domingo, 31 de julho de 2011

O milagre da vida

Cunha e Silva Filho


Uma vez a saudosa professora da UFRJ Gilda Salem que, num semestre nos anos noventa, durante o período do meu mestrado, deu um curso sobre a crônica de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), no meio de uma de suas aulas, deixou escapar esta confissão, que tento reproduzir com minhas palavras e talvez misturando palavras delas em tom epifânico com imaginação rememorativa: “Que bom que estejamos vivos, é uma bênção. Sentir que temos algo a fazer, ver que a vida que pulsa dentro e fora de nós não deixa de ser um milagre”.
Suas palavras ressoam na minha retina e me estimulam a dar realmente peso às palavras da brilhante professora, ensaísta e crítica literária. Gilda era de origem judia. Tinha a tez clara e os cabelos castanhos claros também. Era séria, mas também acessível quando sentia que o aluno era responsável e aplicado. Fizera, se não me engano Letras, português-francês, na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Estudara ainda na Universidade de Brasília nos tempos sombrios da ditadura. Militar. Tinha um visão aberta e profunda da existência e de um pensamento filosófico bem afinado com a obra de Walter Benjamin (1892-1940) que, de resto, constava, na bibliografia do curso sobre Drummond, um dos poetas de sua estimação, como um dos autores-chaves do curso ministrado. Com ela, fizera mais um curso, desta vez sobre a poesia drummondiana.
Por falar na bibliografia que nos recomendou para o primeiro dos cursos, a maioria dos autores era de procedência judia, o que fez com que um dos meus colegas do curso, o Francisco Igreja, já falecido, chegasse até a ser-lhe um tanto irônico, ao comentar que a bibliografia oferecida pela professora tinha excessos de autores judeus. Gilda não lhe respondeu à ironia. Mas, Igreja era do tipo que dizia o que pensava e ainda, em outra aula, saiu com esta tirada mordaz: “Drummond não passa de um resmungão.” Nenhum colega do grupo que compunha o curso lhe deu atenção. Soube, mais tarde, através da revista Lavra, de Brasília, que o Igreja era poeta, professor, ensaísta e dicionarista. Com ele, na universidade, troquei poucas palavras. Nascera em Portugal e, antes de falecer precocemente, aos 43 anos, lecionava na Universidade Estácio de Sá.
Em Brasília, Gilda, a par de certo envolvimento político contra o regime militar, que lhe custou, se não me engano, a perda de uma gravidez, foi aluna de literatura brasileira ou portuguesa (não sei ao certo) dileta do grande ensaísta e poeta Cassiano Nunes (1921-2007). Foi ela que me pôs em contato com o Cassiano na época em que já estava iniciando o meu doutorado a respeito da obra de João Antônio ( 1937-1996). Gilda era, neste aspecto, muito obsequiosa e me forneceu o endereço do Cassiano, que, por sinal, tinha sido muito amigo de João Antônio, e lhe dedicara pelo menos três excelentes estudos que muito me auxiliaram na preparação de parte da minha tese. Cassiano, a quem escrevi e enviei um exemplar do meu estudo da saudade em Da Costa e Silva (1885-1950), respondeu-me gentilmente, falou sobre a Gilda e a satisfação de ter sido seu mestre.
Além disso, Cassiano me enviou livros autografados de sua produção poética e de um texto chamado Carta da Prisão (2000). Nele o ensaísta comenta magistralmente um original de um texto que lhe chegou às mãos e que o impressionou pelo inusitado do seu conteúdo e até mesmo pela sua expressão literária. O autor do texto, Manuel de Maria, é um presidiário, sem preparo formal no campo das Letras, mas com talento suficiente para narrar circunstâncias relacionadas à vida prisional e a formas de como resolver alguns problemas afetos a esse tipo de isolamento. A carta é dirigida a um amigo.
No Rio de Janeiro, Gilda foi aluna de literatura francesa do ensaísta e dicionarista Roberto Alvim Correia (1901-1983), autor do excelente Dicionário francês-português e português-francês, publicado pela antiga FENAME, MEC, do qual tenho um exemplar comprado no Rio, em 1964. Ela se deliciava com uma maneira de Alvim Correia desenvolver suas aulas. Segundo ela, Alvim Correia gostava de ler longos textos de autores franceses e de comentar sobre eles.
O leitor vê como a vida se faz de liames que se conectam uns nos outros e nos fazem descobrir que o mundo está todo interligado, pois não é que muitos anos atrás, antes mesmo de iniciar a universidade, eu já tinha lido um livrinho de viagens. Sabem de quem? De Cassiano Nunes. O título: A sedução da Europa, da Editora Saraiva. Perdi o exemplar não sei onde, mas dele me ficou uma frase que lança alguma luz de mistura com ironia quando declara dirigindo-se ao leitor: “O abracadraba, a palavra mágica, é personalidade”. Isso porque se costuma dizer que as viagens são metas que se devem cumprir durante a vida. Elas alargam nossos conhecimentos de outros povos e culturas. Porém, para o ensaísta santista Cassiano Nunes, que teve tantas experiências, sobretudo docentes em universidades de projeção na Europa e nos Estados Unidos, o que talvez a citação queira significar, em relação às viagens e ao conhecimento do mundo, nada tem a ver de relevo ou de mais vantajoso a quem não conheceu plagas estrangeiras . O que importa é a personalidade do homem, suas virtudes, sua integridade, sua determinação de aprofundar – mesmo sem viagens – um conhecimento mais visceral dos homens e da existência.
Ao Piauí Cassiano Nunes esteve ligado graças ao conhecimento e amizade que teve com o crítico e ensaísta Manoel Paulo Nunes que, por coincidência priva de minha amizade.
Gilda tinha mesmo motivos de se espantar com o milagre da vida, com essa concessão temporária de existência material propiciada aos homens da Terra que só pode mesmo ter sido obra de um Ser superior.
É mesmo um milagre estarmos vivos, falando, andando, executando uma tarefa, simples ou menos simples. É um milagre podermos ver o que nos cerca, a paisagem próxima ou mais distante, a linha do horizonte encontrando-se com o mar. É um milagre da vida sentirmos a força da vida entrando pelos movimentos duplo da inspiração e respiração. Milagre por temos ainda o coração batendo, o sangue correndo nas veias, por sermos úteis e partilharmos, de uma forma ou outra, da existência com todos os seus grandes percalços, com todas as suas ciladas e, ao final, sairmos ilesos e podermos afirmar que “amanhã será outro dia”, que “o sol novamente se levantará” e que o ciclo da vida, embora tão pequeno, tão frágil, por vezes tão atordoado pelo atropelo sobretudo dos dias atuais, valerá a pena ser percorrido.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

