quinta-feira, 23 de junho de 2011

Os buracos da Terra e um outro buraco

Cunha e Silva Filho


Será que o pensamento dos indivíduos seja mesmo original? A resposta me escapa e simultaneamente me instiga. Digo isso porque, enquanto posso pensar numa idéia que acho original, muitas outras pessoas, em qualquer parte, no país, ou no mundo, podem estar pensando na mesma coisa. O exemplo dos buracos feitos no nosso Planeta (contam-se, pelo menos, seis grandes, distribuídos na África do Sul, Estados Unidos, Sérvia, América Central e Canadá) explicam muita coisa, desde as razões geológicas até as políticas, i.e., se no mundo há muitos buracos feitos, em geral, pelo homem, há também um buraco a que se refere um vídeo que eu vi há pouco e que me inspirou a tecer algumas considerações mais adiante.
Enfim, leitor, são alguns os buracos que se fazem na Terra, buracos para muitos fins, inclusive para uma função primordial: a de exploração do subsolo para o enriquecimento das nações. Só que enriquecimento aqui não se aplica a distribuir benefícios a todos, mas a alguns, aos privilegiados senhores das riquezas do Planeta. Quer dizer, os buracos assumem uma importância econômica direcionada ao poder do Estado que deles se tem apossado ao longo da História.
Não vou desconhecer que os buracos que se abrem para deles extrair minérios, diamantes, carvão, petróleo, pedras preciosas, ferro, ouro e outras matérias ou substâncias existentes no subsolo e em camadas cada vez mais profundas que se calculam em quilômetros e em colossais diâmetros de crateras, não sejam, até certo ponto, de grande utilidade para as demandas do consumo das nações.
Contudo, não posso omitir um dado que me martela sempre que penso nesse assunto, o de que há exageros nessas extrações, notadamente quando se tem em vista os males físicos causados à Terra, planeta que, além de sofrer continuamente essas depredações por parte dos governos associados às ambições dos comandos capitalistas globalizados, vive a precariedade crescente da poluição, degradação do meio-ambiente, efeito estufa e de outros prejuízos à saúde do ser humano e do próprio Planeta.
O certo é que nem as águas dos oceanos são poupadas nessas explorações profundas para extrair e extrair recursos até se exaurirem, mas que deixam irreversíveis estragos em nosso Planeta. sem falar da nossa atmosfera que, pelo menos, desde, pelo menos, a 1ª Revolução Industrial, passou a sofrer o ataque da ação humana predatória, liberando gases, dióxido de carbono, fumaças etc.
Da mesma maneira, poderia mencionar outros tipos da ação des/humana: os desastres em forma de incêndios, os testes de explosões atômicas nos mares, desertos, ou, ainda por razões de guerra, conforme ocorreu na Segunda Guerra Mundial, o lançamento de duas bombas atômicas em duas cidades japonesas ( respectivamente, em Hiroshima e Nagazaki, em 1945), a construção de usinas nucleares que, em alguns casos, resultaram em lamentáveis tragédias, na Ucrânia (Chernobil) e nos Estados Unidos(Three Mile Island) e, ultimamente, no Japão (Fukishima). Os efeitos da radiação nuclear são terríveis e duradouros e atingem mais de um país.Têm, pois, consequências globais de contaminação via atmosfera. Seus efeitos produzem câncer e complicações sérias no sistema nervoso e em outras partes do organismo.
Praticamente, todas as grandes nações do mundo têm sido há séculos responsáveis por essas ações danosas. O interessante é que, contraditoriamente, organismos mundiais, de tempo em tempo, se reúnem, em cúpulas regadas a bons hotéis e a roupas de marca, para discutir melhorias que venham reduzir o poder destruidor das ações humanas na Terra sem que, ao final de suas intermináveis discussões, alcancem alguma vitória neste sentido.
Sabemos dos motivos por que as discussões não progridem muito: não há nenhuma vontade política das grandes potências de reduzirem os seus níveis de poluição, visto que, se tomassem medidas eficazes, saneadoras do meio-ambiente, essas nações perderiam seu potencial econômico, significando que teriam prejuízos naquilo que mais afeta o ser humano: dinheiro, o lucro, a competitividade.
Portanto, os buracos, as escavações, as minas, os poços de petróleo não podem parar e, em contrapartida, a qualidade de vida vai perdendo-se em ritmo vertiginoso e a resposta da Natureza não se faz demorada: derretimento das geleiras, aumento do nível do mar, inundações dos rios, alterações climáticas, provocando, por seu turno, prejuízos materiais incalculáveis (casas destruídas, vítimas fatais, empobrecimento, novos sem-teto, desemprego, prejuízos na economia com toda a sorte de sequelas para os governos), nas cidades e no campo. Nenhum lugar do mundo está ileso desses flagelos.
Há ainda outro buraco, o chamado “Buraco dos Ratos,”segundo li de um texto que me enviaram pela internet Este buraco, com aquela denominação, seria a imagem moderna que em geral se tem da atuação e da ética de parte de políticos brasileiros e das instituições a que servem, a Câmara e o Senado - aspecto de que resumidamente tratarei agora e já anunciado no início deste artigo : a quantidade gigantesca do dinheiro público, estimada em milhões, que o país tem para manter os nossos representantes no Planalto enche de indignação os eleitores.
Além dos salários altos de que desfrutam, existem outros benefícios concedidos nababescamente aos deputados e senadores que, somados, chegam a mais de cem mil reais (!) mensais por deputado ou senador, não se contando as verbas, sob a sua responsabilidade, destinadas a obras que poderão ser realizadas nos seus estados de origem.
Ora, sabendo que o ser humano não é perfeito, não é difícil imaginar o que possa ocorrer entre a destinação das verbas e a realização de obras públicas nos diferentes setores da estrutura da máquina governamental. É exatamente nesse ponto crucial que se instala um dos mais abjetos males da política brasileira contemporânea: a corrupção, os desvios de verba, a lavagem de dinheiro, as fraudes nas licitações, o tráfico de influência, o nepotismo, os conchavos, as negociatas pagas com o dinheiro do contribuinte, as propinas, os subornos, os projetos de “mensalão.”
Deveria ser um dos principais empenhos de nossos governos reduzir a escalada da corrupção que se instalou no país, realidade que não é só de hoje, mas que sem dúvida se tornou bem mais visível na atualidade.
Enquanto não dispusermos de representantes na Câmara Federal e no Senado e, por tabela, nos governos estaduais e municipais, dignos dos seus mandatos, o país poderá se tornar uma das nações com forte tendência a cair no descrédito de países sérios que tratam a coisa pública com respeito e pensando no bem-estar dos seus povos.
Somente países com políticos íntegros, com mandatos voltados para o interesse de sua população têm condições de se afirmar como nações progressistas, desenvolvidas e felizes – estas sim, merecedoras de ser potência mundial sem os anacronismos de hegemonias belicistas de conhecidas nações.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Um poema de Henri Cazalis (1840-1909)

