sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Novos tempos, novas pressas, o mundo a mil!




Cunha e Silva Filho



O leitor já percebeu o ritmo frenético de nossos pós-modernos dias globais? Assaltados pelo air féerique da pressa de tudo conhecer, de tudo saber, de tudo ver, de tudo ser para agora, para “ontem”, no qual o “ontem “ é a expressão oxímora do melhor exemplo para expressar essa corrida lunática para algum lugar de cujo destino não temos a mínima certeza onde se localiza. Meu tempo subjetivo mal consegue alcançar com passos cambaleantes toda essa pressa , essa corrida louca e desenfreada que para os mais velhos se tornou uma espécie de obstáculo e de cansaço.

Sim o cansaço da pós-modernidade, das multidões dos shoppings, que viraram o locus amenus às avessas dos citadinos, nesse ir e vir de gente gerador da anomia principalmente das grandes cidades mundiais. Gente, por toda a parte, gente e solidão, gente e isolamento, gente e indiferença, gente, gente, gente. Onde ficou o encanto de um certo equilíbrio já morto e sepultado ? Não me queiram julgar um saudosista empedernido. Não, não o sou seguramente. Apenas me aborrece o excesso de tudo e do todo que nos circunda, que nos constrange , que nos deixa cada vez mais insulados em nós mesmos.

Há pouco vi uma reportagem sobre o que alguns jovens estão querendo para si agora. Sabem o que seja? Conseguir, antes dos trinta anos, atingir o topo de um carreira em sua área de atividade. Ora, isso não passa de um exagero e num desejo censurável. Onde se viu alguém querer começar a ascender profissionalmente a partir do ponto mais elevado de uma empresa ou de uma outra atividade que demanda maior experiência e amadurecimento? Estão loucos, o que pensam que são, pequenos gênios da pressa? “Quem tudo quer, tudo perde.

“ Há tempo para tudo, para o trabalho, para o prazer,” diz um pensamento em francês. O mundo não vai se acabar amanhã, não obstante certos boatos que por aí estão sendo espalhados para atemorizar os incautos.

Calma, apressados de nossos tempos. Saibam primeiro ver cada etapa da existência com prudência e com o suor do seu rosto feito de preparo, de tempo e de amadurecimento intelectual e humano. A natureza não dá saltos. Tudo a seu tempo e em sua hora. Forçar o tempo, a experiência não vivenciada, os estudos não alicerçados, os obstáculos não transpostos é dar sinal de imaturidade e vaidade vazia. Ao contrário, lutem para conseguir vitórias que sejam atingidas dentro da normalidade e dos desejos acalentados. Não estou tentando aqui exercer alguma coerção de desejos que não podem ser reprimidos em se tratando da luta por uma vida de regalias e de glamour que, segundo alguns jovens, deve ser conquistada em pouco tempo. Tampouco não estou tentando retardar as metas a serem colimadas.

O que combato são os excessos da pressa a todo custo. Vocês hão de argumentar: “A vida é curta, o tempo passa rápido, não há lugar para a paciência , e sim para a pressa de conseguir tudo agora e já, i.e., viver a vida com folga, com o prazer e as delícias da mocidade, viver o mais que puder, usufruir de todos os prazeres bons que a vida material, sobretudo hoje, nos proporciona. Para nós vale, sim, o epicurismo adaptado aos novos tempos. Deixar escapar tudo isso nos vai levar ao infortúnio, à velhice, às doenças e às frustrações.” Talvez sim, talvez não. Na existência não há certezas de nada, a não ser da nossa inescapável condição mortal.

Vejo, numa reflexão mais profunda, esta exacerbação dos jovens não como culpa deles somente, mas do próprio ritmo de vida e de competitividade oriundos do sistema capitalista mundial, inclusive com igual força de competitividade em países comunistas, a exemplo da China. Reconheço que os jovens temem perder a corrida do tempo, receiam não terem êxito dentro de uma faixa etária acima da qual já poderão ter problemas com o fato da idade. No entanto, a felicidade na profissão deixa de ter sua validade ética se é lograda através dos jogos sujos do individualismo fora dos limites, do querer só para si.

Saber dividir o tempo é um velho conselho que meu pai me dava e que, de alguma forma, procurei seguir até hoje. De nada adianta forçar a natureza das coisas. “Festina lente” (“Apressa-te lentamente”) - frase, segundo Suetônio (75?-160?), historiador romano, proferida por Augusto ( 63 a. C. – 14 d. C), imperador romano. Saibam os jovens esperar, mas vigiando o tempo, não se deixando arrastar pelas protelações descabidas, pela indolência, pela falta de disciplina e determinação.

Não queiram, entretanto, os jovens  meter os pés pelas mãos, sobretudo porque todos temos nossos limites e nossos ritmos de realizações e de maturidade. O que dá certo para uns não necessariamente vai dar para outros. Somos desiguais e isso, antes de ser um defeito, é uma qualidade. A diversidade cumpre seu papel no equilíbrio da vida em sociedade.

Aprendamos com os maiores, ou seja, os mais velhos, que, se a pressa é prejudicial, também a falta de organização em nossas vida profissional e em nosso preparo intelectual deve ser uma lição que começa cedo - o que não significa compactuar  com a doentia sede da pressa contemporânea -, tal como o fruto de uma colheita, cujos passos devem ser obedecidos sob pena de o fruto sair com defeito e sem utilidade. Cumpriria tentar – isto sim - descobrir precocemente, através da atenção dos pais, da escola, por exemplo, qual é o nosso objetivo a ser perseguido para uma vida vitoriosa, saudável e útil tanto para nós quanto para a coletividade. Seria esse um dos caminhos que vislumbro pelos quais se poderá concretizar a tão sonhada felicidade.



segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Globalização em grupos hegemônicos




Cunha e Silva Filho



Acabou-se, pelo que se tem visto, a era dos tempos da Guerra Fria, no jogo duplo desconfiado e ardiloso de parte a parte entre democracia e comunismo. Os dois países líderes formados dos Estados Unidos e da Rússia, bem ou mal, continham os ânimos belicistas recíprocos, evitando o final indesejável da destruição apocalíptica. Hoje, a história da História é bem outra. Há a ONU, a OTAN, o MERCOSUL e o MNA (Movimentos do Países Não Alinhados (este último surgiu do desejo de contribuir para fazer o “contrapeso” entre os três primeiros.

Em síntese, há uma multipolaridade de alcance maior, que se prepara para o enfrentamento, por ora, pacífico, entre o Ocidente e o Oriente. A geopolítica global do Oriente  está mais atenta e mais consciente, cujo exemplo maior foi a “Primavera Árabe,   a qual já cede em alguns pontos comuns a visões provenientes dos países do Ocidente, como constituição de países-membros, países-observadores, incluindo o Brasil, organizações internacionais  como a ONU e a Liga Árabe. O MNA tem suas lideranças de cúpulas alternadas de três em três anos. Outra novidade. Na Agenda do mencionado MNA, os temas a serem debatidos nesta 16ª Cúpula que terá como sede Teerã, o qual, desta forma, sai do seu isolamento: a) conflito na Síria; b) não proliferação nuclear; c)governança global; desenvolvimento.O Irã desta vez substitui o Egito na presidência do MNA. Os países que estarão presentes a Cúpula têm multiplicidade de visões políticas em muitos aspectos fortemente divergentes do Irã.

Tal reviravolta moderna não deixa de ser auspiciosa para os destinos da paz mundial e para o incremento do diálogo entre países que, de um lado e de outro, ainda se sentem mutuamente hostilizados. Neste caso, não é de se desprezar o peso desse acontecimento agora, já que o MNA era reputado pelos especialistas em política internacional como algo superado e sem nenhuma expressão no tocante a decisões e mudanças de rumos na diplomacia mundial .O MNA foi fundado em 1961 e seu objetivo principal era ter uma posição neutra tanto com o bloco capitalista quanto com o soviético na época da Guerra Fria.

A 16 ª Cúpula acontecerá de 26 a 31 de agosto e, como tal, esperamos que novos e proveitosos desdobramentos possam advir das conclusões dos debates e da aprovação de algum Documento a ser apresentado.

O mundo mudou, está mudando e, apesar da tragédia da Síria, que, infelizmente, conta com o apoio do Irã, da Rússia, da China, no que perde prestígio para os países democráticos, aguardemos algum sinal de esperança para o nosso já conturbado planeta. É de se assinalar que o próprio Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon estará nessa Cúpula, não se deixando se submeter, conforme declarações da sucinta e excelente reportagem de Samy Adhirni ( “Irã busca romper seu isolamento em cúpula do 3º Mundo”, Folha de São Paulo, 26/08/2012) aos apelos autoritários dos EUA e de Israel.