O mundo pode ter solução

Cunha e Silva Filho


Se olho para o panorama internacional, mais realidades vejo que desafiam a nossa perplexidade muito além dos limites dos absurdos:
1) Revoltas justas no mundo árabe, onde povos, que vêm sofrendo há décadas opressões de todos os tipos - falta de liberdade de pensamento, de dirigir suas vidas, matanças de civis rebelados contra déspotas sanguinários e genocidas, se arvoram em donos eternos do poder, do destino de seus povos e das regalias faraônicas de suas funções de mando;
2) Povos africanos, alguns vivendo como animais ferozes, se trucidando em revoluções fratricidas;
3) Na Somália – piedade para a Somália! – outra região africana, vejo criancinhas, só pele e osso, morrendo de fome e praticamente entregues à própria sorte;
4) Em outros países, no continente europeu, os ditos mais civilizados, os mais ricos, se defrontam com graves problemas econômicos provocados por más administrações, gastos galopantes dos governos com a máquina do Estado e ganâncias de minorias milionárias sedentas de mais lucros em investimentos nas Bolsas de Valores. Mesmo vendo tantos erros de natureza econômica cometidos no passado, sobretudo a partir da do período angustiante da Grande Depressão americana do final dos anos de 1920, com a queda da Bolsa de Valores de Nova Iorque, não aprenderam os governos e os homens de negócios quase nada no tocante a prevenções de crises financeiras agudas. Com tantas teorias econômicas e algumas sendo contempladas com o Prêmio Nobel concedido a seus teóricos, o mundo parece ter perdido o juízo, o senso do equilíbrio, e dado as costas para um enfrentamento árduo e apropriado às mudanças dos tempos modernos e pós-modernos com o surgimento da globalização e formação do Mercado Comum Europeu e sua implantação de uma moeda igual, o euro.
4) A expansão de atos terroristas que, agora, alcançaram até um país que tem sido reputado uma nação tranquila e bem organizada – a Noruega - -, onde um só terrorista, possivelmente um desequilibrado e com ideias extremistas sobre etnias, imigração e credos religiosos, consegue assassinar perto de uma centena de pessoas inocentes e desprotegidas, além de dirigir sua insânia e barbárie contra órgãos públicos.
Mencionei, para não me alongar, uma pequena parte de um mundo contemporâneo que parece ter perdido o rumo em vários aspectos da vida.
Não se pode negar que estamos atravessando uma série de crises que poderiam bem reduzir-se a um denominador comum: a humanidade falece de uma das mais profundas crises já vistas: a moral.
Não é preciso ser sociólogo, antropólogo, filósofo ou pensador para entender que a raiz de todas as crises se localiza na carência da moralidade das sociedades tanto desenvolvidas quanto em desenvolvimento ou mesmo atrasadas. Porém, paradoxalmente, nessas três situações, todas elas, em graus diferentes, convivem com os males da permissividade, da dissolução dos costumes e de hábitos primitivos, injustos e lesivos à integridade física e moral das pessoas, num laissez-faire de práticas de vida que não têm o mínimo escrúpulo de ampliar seu raio de comportamento social deletério mesmo em países mais estruturados e cercados de interditos, controles e vigilância em formas de leis, portarias, códigos civis e penais vigentes.
Isso porque, em geral, há um agravante escandaloso: grassa na sociedade, como é exemplo típico a brasileira, e em todos os seus segmentos sociais, um descaso pela possibilidade de haver punição a infratores. Ou seja, o homem de bem, a pessoa digna e responsável pelos seus atos se vão tornando raridade no seio da vida social. Quem tenha tido no passado a imaginação de prever que, com o desenvolvimento das ciências e da tecnologia, haveríamos de conhecer, em tempos atuais, uma comunidade mundial a salvo de tantos comportamentos perniciosos, sobretudo representados por um dos piores, a violência, deve, agora, em vida ou no além-túmulo, ter-se sentido desapontado com as suas projeções falhadas...
Custa-me crer que tão espantoso progresso material não tenha tido correspondente progresso moral.
Costuma-se afirmar ser o Brasil o país que detém o recorde de ter as mais altas taxas de juros do Planeta e, por extensão dessa assertiva, posso, sem medo de errar, dizer que talvez a nossa pátria seja – em tempos atuais – a que detenha um dos mais elevados índices de criminalidade e de comportamento indecoroso na política e no exercício das funções públicas em diversos setores do Estado brasileiro.
Alguém poderá argumentar: “Mas, isso não é de hoje.” Até concordo em parte. Entretanto, as circunstâncias de agora me levam a inferir que não estou faltando com a verdade.
Veja-se, neste ainda começo do mandato da Presidente Dilma Rousseff. No Ministério dos Transportes já houve mais de uma dezena de funcionários do alto escalão que pediram demissão ou foram exonerados dos seus cargos, a começar do próprio Ministro. Todos envolvidos ate à medula em práticas delituosas contra as finanças públicas.
Esta realidade melancólica e constrangedora por que está passando o país e, por extensão, o mundo afundado que está em outras formas de imoralidade, tem que ser mudada para melhor, do contrário, resvalará para o caos . E isso ninguém deseja para o nosso país nem para o mundo.
De braços cruzados, é que não se pode ficar. Há que vislumbrar, conquanto seja em médio prazo, saídas para os impasses dolorosos que nos impuseram governos e grupos inescrupulosos. Vejo que uma das saídas para contornar o conturbado mundo contemporâneo seja pela via mais correta e e sólida que devemos recorrer: levar educação e formação ética ao nosso país e ao mundo.
Quando falo “levar” e “mundo,” me refiro a ações humanas efetivas e organizadas em escala global através dos já conhecidos organismos internacionais de que dispomos, de sorte que eles, esquecendo diferenças políticas, econômicas, ideológicas e religiosas, se voltem para dotar as novas gerações de instrumentos educacionais e de conscientização para a importância capital de didaticamente instilar nas mentes das crianças e adolescentes os princípios saudáveis da dignidade humana e do espírito de abertura para as alteridades e respeito à pessoa humana.
Ao realizar estas metas educativas, é bem possível que teremos adultos que, inoculados, desde cedo, contra comportamentos moralmente reprováveis, serão seguramente indivíduos íntegros e úteis à sociedade ainda, até hoje, infelizmente, não de todo civilizada. Este seria o primeiro passo em direção a um Brasil respeitado e a um mundo mais justo e harmonioso.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Um poema de Mary E. Coleridge (1861-1907)

Street lanterns


Country roads are yellow and Brown.
We mend the roads in London town.

Never a hansom dare come nigh,
In between the turning wheels.

Quickly ends the autumn day,
And the workman goes his way.

Leaving, midst the traffic rude,
One small isle of solitude.

Lit, throughout the lengthy night,
By the little lanterns light.

Jewels of the dark have we,
Brighter than the rustic’s be.

Over the dull earth are thrown
Topaz, and the ruby stone.


Lanternas de rua

Amarelas e brônzeas são as estradas do campo.
Na cidade de Londres as ruas reformamos.

Um cabriolé nunca aproximar-se ousa,
Nem tampouco uma carroça ruidosa.

Um silêncio sem igual rápido
Se cala por entre as rodas em movimento.

Num átimo, um dia outonal se finda.
Segue um trabalhador o seu caminho.

Deixando atrás, em meio ao áspero tráfego,
Uma pequena ilha de solidão.

Iluminada, por lanterninhas
Por toda uma noite insone.

Da escuridão enxergamos joias
Mais rútilas do que as do campônio.

Por sobre a escura terra esparzem-se
Topázios e pedras de rubi.

(Trad. de Cunha e Silva Filho)

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Visibilidade e invisibilidade em novos e confusos tempos literários