Dans la forêt, la nuit


Silencieuse horreur des forêts sous la nuit!
Chênes, fantômes noirs qui vous dressez dans l’ombre
Bleus abîmes du ciel, gouffre tranquille ou luit
Le fourmillement clair des étoiles sans nombre,

J’erre terrifié, les yeux fixés sur vous,
Voulant toujours percer le mystère où nous sommes,
Mais où vous demerez, interrogés par nous,
Sans réponse jamis aux questions dês hommes!

Univers, éternel, arbre à jamais vivant,
Ygdrasill, frêne émorme aux vibrantes ramures,
Quel esprit est en toi, quel souffle fort, quel vent
Vient t’agiter sans fin et t’emplir de murmures?

J’ai peur, mortel chétif, em cette immensité:
La ténébreuse horreur de ces bois me penetre:
J’ai peur, quand au travers de leur obscurité,
J’aperçois l’infini qui menace mon être.


Noite na floresta

Sob a noite silencioso horror das florestas!
Carvalhos, fantasmas negros que na sombra desenhais
Do céu abismos azuis, tranquilo sorvedouro no qual brilha
Das inúmeras estrelas o límpido formigamento.

Apavorado vagueio, em vós os olhos fixos
Desejando, penetrar sempre no mistério da vida
No qual porém, por nós interrogados habitais,
Sem nunca nos dar resposta às indagações humanas!

Universo eterno, árvore pra nenhum vivente,
Igzdrasill, enorme freixo com vibrantes ramagens,
Que espírito em ti convive, que sopro forte, que vento
Vem te agitar sem termo e de murmúrios te encher?