Não endosso nem as pretensões belicistas que por muito tempo têm caracterizado os governos americanos, nem tampouco sou favorável às ideias estapafúrdias de Mahmoud Ahmadinejad de, publicamente, declarar sua vontade de ver Israel apagado do mapa mundial. Entretanto, sou firmemente contra a sua adesão a um dos mais tirânicos governos ditatoriais contemporâneos, como é exemplo a Síria de Bashar al-Assad.

Não é possível que o líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenel, não se sinta, por princípios religiosos e humanitários, constrangido com o massacre genocida do ditador Sírio, para quem vidas humana valem nada.Ora, ao rebaixar o valor do ser humano a algo imprestável, não está mais do que afirmando uma espécie de ódio e desprezo contra si mesmo. Se, entretanto, seu governo se pautasse por poder institucional que fizesse seu povo feliz, livre e democrático, ainda que internamente dividido por grupos dissidentes(sunitas, aulitas) ainda assim seria possível procurar uma governança que pudesse conviver com relativa harmonia e, procurando valer-se da sabedoria política,   conquanto maquiavelicamente, ensejar também espaço de poder político a grupos de oposição, desde que sem o recurso espúrio da tirania, da corrupção e do enriquecimento ilícito monopolista e imperial. Um líder político tem que saber que, em tempos atuais, só se governa melhor pela abertura a sistemas de conquista do poder pelo sufrágio do voto, pelo diálogo político sem intransigências descabidas. Não há outro caminho para o trato político a não ser que esteja desejando cavar para si mesmo o fim trágico reservado a  autocratas.

De qualquer forma, vejo com bons olhos o empenho iraniano de se abrir a outros países, democráticos e até não democráticos a fim de encontrarem novos caminhos e perspectivas para livrarem o mundo da bipolaridade. O Brasil será representado nessa Cúpula e dele aguardamos posições mais nítidas sobre questões que afetam a vida de milhares ou milhões de pessoas. A Síria é um desses temas que não podem ser discutidos só pelo prisma ideológico e econômico.

A dimensão humanitária, a defesa da preservação das vidas são fatores determinantes que não podem ser descartadas por todos os países que da Cúpula participarão. O Brasil, mais uma vez, reafirmo, deve estar à altura de sua contribuição para a paz mundial. Não custa nada aqui citarmos as palavras finais de Marcelo Coutinho, um jovem professor de relações internacionais da UFRJ que, em recente artigo vigoroso e abrangente sobre o papel da “Primavera Árabe” e sobre a tibieza que o Brasil diplomaticamente tem demonstrado no cenário internacional (Folha de São Paulo, Tendências/Debates “Primavera Árabe e inverno no Itamaraty", 26/08/2012), faz o seguinte alerta: “O Itamaraty tropeçou demais. Daqui a cem anos, os livros de história vão falar dos eventos que mudaram uma parte central do mundo. O Brasil vai aparecer em uma nota de roda pé do lado errado dessas transformações.”







sábado, 25 de agosto de 2012

O outono da vida





Cunha e Silva Filho


Olívio Lins, agora, se encontrava naquela fase de haver passado, digamos, pelos maiores piques de visibilidade nas rodas literárias. Imaginava-se praticamente como alguém que houvesse cumprido o último ciclo de sua atividade produtiva. Escrevera livros que, pouco vendidos, estavam encalhados e já se encontravam nos sebos reais e virtuais. Naquela manhã, acordara mais cedo, embora julgasse que acordar cedo seria muito bom para a saúde Mas, ele mesmo, por mais que se esforçasse, não conseguia levantar cedo, sempre prolongava duas ou mesmo três horas mais de sono antes de despertar outra vez  definitivamente.

. Já tinha ouvido de um colega do magistério, o Euler, que o pai deste vendia saúde. Era homem, segundo contava Euler, de meia idade que não parava, nem em casa, nem na rua. Estava sempre em atividade, fazendo alguma coisa, olhando algum reparo a ser feito na sua casa, ou, quando na rua, percorrendo os corredores dos supermercados sempre apinhados de gente carregando carrinhos que vez por outra, se atropelavam, abriam discussões entre os clientes, gerando desculpas ou apenas palavrões, os mesmos carrinhos que, quando ia aos supermercados, por detrás, vez por outra, vinham chocar-se contra o seu tornozelo, causando-lhe dores finas e fazendo pequenos rasgos na pele do lugar atingido. Por isso, novamente outra discussão contra quem provocava o acidente. As discussões acaloradas de parte a parte terminavam em mútuos palavrões de parte a parte.

Manhã de agosto, com ventinho bom soprando e penetrando pelas janelas meio abertas ou pela porta de vidro do salão do apartamento. Como é bom sentir o ar fresco do vento que vem da baía da Guanabara!. Lembrava-se de sua professora de origem judia que , com u belo sorriso, exclamara um dia em plena aula de literatura“ Oh, como é bom sentir que estamos vivos! Não muito tempo depois, aquela competente mestra viera a falecer de câncer. Ela, que tanto prezava a vida, a existência, o respirar, o sentir-se viva, palpitante, respirando, sentindo a vida e parecendo aspirar todo o ar do mundo.

Seu tempo de universidade, como professor, acabou-se. Agora, eram os ócios forçados pela compulexpulsória dos setenta anos. Já era, no entanto, tempo para afastar-se do meio estritamente acadêmico. Não que tivesse lecionado por um longo tempo no ensino superior. Só lá ficara por dez anos apenas. Não se considerava um talhado para o ensino superior, a sala de aula, a chatice burocrática, as reuniões de colegiado, os estrelismos, as tarefas outras que mais o transformavam num funcionário comissionado. Queria mesmo era escrever seus ensaios, sua poesia. De quando e quando, apesar de tudo, ia até à faculdade, conversava com alguns colegas mais chegados, num papo que ia da teoria do romance contemporâneo até a tragédia da Síria.

No íntimo, sentia-se algo desprestigiado. Novos professores chegavam, com suas novidades e suas leituras mais atualizadas, seus diplomas de doutorados e pós-doutorados no exterior, sua vivacidade e elasticidade de pensamento. Ele, não, já havia fechado um ciclo de produção que agora nem mais era citada em monografias , dissertações ou teses. Recordou-se, então, do personagem de O feijão e o sonho, de Orígenes Lessa, aquele intelectual sonhador, que vivera no interior, uma existência medíocre, sem mais perspectiva de poder acompanhar os novos tempos trazidos pelo Modernismo poético. A mesma sensação de impotência diante dos novos tempos assaltava o íntimo de Olívio Lins. Via-se um escritor fracassado, esquecido pelos leitores e pelas mudanças da formas literárias surgidas nos últimos anos. Sentia que não mais podia acompanhar o frenesi das transformações por que passou a literatura mundial contemporânea, inclusive no Brasil. Não há como parar o temo literário, a dinâmica da vida dos escritores, cada qual com sua história de vida e sua consciência de que cada um é apenas uma parte bem minúscula e desconhecida, quando não cedo esquecida, do “vasto mundo” de Drummond.

Raramente, na fase de aposentadoria, participava de seminários ou congressos, quer nacionais, quer internacionais. Quase foi aquele tempo em que, como visiting professor, trabalhara na University of Califórnia, Berkeley. Gostara do ambiente acadêmico, mas antes pensava que seria mais influente sua passagem pelo Departamento de Literatura Comparada. Poucos alunos formavam os cursos que ministrou procurando tornar mais conhecido alguns escritores brasileiros em estudos comparativos com escritores americanos. Porém, sua temporada fora do país lhe foi, de alguma forma, proveitosa, dando-lhe uma visão mais ampla das diferenças que encontrara no mundo acadêmico americano.

O sol daquela manhã não estava tão quente. Quando foi dar uma caminhada por algumas ruas perto de sua residência, o relógio digital marcava temperatura de trinta graus. De volta para casa, já trazendo um jornal de domingo, Olívio Lins não tinha dúvidas de que seu tempo passara. O melhor seria esperar as horas, os dias, outras manhãs de brisa benfazeja invadindo sua janela, a porta do salão e, observando com cuidado, entrando também pela janela semi-aberta da área do tanque. O tempo, inexorável, se insinuava em cada despertar para um outro dia pouco mutável, quase solitário em que se transformara sua vida de escritor. Sua biblioteca era modesta, não obstante tivesse alguns títulos, em diversas áreas da literatura, que fariam inveja a qualquer intelectual. Algum recalque, ou ressentimento que por ventura lhe passasse pelo pensamento, fulminante, se apagava logo que se aproximava de uma das prateleiras da biblioteca e sentia plenamente o valor do que aqueles volumes tinham sido para a sua formação intelectual e para a sua vida como pessoa igual às outras no planeta Terra.





quinta-feira, 23 de agosto de 2012

A tristeza do meu pai





Cunha e Silva Filho



Fala-se que o brasileiro é um povo alegre, brincalhão, solidário e possuidor de outras qualidades que o tornam acolhedor aos olhos dos estrangeiros. Talvez, seja isso uma verdade se considerada no seu sentido absoluto, geral, coletivo. Entretanto, no plano pessoal, íntimo, acredito que existam muitíssimas exceções. Conheço pelo menos duas, a do poeta piauiense Da Costa e Silva (1885-1950), cuja tristeza é comparada à tristeza do próprio rio Parnaíba, tristeza que, aliás, se associa ao sentimento da saudade, se revela muito forte na sua poesia: “Eu sou tal qual o Parnaíba: existe/Dentro em meu ser uma tristeza inata,/Igual, talvez, à que no rio assiste/Ao refletir as árvores, na mata...” (Pandora, seção “Sob outros céus”, soneto IV, p. 242, in: SILVA, Da Costa e. Poesias completas. 2. ed., revista e anotada por Alberto da Costa e Silva. Rio de Janeiro: Editora Cátedra/ INL/MEC/MEC, 1976).

