia, a Espanha, Portugal e Grécia, entre outras nações de menor peso econômico. Nesses países o desemprego cresce assustadoramente, sobretudo prejudicando j os jovens que desejam ingressar no mercado de trabalho.
O Leviatã, tanto no totalitarismo, China, Coreia do Norte, Cuba, entre outros, não perde as suas regalias, o seu fausto, o seu poder feudal de uma elite dirigente, sempre vivendo com altos salários, mordomias, viagens, hotéis de luxo, carros suntuosos, jantares etc e, como não podia deixar de ser, poder e corrupção, enquanto a massa do povo vai sofrendo as consequências dos desmandos do poder econômico-financeiro mundial com traços de autoritarismo indiferenciados, ou matizados até mesmo de democracias de fachada. O povo, este sim, em qualquer parte, paga o pato das ignomínias praticadas pela figura todo-poderosa do Estado.
A tragédia de um velho aposentado grego assinala um marco simbólico - de dimensão universal - de quanto o Estado autoritário de hoje é insensível aos indivíduos que dele dependem e nenhum poder de barganha têm para se defender dos seus dirigentes de plantão. Esses Estados, agindo desta forma, passam à condição de agentes criminosos que, quando não matam com tiros seus cidadãos, em manifestações de protesto justo, os matam de indignação a ponto de provocarem tragédias em forma de suicídio. A máquina estatal, insensível nas suas ações maléficas, não vê a pessoa humana na condição de vitima de suas gélidas práticas de conduzir o país pela bitola pautada na lógica dos números e cálculos econômicos. O Estado, nas suas decisões, é intocável. O que não pode perder são as regalias do Poder Absoluto sem exceção no mundo inteiro e independente de suas formas de governo.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Da necessidade do estímulo e do reconhecimento na literatura