Dessa imensidão medo tenho, frágil mortal:
Destes bosques me invade o tenebroso horror:
Medo tenho quando, através da sua escuridão,
O infinito ameaçando o meu ser percebo

(Trad. de Cunha e Silva Filho)

O interior e a cidade

Il faut travailler beacoup pour être simples. (Baudelaire)

Cunha e Silva Filho

Ontem estive na casa de praia de um amigo especial na qual passei dois dias e meio. Teriam sido três dias se não houvesse as horas de viagem de carro de ida e volta. Mas, isso pouca monta se pensar no quanto pesa ao equilíbrio emocional e intelectual de uma criatura, de quando em quando, afastar-se da azáfama cidade e penetrar gostosamente na quietude de uma confortável casa de praia.
A cidade tem características dionisíacas, ao passo que o interior me soa algo apolíneo. Este tem a simetria da uniformidade e da monotonia necessária do dia-a-dia sem as tensões e os solavancos urbanos. Aquela possui as irregularidades, a descontinuidade, a fragmentação do indivíduo, as agressões no corpo e no espírito de cada habitante deste ‘mundo maluco.’ A cidade é a incerteza, o sonho, o feérico, os excessos, os delírios e os imprevistos a toda hora. O interior, não. Todo ele é quase passado entre o gorjeio dos pássaros no amanhecer e a calma e paz do cair do dia.
Já vê o leitor que um completa o outro como duas formas opostas, porém, no fundo, conciliadoras. Por isso, agora entendo por que Cesário Verde (1855-1886), o grande bardo luso, tantas lições tirou dos primeiros sinais da vida moderna após a experiência vivida no interior.
Se a cidade, como é vista no poema de Cesário Verde - uma obra-prima! - , que é “Sentimento de um Ocidental,” ali se presta a uma descrição caleidoscópica e veraz do seu espaço exterior e interior, parecendo flagrar com uma câmera, em ritmo lento, uma variedade humana e social de uma urbe europeia, Lisboa, no interior descobre outros ângulos de entendimento da condição social dos seus habitantes, em especial da realidade do trabalho e das implicações deste que tanto acresceram à visão ideológica do poeta.
Na realidade, a cidade pode explica o interior e vice-versa. Por conseguinte, durante a minha curta visita à casa do meu amigo, algumas peculiaridades se confirmaram no que tange à escolha que uma pessoa possa fazer: viver no interior ou na grande urbe, ou então, viver parte nesta e parte no interior. No meu caso, optaria certamente pela segunda alternativa caso tivesse condição de fazê-lo.
Para quem ainda não se dispôs a fazer escolhas, o melhor mesmo seria fazer algumas observações extraídas da recente experiência, ainda que pequena.
Quando a gente se desloca para o interior, nada me parece mais saudável e encantador do que ser bem tratado pelo amigo-anfitrião que se desdobra para nos deixar à vontade num clima semelhante ao que teríamos se estivéssemos em casa. “Aqui você pode escolher, quer ficar neste quarto ou naquele? É com você. Olhe, quando estiver com fome, é só me falar, pois a empregada já está preparando o almoço.” “Obrigado, obrigado”, lhe respondo com alegria e naturalidade. Não se preocupe tanto.”
Hora de almoçar. A mesa posta. A comida quentinha, logo desperta o apetite que aumenta sempre que o tempo está mais frio.Depois do almoço, vou para um espaço aos fundos da casa principal, onde há uma mesa enorme, cadeiras, um banco de madeira comprido e, mais adiante, junto à parede, uma churrasqueira. Contudo, o bom mesmo é a conversa que se abre entre os dois amigos. Conversa salpicada de afirmações brincalhonas e cheias de bom humor e picardia.
Nesse momento, percebo o quanto não sabia do amigo, agora em hora descontraída, sem os atropelos de um encontro na grande cidade ou no escritório onde naturalmente alguns limites se impõem. Ali no regaço de uma bela e aconchegante casa de praia, com todos os confortos, tudo me convida à informalidade, até na linguagem que se torna solta, meio confessional e nem mesmo dispensa um palavrão como sinal de liberdade comunicativa. Sem os interditos dos encontros meio formais ou mesmo formais, observo que os corações se abrem entre anfitrião e amigo. Essas horas de conversas podem se prolongar e, sem que se perceba, já são duas, três horas trocando experiências vividas. Quando demos fé, já é tempo do jantar e, depois, mais longas horas de papo se arrastando pela madrugada do dia seguinte.
No entanto, a bem da verdade o que mais valeu foram as histórias do anfitrião relatando humoristicamente fatos de sua vida e da vida alheia, contados com um jeito que só os escritores sabem contar: gesticulando, dramatizando, mimetizando, levando-me ora a reflexões sérias, ora às gargalhadas de encher os olhos de lágrimas, pois lembro ao leitor que as lágrimas também vêm das situações hilariantes, diante dos relatos grotescos e em geral da tragicomédia humana envolvendo todas as nuances, todos os tons e entretons nascidos do riso, da mofa, do absurdo e do burlesco do que os homens dizem, vivem e fazem. Relatos rabelaisianos, carnavalizados. Posso adiantar que os quase mencionados três dias se passaram, sobretudo à noite, nessa troca amigável e descontraída regada a risos e lágrimas provocados pela verve do meu anfitrião.
O passeio se completou com uma boa e revigorante caminhada, pela manhã, com meu amigo para me mostrar uma lagoa paradisíaca e com nossas conversas, agora em outro diapasão, em que refletíamos sobre assuntos que iam da fé religiosa à crença ou não na existência divina. Conversa respeitosa, sem preconceitos e reconhecendo mesmo os valores de quem se reveste de fé, seja representante da Igreja, seja um devoto cristão. Conversa que igualmente ia de fatos triviais à literatura, à economia, à política, nacional ou mundial. Conversa, finalmente, pontuada de indignação quando o assunto dissesse respeito a erros e abusos do Estado brasileiro e de suas instituições.
À noite, do dia anterior ao regresso para o Rio, meu amigo me levou pra ver como estava a decadência de um bairro, outrora nobre e cheio de gente que ali ia passar dias de alegrias e divertimentos noturnos, com a presença de gente de todas as idades, de mulheres bonitas enfeitando e dando colorido em bares, boates, restaurantes e sorveterias. Agora, só sinais de decadência de uma burguesia que perdera com os desastrados planos econômicos impostos à sociedade brasileira. Por outro lado, permaneceram alguns costumes só vistos ainda no interior, como o de ser cumprimentado por estranhos, os habitantes daquele local: “Bom dia, boa tarde, boa noite.” “Aqui é assim mesmo, as pessoas educadas, novas ou idosas, nos cumprimentam ao passarem por nós. Que diferença do Rio de Janeiro ou das cidades mais populosas! Se agíssemos assim nas grandes cidades, em que a urbanidade (sem querer fazer trocadilho ou ironia ) raramente se faz presente na sociabilidade entre os homens, até pensariam que fôssemos loucos.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Guerra, amor e paz em ficção histórica piauiense