Segundo Ronald de Carvalho (1893-1935), poeta, ensaísta primoroso e historiador literário,  falecido precocemente em acidente de automóvel, “A alma brasileira nasceu de três melancolias”: da saudade portuguesa, da “inquietação do terror do índio e da “queixa imensa da sua humilhação..” (CARVALHO, Ronald. Estudos brasileiros (Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A/INL?MEC., p. 75, 1976).

Ora, se a saudade e se manifesta como uma feição da melancolia, a saudade será um traço romântico muito denso, muito próprio a esse estado de desejo ardente de alguma coisa, de se voltar o sentimento para a perda, a ausência, a falta, a carência. Típico do sentimento romântico a tristeza inunda a alma do poeta do século 19, sobretudo , mas invade também os séculos posteriores ou anteriores ao grande movimento que tem seu foco central e seu argumento máximo no dedilhar de estados d’alma, como o spleen, o “mal do século,” e principalmente, como costumava afirmar, com voz e gestos carismáticos, que encantavam seus alunos, o meu professor de literatura luso-brasileira no Liceu Piauiense, o A.Tito Filho (1924-1992) a “exaltação da subjetividade.”

A segunda exceção desse sentimento de tristeza  me foi manifestado por meu pai, Cunha e Silva (1905-1990) mais de uma vez, nos momentos em que, ele e eu conversávamos sobre o mundo dos sentimentos no ser humano. Lá me vem ele com esta confissão: “Sinto meu filho, às vezes o aguilhão de uma tristeza enorme que me toma o corpo e o espírito a um só tempo”. O pior é que não sei explicá-lo com palavras, localizá-lo em alguma ponto da vida, saber o motivo de sua origem, conseguir uma resposta que me satisfaça a fim de amenizá-la um pouco”.

Não lhe dava eu nenhuma resposta a essas indagações. Deixava que ele desabafasse. Entretanto, é possível arriscar algumas hipóteses tanto para o caso de Da Costa e Silva quanto para o de meu pai. Num e noutro vejo uma das explicações por um lado basicamente de viés autobiográfico.

Por mais que eu queira resistir a não aceitá-la como premissa, na poesia dacostiana, a saudade tem não só um fundo romântico, já referido no meu ensaio Da Costa e Silva: uma leitura da saudade.(Teresina: Academia Piauiense de Letras/Universidade Federal do Piauí, 1996) - contingente derivado tanto da assimilação de sua expressão lírica, quanto dos elementos individualistas que poderiam conduzir a um extravasamento inócuo do seu estro. O poeta da saudade soube conter-se artisticamente pelo distanciamento equilibrado da sua arquitetura formal, i.e., dos seus meios retóricos e estratégias de construção estilística a fim de não cair no vezo superado de poesia “dor de cotovelo” tão execrada pelo poeta Carlos Drummond de Andrade(1912-1987) e outros poetas ditos líricos mas não contaminados do puro pieguismo comum aos poetas de menor estatura estética, recordando-se, para tanto, que Da Costa e Silva poetava numa frase de transição da poesia brasileira que se aproveitou do romantismo, parnasianismo e simbolismo, sem mesmo descartar direções mais progressistas  para  formas mais livres de fatura poética, segundo demonstrei no meu ensaio, talvez pouco conhecido dos meu leitores, “Da Costa e Silva: do cânone ao Modernismo,” in Geografias literárias – confrontos : o local e o nacional.(org. Francisco Venceslau dos Santos, com a colaboração de Raimunda Celestina Mendes da Silva). Rio de Janeiro: Editora Caetés, p.103-122, 2003.

Outra hipótese surpreenderia no fato de que geralmente poetas e escritores que deixam a sua terra natal e conhecem outras regiões ou mesmo países, voltando ou não às origens locais, não deixam de experimentar o sentimento provocado pela distância, entendida esta como espaço físico, sobretudo representado pela Natureza que lhes era cara ao temperamento artístico, às condições mesológicas do seu rincão natal, aos laços afetivos muito sólidos, ao meio cultural, à perda do convívio materno, relações familiares, ou de amizades perdidas no tempo. Isso se deu com Da Costa e Silva,  Junqueira Freire (1832-1855), Gonçalves Dias(1823-1864), Casimiro de Abreu (1839-1860).

O primeira, por razões de atividades profissionais, residiu em várias cidades brasileiras e terminou fixando-se no Rio de Janeiro; os três últimos também tiveram o seu tempo de “exílio” em longes terras por motivos diversos e, finalmente, meu pai, que também teve seu momento de poeta, adolescente deixou Amarante e foi estudar no Rio de Janeiro destinado pela família a ser padre, o que não aconteceu. Mas, ele da mesma forma sentiu a dor do afastamento familiar, do desenraizamento como os demais citados.

Esse afastamento lhe foi doloroso mas lhe trouxe também alegrias. Ficou dividido entre o amor que sentia pelo Rio de Janeiro e o amor da terra natal, Amarante. Terminou estabelecendo-se em Teresina, para onde foi dar continuidade à sua vida de professor e jornalista.. Em todos esses exemplos, em síntese houve as consequências do deslocamento, no tempo e no espaço. Em todos eles, seguramente o componente saudosista se lhe fincou profundamente na alma. Aqui entra a Arte, expressa em modalidades diversas, sobretudo na poesia. No exemplo de meu pai, começou a escrever poemas, na maioria sonetos, a partir dos sessenta anos, atitude artística que, segundo ele, se deveu “as amarguras da vida”.

É certo que em todas estas personalidades literárias há um traço comum que os une : o sentimento da tristeza, daquela melancolia inerente à alma humana que, por um motivo ou outro, foi despojada de um bem subjetivo tão necessário à inteireza e ao equilíbrio do comportamento do indivíduo.

Vou me demorar mais no meu pai e procurar levantar outras razões para explicar a sua tristeza profunda quando no isolamento talvez do seu lar., ou , quem sabe, até em meio às alegrias efêmeras do contato social.

O espírito humano nunca se nos aparece na sua completude moral, social, afetiva, religiosa ou de outra ordem natural ou metafísica. No entanto, é possível desentranhar dele alguns pontos de subjetividade oculta, os quais, estariam, a meu ver, situados na sua formação cultural, na sua atividade profissional, nos diversos acontecimentos históricos que se foram somando paulatinamente no decorrer de sua existência. Por outro lado, há um ponto crucial que muito pode afirmar sobre a origem de sua tristeza: é no plano dos valores estéticos e de sua visão filosófica, do seu pensamento sobre a vida social, os homens, a política, a aceitação na sociedade, o descontentamento com o comportamento do ser social. Estes fatores apontam para uma direção, que para mim se inscreve no descontentamento entre o idealismo da subjetividade em luta contra a injustiça social, ou melhor ainda, contra a hipocrisia que caracteriza a vida em sociedade. Quando meu pai declara em tom de amargura que “não troca a sua dignidade humilde pelos brasões de enfatuados da nossa sociedade”, aí está assumindo uma postura a geradora da insatisfação, do sentimento de rebeldia contra outras individualidades que lhe foram prejudiciais e indignas do seu valor e do merecimento.

Na realidade, há uma somatório de fatores determinantes da eclosão tão dolorosa à alma de uma personalidade forte como foi a dele. A tristeza não é dialética, te mais a ver com a interioridade ferida e malferida pelo outro, que não soube compreendê-la ou por ela sentia indiferença, ou inveja, ou ressentimento, ou qualquer espécie de sentimento subalterno. A Arte, seja em nível elevado ou em menor escala de valores, é um ersatz à tristeza, não uma solução, não uma compensação, não uma maneira de recuperar o equilíbrio da alma alegre, pura, e inocente tão própria às fases da nossa infância , da juventude e da mocidade.