Cunha e Silva Filho


O que é ter visibilidade restringindo-se este termo ao domínio da literatura? Faço esta indagação de sorte que não se confundam várias formas de visibilidade, já que a condição de visibilidade pode se instalar até no submundo da criminalidade, ou das chamadas celebridades do mundo contemporâneo.
O espectro da visibilidade – reconheço - está mais circunscrito às mídias, a formações de grupos acadêmicos e, quando digo acadêmico”, me reporto aos recintos das universidades, geralmente públicas, Lá é onde germinam as sementes que, positiva ou negativamente, se reverterão em sujeitos visíveis que, inter pares, ganharam notoriedade por algum tempo, porquanto notoriedade, fama, consagração são temporalmente conceitos limitados. São situações de projeção pessoal dependentes de momentos culturais históricos e perfeitamente demarcados. São diferentes dos consensos universais apenas restritos a algumas figuras de primeira grandeza na história da cultura e, neste caso, independentes dos humores temporais regionalizados.
O mecanismo dos grupos restritos é que propiciará os eleitos ou incensados. Só que essa eleição grupal sem voto, felizmente, também tem limites e seus valores são relativos. Funciona mais ou menos tal mecanismo sócio-cultural como nos grandes clubes de futebol ou de outros esportes mais em voga.
Se deslocarmos a visibilidade do campo estrito da literatura para outros domínios do conhecimento, notadamente o científico, o tecnológico, aquela visibilidade na literatura se apaga como vela acesa aos poucos se derretendo.
A história literária ocidental – fiquemos no nosso país – ao longo do seu percurso – tem provado suficientemente que a visibilidade tão prezada pelo elitismo intelectual brasileiro contemporâneo não é mais do que uma vã ilusão. Os tempos mudam, os homens morrem, as teorias (muitas) também envelhecem (?) como peças de museu e não mais exerceriam quase nenhuma influência ou utilidade face ao surgimento de correntes estéticas do pensamento crítico de nossos dias. Isso gera crise e impasses que levam intelectuais a, por assim dizer, falarem em morte da crítica literária, morte da poesia, morte do romance e assemelhados. A situação da literatura, em suas múltiplas formas e gêneros, fica tão frágil na atual conjuntura que nem seus próprios cultores parecem diferenciar o que estão escrevendo, se crítica , se resenha, se ensaio. Não paira dúvida de que o contexto literário está diante de impasses para os quais devemos divisar caminhos com objetividade e espírito desarmado.
O mundo contemporâneo se molda pelo tempo presente – sacrossanta era de uma certa ilusão de que o hic et nunc dita conceitos, normas, tendências nos vários segmentos da sociedade afluente e utilitarista, sociedade dos excessos, dos objetos e seres descartáveis. Ao dispensar todas as honrarias ao primado do presente, os fenômenos culturais, em todas as suas configurações de gêneros e estilos, tenderão, em pouco tempo, a provocar mais dissensos e crises do que encontrar uma via de equilíbrio entre a tradição e a contemporaneidade,sendo que esta, de resto, é sempre um termo de abrangência fugidia. O apressado homem do presente semelha um deus de barro mais pretensioso do que aquilo que lhe corresponde ao talento e saber, com seu olhar supostamente altaneiro no que concerne a valores e competências adquiridas em anos de estudos, pesquisas, atualizações de saberes e talento indiscutível.
Cada sujeito da visibilidade possui sua duração mais ou menos com data, marcada. Poucas são as exceções. O tempo do surgimento do sujeito visível se mede dentro da contemporaneidade. Por isso, comumente se reveste de um caráter cronológico. Quando deslocado para o passado, em razão de reavaliações e pesquisas feitas no presente, a visibilidade do sujeito, póstuma como é, tende a atribuir-lhe o devido merecimento. É o caso, por exemplo, do poeta Sousândrade (1832-1902), recuperado aos tempos atuais graças aos esforços dos irmãos Campos. Fernando Pessoa (1888-1935) não teve também visibilidade em vida. Ainda hoje sua obra poética se vai acrescendo de novos inéditos e o valor de sua poesia vai readquirindo novos sentidos de visibilidade e grandeza para os pósteros.

A questão da visibilidade está intimamente também conexionada com o fator negativo do olvido por parte da posteridade. Os movimentos literários confirmam validade e olvido, ou seja, visibilidade e invisibilidade. A chamada tradição literária nunca foi assim tão bem recebida pela posteridade, quer dizer, pelas gerações dos diversos estilos de escrita que a história literária ocidental já conheceu e se convencionou chamar de periodização literária, estilos que sempre se diferenciavam pelo movimento pendular entre razão e emoção, i.e., objetividade e subjetividade, para lembrar as duas tendências da alma humana que remontam aos conceitos de Friedrich Nietzsche (1844-1900) discutidos na obra Nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo (1872).
As vanguardas europeias aparecidas no final do século 19 e continuando até a década do século passado, como manifestações artísticas que adentraram igualmente outras artes, como a pintura, a escultura, promoveram uma radical ruptura das formas de artes literárias, bem como de outras artes, segundo referi acima, pondo por terra maneiras de expressão artística já superadas e que não mais poderiam ressignificar a realidade dos tempos modernos modificados pelas alterações da vida dos indivíduos nos centros industrialização, pelos desastres sociais e econômicos trazidos pela Primeira Guerra Mundial de 1914, pela queda da monarquia russa com a revolução bolchevique de 1917.
As vanguardas, no campo da poesia principalmente, e para o que interesse a esta discussão, foram responsáveis pelas profundas mudanças de índole experimental, substituindo o que se poderia chamar lato sensu de ordem clássica para a “desorganização” estética moderna de visões de vida e de formas de linguagem.
Após o Modernismo de 1922, a literatura entre nós conheceu movimentos de renovação tão amplamente estudados em nossas principais histórias literárias que não seria o caso aqui de historiá-los novamente. Entretanto, cumpre fazer algumas considerações com respeito ao sentido de subversão que eles tiveram para o atual quadro de valores, especialmente tendo em vista que seus autores, nas diversas vanguardas brasileiras, se assim as posso denominar, adquiriram visibilidade graças às alterações formais diante da tradição literária, embora muitos deles hoje retomam uma dicção poética que muito tem a ver com antigos ou menos antigos procedimentos na utilização do discurso poético – espécie de amálgama obtida por incansáveis buscas de exploração do poético em fontes tradicionais da lírica brasileira ou europeia.
A moderna lírica brasileira, em tempos de pós-modernidade, de imediatismo, de alta tecnologia, de bizarrias eletrônicas, da era virtual, da internet, da cibernética, da robótica, do homem-máquina, do vazio individualista – figura um momento de encruzilhada de uma contemporaneidade feita de diluídas fronteiras e de características múltiplas.
Lírica de tempos pós-modernos, de poéticas sem ismos, nas quais o lirismo se sente senhor de suas próprias escolhas, tendências, temas, ritmos e técnicas, porém tendo em vista, na maior parte de sua produção, não perder certos liames da tradição, retrabalhando-a e reajustando-a aos tempos correntes e aos modos pessoais de instrumentalizar a substância – ideologia, recursos formais e técnicas - pela fatura de versos que exprimam os anseios estéticos e temáticos do homem de agora.
Em síntese, a questão do sujeito da visibilidade se oferece, assim, como um desafio mais do âmbito da formação de grupos hegemônicos, compostos do tripé – imprensa literária, editoras de grande porte e de grupos da intelligentsia brasileira recrutados em geral nos umbrais das universidades. Dessa convergência, a que não faltam doses de protecionismo e reserva de mercado, poderão ou não surgir os novos midiáticos da cultura brasileira. Quem, por acaso, estiver fora dos parâmetros mercadológico-elitista-midiáticos desses grupos que se repartem em filiais pelo país afora, estará, pelo menos, para o tempo presente com pretensão de eternidade, relegado à condição de sujeito da invisibilidade.
Superar este óbice me parece tarefa quase instransponível porque, embutidos no emparedamento do sujeito da invisibilidade, existem componentes de natureza idiossincrática, de isolamento, de timidez, de ética individual e de certo enfado existencial que se colocam entre o artista e a arte literária.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Carros? Por que tantos carros?