Cunha e Silva Filho



Há um conhecido e admirado compositor de nossa música popular, Nelson Cavaquinho ( 1911-1986), que costumava dizer que, se alguém quisesse homenageá-lo, que o fizesse enquanto vivo fosse. Disso está bem seguro e pimpão o ex-presidente José Sarney, que tem, no Maranhão, busto, estátua ou algo parecido. No entanto, seria preciso fazer uma distinção entre os que merecem o reconhecimento pelo seu valor intrínseco (artístico, cultural, científico, religioso, humanitário etc) e os que o recebem apenas por razões subalternas concedidas por áulicos, por agremiações oficiais, por deferências nem sempre meritórias, como amiúde se vê pelo país e mundo afora. No segundo caso, nada acrescentam que engrandeçam o homenageado. São favas mortas, areia em deserto estéril.
Limitemos o alcance desta crônica ao campo da literatura. É nesse universo que talvez se cometam as mais graves injustiças. Nas histórias da literatura brasileira que conhecemos, dificilmente o historiador não comete crassas omissões, sobretudo ao selecionar o corpus de autores que irão figurar no seu trabalho. Neste sentido, as dificuldades só têm paralelo na organização das antologias poéticas ou ficcionais.
Reconheço a complexidade da tarefa, espinhosa e tendente ao erro da omissão, sobretudo quando o historiador não se deu ao beneditino trabalho de olhar para fora do eixo Rio-São Paulo. Como, numa pesquisa, selecionar, com segurança e objetividade, um autor que mereça ter um valor nacional? Esta pesquisa, se não for conduzida com muito cuidado e imparcialidade crítica, pode levar a relativizações estimativas, incluindo autores imerecidamente ou levar o historiador a desistir de seu trabalho nessa direção, preferindo, ao contrário, se acomodar aos nomes há tempos consagrados no cânone nacional.
Cada vez mais, reconheço ser este o nó que deve ser criteriosamente desatado na pesquisa do historiador. Não estou pedindo que ele vá enfileirando a esmo nomes de autores sobre os quais não detém um conhecimento de leitura mais profunda . A este impasse, avento uma saída: por que, primeiro não conhecer os mais representativos autores regionais e, em seguida, filtrar realmente aqueles que não podem permanecer sempre na condição de mérito apenas regional, quando há muito tempo deviam estar incluídos no cânone nacional. Para isso, há sempre fontes de histórias da literatura dos estados brasileiros, nas quais o historiador escrupuloso pode “descobrir” grandes talentos com boa produção local e que são conhecidos apenas no restrito grupo de intelectuais de cada região brasileira. A inclusão ou exclusão de nomes de autores em todos os gêneros literários não pode ser um mero capricho do pesquisador, que vai atender a apelos não rigorosamente de valorização estética mas de amizades fortuitas, ou motivado por questões que se situam fora do estritamente artístico.
A historiografia literária no país, sem exceções, gostaria de adiantar, tem cometido injustificáveis omissões e erros de avaliações de autores em todos os tempos da nossa produção literária. Na contemporaneidade, onde é imensa a safra de novos autores, a dificuldade ainda pode bem maior. Arrisco a afirmar que, no futuro, graças aos benefícios trazidos pela informática, as histórias literárias serão escritas em grandes unidades periodológicas equivalentes a uma a uma bem acabada história literária nos moldes das que atualmente conhecemos, i.e., abrangendo todos os períodos literários conhecidos, mas escritas - e aqui reside uma das lacunas em obras desta natureza - num único volume, como a de Alfredo Bosi, ou algumas outras. As sínteses são bem-vindas, porém são insuficientes.
Alguém poderá argumentar: mas já existem umas poucas mais ou menos nos parâmetros que sugeri atrás, ou seja, por exemplo, como a de Massaud Moisés ( escrita em três volumes só por ele), a de Sílvio Castro (coletiva) e a mais antiga, a de Afrânio Coutinho, também coletiva. Claro, existem na atualidade todas essas histórias literárias, porém incompletas, não atualizadas até o momento, além de incompletas na sua amplitude relativa a novos e jovens autores. Além disso, na maioria repetem sempre conhecidos cânones, os que alhures chamei, imitando alguém, de happy few. Recorde-se, a propósito, que no passado, Sílvio Romero (1851-1914) e José Veríssimo ( 1857-1916) – sozinhos – já haviam publicado suas histórias literárias da literatura brasileira em vários volumes. As visões e os métodos de elaboração de pesquisas não são tão velhos assim como parecem. Os novos tempos apenas alteram e se ajustam às necessidades do presente.
As divisões periodológicas, como as que propôs Afrânio Coutinho (1911-2000), na sua bem conhecida Introdução à literatura brasileira, se adaptadas aos nossos tempos, poderão ser aprofundadas e quantitativamente aumentadas no que concerne a nomes de autores de alto nível literário, que até agora se encontram em situação de estagnados em termos de reconhecimento e visibilidade nacionais. Em razão do enorme estoque de autores de primeira plana, mais se justificaria uma mudança, uma necessária atualização do corpus de autores. Essa lacuna precisa ser preenchida sob pena de incidirmos em imperdoáveis omissões de nosso patrimônio cultural, inclusive no que se refere ao passado. O poeta maranhense, Joaquim de Sousa Andrade( 1832-1902), Sousândrade, não é nossa única e grandiosa “descoberta”.
Vejo que, em futuro próximo, na área de letras, haverá necessidade de maior especialização de professores e pesquisadores em determinado período literário, não se permitindo, no entanto, é evidente, na sua formação geral, que deve ser sólida, que eles desconheçam o conjunto geral de nossa história literária. É que a fragmentação de períodos só terá a aproveitar com o conhecimento mais profundo do especialista, notadamente desde Modernismo de 22 até o período um tanto difuso do que se convencionou chamar contemporaneidade – período histórico-literário que, pela imensidade de autores e de diferentes rumos temáticos e formais por que tem passado o fenômeno literário, nos seus dois eixos maiores, a poesia e a ficção, se torna, assim, muito mais complexo.

Nota ao leitor: O texto acima foi revisado por força de o autor desejar que fossem sanadas algumas imperfeições de digitação e de estrutura conceitual de alguns parágrafos.