Outras hipóteses poderia ainda levantar para o deslinde desse sentimento que, de quando em quando, assaltava a alma , o coração e o corpo de meu pai, Cunha e Silva. Quem sabe, algum dia possa retomar este tema com mais amplitude e complexidade.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Necessidade de recorrência a um tema: a guerra na Síria




Cunha e Silva Filho



Já disse mais de uma vez que ao cronista interessa primordialmente a opinião sobre fatos e homens, ou seja, uma forma de interpretar a vida em ângulos que se apresentam fragmentados, porém dignos de meditação, ou de umdescambar para um lirismo, conquanto seja um lirismo entretecido de variados tons do universo do afeto: amor, amizade, saudade, frustração, alegria, rebeldia ou tudo isso junto.

Depois que representantes da Liga Árabe, diplomatas da ONU, reuniões do Conselho de Segurança para tomada de decisões sobre a questão do conflito trágico sírio, depois que foram enviados monitores e observadores para verificarem em que estágio se encontra a população civil e em que pé de guerra se encontravam opositores ao regime ditatorial de Bashar Assad, no meio da cooperação internacional sempre corajosa e humanitária da Cruz Vermelha.

Depois que algumas medidas contra o ditador foram determinadas, como sanções econômicas, ameaças de intervenção militar que , até gora, não aconteceram, só restam palavras duras e apenas de efeito retórico da Secretária de Estado Americano, Hilary Clinton, de alguns países com declarações contrárias ao ditador mas insuficientes do ponto de vista pragmático de ação efetiva e firme contra um governo assassino que, ao que tudo indica, ainda não deu sinal de provável rendição, e por isso sinaliza para uma continuidade no poder até a última gota de sangue derramado.

O Brasil, agora diplomaticamente sempre tímido na questão síria, não teve nenhuma contribuição de maior monta para tentar amenizar a situação de tragédia da Síria. Nossa diplomacia está sendo pois, falha e omissa, assim como a de diversos países de influência internacional. Nem na terra nem nos céus da Síria, ainda que se esteja falando em zona de exclusão de espaço aéreo, não se vê nenhum ato de maior envergadura contra os genocidas sob o comando do ditador. Enquanto isso, as cidades sírias sofrem os bombardeios, as explosões diárias, as centenas de pessoas, de lado a lado do conflito, continuam sendo dizimadas.

A Síria se tornou uma terra arrasada, entregue ao abandono de dois blocos de concidadão que se matam e se devoram com unhas e dentes, não respeitando mais nem as convenções de guerra, os tratados internacionais contra crimes, de parte a parte, dessa natureza. Cidades como Allepo, Damasco, entre outras, só fedem a cadáveres e a pólvora. Os mortos não são mais tomados em consideração pela comunidade internacional , no caso, o Conselho de Segurança da ONU, dependente de países, Rússia e China,  os quais  não somam os dois votos  que faltam para constituírem maioria a fim de a instituição poder tomar medidas sérias contra o conflito que já perdura por quase dois anos. Os mortos não mais são considerados, viraram parte dos espaços físicos, das construções, da fisionomia das cidades alvejadas constantemente.
Se, no plano da existência material, o ser humano é o primeiro é fator determinante de preservação e de proteção da humanidade, e se essa premissa não está sendo praticamente mais levada em conta, é porque a civilização está perdendo seus parâmetros de sanidade, de respeito e de compaixão . Um mundo como esse não tem sentido, já que a pessoa humana foi posta na última escala de valores individuais. Destruição, destruição. Essa é a única imagem que podemos ter agora da sociedade síria. Não é possível que os países que defenderam  o mundo contra o nazismo e outras crimes da Humanidade não abram os olhos para a tragédia da Síria.

Não só de ameaças, de palavras de efeito em reuniões da ONU vivem as nações oprimidas. Sabemos todos que a situação econômico-financeira dos países adiantados vai mal e, em alguns, bem mal..

Sabemos que os EUA estão mais é pensando na conquista do poder presidencial, e bem assim outras nações. Olhemos pela Síria e pelos seus inocentes mortos, pelos refugiados que, tendo perdido tudo, se encontram sob a proteção de países vizinhos que os acolheram temporariamente. Nenhuma nação do mundo merece a desistência, o lavar as mãos, a omissão indecorosa de socorrer essa sequência diária de mortos e esquecidos.As guerras são uma espécie de Holocausto entre etnias, mas ainda mais ignominiosa entre compatriotas. A guerra civil – oh, como foi difícil assim ser classificado o conflito sírio pelos organismos que se dizem protetores da segurança da paz mundial!

Já, ab initio, era uma realidade a olhos vistos que os sírios começavam uma guerra civil. A ONU, contudo, com aquela conhecida maneira de “colocar panos quentes"  no que não afeta mais de perto os seus interesses político-ideológicos mais prementes, atua apenas com discursos  e negociações  que não surtem nenhum efeito. Não passam de  protocolos  diplomáticos e de apertos de mãos. De tanto permanecerem com medidas fracamente paliativas com respeito à Síria e à posição genocida do seu ditador, as mortes de inocentes civis se foram amontoando geometricamente sem que nenhuma decisão conclusiva fosse posta em ação. Diplomacia capenga, com passo de tartaruga, não dá certo, não intimida o inimigo. Ao contrário, o estimula a fortalecer seus objetivos beligerantes e destrutivos, arrasando países e civilizações, vidas e sonhos, felicidade e paz. Tenham pena da Síria e de outras nações oprimidas, sem liberdade, sem paz, sem alimento e sem perspectivas. Sejamos simplesmente humanos. Com esse sentimento apenas já teríamos evitado inúmeras tragédias de perdas de vidas nesse desencontrado planeta Terra.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Uma comédia de erros





Cunha e Silva Filho



O maior episódio de imoralidade da política brasileira, conhecido como Mensalão veio a público após a declaração do deputado do PTB,  Roberto Jefferson, de que era um fato materializado, concreto, do qual ele mesmo fazia parte.

Consistia num esquema de deslavada corrupção entre o comando do PT e setores privados, bancos e empresas, ligados ao governo federal através de contratos de licitação, prestação de serviços, corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro, implicando dinheiro público, empréstimos falsos, propinas, cheques, dinheiro em espécie pago a corrompidos, escondido até em bolsos de paletós e até mesmo em cuecas de deputados federais.

Isso tudo para conseguir maioria de votos de partidos coligados às lideranças do governo federal, os chamados partidos da base  política do governo, cuja meta principal era a aprovação de projetos do governo.. Na época de sua eclosão, jornais de grande porte, como a Folha de São Paulo, Jornal do Brasil e revistas de grande circulação nacional, como Veja , analisavam esmiuçadamente, como se fossem capítulos de um folhetim rocambolesco, todo o desenrolar desse período sombrio da política nacional. Foi nessa época que jornalistas brilhantes, como Fausto Wolff, entre, outros, desancaram os principais protagonistas dessa cena lamentável da recente história brasileira.

O curioso é que, até hoje, já com a história do Mensalão sendo objeto nuclear de julgamento no Supremo Tribunal Federal, os conhecidos envolvidos nas acusações já foram defendidos pelos seus respectivos advogados diante da Corte máxima da Justiça Brasileira e, todos eles, os advogados, são uníssonos em declararem serem os réus “inocentes’(sic!).

Ora, ninguém sobrou como culpado? É estranho para os leigos em assuntos de defesa em julgamentos. Todos os réus, dos principais protagonistas às avessas (José Dirceu, et caterva, aos coadjuvantes e subalternos, nenhuma culpa tiveram com o episódio fatídico do Mensalão – episódio atualmente negado por muita gente que até parece com a história da negação da existência do Holocausto.

Afinal, me pergunto, quem vai ser condenado e, se condenado, que punições irá receber o sentenciado? O que me intriga também é uma dúvida: quem foi o chefe –mor do Mensalão? Um dos advogados já se pronunciou diretamente sobre essa delicada questão. E daí? Onde se buscarão as evidências da acusação, sobretudo contra alguém que, se candidato fosse novamente à Presidência da Republica, estaria vitorioso. Como entender, então, a psicologia um povo como o nosso, povo, em geral, muito individualista, muito dividido em suas castas sociais que mais parecem os indianos.

Todos os acusados aí estão, aguardando a sua sentença. E depois das sentenças, o que irá acontecer a eles? Serão presos, sem brechas e sem condicionamentos jurídicos de “bom comportamento”, de direito à diminuição de penas, de prisão domiciliar, de direito a uma “condicional?” Ou será que o Mensalão era mesmo um fantasma criado pela oposição? Vai ver que muita gente acredita na inexistência desse fato histórico. Não há pessoas que, até hoje, desconfiam que a descida do hoem à lua foi uma invenção um truque da NASA para dar mais poderes políticos e científicos aos americanos?