Cunha e Silva Filho



O leitor, se abrir qualquer jornal de médio ou grande porte, deve já ter percebido a quantidade gigantesca de anúncios, os denominados “Classificados,” de vendas, trocas, aluguéis de veículos, especialmente de automóveis, de todos os tamanhos, tipos, anos e gostos. Todo mundo quer ter o seu.
É um absurdo que, em detrimento de outras matérias a serem incluídas em seções mais proveitosas ao desenvolvimento cultural das pessoas, o conjunto de uma edição de jornal ocupe, diria aproximadamente, uns dois terços só com esse tipo de anúncio. Um outro leitor poderia justificar o fato pelo lado financeiro, no que está certo mas não é justo. Da mesma maneira, não quero nem por sombra negar o valor que os veículos motorizados têm para a vida das pessoas.
Recordo de um texto ficcional de um autor norte-americano lido há anos no qual o narrador descreve aspectos da vida do povo americano, tão presa à posse e à alegria de um carro. Espécie de “sonho americano”, possuir seu próprio carro era uma das conquistas mais caros de um jovem americano. Aprender a dirigir, uma façanha a ser conquistada a todo preço.
. Nos EUA é praticamente impossível que um casal não saiba dirigir. Muito da vida particular do povo ianque depende de ter seu carrinho na garagem, notadamente se o casal trabalha fora e distante. Talvez no Brasil de hoje essa realidade já seja aproximada. A posse de um carro seria tão indispensável quanto a de uma casa própria. Não se podem isolar os hábitos dos americanos sem a presença de um automóvel, sobretudo daqueles imensos carros como costumam ser esses veículos nos EUA.
Uma vez, conversando com um velho advogado, ele me fez a seguinte afirmação: “_ Você sabe, um advogado sem carro próprio é mal interpretado pelo cliente. Já imaginou um advogado indo ao Fórum sempre de ônibus? Que cliente iria respeitá-lo?
Já escutei vezes sem conta pessoas comuns ou mesmo de classe média fazendo esta observação alienada: “- Já viu o “carrão “ dele? Ou seja, na valorização do carro e do ser humano, este é , de certa forma, preterido pelo primeiro.
Outra vez, um frentista imbecil, sem que nem pra quê, exclamou de repente, parecendo desejar ser ouvido por todos: “- Não respeito quem não é dono de carro. Pra mim, um zé-ninguém.” Veja o leitor a mentalidade tacanha do vulgo em se tratando de um dos veículos mais divinizados da Terra: o automóvel.
Em recente acidente de trânsito envolvendo automóveis de luxo, morreu tragicamente em segundos, num cruzamento da capital paulista, uma jovem e bela advogada pertencente a uma família abastada da Bahia. O sobrevivente do outro carro, que vinha em altíssima velocidade, se chocou com o dela. No hospital, recobrada a consciência, a primeira frase que lhe veio à cabeça oca de burguês afortunado foi: “- Acabaram com o meu carro!” É essa a medida de valor que algumas pessoas hoje têm entre si? O responsável pela tragédia é pessoa de posses, fanático por carros de alto luxo – os Porsches da vida.
Sim, deveria haver uma lei nacional que punisse exemplarmente os crimes de trânsito, dolosos ou culposos. Lei que saísse do papel e começasse a fazer parte das punições sem recurso a brechas na legislação. Lei pra valer. Lei que refletisse a seriedade de um povo e de seus governantes. Lei aplicada a pessoas que dirigem como se fossem loucos furiosos.
As punições deveriam se estender desde a perda definitiva do uso da carteira de motorista até ao recolhimento aos cárceres dos infratores - assassinos comprovados. Assassinos do trânsito são tão maléficos quanto os marginais de toda espécie. Não merecem misericórdia.
No Brasil, não parece existir punição para quem mata no trânsito das cidades, nas estradas Os automóveis, meio de locomoção tão útil a uma família, passou a ser arma de guerra nessa guerra de viventes em que se transformou o mundo.
Objeto de ostentação na vida real, no cinema, na televisão, na ficção, verdadeiro fetiche, reproduzido em escala mundial, muitas vezes servindo de inspiração a piadas de mau gosto pequeno burguês, o automóvel traduz à perfeição o alto conceito em que a sociedade, em toda a extensão da pirâmide, o coloca.
Quantas vezes, vejo alguém estacionando o carro que, depois de cuidadosamente fechado, põe-se a olhá-lo tridimensionalmente. .Deixa-o estacionado. Volta em instantes e o examina detidamente. Parte por parte, ângulo a ângulo: o retrovisor, os pneus, os vidros, o para-brisa, a mala, o capuz, o brilho da pintura. Verifica novamente se a porta está mesmo fechada. Olha-o, olha-o como se estivesse deliciando-se com o ente mais amado do mundo. Objeto antropomorfizado,
Um outro tópico digno de reflexão dos homens de bem concerne à fabricação desmedida de automóveis ou assemelhados. Exagero na quantidade de veículos saindo das fábricas para se movimentarem em megalópoles sem planejamento urbano adequado e engenharia de trânsito competente e atualizada, que pudessem dar conta do caos urbano medido ao cubo pelos engarrafamentos e deterioração do meio ambiente, trazendo mais e mais poluição às cidades e sendo mais um fator determinante do efeito estufa. O automóvel, que foi inventado pra encurtar as distâncias, substituindo cabriolés do século 19, tornou-se um objeto gerador de tragédias da vida contemporânea.
É preciso que a indústria automobilista sofra uma moratória, dê um tempo pra se respirar, a fim de que as cidades possam voltar a ser lugares de convivo e fraternidade.Enfim, à história das tragédias de veículos se soma às de discussões raivosas entre motoristas que, por um erro por vezes não tão grave de uma das partes, se transformam em mais um tipo de tragédia, levando amiúde à morte de uma das partes.
Por aí se vê até que dimensão vão a estupidez e o primitivismo do homem de hoje.

sábado, 16 de julho de 2011

Um poema de Carol Ann-Duffy*

“ o poema, ele mesmo, é uma busca por sua própria veracidade, um mapa de sua própria verdade.”

Carol Ann-Duffy


COLD


It felt so cold, the snowball which wept in my hands,
and when I rolled it along in the snow, it grew
till I could sit on it, looking back at the house,
where it was cold when I woke in my room, the windows blind with ice, my breath n dressed itself on the air.
Cold, too, embracing the torso of snow which I lifted up
In my arms to build a snowman, my toes, burning, cold
In my winter boots; my mother’s voice calling me in
From the cold. And her hands were cold from peeling
Then dipping potatoes into a bowl, stopping to cup
Her daughter’s face, a kiss for both cold cheeks, my cold nose.
But nothing so cold as the February night I opened the door
In the Chapel of Rest where my mother lay, neither young, nor old,
Where my lips, returning her kiss to her brow, knew the meaning of cold.


FRIO


Muito fria era a bola de neve que em minhas mãos dor causavam,
e, ao fazê-la rolar pela neve, se avolumava
a ponto de nela pode sentar-me, com o olhar para a casa voltado.
Quanto frio fazia ao acordar no meu quarto, as janelas de frio baças,
a respiração no ar propagando-se.
Estava mesmo frio quando abracei o tronco que com os braços ergui
pra um homem de neve construir. Meus artelhos de frio ardiam
nas minhas botas de inverno. A voz de mamãe me chamando
pra do frio proteger-me. Suas mãos gélidas estavam batatas descascando,
molhando-as logo na tigela, só a interrompendo pra cobrir
de beijos nas bochechas e no nariz glacial da filha a face.
Nada, todavia, foi tão frio como na noite de fevereiro ao abrir a porta
da Capela do Descanso, onde jazia mamãe, nem jovem, nem idosa.
Meus lábios, na fronte beijos seus devolvendo, entendeu o sentido do frio


(Trad. de Cunha e Silva Filho)



* Segundo notícia publicada no Jornal O Globo, Prosa & Verso ( p. 2, 16/06/2011), Carol Ann-Duffy é poeta laureada do Reino Unido, nascida na Escócia, estimada tanto nas escolas quanto no julgamento da crítica que já lhe conferiu “todos os prêmios possíveis”. Participou agora da 9ª Feira Literária Internacional de Paraty (Flip).