Cunha e Silva Filho

Na breve e esclarecedora “Introdução” a esta pequena narrativa pitorescamente intitulada Parangolé (termo que significa lero-lero, conversa fiada, lábia etc.) que leva um subtítulo não menos curioso, se visto pelo lado de classificação genológica – pararromance – para mim, poderia, sem muito esforço teórico-conceitual de narratividade, apenas denominar-se “romance histórico.” Classificar, entretanto, esse tipo de narrativa empregando outras denominações conhecidas de estudiosos desse gênero híbrido, entre as quais “narrativa de extração histórica”, “narrativa histórica”, “metaficção historiográfica,” “novo romance histórico,” para o estudioso do assunto, Antônio R. Esteves, “.. tem pouca relevância.”
Adrião Neto, novamente me surpreende com sua predileção por temas da História do Piauí. Na realidade, não o situaria como historiador no sentido profissional do termo, cujo exemplo maior no Piauí seria Odilon Nunes (1899-1989) mas como um incansável intelectual e pesquisador de tudo aquilo que envolve o Piauí cultural, especialmente sua arqueologia histórica, a formação de seu povo, sua etnia, seus conflitos coloniais e do período emancipacionista do povo piauiense em relação à Coroa Portuguesa, que culminou com a sangrenta Batalha do Jenipapo. Adrião Neto pesquisa - não há dúvida - de forma séria a História do Piauí, mas principalmente o faz, a meu ver, para dela aproveitar-se como material necessário à sua produção ficcional.
É o que aconteceu com Parangolé, aliás, uma versão atualizada, mais ampliada, mais abrangente e mais ambiciosa do que lhe fora o romance histórico de base indianista Eterna aliança . Nesta nova edição, houve uma profunda reformulação em relação à primeira, que se limitava a ser uma fabulação restrita aos atritos entre pescadores do litoral piauiense de Amarração e os índios Tremembés e entre estes últimos e os Camelos, antigos inimigos. A versão antiga reunia característica de literatura infanto-juvenil pela simplicidade da linguagem e pelo didatismo de levar conhecimento histórico sobre o passado do Piauí, no tocante a grupos indígenas, particularmente a leitores daquelas duas faixas etárias.
Na nova edição, o autor incorporou à história indígena a história da luta pela independência dos piauienses diante dos adversários lusos. Ao fazer isso, contudo, adequou a nova versão a um nível de linguagem mais ousado em termos de usos da fala dos personagens, i.e., sujeito do enunciado e, desta maneira, elevou o nível de leitores a faixas de final da adolescência a adultos. Ao contrário da primeira versão, que apresentava um glossário apenas lexical e para os níveis de leitores visados, a segunda versão deu um mexida no código linguístico, estendendo o uso da língua a frases e expressões mais complexas e, por vezes, desconhecidas em geral dos leitores, segundo mais adiante apreciarei.
Este seria o primeiro tema de Paragolé. O segundo tema prende-se às animosidades entre duas tribos indígenas, os Camelos e os Tremembés e bem assim entre estes e a comunidade de pescadores liderada pela figura destemida do mestre Martim Pescador. A refrega entre pescadores e os índios Tremembés começou após a morte de Vaga-Lume que, segundo os pescadores, teria sido morto para vingar um índio que tinha invadido um quintal do “tio Gerado” – o primeiro ‘cristão’ a ter negócio com a produção de sal em Amarração - e roubado cajus. Um pescador, de nome Pintado, havia presenciado tudo e saiu em perseguição do índio e o feriu com um tiro de espingarda no traseiro, ou, com o diz a linguagem pitoresca e maliciosa do narrador, no “mucumbu”. O índio, todavia, não morreu.
. Sua mais recente obra, o mencionado pequeno romance Parangolé, que ora tenho o prazer de prefaciar, só vem reafirmar as qualidades e valores deste escritor compromissado com o seu papel de, pelo universo ficcional, iluminar outros ângulos do passado da civilização piauiense sem ficar, todavia, preso à historiografia oficial.