Como é opinião geral entre os brasileiros de que ricos ou arrivistas não vão para a cadeia, sobretudo se forem pessoas que exerceram altos cargos na República, não fica tão difícil prever qual o destino que se reservará a todos os acusados. Depois que o Direito como ciência tanto se desenvolveu no mundo ocidental, não há questões intricadas concernentes a crimes de colarinho branco que não possam ser resolvidas favoravelmente pela própria Justiça, desde que se instituiu o expediente legal de “o acusado pode recorrer.” Destarte, o tempo e os homens, bons e maus, íntegros ou improbos, passam, morrem, são esquecidos, entram, pelo lado da podridão moral, para a História, e a vida no planeta Terra prosseguirá no meio do crime e da impunidade.

Enquanto isso, lá no STF, vão soar as vozes da condenação ou da inocência  naquele dilema típico dos tribunais ingleses no julgamento dos acusados: “guilty or not guilty?” O auditório, em silêncio, a tudo isso assiste com vontade de gritar verdades que, por educação, medo das conseqüências, ou se falando, reafirmando as “mentiras convencionais da nossa civilização.”

Lá fora, nas cidades, sobretudo metrópoles, sofrem os oprimidos que, por um simples furto de uma sabonete, são pegos por cuidadosos vigilantes do patrimônio privado. Às vezes, espancados antes de serem entregues à força policial. São logo lançados no cárcere dos distritos, sem a presença poderosa dos advogados brilhantes e talentosos, alguns eloquentes, advogados do elitismo público ou privado do establishment em nosso país. Esta é a melhor imagem que se possa ter da nossa Justiça, vendada mas justa. Que distância entre as medidas e os pesos!





sábado, 11 de agosto de 2012

Teresina: na Praça Pedro II




Cunha e Silva Filho



Foi em 1974. À tardinha, tínhamos passado por alguns lugares bem conhecidos de Teresina. O tempo, porém, passou rápido como o tênue fio que separa a vida da morte. Quando demos fé, já era tarde da noite. Nossa conversa, em pé, encostados à mureta da parte mais alta da Pça Pedro II da velha Teresina cansada de guerra, naquela divisão social e preconceituosa que separava, por uma rua, as duas partes da praça, uma a das meninas de nível social mais alto ou bem alto, e a outra, em que estávamos, que dava para o antigo Quartel de Polícia, lugar das meninas pobres, das então chamadas curicas.

Evandro e eu estávamos ali, olhando para uma praça quase vazia, que parecia abandonada por seus frequentadores. Mas, esse vazio pouca diferença fazia para o dois jovens irmãos, eu, um ano mais velho que ele, recém-chegado do Rio depois de dez anos sem ver meus pais.

Com de costume, nossas conversas se voltavam para o futuro e para um futuro muito colado às coisas da cultura, de livros, de sonhos e projetos que pretendíamos concretizar com o passar do tempo. Me dizia o mano Evandro: “Chico, a gente tem que fazer alguma coisa sólida na campo literário. Isso é coisa séria, exige muita leitura, preparo, lutas, combates, e principalmente estudos.. É preciso produzir, irmão! Porém, tem que ser alguma coisa que valha a pena , que tenha valor, que perdure e deixe marcas.

Naquela época eu já começara a escrever pra jornais de Teresina e, no Rio, mal acabara de me graduar em Letras. Evandro tinha já manifestado inclinação para a poesia. Fizera poemas que eu não conhecia. Já estava formado em Direito e era recém-casado. Já tinha passado pela militância universitária. Fora preso, durante alguns meses, pela Ditadura Militar.

Essas lembranças que alinhavo agora vêm a propósito da notícia pesarosa que hoje me chegou de um telefonema de minha irmã, a Maria Cândida, me transmitindo aquilo que jamais esperaria saber tão prematuramente, a de que Evandro faleceu nesta madrugada num hospital de Fortaleza, para onde há alguns meses foi se tratar de uma doença que dele exigia um transplante. Operaram-no. Resistiu à cirurgia. Estava bem, me informara minha irmã. Contudo, três meses  depois, não sei ao certo, passou mal e veio a falecer aos sessenta e cinco anos.Seu corpo será trasladado de avião para Teresina, onde vai ser velado e sepultado. É o terceiro irmão que perco nesta vida . Estou arrasado por dentro, mesmo tendo que confessar que, tempos atrás, depois da morte de papai, guardara alguma mágoa dele por razões que hoje já não significam muito ou nada mesmo. O sangue fala mais alto.

Na realidade, nunca brigamos de verdade. Nas vezes que estive com ele, quando ia a Teresina, sempre nos tratamos bem. Ele tinha um temperamento alegre não dava mesmo para ter raiava dele. No ano passado, quando fui lançar meu livro As ideias no tempo, na Academia Piauiense de Letras, ele lá comparecera no auditório da APL. Me ouviu expor sobre meu livro e comprou um exemplar que lhe autografei. Eu estava com o meu filho mais velho, o Neto. À noite, do mesmo dia do lançamento, levou-nos ele no seu carro a um passeio por Teresina. Fomos a um Shopping, tomamos sorvete. Conversamos e rimos muito da vida e dos homens. Evandro era espirituoso, inteligente, culto, lido, escrevia bem e era contundente. Não lhe faltava uma boa dose de sarcasmo contra mediocridades. Tinha boa leitura no campo sociológico e argumentava com muito vigor intelectual. Grande admirador da alta literatura universal. Seu espírito de autocrítica talvez o tenha refreado a produzir mais literatura, no conto e na poesia. Leu também o que era bom e tinha projetos de escrever mais ficção. Tinha especial talento para o jornalismo, Uma vez, fundara uma revista, que durou pouco tempo.

O que nele mais ressaltaria, neste momento de dor, era a sua veia crítica, o seu sarcasmo, como se rabelaisianamente quisesse rir das nulidades e de si mesmo.Naquele último encontro que tive com ele,antes de descermos do carro meu filho e eu, estava selado pelo destino o meu convívio com ele, que  no geral sempre se dava, em horas tão breves e fugidias, mas cheias de risadas, de relatos engraçados sobre homens, fatos, situações familiares num tom de voz que lhe era inconfundível, sobretudo porque costurado pela ironia dos que vivem a vida pelo instante que passa.

Nos meus arquivos guardo dele uma carta de 1990, um recorte de jornal de Teresina com um poema dele juvenil à maneira de Augusto dos Anjos (1884-1914) e uma crônica/conto autobiográfico em que o personagem principal é a figura de papai num momento difícil da vida do grande jornalista.

O melhor período que passei com ele foi na infância e início da adolescência. Evandro adorava que lhe contasse narrativas de livros que eu tinha lido. Naquela época de ouro e de inocência, éramos muito amigos, nos amamos e era um prazer estar com ele. Um outro momento de grande emoção foi aquele em que lhe pude ajudar de alguma forma. Foi quando ele, tendo feito vestibular para Direito, não passou na primeira tentativa. Me dissera chateado que na prova de inglês havia se dado mal. Aqui do Rio - já vão tantos anos! -, preocupado com a situação dele, corri à Embaixada Americana. Conversei com o Departamento Cultural e pedi ajuda a uma gentil pessoa que me atendeu. Eu procurava material para o ensino do inglês. A assessora me meio então com um pequeno e atualizado livrinho para o ensino do inglês e destinado a brasileiros. Contente fiquei e remeti logo pro Evandro o volume. Na segunda tentativa, ele fora aprovado para o curso de Direito. Numa outra ida minha a Teresina, me confidenciou que já lia regularmente o inglês e me agradecera pelo envio daquele livrinho.

Se um profundo descompasso temporal  houve, entre ele e mim no que concerne a uma intimidade maior e a um estreitamento mais radical de nossa amizade e de nosso afeto, e isso tem sido comum entre meus familiares irmãos, irmãs, e parentes próximos, talvez tenha, em grande parte, sido devido ao meu afastamento  por  tantos anos, com poucas idas ao Piauí, ou porque talvez isso seja apenas uma questão de temperamento mesmo entre os familiares. No entanto, ainda quero acreditar que, no fundo, há respeito e bem-querer nesta numerosa família. Creio ainda na amizade e amor que correm no sangue comum.

No verbete do utilíssimo Dicionário biográfico de autores piauienses de todos os tempos, de Adrião Neto, constam estas informações biobliográficas sobre meu irmão:

SILVA, Evandro Setúbal da Cunha e Silva. n. 14-04-1947 – Amarante (PI). Contista e cronista. Formado em Direito. Fiscal do Ministério do Trabalho. Bibliografia: “Ensaios Políticos”(1981) e Relações de Empregos” (1984). Participou de “Coletânea Poética (1987) e da antologia Poética de Cidades Brasileiras” (1988).”