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Quero voltar no tempo

Cunha e Silva Filho


Pouco me importa se me infantilizo, que é melhor do que virar “o homem medíocre’ de José Ingenieros (1877-1925). Quero ir pro fundo da memória lá onde há tanto tempo a terra me viu primeiro sob o terno olhar de mamãe. Passagem do não ser ao ser. Do vagido aos primeiros segundos fora de mamãe, dela desejando umbilicalmente apenas os seios fartos de leite – força da vida e da saúde materna. Em verdade vos digo: era o início de tudo, da vida e das transformações céleres, continuas e irreversíveis com marcas corporais do tempo e cicatrizes da alma. Tudo, visto e posto: data, hora, - enigmas. Limite da matéria e passagem para a metafísica. Num e noutro caso, tudo são mistérios, campo do insondável.
O lugar: uma casa simples e velhíssima, com porta e janelas (duas, no máximo) que ainda não consegui precisar, visto que ninguém até hoje me disse onde se fincava como habitação. “Olha, lá adiante, do lado direito da Avenida Amaral. É uma daquelas casas. Já foi reformada, certeza não tenho.” O tempo é fumaça. Só volta se o transformarmos em arte ou História para não confundir com os ambíguos estória e história da ficcionalidade.
Uma vez que não sou historiador, escolho o caminho da arte ou o que imagino que o seja. Opção que nada tem a ver com os dois caminhos de Robert Frost (1874-1963) no poema “The road not taken” (1916).
Dando os primeiros passos da longa estrada, ali estou nos cueiros aos cuidados de minha mãe, uma jovem senhora de cabelos escuros ondulados, pele morena clara e ainda bela naquele sempre lembrado sinalzinho por sobre os lábios.
Amarante ... A calma Amarante do fim da Segunda Guerra Mundial. Era o início de dezembro. Lá estava eu na rede. Imagino que fosse rede, pois berço era raro. Ninguém me disse.
Papai, no Atheneu Ruy Barbosa, não muito distante dali. Umas duas ou três ruas. Estava com quarenta anos. Bem moço, ocupado com a preparação de suas aulas em tantas matérias: português, aritmética, álgebra, história, geografia, desenho rudimentos de física, de química, até noções de francês e inglês. Era o tempo em que imperavam os livros velhuscos de Antonio Trajano (aritmética e álgebra ), Suzanne Burtin Vinholes (francês), Jacob Bensabat (gramática inglesa), Pe.. Júlio Albino Ferreira (An English Method), entre outros.
Segundo me diria mais tarde, quando eu já era adolescente, sua disciplina no Atheneu era rígida. Os alunos o respeitavam. Por isso, muito feliz foi como professor com alunos que passaram pelas suas mãos e, na vida púbica e profissional se deram muito bem. Tornar-se-iam adultos ilustres: governadores,ministros, prefeitos, militares do Exército de alta patente altos funcionários do Banco do Brasil, médicos, engenheiros, dentistas, e uma gama de outras atividades nas quais se saíram vitoriosos. Seus ex-alunos de Amarante foram seu verdadeiro orgulho de professor nato, como ele costumava se definir.
Além da atividade do Atheneu, Ruy Barbosa, desde cedo começara a escrever artigos para jornais de Floriano e de Teresina. Eram artigos que já chamavam a atenção do leitor para o seu talento e competência. Isso tudo só mais tarde vim a saber por ele ou por outros meios de informação.
Eu, criança, ia me desenvolvendo: um ano, dois anos, três anos. Já falava alguma coisa talvez atrapalhadamente. Já andava, já brincava. De poucos incidentse me recordo plenamente. Um foi, quando pequenino, caí no chão de casa e tive um rasgão no queixo. Lembro-me de quem então mais se preocupou comigo: minha avó paterna, Candinha. Foi ela quem cuidou do ferimento.
Lavou-me o queixo sangrando, passou-me sal no local. Não sei bem se era sal, mas a sensação que tenho agora é que tinha o gosto de sal que seguramente se espalhou pela boca escorrendo – quem sabe – do colo dela onde pusera a criança chorando de dores. Resquícios do ferimento ainda tenho até hoje. Quase invisíveis.
Um outro incidente se refere à viagem de ônibus de Amarante para Teresina. Estávamos de mudança para fixarmos residência na capital. Ônibus que não era fechado dos lados. Só havia os assentos sem nenhum conforto. Era o ano de 1948. Esse incidente, porém, me foi contado por mamãe. O casal Cunha e Silva já contava com quatro filhos. Eu, o terceiro. Papai e mamãe cuidavam de segurar três: Sônia, Winston e Evandro, o quarto. Um senhora, companheira de viagem, pediu à minha mamãe que eu fosse para o colo dela, no que mamãe acedeu agradecida. Era menos um peso e cuidados.
Outros fatos ou circunstâncias da viagem não me vêm por enquanto à memória. Deixarei para mais tarde - seguirei o conselho de Álvaro Lins(1912-1970) - a narração desta primeira tentativa de uma aspiração de adulto saudosista ao espólio da memória – coisas da idade que já começam a borbulhar no espírito mas que deste fazem parte no” balanço da vida.”

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Cada um no seu canto: um espaço (literário) para todos

Cunha e Silva Filho


Há livros para todas as tribos, gostos e níveis intelectuais. No que concerne ao que neste texto me interessa - a literatura -, aqui a compreendo, para fins de generalização esquemática, nos seus dois gêneros de criação maior, ficção e poesia, ainda que dela se diga que está morrendo, ou está se modificando para se desenvolver dependendo dos espólios de obras do passado, distante ou mais distante, ou do que se chama literatura da modernidade, exemplificada nos seus mais consagrados expoentes do cânone ocidental. Ou seja, literatura que se nutre do já feito, do que se julgou como obra-prima ou grandes obras da criação literária.
É disso que lucidamente se ocupa um artigo de Leyla Perrone-Moisés, professora emérita da USP e respeitada ensaísta e crítica literária. Li hoje o seu texto “O longo adeus à literatura”, publicado no caderno Ilustríssima da Folha de São Paulo (p. 3), que me inspirou estes comentários.
O artigo de Leyla mais constata realidades no domínio da criação literária do que a esta faz reparos. O que em resumo o seu texto sugere é que não há morte da literatura por mais velho que seja posto em dúvida o destino da literatura. Leyla Perrone-Moisés adianta que, a despeito dos adeuses às letras, o fenômeno literário na prática demonstra que a literatura está bem acesa, bem viva, produzindo bem aqui e mundo afora.
Entretanto, um fato novo se acrescenta à arte literária, por exemplo, no romance, é o surgimento de subgêneros, ou melhor, de novas metamorfoses sofridas pela literatura, a passagem da originalidade das grandes obras para a originalidade dos pastiches, das apropriações das obras canônicas através de recursos narrativos como a citação, a intertextualidade, a alusão, no período por ela chamado de alta modernidade, iniciado nos anos 1980 e até hoje ainda fértil em obras assim elaboradas. Em outras palavras, essa produção de autores da pós-modernidade cria uma situação de dependência de suas obras em relação a autores do passado.
Não creio que essa forma de criatividade se prolongue por muito tempo porquanto uma literatura assim realizada logo entra em estado de exaustão, quando da novidade passa à fase de cristalização, de mero artificialismo em ficcionalizar a personalidade de escritores famosos como o que fez Silviano Santiago no romance Em liberdade (1981), “dando” continuidade às Memórias do cárcere (1953) de Graciliano Ramos (1892-1953), ou aproveitar o tema-teórico da metaliteratura, a fim de desenvolver ficção sobre escritores, seus processos de criação ou escrevendo um gênero misturando ficção, diário e ensaio literário, conforme lembra Leyla Perrone-Moisés citando o catalão Enrique Vila-Matas. Enfim, sobre temas centrados na vida de pessoas ligadas ao mundo dos livros, editores, professores de literatura.
Por outro lado, ainda existe espaço suficiente para aqueles escritores que não elegem aspectos experimentais ou sofisticados do fazer literário. Prosseguem na criação de histórias cujo epicentro temático se localiza no romanesco, numa estrutura ficcional linear ou mesmo não-linear, onde, contudo, pode modernamente empregar algumas estratégias ultrapassando uma arquitetura meramente tradicional do romance do século 19 ou mesmo anterior, tendo em vista que enredo, personagens, tempo, espaço e linguagem podem revestir-se de diferentes roupagens, de outros recursos sem que seja indispensável o artifício metaficcional da pós-modernidade.
Se há leitores que se atualizaram na recepção de novas formas de experimentalismos ficcionais, e que as aceitaram tanto quanto os críticos, outros tantos leitores ainda procuram na literatura uma história bem narrada e que a eles acrescentem novos ângulos de percepção da vida , alargando seu conhecimento do mundo e da experiência entre os seres humanos.
Leitores há para todos os gostos, sem que com isso estejamos sendo indulgentes com outras formas de gêneros ficcionais, como a ficção científica, o romance policial, a literatura infanto-juvenil.
Não é o dado experimental que vai balizar o valor de uma obra, mas a originalidade de como o autor trabalha os temas, usa a linguagem, agrega os elementos da estrutura ficcional a um todo que proporcione ao leitor e ao crítico o sentido do equilíbrio e da justeza do que a palavra artística é capaz de despertar enquanto obra de criação estética.
Se não fosse por isso, não sentiríamos ainda um imenso prazer estético com leituras de romances de grandes escritores dos séculos anteriores, aqui e fora do país. O dado experimental tem seu lugar desde que avance a história da produção literária e de suas novas maneiras de expressão, suscitando inovadoras estesias e visões dos problemas do mundo e do ser humano no leitor e crítico dos tempos que correm.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Um poema de Alphonse de Lamartine (1790-1869)

À une fleur séchée dans um album


Il m’en souvient, c’était aux plages
Où m’attire un ciel de midi,
Ciel san souillure et sans orages,
Où j’aspirais sous les feuillages
Les parfms d’un air attiédi.