Já há muito tempo conheço o trabalho intelectual de Adrião Neto de que é exemplo edificante a sua valiosíssima contribuição no gênero de obras de referência. Refiro-me ao seu indispensável Dicionário biográfico escritores piauienses de todos os tempos . Deduzo, pelo tempo, que minha edição impressa esteja bem desatualizada. Contudo, é-me ainda um vade-mecum que tenho sempre ao meu alcance para consulta. Talvez, no gênero e no seu formato, seja o melhor trabalho que se viu até hoje publicado no Piauí. Merece uma boa edição atualizada e impressa. Há uma versão desse dicionário na Internet, mas não é tão boa quanto a impressa nem tampouco está atualizada.
Sua experiência de muitos anos de autor didático, aliada a seu tirocínio no ofício da escrita, deu-lhe instrumental técnico bastante para saber fisgar o leitor seduzindo-o para acompanhar com entusiasmo renovado o que ele narra sobre fatos reais da história pretérita de sua terra e entrelaçá-los com equilíbrio e maestria, movimentando personagens, colocando-os em conflitos, unindo-os pelo sentimento amoroso e sabendo, ademais, deles extrair momentos de grande beleza e também de tragédia incontornável, mergulhando todos nós leitores num universo de possibilidades de vidas e de vivências diversas com muita força de autenticidade na recriação de fatos históricos e de fatos criados pela imaginação. Ao construir esta narrativa de cunho histórico, tanto na acepção política, quanto no sentido de selecionar seu campo de imaginação propriamente dito, ele faz uma inteligente divisão: utiliza-se do discurso histórico e do discurso ficcional numa estratégia de diegese quase em contraponto.
O resultado é a composição de uma breve história desenvolvida com equilíbrio e boa performance narrativo-descritiva. Creio, além disso, que o autor artisticamente mais se realiza quanto volta sua diegese para o tema indianista, para a fabulação entre os rivais Camelos e os Tremembés. Com isso, ele impede que o leitor, adulto ou adolescente, abandone o livro, uma vez que vai, naquele quase contraponto, mas sem prejudicar a unidade interna da obra, relatando as peripécias preparatórias da sangrenta Batalha do Jenipapo com o evoluir das rivalidades e tragédias das tribos dos Camelos e dos Tremembés.
O romance assim, instrui e ensina sobre a História do Piauí nas guerras da Independência, em particular narrando cuidadosamente todos os principais passos dados por separatistas e pelas tropas portuguesas sob o comando de Fidié. Por aí desfila uma colossal lista de nomes que se tornaram figuras emblemáticas naquele tempo de lutas pela independência do Piauí, até mesmo indígenas, como o lendário Manu Ladino, o alferes, cientista e poeta Leonardo de Carvalho Castelo Branco, célebre pelo seu invento do “moto-contínuo” e pelo seu alto preparo em mecânica, astronomia, física, Simplício Dias da Silva, de militares e de autoridades, comerciantes e homens do povo transitando no espaço da diegese de modo a propiciar uma visão bem pormenorizada de fatos e de acontecimentos dos dois lados rivais, onde claramente se vai entendendo os diverso impasses, os receios, as hesitações, as fraquezas e o heroísmo dos separatistas em relação às tropas portuguesas, sendo estas narradas negativamente, quer dizer, o narrador, em terceira pessoa, bipartido em dois ambientes da narrativa geral, descreve ou sobretudo relata as ações das forças portuguesas em lances que fazem mais sobressair a violência, a devastação e o autoritarismo.
No contraponto entre a narração das ações das tropas lusas e os separatistas, o discurso histórico ganharia mais desenvoltura se o narrador empregasse o recurso do diálogo acoplado à descrição, narração e ao diálogo num recorte de um enredo tal qual existe no contraponto de história ambientada no espaço da comunidade de pescadores com o hábitat dos índios, de resto, muito bem utilizado pelo autor na organização da trama entre as duas tribos inimigas e da mesma maneira que o fizera na primeira versão com o título Eterna aliança. Aqui é onde o romance se encontra com o espaço e tempo livres para a estrutura do enredo, das personagens e sobretudo das ações e diálogos, Aqui também a história se realiza como ficção, na qual a instância narrante encontra sua liberdade e a sua adequada forma de linguagem literária, como criação, memória e imaginação.
É nessa liberdade de escrita que na obra vemos a natureza, a flora, a fauna, a paisagem, descritas com alto senso estético e domínio técnico que ressoam, nos interstícios da linguagem, os ecos da ficção alencarina, notadamente de Iracema (1865), de O guarani (1857).