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Tradução do poema "Antinous", de Fernando Pessoa( 1888-1935)

O poema “Antinous,” que compõe a produção em inglês de Fernando Pessoa, faz parte daquilo que o próprio poeta denominou ciclo “imperial” relacionado à Grécia, antecipando que este poema “é grego quanto ao sentimento” e romano quanto ao dado histórico. É um poema que pertence ao que Pessoa chamou de “círculo do fenômeno amoroso”. Essas observações que agora faço se fundamentam na “Nota Preliminar, ” a que, de resto já me referi quando das minhas traduções dos 35 sonnets em forma bilíngue. A “Nota Preliminar” vem a ser uma carta a Gaspar Simões, datada de 18 de novembro de 1910. Segundo Pessoa, “Antinous”, é um poema menos sintática e estilisticamente difícil do que os 35 sonnets.

Junto com o outro poema “ Epithalamium” forma um conjunto de poesia classificada pelo próprio autor como obscenas, sendo que, em “Epithalamium”, esta dimensão obscena para ele ainda é “mais direta e bestial.”

Confessa Pessoa que ele mesmo não sabe a razão que o levou a escrever esses poemas em inglês. Por outro lado, o poeta fornece uma explicação para a feitura desses poemas vivenciando a obscenidade através da tematização do amor em poemas que Pessoa definiu como “círculo do fenômeno amoroso.” Para ele, todo homem possui, em maior ou menor, grau esse instinto obsceno.

Pessoa ainda sustentava que para compor esse tipo de poema seria necessário empregar recursos expressionais “simples” a fim de comunicar o componente da lascívia de maneira intensa, uma vez que - reconhecia ele -, na construção de poemas desta natureza iria se deparar com o que chamou de “certos estorvos para alguns processos mentais superiores.” Daí ter que, segundo ele, por duas vezes de estruturá-los na forma e expressão em que se realizaram como fenômeno estético. Segundo o seus objetivos, os dois poemas acima mencionados constituiriam um livro de poesia em torno do já referido “círculo do fenômeno amoroso”, dos quais três, à época da “Nota Preliminar, se encontravam inéditos, i.e., “Prayer to a woman’s body” “Pan-Eros”e “Anteros”, todos estes , respectivamente, correspondentes ao que foi por ele designado “ciclo imperial” da Cristandade, do Império Moderno e do Quinto Império. A edição da Obra poética de Pessoa de que me utilizo não inclui esses poemas de que fariam parte o “pequeno livro” de que fala o autor de Mensagem.

No “Apêndice” à edição da Obra poética de Fernando Pessoa, volume único, com organização, Introdução e Notas de Maria Aliete Galhoz (Rio de Janeiro, RJ.: Editora Nova Aguilar S.A., 1977, seção “Notas e variante,” as explicações dos poemas aqui considerados nesta minha brevíssima introdução oferecem excelentes subsídios na sub-seção “Poemas Ingleses”, p. 809.) quanto às referências a estudos crítico, ensaios, artigos bibliografia ativa e passiva alusivas aos poemas em inglês e francês e às traduções de poetas de outras literaturas realizadas por Pessoa.

Entretanto, gostaria de sublinhar uma observação pertinente de Pessoa (cf. “Notas e variantes”, p. 810) com respeito à escrita dos poemas “Antinous” e “Epithalamium”, dirigida em carta a Cortes Rodrigues, em 4 de setembro de 1916: “vai sair Orfeu 3. É aí que, no fim do número, publico dois poemas ingleses meus, muito indecentes, e, portanto, impublicáveis em Inglaterra” (Grifos meus).

A tradução que lhe trago agora, leitor, dá prosseguimento ao meu projeto de traduzir pelo menos os poemas escritos em inglês de Fernando Pessoa. Desta vez, não apresentarei minha tradução em formato bilíngue, visto que quis poupar a paciência do leitor apresentando no mesmo espaço o poema “Antinous”, que é longo. Desse modo, remeto o leitor interessado à edição acima mencionada para eventual confrontação. Não pensei na ideia de, antes de empreender a minha tradução, dar uma olhadela nas traduções de eminentes tradutores que me precederam, como, por exemplo, Jorge de Senna, Adolfo Casais Monteiro, entre outros.

Fora do julgamento crítico de autores de língua portuguesa, a poesia pessoana escrita em inglês, foi bem recebida por grandes críticos portugueses, posto que, em Portugal, quando foram publicados os 35 sonnets, não tivessem tido nenhuma repercussão “publica”. No entanto, tendo Pessoa os enviado à Inglaterra, dois jornais ingleses, na parte destinada à crítica literária, fizeram-lhe elogios, chamando a atenção para o domínio perfeito dos versos em inglês, por eles chamados quase ‘isabelinos,’ “livresco”, e acentuando neles a “composição formal”.

Os jornais em referência foram The Times e Glasgow Herald, em número publicado com igual data, 19 de setembro de 1918 (Cf. “Notas e Variantes”, p. 810).

No tocante ainda à valorização de seu estro poético, The Concise Modern world literature, editado por Geoffrey Grigsno ( London: Hutchinson & Co., 1963), no verbete sobre Fernando Pessoa, embora reconhecendo-lhe o alto valor de sua poesia escrita em português, não estende este mesmo julgamento quanto aos poemas pessoanos escritos em inglês, considerando os poemas em português “ ...incomparavelmente superiores” (p. 352-353). Naturalmente que o meu julgamento não se coaduna com o autor do verbete por outros motivos que não vêm ao caso, por ora, examinar.

Quero deixar, contudo, bem claro ao leitor que esta tradução há pouco concluída, não se encontra, a meu juízo, num nível de excelência que gostaria de imprimir a um trabalho áspero e ao mesmo tempo desafiador como este. Seria mais conveniente e modesto de minha parte afirmar que, no que tange ao poema “Antinous”, esta é uma primeira tentativa de exprimir o pensamento poético pessoano dentro das possibilidades do que pude por ora concretizar. Não devo omitir que , durante o trabalho de dar equivalência , o mais possível, aproximada do pensamento do poeta, muitas vezes, parando num a estrofe traduzida, senti o prazer que, em alguns momentos a poesia e o pensamento de fundo filosófico de um poeta como Pessoa, deixam transparecer da emoção da leitura e de sua correspondente reflexão acerca dos sentimentos humanos elevado a um nível de universalidade, ainda que no desenvolvimento de um tema amoroso considerado ainda preconceituoso por algumas mentes.







ANTINOUS





LÁ FORA A CHUVA de Adriano a alma engelhava.



Morto jazia o mancebo

Em sua nudez completa, no baixo leito,

Ante os olhos de Adriano, cujo sofrimento algo terrível lhe era.



Do eclipse da morte, sombreada, esparzia-se a luz.

Inerte jazia o mancebo. Lembrava o dia uma noite.

La fora, caía a chuva qual um enfermo apavorado

Com a Natureza que lhe roubava a vida.

De sua memória o legado nada contentava

Pois morta e apagada a alegria do que tinha sido estava.



Ó mãos que outrora abraçado haviam de Adriano as mãos cálidas

Que, agora, pelo friagem, gélidas sentia!

Ó cabelos com fitas vigorosas amarradas antigamente!

Ó olhos de ousadia meio tímida!

Ó corpo nu macho-fêmeo

Que, aos olhos da humanidade, a um deus semelhava!

Ó lábios, cuja vermelha abertura outrora roçar sabiam

Da luxúria os lugares com uma vívida variedade de artifícios!



Ó hábeis dedos das indizíveis coisas!

Ó línguas que, tornadas uma só, o sangue incandesciam!

Ó domínio completo da concupiscência entronizada

Na interrupção líquida da consciência em fúria!

Inexistentes para sempre devem ser agora todas essas coisas.

Silenciosa é a chuva, e o Imperador,

Ao pé do leito, se desespera.. Fúria é sua dor.,

Pois os deuses consigo levam a vida que nos deu

E arruínam a beleza à qual da vida o sopro deram.

Ele chora e sabe que, cada época vindoura,

Além do futuro, o observa.

Num nível universal posiciona seu amor.

Milhares de olhos futuros a miséria pranteiam-lhe.



Morto está Antinous. Morto para sempre,

Para sempre extinto. De todos os amores geral lamentação.

A própria Vênus, que era o amor de Adônis,

Vendo-o, aquele que de novo viveu e, agora, novamente morto está,

Aquele que há pouco existia e, agora, de novo defunto está,

Leva-a do antigo pesar a comungar.



Apolo, agora, triste anda porque o ladrão

De seu alvo corpo para sempre gélido fica.

Naquele ponto do mamilo nenhum beijo cuidadoso

Cobrindo o lugar silencioso das batidas do coração restaura

Para lhe abrir os olhos outra vez e sentir-lhe

A presença nas veias seguras da fortaleza do Amor.

Nenhum calor seu do outro calor exige

Suas mãos, soltas agora, por detrás de sua cabeça,

Naquela postura que tudo concede exceto as mãos,

Sobre o corpo projetado suplicarão mãos.