Une mer qu’aucun bord n’arrête
S’étendait bleue à l’horizon;
L’oranger, cet arbre de fête,
Neigeait par moments sur ma tête:
Des odeurs montaient du gazon.

Tu croissais près d’une colonne
D’un temple écrasé par le temps;
Tu lui faisais une couronne,
Tu parais son tronc monotone,
Avec tes chapiteaux flottants;

Fleur que décore la ruine
Sans un regard pour t’admirer,
Je cueillis ta blanche étamine,
Et j’emportai sur ma poitrine
Tes parfums pour les repairer.

Aujourd’hui, ciel, temple, rivage,
Tout a disparu sans retour:
Ton parfum est dans le nuage,
Et je trouve, en tournant la page,
La trace morte d’un beau jour!


A uma flor seca dum álbum

1827

Vem-me à lembrança. Eram praias
Nas quais um céu de Meio-Dia me atraía,
Céu sem mancha nem borrasca,
Onde, sob as folhagens, respirava
Do morno ar os perfumes.

Mar sem-fim,
Azul, no horizonte, perdia-se.
A laranjeira, esta festiva árvore,
Por instantes, por sobre minha cabeça nevava.
Odores pelas relvas exalando-se.

Rente a uma coluna atravessavas
Dum templo pelo tempo apagado
Nele uma coroa fazias
Seu tronco, monótono, lembrar fazes
Com teus flutuantes capitéis.

Flor que a ruína adorna
Sem um olhar que te admire.
Teu alvo estame colhi
Pro meu peito transportei
A fim de teu perfume sorver.

Hoje, céu, templo, praia
Pra sempre tudo se foi:
Na nuvem teu perfume encontra-se
Dum belo dia, morta, a imagem!.

(Trad. de cunha e Silva Filho)

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Funções públicas

Cunha e Silva Filho


Diante de tantas denúncias (a mais recente envolvendo o ministro dos transportes, felizmente já exonerado) sobre detentores de cargos públicos que não dão exemplo de conduta ilibada ao povo brasileiro, me vejo impelido a admitir que o Brasil moralmente, nos últimos anos sobretudo, se tem comportando pessimamente. Grave ainda é o fato de que qualquer ex-titular, acusado de algum crime financeiro ou de outra natureza, volta às bases do seu partido e continua intocável, sem investigações sobre a sua conduta e sem punição. E o pior, o partido dele continua igualmente dando sustentação ao governo, no que redunda num jogo de faz-de-conta que beira o absurdo de um conto fantástico. Na realidade, fatos dessa ordem vão se constituir em novos “mensalões” da desastrada crônica da vida política brasileira contemporânea.
Até parece que a honestidade – condição intrínseca e inalienável ao exercício de um cargo público – sumiu como poeira de nossas instituições. Mais lembra uma espécie de epidemia que tem se disseminado entre aqueles que são alçados às mais altas responsabilidades no governo federal, para não me estender por ora aos governos estaduais e municipais.
Será que o país atravessa os seus anos da mais concentrada escalada de corrupção jamais vista e permeando múltiplos setores da vida pública? O que, então, está acontecendo com o comportamento do homem brasileiro que, ao que tudo indica, perdeu a noção da vergonha e do mais leve resquício ético e que, por isso, pouco se lhe importa ser objeto constante de denúncia e de denúncia comprovada quando no exercício de relevantes funções, fundamentais a uma imagem limpa de um país que aspira a um posição de realce como potência mundial?
O brasileiro que ainda possui um pouco de discernimento e acompanha, pelos vários meios de comunicação, o desempenho de nossos homens públicos e os atos dos nossos governantes - .políticos, ministros e de outros órgãos e instituições do Estado -, está cansado de ouvir e de tomar conhecimento, praticamente diário, de inúmeras denúncias de má administração e de desídias praticadas por quem detém responsabilidades de cunho político, executivo e administrativo
Sabemos que em outros países, o cancro da corrupção também campeia e não é de hoje, mas no Brasil, passou-se dos limites imagináveis.Em, pelo menos, duas décadas, com o breve intervalo no período do governo de Itamar Franco e, de certa forma, no governo FHC, o país tem sido alvo de escândalos de corrupção ou outros desmandos administrativos, comprovados ou não, e tudo feito à sombra e proteção da soberana e todo poderosa impunidade.
A despeito de tantas descalabros, o país – reconheço – progrediu e conseguiu boa visibilidade internacional.. De nada, porém, adianta ter riqueza e progresso se nele ainda persiste de forma insidiosa o veneno da corrupção. Esta, como os problemas crônicos tão de nós conhecidos, educação pública dos níveis fundamental e médio, saúde e violência, devem ser as prioridades de um governo que se quer renovador e enfrentar os grandes desafios que nos esperam como país em desenvolvmento. Debelar todos esses males é dever imediato da presidente Dilma Rousseff. Não o fazendo, o país arriscar-se-á a perder notoriedade no exterior e mesmo enfrentar retrocessos nos seus fundamentos democráticos. Um país sem dignidade na política é presa fácil de aventureiros irresponsáveis. E isso nenhum brasileiro deseja que aconteça.
Acompanhando regularmente há anos o que de mal têm feito nossos governantes e administradores com o mau uso do dinheiro público, confesso que o país jamais chegou a tão aguda crise de indignidade de governança, tão alarmantes têm sido as notícias de malversações da máquina administrativa, com ramificações que se estendem a familiares de quem ocupa uma elevada posição no governo.São os chamados enriquecimentos ilícitos, onde indivíduos, em breve tempo, multiplicam seu patrimônio particular para cifras astronômicas.
Um novo governo compõe suas pastas ministeriais Fica-se na esperança de que novas figuras conduzirão com dignidade seus cargos. Técnicos especializados e, na maioria da dos casos, políticos, são convidados para dirigirem os Ministérios. No entanto, ocorre que, em pouco tempo na direção de seus cargos, a grande imprensa começa a dar notícias de que algum titular está sendo alvo de denúncias de improbidade administrativa, sendo uma das mais comuns e mais condenáveis a de superfaturamentos, propinas, trafico de influência, licitações duvidosas etc.
Será que esses homens não se pejam de suas ações lesivas ao Erário do Estado? Será que pensam que os brasileiros são imbecis e não estão vendo toda essa promiscuidade nos alicerces da vida política?
A escolha de ministros ou de outras funções públicas de alto relevo deve ser criteriosa e feita com fundamento na meritocracia.A exigência de comportamento ético do escolhido tem que se respaldar em dois pilares extraídos de seu currículo : integridade moral e competência para o cargo. Tal escolha não deve ser feita na base da baixa política, de conchavos, de interesses meramente partidários e de ambições inconfessáveis. Os cargos públicos não são um “balcão de nogociatas” e de bastidores subterrâneos. Os cargos públicos se criam para o aperfeiçoamento do Estado brasileiro e interesse da sociedade.
O presidente da República, para ser fiel aos compromissos constitucionais, tem que ser imparcial, soberano e firme nas suas decisões. Ao comportar-se assim, estará conquistando o respeito e o prestígio dos brasileiros que lhe sufragaram a vitória nas urnas.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Valores da atualidade