Outro dado digno de observar neste aspecto da composição de Parangolé é mais uma ressonância de natureza intertextual com a obra poética indianista de Gonçalves Dias. Tanto na ficção de Alencar quanto na poesia gonçalvina, o leitor avisado pode depreender esse traço neo-romântico entrevisto nos pares românticos Mulanga-Jacira e Irajara-Janaína. Como se vê, os dois pares são frutos da fatalidade do amor de jovens separados por intrigas entre tribos, não esquecendo de que, no par Mulanga-Jacira, Mulanga é um jovem valente e herói da comunidade de pescadores do litoral piauiense.
Tipos, portanto, de amantes que lembram a história de Romeu e Julieta (c. 1596) de Shakespeare, pelas circunstâncias de inimizades entre famílias. Só que em Parangolé, por pouco houve um fim trágico, representado pela morte de Mulanga. Entretanto, no epílogo do relato, com a morte também de Janaína, Irajara. que já fora noiva prometida a Irajara, com este se casa. Retoma-se o equilíbrio entre Camelos e Tremembés através do que o narrador chama de “Eterna Aliança”. Macijara, filha de Jacira e Mulanga e Guaraci, filho de Irajara e Janaína, desde a infância tornaram-se amigos. Ou, como melhor salienta o narrador, “como se fossem irmãos consanguíneos.” A paz, nas comunidades de Amarração, de Itaqui e da Lagoa do Camelo, sob as bênçãos do padre Eduardo e dos pajés de ambas a tribos, é finalmente selada.
Misturando história piauiense, folclore indígena e relatos sobrenaturais ( o da assombração de Salomé, a prostituta mais apreciada de sua comunidade, a mais requisitada do Porto da Rosa, em Amarrração, litoral piauiense), ou seja, elaborando seu romance com componentes híbridos, Adrião Neto bem percebe que está fazendo um romance histórico não subordinado a paradigmas rígidos dos romances de Walter Scott, considerado seu fundador, mas fazendo suas opções e suas adaptações a este gênero que, nos tempos atuais, tem-se mostrado de diversas formas, inclusive na sua feição pós-moderna, na construção e na linguagem e, por isso, têm angariado a simpatia do mercado, ávido por vender esse gênero de romance com fatos históricos e personagens que existiram e que ali estão falando e agindo diante dos leitores, enfadados do presente real insosso, “... desejo de fuga de um cotidiano hostil..” em tramas cheias de emoções de lances dramáticos, ainda que, no exemplo de Parangolé, a parte histórica se realize apenas pela narrador funcionando praticamente de forma objetiva e impessoal com exceção apenas daquela passagem da viagem dos padres já bem próximos dos seu lugar de chegada, ou quando fala da figura do burocrata, musicista e compositor Renato Aleixo que, embora em narrativa impessoal, consegue dar ao leitor a impressão de uma figura viva, que pensa e age na representação ficcional. As outras figuras, no entanto, são descritas ou narradas com aquela impessoalidade de que já falei, não chegam a atingir o estatuto de personagens.
O gênero do romance histórico, cuja obra inaugural é o romance Waverly ( 1814), de Walter Scott, se difundiu pela Europa e pela América. Em Portugal, teve como um dos principais cultores Alexandre Herculano, com obras como Euríco, o presbítero (1844), O monge de Cister (1848) entre outras; no Brasil, no Romantismo, teve seu extraordinário cultor do gênero em José de Alencar, em obras magníficas como Iracema (1865), O guarani (1857), As minas de Prata (1862-1866) Guerra dos mascates ((1873), Ubirajara (1874).
Não é, porém, intenção deste ensaio aprofundar os traços mais significativos do romance histórico, nem tampouco registrar as diversas classificações de autores estrangeiros como de autores brasileiros que já publicaram bons estudos nesta área.
Entretanto, não posso fugir a um pormenor. Parangolé inclui alguns elementos do novo romance histórico que dizem respeito à linguagem literária: a) utilização do código lingüístico (registros) no discurso literário; b) no emprego bem discreto da intertextualidade no discurso histórico; c) em pequena intervenção localizada no discurso histórico.; d) na questão da trama ou do plot, quando o autor repisa o idealismo amoroso do Romantismo através das duas grandes influências da vertente indianista; Vejamos cada um desses elementos:

a) Os registros linguísticos são respeitados de acordo com a fala das personagens. Por exemplo, o discurso dos padres Eduardo e Francisco seguem a normatividade culta, permitindo-se aqui também concessão ao coloquial. Da mesma sorte, para os personagens pescadores e os índios, o registro alvitrado pelo narrador procura mimeticamente apoiar-se no linguajar popular e numa quantidade grande de regionalismos ou expressões de sentido chulo ou pejorativos, assim como de ditos sentenciosos e de vocabulário proveniente da língua tupi adaptado à grafia portuguesa do Brasil.
De resto, o que autor fez foi reproduzir a oralidade da fala dos personagens sem o propósito de transfigurá-la artisticamente, incorporando-a ao discurso do narrador através do sujeito do enunciado via diálogo, tal como o fizeram alguns ficcionistas do Pré-Modernismo, inclusive Lima Barreto no romance Clara dos Anjos (romance publicado em folhetim de 1923 a 1924)) com a diferença de que, na linguagem de José de Alencar, a fala dos personagens, dos índios, e dos colonizadores letrados permanece no nível culto e mesmo literário. Até nisso há idealização do estilo romântico.
Essa foi uma maneira que para o autor serviria aos propósitos comunicativos da narrativa em sua modalidade dialogal. Ou seja, não elegeu ele uma narrativa pelo caminho do esteticismo ou recriação da linguagem dos personagens de pouca instrução ou ágrafos, conforme o fez exemplarmente Guimarães Rosa. Porém, cumpre frisar: num romance histórico e com componentes de outros gêneros, sobretudo o do discurso histórico, qualquer estilização seria improdutiva. Além disso, há outras expressões mais novas ou conhecidas de falantes até de outras partes fora do Piauí, principalmente hoje em dia com a difusão da televisão. O uso dela no texto tem efeito carnavalizado, empregando aqui o conceito de Bakhtin. Ora, esta intencional forma de utilizar certas expressões, se comparadas com a real forma linguística que, no passado do século 19 tinham, resulta numa desestabilização dos códigos linguísticos diacronicamente contrastados. Palavras ou expressões que hoje são correntes resultariam, no mínimo, hilariantes.
Das diversas opções no uso da linguagem literária que a pós-modernidade põe à disposição do escritor de hoje, seja no romance em geral, seja no romance histórico em particular, penso que com mais esta obra Adrião Neto se houve bem e se desincumbiu plenamente da difícil tarefa da escrita ficcional.