Cai a chuva e ele jaz como alguém que

Todos os gestos de seu amor esqueceu

E, despertado, continua por seu apaixonado amor esperando

Com a Morte se foram todas as suas habilidades e galanterias.

Não pode este gelo humano calor algum mover.

De um fogo estas cinzas nenhuma chama queimar não podem.



Ó Adriano, o que farás agora de vossa gélida vida?

Que botas deveriam ser senhor dos homens e do poder?

Por sobre o teu império visível sua ausência

Dele a ausência se faz sentida qual um noite.

Não mais existirão manhãs de esperanças e de delícias.

Agora enviuvadas são tuas noites de amor e beijos.

Os dias de esperas noturnas te foram agora roubados.

Teus lábios agora o sentido perderam de tuas alegrias,

A não ser para nomear que a Morte é

Companheira da solidão, da tristeza e do medo.



Tuas mãos indefinidas tateiam, como se tivessem deixado escapar a alegria.

Tua cabeça ergue a fim de ouvires que a chuva acabou,

E dirige ao teu adorável mancebo o teu levantado olhar.

Sobre aquele leito memorial nu, jaz ele.

Descoberto por tua própria mão, ali permanece.

Afeito a saciar teu senso instável, lá estava ele.

Insaciável e saciando mais e importunando-o

Com renovadas insaciabilidades até que sangrassem os sentidos.



Jogos conheciam sua mão e sua boca para restabelecerem

Desejos que tua gasta espinha com dificuldades suportaria.

Às vezes, a ti afigurava que era tudo vazio

De percepção em cada novo esforço de chupada luxúria.

Em seguida, para novos volteios de galanterias convocaria eles

À carne de teus nervos e tu estremecerias

sobre tuas almofadas recaindo com a sensação de teu espírito silente





.”Belo foi meu amor, , melancólico, todavia.

Daquela arte senhor que o amor cativo por inteiro torna,

Por ser lentamente triste entre as paixões da lascívia.

O Nilo, agora, o abandonou, o eterno Nilo

Sob suas madeixas molhadas da Morte a palidez azul

Contra nossos anelos de sorrisos tristes agora guerra trava.”



Até mesmo quando, pelo pensamento, a luxúria, que não é mais

Do que um esquecimento que pelas mãos reacende-lhe,

Desperta-lhe os sentidos a carne viva

E tudo de novo parece o que antes fora.

O corpo inerte no leito recompõe-se, vive

E vem para junto dele, cada vez mais junto e

Em movimentos uma invisível mão com gestos amorosos

Direcionados a todas as aberturas do corpo, a concupiscência estimulando,

Sussurra carícias rápidas que, no entanto, apenas

Demoram o bastante para sangrar de seu derradeiro vigor as fibras.

Ó doces e cruéis fugitivos paritas!



Destarte, meio que se levanta com os olhos no amante postos,

O qual, agora, nada amar pode senão o que ninguém conhece.

Vagamente, meio enxergando o que na verdade observa,

Percorre com os lábios frios o corpo inteiro.

E, assim, sem se importar com a gelidez, são os lábios que, olha!,

Na frieza do corpo imóvel mal sente ele a presença da morte,

No entanto, parece que ambos mortos ou vivos estão

Pois é o amor ainda a presença e o alento,

Enfim, na indolência gélida dos lábios do outro se cansam seus lábios.



Ah, ali a respiração pesada faz-lhe recordar os lábios

Que, independente dos deuses, uma neblina dissipou,.

Entre ele e o mancebo. As pontas dos dedos

Ainda indolentemente examinando-lhe o corpo, aguardam

Alguma reação da carne a seu estímulo para despertar.

Porém, a pergunta deles sobre o amor entendida não é:

Morto é o deus cujo culto devesse ser beijado!



As mão se levanta para o lugar onde o céu deveria estar

E grita para que mudos os deuses sua dor ouçam

Que que vossas mansas faces à sua súplica atendam,

Ó forças decisórias! De seu reino ele abdicará.

Ressequido viverá nos calmos desertos.

Nos distantes e selvagens caminhos um mendigo ou escravo será,

Porém, devolvei aos seus braços novamente o caloroso mancebo!

Se o privardes dessa oportunidade, estareis sua morte decretando!



Retirai da terra toda a feminina delicadeza

E num túmulo ainda restará algum vestígio!

Porém, pelo suave e valioso Ganimedes, Júpiter

Substituiu Hebe por ele e decidiu encher

Sua taça em grande festejo, instilando

O amor mais propício que a falta do outro.

Dos abraços femininos dissolve-se a terra

Em pó. Ó pai dos deuses, poupai, contudo,

Este mancebo, seu alvo corpo e seus áureos cabelos!

Talvez se fosse por vosso grandioso Ganimedes

Vós o farias, mas só por razões de ciúmes

Dos braços de Adriano a sua beleza para ti arrebatastes.



Um gatinho ele era fazendo o jogo da volúpia,

Sem ninguém, ou com Adriano, às vezes, só.

E às vezes ambos, ora unidos, ora afastados.

Ora sem sensualidade, ora prolongando-a em altas doses;

Ora com os olhos nela não tão abertos, no entanto, de esguelha

Saltando em volta em meia expectativa libidinosa;

Ora levemente reprimindo-a, em seguida, em incontida fúria,

Ora brincando só por brincar, ora com vontade, ora deitando-se

Junto dele, olhando-o, ora espreitando

Qual maneira de segurá-lo em seu justo controle de libidinagem.



Assim passavam as horas nos gestos das entrelaçadas mãos

E com seus membros unidos as horas voam.

Ora folhas mortais seus braços eram., ora fitas de ferro;

Ora eram seus lábios xícaras, ora as coisas que sorvem;

Ora seus olhos ficavam muito unidos; ora eram apenas olhares;

Ora em ação se achavam em descontínuos delírios;

Ora eram suas destrezas uma pluma, ora finalmente um chicote.



Uma religião se lhes tornara o amor.

Oferecida aos deuses que aos homens surgem.

Por vezes, adornava-se ou se deixava vestir

Parcialmente, depois, em e nudez de estátuas,

Imitavam, na realidade, algum deus que semelhava ser,

Em virtude da qualidade apurada do mármore, novamente homens.

Ora era Vênus, branca dos mares surgindo;

Ora era Apolo, jovem e louro;

Ora era Júpiter sentado, saciado ele em julgamento simulado diante da

Presença de seu amante a seus pés.;

Ora era ele um rito representado por alguém vigiado

Em mistérios sempre renovados.



É ele agora alguma coisa que qualquer um pode ser.

Ó inflexível negação da coisa que existe!

Ó amorosidade qual a lua de áureos cabelos!

Em demasia frios! Excessivamente frios! e o amor como ele tão frio!

Vagueia sim o amor através da memória de seu amor,

Como num labirinto, em triste júbilo da loucura.

Muito frio! Demasiadamente frio! e o amor tão frio como ele!

Vagueia sim através da memória de seu amor,

Qual num labirinto, em triste júbilo da loucura,

Que ora lhe invoca o nome e lhe pede que venha,

E ora sorria para a sua vinda representada,

Que é o coração como rostos vespertinos –

Puras sombras brilhantes das originais formas.



De volta veio a chuva qual uma indefinida dor

E no ar pôs a sensação líquida.

De súbito, o Imperador supôs que,

Bem distante, avistava esta sala e tudo ao seu redor.

Viu, então, o leito, o mancebo e a sua própria imagem

Lançada contra o leito e ele para si mesmo se tornou

Uma presença mais evidente, dizendo

Estas não proferidas palavras, exceto para a angústia de sua alma:



“ Para vós uma estátua edificarei, que servirá como

Prova, aos tempos futuros,

De meu amor, da vossa beleza e da percepção

Da divindade que a beleza propicia,

Posto que a morte, com sutis mãos reveladoras, destrói

da vida o aparato e de nosso amor o império.

Entretanto, sua estátua nua, à qual realmente vós dais vida,

A posteridade, contra a sua vontade ou não,

Sem dúvida, há de herdar, como uma dádiva de um deus constrangido.



“Sim, uma estatua vossa hei de erigir e marcar

Sobre o pináculo de vosso ser,

Por seu sutil e obscuro crime, aquele Tempo

Que receará destruir-te a vida, ou desgastar-se

Com a ferocidade da guerra e da inveja da massa e da pedra.

Não pode ser isso o Destino! Os próprios deuses, que fazem

Alterar as coisas, se transformam, a própria mão

Do Destino que por força suplanta

Os deuses propriamente ditos com a escuridão, recuará

Em arruinar desta forma vossa estátua e minha dádiva.



“Esta imagem de nosso amor os tempos cimentará.

Surgirá ele límpido do passado e será

Eterno que nem uma vitória romana.

Em cada coração se enfurecerá o futuro

Por não ter sido contemporâneo de nosso amor.