Cunha e Silva Filho


Não são a literatura e outros setores de estudos de humanidades que o mundo moderno mais respeita e mais estima. São antes os estudos e pesquisas que pertencem às ciências exatas e à tecnologia. Por que isso? Porque eles são as ferramentas de atividades humanas que geram economia, numa palavra, produzem capital, dinheiro, lucros, dividendos, investimentos, movimentam o mercado, os negócios. Daí serem tão vitais a profissionais como economistas, tributaristas, contadores, auditores, fiscais da receita, administradores de empresas.
Essa mesma visão em torno do valor do capital é partilhada por um renomado físico brasileiro, professor há longos anos em universidade americana e detentor de importantes prêmios em sua área de pesquisas. Perguntando-lhe um jornalista sobre que campos da atividade humana não daria retorno remunerativo a seus cultivadores, respondeu-lhe que um seria literatura.
Literatura e áreas afins pouco contam para o mundo dos negócios, para a chamada “riqueza das nações”. Ficarão sempre em segundo plano, infelizmente.. As ciências representadas pela física, matemática, química, biologia, nanotecnologia, robótica, entre outras, é que, segundo os homens pragmáticos - os calculistas bem intencionados e os aparentemente sisudos, os nefandos ( não há como excluí-los desse mundo de negócios) wheel dealers -, são prioritárias e supervalorizadas. Seus estudiosos situam-se sempre no topo dos projetos e metas a serem alcançados. Sua participação nas alocações de verbas para bolsas e pesquisas de organismos nacionais e internacionais coloca-se sempre em primeiro plano.
Um componente serve primordialmente aos interesses tanto da ciência e tecnologia quanto do crescimento econômico: a disponibilidade do capital adquirido e oriundo de diversas atividades humanas: comércio, indústria, publicidade, imóveis, esportes (sobretudo o futebol), lazer, turismo, entre outras.
Daí tanta ênfase que a mídia dispensa ao mundo dos negócios, através da seção “Mercado”” ou outra designação semelhante.
A força da economia é tão poderosa que se irradia por outros segmentos por ela inevitavelmente permeados. Como gerir o dinheiro acumulado, por exemplo, por jogadores de futebol bem-sucedidos? Ora, ao contrário de um Garrincha, paradigma de grande craque e de ser humano destituído de ambições materiais, grandes jogadores (Pelé é um deles, Zico, idem) nos tempos atuais têm sabido como administrar e aumentar seu patrimônio. Tornam-se homens de negócios vitoriosos também graças a uma direção correta que dão à sua vida pessoal e à influência que têm no mundo do futebol.
Tendo ganhado fortunas, sobretudo, por haverem atuado brilhantemente no exterior, i.e., em grandes clubes europeus ou asiáticos, esse ídolos do futebol brasileiro, encerrado seu ciclo de atividade da fase produtiva, decidem investir no campo da publicidade e em outras atividades lucrativas. Um exemplo típico desses grandes craques é o do Ronaldo, o fenômeno, que, agora, aproveitando toda a sua fama e experiência de jogador, está decidido a passar uma temporada em Londres e lá preparar-se para o mundo do empresariado. Optou pelos estudos de publicidade e dominar o inglês com a meta de partir para novas investidas na condição de businessman. Seguramente com a sua determinação e responsabilidade, não tardará em adquirir sólida carreira de empresário de setores mais ligados ao futebol, Ou seja, é desse mundo de imagens que emergirá o potencial financeiro hoje de Ronaldo.
Por outro lado, os objetos simbólicos compreendidos pelo universo da literatura e de outras artes são muito menos atraentes no seu conjunto, notadamente quando entra em jogo a situação de quem escreve, de quem se defronta com um rol de dificuldades de toda a sorte na mídia, desde o acesso à visibilidade, ao reconhecimento, até os frutos de seus praticantes, produzindo, na maioria dos casos, sem nenhum retorno financeiro, circunstância que, com o tempo, torna-se um fator de desestímulo, seja pela baixa ou quase nula vendagem de livros, seja pela falta de reconhecimento da sociedade, esta, de resto, e ao contrário, sempre de mãos dadas e em contínua lua de mel com os vitoriosos do capital.

Domingo carioca

Cunha e Silva Filho


Se ficar em casa, automaticamente me voltarei para mim mesmo. Ficarei mais calado e me isolarei do mundo lá fora, o que não é bom nem pra mim nem para os que comigo convivem.
Por isso, digo pra Elza: -“Vamos ao shopping.” “Sim, vamos.” Noto quão feliz ficou com a minha proposta de sair de casa. Sabem os homens que, em geral, as mulheres adoram ir ver vitrinas, sobretudo as de suas preferência: joias, roupas, bolsas, sapatos, perfumes, seções de móveis, roupas de cama e de banho e outros itens caracteristicamente femininos.
Os shoppings se tornaram, nos tempos modernos, os lugares mais adequados a passeios mais amenos. Lá se pode comprar ou simplesmente olhar pras novidades das modas nos vários itens considerados.
Entretanto, confesso que o que mais me agrada nos shoppings são as livrarias ali instaladas. Enquanto minha mulher me empurra para as preferências dela, eu fico aguardando a oportunidade pra dar uma pulinho a fim de examinar alguns livros recém-saídos e das estantes do meu interesse. Em geral, primeiro vejo os dicionários que surgem nas suas edições atualizadas.
Há muitos anos tenho uma verdadeira mania: ver o que o mercado editorial tem lançado na área de livros pra aprendizagem de idiomas. Só depois vou pra outras variedades : livros de crítica, ensaios, literatura nacional, estrangeira, gramáticas, biografias, linguística, história, filosofia, sociologia. Tenho, então, ganas de levar um exemplar de cada uma destas áreas de estudos. Só com muito esforço me controlo pra não gastar o que não tenho. Fico adiando com meus botões o dia em que, voltando ali, possa levar algumas livros novinhos em folha.
Enquanto isso, minha mulher me aguarda, já havíamos combinado o lugar, sentada num dos bancos dos muitos corredores do shopping. Ao me aproximar, ela olha pra minhas quase mãos vazias, pois levara comigo de casa o Ilustríssima da Folha de São Paulo, que leio aos domingos. Gosto de andar com um livro ou, às vezes, com uma antiga agenda da editora Oxford. “Todo louco com a sua mania”, lá diz o provérbio.
Não fui egoísta com Elza, já que, logo ao entrar no shopping, foi ela se dirigindo às lojas de roupas. Embora não seja meu fraco ficar passando de uma loja a outra, parando numa, parando noutra, me contenho e até finjo que estou tão entusiasmado quanto ela. Para falar a verdade, muitas vezes não finjo. Mostro mesmo curiosidade do que ela me aponta de bom ou de ruim nas vitrinas. Ela tem um bom gosto admirável. Sabe escolher o que é bom tanto pra ela quanto pra mim Tem mesmo gosto refinado. Muitas vezes, sozinha, também escolhe alguma blusa, camisa paletó, blazer, sapato ou tênis. Quando chega em casa, me pede que prove: em noventa e nove por cento tudo sai segundo o meu agrado. Ela sabe que não gosto de experimentar, principalmente, roupas nas lojas. Já sabe do meu tamanho, da minha pontuação.
Desta vez, levamos o nosso filho mais novo. Não fizemos nenhum lanche, nem houve sorvete nem picolé. Nada gastamos. Era um domingo só pra andar, olhar, ver pessoas que passam por nós com indiferença naquele contínuo ir e vir de gente dentro de um shopping tão igual quanto qualquer outro em qualquer parte do país ou mesmo do mundo, onde tudo se padroniza, se imita, se copia.
Os shopping só se diferenciam pelo nível de suntuosidade, pelo tamanho, pelos sotaques, níveis sociais e etnias. Os shoppings são, talvez, um dos grandes exemplos do Planeta globalizado, da sociedade reunida e ao mesmo tempo dividida. Dão a impressão nítida de que quem está num, está em todos. O mundo, assim, está virando um gigantesco shopping, típico símbolo da pós-modernidade, dos sonhos de consumo, dos encontros e desencontros entre criaturas, da solidão e do silêncio, individual, coletivo e universal.
Toda vez que vou a um shopping, sempre tenho a sensação de que alguma coisa está faltando nas suas instalações, nos seus corredores, nos seus elevadores, nas suas “praças de alimentação”, nas suas diversas lojas. Alguma coisa que, a meu ver, está relacionada a um ausência de sentido maior de comunicabilidade, de aproximação de pessoas, ainda que pequenos grupos ali se possam ver conversando divertidamente.
Talvez eu esteja exigindo demais por idealizar um mundo no qual todas as pessoas pudessem estar solidariamente mais presentes umas com as outras. Mas, não, o conjunto de pessoas que ali se encontra está mesmo é à procura de seu próprio prazer e necessidade, satisfação de um predisposição hedonista tão entranhada no gênero humano. Pouco podemos fazer contra isso.
Os shoppings aí estão, atraindo pessoas de todas as faixas etárias, mais valendo para elas algumas poucas horas de lazer do que prestar atenção a um mero resmungo do cronista sobre o instinto gregário dos homens.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Um poema de Lord Byron (1788-1824)

Ode to Napolean


‘Tis done – but yesterday a King
And arm’d with Kings to strive –
And now thou art a nameless thing;
So abject – yet alive?
Is this the man of thousand thrones,
Who strew’d our earth with hostile bones,
And can be thus survive?
Since he, miscall’d the Morning Star,
Nor man nor fiend hath fallen so far.

Ill-minded man” why scourge thy kind
Who bow’d so low to knee?
By gazing on thyself grown blind,
Thou taught’st the rest to see,
With might unquestion’d – power to save, -
Thine only gift has been the grave,
To those that worship d thee;
Nor till fall could mortals guess
Ambition s less than littleness!

Thanks for that lesson – it will teach
To after-warriors more
Than high Philosophy can preach,
And vainly preach’d before.
That spell upon the minds of men
Breaks never to unite again
That led them to adore
Those Pagod things of sabre sway,
With fronts of brass, and feet of clay.

The triumph, and the vanity,
The rupture of the strife –
The earthquake voice of victory,
To thee the breath of life;
The sword, the sceptre, and that sway
Which man seem’d made but to obey,
Wherewith renown was rife –
All quell’d – Dark Spirit! What must be
The madness of thy memory!

The Desolator desolate!
The Victor overthrown!
The Arbiter of other’s fate
A Supplicant for his own!
Is it some yet imperial hope
That with such change can calmy cope
Or dread of death alone?
To die a prince – or live a slave –
Thy choice is most ignobly brave!

And Earth hath split blood for him,
Who thus can hoard his own!
And Monarchs bow’d the trembling limb
And thank’d him for a throne!
Fir Freedom! We may hold thee dear,
When thus thy mightiest foes their fear
In humbleswt guise have shown,
Oh! Ne’er may tyrant leave behind
A brigher name to lure mankind!

Thine evils deeds are writ in gore,
Nor written thus in vain –
Thy triumphs tell of fame no more,
Or deepen every stain:
If thou hadst died as honour dies,
Some new Napolean might arise,
To shame the world again –
But who would soar the solar height,
To set in such a starless night?

Weigh’d in balance, her dust
Is vile as vulgar clay;
Thy scales, Mortality! are just
To all that pass away:
But yet methought the living great
Some higher sparks should animate,
To dazzle and dismay:
Nor deem’d Contempt could thus make mirth

Of these, the Conquerors of the earth.
And gaze upon the sea;

That element may meet thy smile –
It ne’er was ruled by thee!
Or trace with thine all idle hand,
In loitering mood upon the sand,
That Earth is now as free!...

There was a day – there was an hour,
While earth was Gauls’s – Gaul thine –
When that immeasurable power
Unsated to resign
Had been an act of purer fame,
Than gathers round Marengo’s name,
And gilded thy decline,
Through the long twilight of all time
Despite some passing clouds of crime.

But, forsooth, must be a king
And don the purple vest?
As if that foolish robe could wring
Remembrances from thy breast.
Where is that faded garment? Wher
The gewgaws thou wert fond to wear,
The star, the string, the crest?
Vain forward child of empire! Say,
Are all thy playthings snatch’d away?

Where may the wearied eye repose
When gazing on the Great,
Where neither guilty glory glows,
Nor despicable state?
Yes – one – the first – the last – the best
The Cincinnatus of the West,
Whom envy dared not haate,
Bequeath’d the name of Washington,
To make man blush there was but one!


Ode a Napoleão


‘Stá consumado – ontem, um Rei
Com Reis armados lutando –
Agora, uma insignificância
Tão ignóbil – entretanto, viva?
É este o homem de mil tronos
Que encheu nossa terra de osso hostis
E que ainda sobrevive?
A partir dele, impropriamente chamado Estrela Matutina
Nenhum homem, nenhum demônio foi tão longe n a queda.

Mal-intencinado homem! Por que açoitar tua espécie
Que a ti tanto se rendeu?
Cega por a ti mesmo contemplar, os demais a verem.ensinaste
Com poder incontestável – poder de salvar, -
A sepultura tua única dádiva tem sido
Para aqueles que te veneravam.
Só após a tua queda puderam os mortais compreender que
A ambição é menor do que a necessidade!

Agradecido por essa lição – ela ensinará
Aos futuros guerreiros mais
Do que sabe doutrinar a alta Filosofia
Que debalde antes ensinava.
Aquele fascínio sobre os espíritos dos homens
Rompido, nunca mais haverá de uni-los outra vez
Visto que ele os conduzia a adorar
Aqueles objetos de domínio do sabre no Pagode
Com frontais de latão e pés de barro.

O triunfo e a vaidade,
O êxtase do combate –
A voz da vitória do terremoto,
Pra ti o sopro da vida.
A espada, o cetro e aquele domínio
Pelos quais parece ter-se feito o homem apenas pra obedecer
Com os quais a fama se constrói –
Alívio final – Espírito Sombrio! o que deve ser
A loucura da tua memória!

O desolado Desolador!
O Vitorioso destronado!
O Árbitro do alheio destino
Um Suplicante de si próprio!

Será que ainda existe alguma esperança imperial
Que com tal mudança possa calmamente afrontar
Ou recear da morte a solidão/
Morrer como príncipe - ou viver como escravo –
Vilmente ousada é tua escolha!

Pra ele o sangue a Terra derramou,
Sendo o dele para si próprio entesourado!
Monarcas os membros trêmulos inclinavam
Por um trono agradecendo!
Liberdade justa! Preciosa, considerar-te podemos
Quando, assim, teus mais poderosos inimigos o medo,
Através do mais humilde disfarce, expressaram
Oh, nunca possa mais um tirano legar
Pra seduzir a humanidade um nome mais brilhante!

Com sangue tuas más ações escritas estão.
Desse modo, não em vão escritas –
Não dizem mais da fama teus triunfos,
Nem cada mancha aprofundam:
Se tivesses morrido como morre a honra,
Surgir poderia algum novo Napoleão
A fim de o mundo envergonhar –
Quem, contudo, se elevaria à altura solar
Para se pôr em tal noite sem estrelas?

Postos os pratos na balança, o pó do herói
É tão vil quanto bairro ruim.
Tua balança, Mortalidade! Não é mais do que
Algo despercebido:
No entanto, ainda me pareceu que a grande criatura
Algumas fagulhas mais altas inspirar devia,
Ofuscando e assombrando:
O julgado Desprezo nem mesmo poderia assim alegrar
Os conquistadores da terra.

Agora, para a tua Ilha aborrecida, apressa-te,
E olha pro mar.
Talvez esse elemento de ti um sorriso arranque –
Pois por ti jamais dominado foi!
Ou, se não, desenha, com a tua mão toda inerte,
Sobre a areia, com ânimo negligente,
Mostrando que a Terra mais uma vez é livre...!

Houve uma vez – houve uma hora
No tempo em que a terra era da Gália – a tua Gália –
Quando aquele incomensurável poderio
Indestrutível
Um ato de fama mais puro havia sido
Do que aquele suscitado pelo nome de Marengo
E que o teu declínio dourava
Através do mais longo dos crepúsculos
Não obstante passageiras.nuvens de crime

Na verdade, deverias tu, entretanto, ser rei
E envergar o traje púrpuro?
Como se aquele manto idiota pudesse arrancar
Do teu peito lembranças.
Onde andará aquela vestimenta desbotada ? com
Aqueles penduricalhos lustrosos de que gostavas de usar,
a estrela, os cordões, a cimeira?
Fútil e petulante criança imperial! Escuta,
Tomaram-te todos os brinquedos?

Onde repousarem podem os olhos lassos
Ao contemplarem o Grande,
Onde nem a glória culposa brilha,
Nem tampouco o estado de vilania?
Sim – um – o primeiro – o último – o melhor
O Cincinato do Ocidente
A quem a inveja odiar não ousa,
Deixou como legado o nome de Washington
Pra fazer alguém enrubescer um só homem existiu.

(Trad. de Cunha e Silva Filho)