“No entanto, oh, se tudo sucedesse diversamente

Seríeis a vermelha flor minha vida perfumando.

Sobre as fontes das minhas delícias as grinaldas,

Da minh’alma a viva chama dos altares!

Fosse tudo isso algo de que agora pudésseis

Sorrir por sob as pálpebras da morte zombeteiras.

Imaginar que eu pudesse assim um prélio travar

Entre mim e os deuses em favor do brilho de vossa perdida presença;

Nada disso houve, salvo o vazio do meu ser

E vosso sorriso despertando meio consolando

O que proíbe a dor de com a esperança sonhar .”



Destarte, encaminhava-se ele qual um amante em espera,

Com esta tênue dúvida, de lugar para lugar.

Sua esperança, ora era uma grande intenção condenando-lhe

O desejo do ser, ora sentia ele que cego estava

De certo modo à percepção de seu indefinido desejo.



Não sabemos o que sentimos quando o amor a morte encontra.

Não sabemos o que r quando o amor a morte frustra.

Ora da esperança duvidava ele, ora sua esperança duvidava;

Ora o que seu desejo sonhava, a razão do sonho na realidade dele escarnecia.

E congelava a avivam um exasperado vazio.

Por outro lado, avivam os deuses do amor o escuro brilho.



“Vossa morte uma sensualidade mais elevada me concedeu -

Uma fulminante licenciosidade para a eternidade vociferando.

No meu destino imperial minha confiança deposito

A fim de que os altos deuses, que imperador me fizeram,

De mais autêntica uma vida não me negarão

O desejo de que vós devíeis viver para sempre e permanecerdes

Uma fresca presença no mundo deles melhor,

Mais encantadora e no entanto não mais sedutora,

Coisas impossíveis não há que destruam nossos desejos,

Nem nossos corações aflijam com mudança, tempo e luta.



“Amor, amor, amor meu! Sois um deus completo.

Este pensamento meu que, creio eu, seja um desejo,

Não o é , mas uma visão a mim concedida

Pelos grandes deuses, os quais amam de verdade e podem dar

Aos corações mortais, sob a forma de desejos –

De desejos contendo limites ocultos –

Das coisas genuínas uma visão além de

Nossa vida emparedada, de nossa percepção aos sentidos presa.

Sim, o que vos desejo que sejais já o sois.

Agora. Já n solo Olímpico.

Caminhais e sois perfeito, sois, todavia, o que sois,

Porquanto de nada mais necessitais para vos assumirdes

Perfeito, de vez que a perfeição sois.



“Canta meu coração qual um pássaro matinal

Nos deuses chega até mim uma grande esperança

E a meu coração pede que animado seja pelo mais sutil sentimento

E que maldade estranha alguma vos atinja

Pois pensar assim de vós mortal seria.



“Meu amor, meu amor, meu deus-amor! Deixai-me beijar

Vosso frígidos lábios ferventes, imortais agora,

Saudando-vos ante a ventura do portal da Morte.



“Não houvesse ainda nenhum Olimpo para vós, meu amor

Dar-vos-ia um , no qual o único deus poderia domínio ter

E eu vosso único adorador alegremente seria.

Vosso exclusivo adorador por toda eternidade.

Que um divino universo suficiente fosse

Para o amor e para mim e o que para mim sois.

Ter-vos é algo feito da matéria dos deuses.



“Esta, contudo, é a verdade, e a minha própria arte: o deus

Que agora sois corpo é por mim criado.

Porque, se agora sois da carne realidade

Além da qual os homens envelhecem e a noite ainda desce,

É graças ao meu grandioso poder de criar o amor que vós deveis

Essa vida que infundistes em vossa memória

E a tornastes carnal. Não tivesse meu amor

Possuído um império feito de minha poderosa vontade legionária,

Não teríeis sido enviado à companhia dos deuses.



“Descobriu-vos meu amor no momento em que vos

Acháveis apenas no vosso próprio corpo e natural aparência.

Portanto, quando agora invoco vossa lembrança, Eu apenas ascendo

Ao topo da altaneira coluna da morte na forma que assumiu

E a ponho lá como uma visão de todos os amores.



“Ó amor, meu amado, com a minha firme amorosa vontade, juntai-vos

Ao Olimpo, e lá sede o último dos deuses, cujos cabelos da cor de mel

Revelem divinos olhos! Assim como fostes na terra, ainda

No céu vos mostrais em forma física e vos movimentais,

Daquela felicidade do lar, um prisioneiro

Junto aos deuses mais antigos, enquanto eu na terra farei, sim,

Uma estátua em louvor à vossa viva imortalidade.



Entretanto, vossa verdadeira estátua viva hei de construir.

Não será de pedra somente, porém daquela mesma tristeza

Ditada pela vontade do eterno amor.

Sois um lado dela, consoante vos veem os deuses

Agora, e o outro, aqui, fala da memória vossa.

O deus daqueles homens meu lamento tornar-se-á e porão

No parapeito vossa nua memória

A qual dá para os mares dos tempos pósteros.

Dirão alguns que todo nosso amor não foi senão nossos crimes;

Outros afiarão contra nosso nomes os punhais

De seu ódios feliz contra a beleza da beleza e farão

Com que nossos nomes uma base de apoio sejam com a qual apaguem

Com desprezo total os nomes de todos os nossos irmãos.

Contudo, nossa presença, como eterna Manhã,

Haverá sempre de retornar à hora da Beleza e cintilar

Do Leste do Amor, como luz em relicários engastando

Novos futuros deuses, com o fim de adornar o mundo carente.



“Tudo que agora sois somos eu e vós.

Contém sua unidade nossa dual presença

Naquela perfeição do corpo em que meu amor,

Por vos amar, se tornou e na verdade da vida

Fez-se deusa, em paz superior à luta

Dos tempos, e das muito superiores cambiantes paixões.



“Dado que, porém, os homens veem mais com os olhos do que com a alma,

Imóvel eu, na condição de pedra, confessarei esta grande dor;

Imóvel, desejosa de que anseiem os homens por vossa presença,

Este pesar conduzirei até ao mármore

Que, em meu coração, se incrusta qual uma estrela especial.

Destarte, mesmo na pedra, nosso amor

Há de tão grandioso permanecer

Em vossa nossa, como, destino dos deuses,

De nosso amor encarnado e desencarnado a essência,

O qual, à semelhança de uma trombeta pelos mares ressoando

E atravessando de continente a continente

Sua alegre tristeza, com o sabor da morte nosso amor há de exclamar

Por sobre infinidades e eternidades.



“E aqui, memória ou estátua, continuaremos,

Ainda unidos, de mãos dadas, sempre.

Simplesmente por sentir, não sentimos a mão um do outro.

Ainda me compreenderão os homens quando perceberem o vosso sentimento.

Poderiam todos os deuses passar pela enorme rotação dos

Tempos terrestres. Se, a não ser por vossa causa, e sendo vós um deles, foi

Que vós havíeis acompanhado a partida daqueles deuses.

Ainda assim, retornariam eles, porquanto, para despertarem, dormido haviam.



“Então, no fim dos dias, logo que Júpiter renascesse

E Ganimedes outra vez início desse a seus dias festivos,

Veria nossa dual alma da morte libertada

E re nascida para a alacridade, o medo, a dor –

Ou seja, tudo que no amor se encerra;

A vida – toda a beleza que realmente em lascívia se torna .

Do lídimo amor propriamente dito do amor com o encanto surpreso;

E, se nossa própria memória por inteiro se apagasse,

Mercê da raça de alguns deuses do final dos tempos, ressuscitar

Deveria nossa dual unidade.”

Prossegue a chuva. Todavia, noites ocm passos lentos caíam,

Fechando as pálpebras de cada sentido cansadas,

A consciência própria de si mesmo e da alma

Aumentou, tal qual uma paisagem em que pouco chovia, pouco mesmo.

Imóvel se encontrava o Imperador, tão imóvel que, agora,

Com que meio olvidara onde a gora estava, ou

De onde vinha aquele lamento que era ainda sal para seus lábios.

Fora tudo algo muito distante, um pergaminho

Fechou-se. Aquilo que sentia era igual a um círculo

Que a lua aureola assim que chora a noite.



Curvada estava sua cabeça sobre os braços, e eles, deitados,

Sobre o baixo leito repousavam, aos seus sentidos alheios.

Seus olhos cerrados se lhe figuravam abertos e vendo

O chão vazio, escuro, frio, triste e sem sentido.

Seu arfar doente era tudo o que sua percepção saber podia.

Da escuridão que descia o vento levantou-se

E caiu.Nos pátios inferiores uma voz sumiu;

O Imperador dormia.

Os deuses, agora, surgiram

E consigo alguma coisa levaram - não há como saber o que fosse –

Nos invisíveis braços do poder e do descanso.





                                                                                  (Trad. de Cunha e Silva Filho)