b) citação do livro Fernão Capelo Gaivota (1970). Romance de Richard Bach, inserindo um trecho bem significativo com respeito à natureza dessa obra plena de simbolismos: ‘vê mais longe a gaivota que voa mais alto.’

c) No final do capítulo 22, há um deslocamento da voz do narrador impessoal, naquele trechozinho no qual faz este comentário subvertendo a estrutura interna da diegese pelo enaltecimento do aspecto turístico do Lago de Sobradinho e da conhecida Lagoa do Portinho. Essa digressão indicia um anacronismo por parte da instância narrante, que é traço claro de pós-modernidade no romance histórico.

d) No encontro entre uma jovem e um jovem de tribos rivais, ou de um branco e uma índia em situação de rivalidade, retomando a forma de “amor à primeira vista, num esquematismo algo artificial desse despertar súbito do sentimento amoroso entre desconhecidos, levando os amantes a instantâneas trocas de beijos e abraços.Tal exemplo não deixa de manter um diálogo intertextual endoliterário onde a trama se deixa influenciar sobre situações semelhantes assentadas em textualidade pretérita: os romances brasileiros indianistas. O mesmo se poderia afirmar do discurso histórico que mantém um diálogo intertextual exoliterário relativo a ações, fatos, lugares, datas, obras históricas, ensaios, artigos, livros didáticos, enciclopédias, personagens reais que tomaram parte ativa nos conflitos que culminaram na cruenta Batalha do Jenipapo.
Em Parangolé não há como passar ao largo a beleza de linguagem retratando a paisagem, por vezes áspera, por vezes açoitada pela ventos marinhos do litoral piauiense, paisagem diversificada e, portanto, cheia de surpresas na flora, na fauna, nos riachos, nas noites de luar, no pôr do sol, nas praias aprazíveis, dunas, em suma, numa natureza exuberante plantada no litoral do Atlântico. Por isso, louva-se no autor a capacidade, boa técnica descritiva e habilidade de organização da trama, em especial quando faz o corte narrativo para o ambiente da vida dos silvícolas e dos pescadores.
Ainda no domínio da linguagem não há como negar-lhe uma intenção criativa em lidar com o aspecto social,, o espaço geográfico, o tempo romanesco, o domínio do material fartamente pesquisado em várias áreas humanas, o que faz do seu romance uma preciosa e indispensável fonte histórica, linguística, etnográfica, sociológica, político-ideológica que seguramente há de despertar o interesse de leitores tanto pelo valor instrutivo e estético da obra, quanto pelo material objeto de suas investigações naqueles saberes acima-nomeados.
Finalmente, indisfarçável é seu empenho de valorização da linguagem, principalmente no que tange ao que o autor mesmo chama de “nordestinês” do qual seu texto está relativamente permeado.
Qualquer leitor que não seja piauiense - e mesmo que o seja -, ao se deparar com alguns termos ou expressões nos vivos diálogos, terá dificuldade de depreender seus sentidos e, para obviar essa dificuldade, é que Adrião Neto preparou um bom glossário, inserido no final da narrativa, de “termos e expressões regionais” e de tupinismos. Parangolé, pois, é um romance que se lê com gosto e também com um espírito crítico e de reflexão sobre o que, no passado da história piauiense, da sua formação como Estado brasileiro, houve de heroísmo e de covardia, mas também de humanidade e de verdade.

NOTAS

1. ESTEVES, Antônio R. O romance histórico brasileiro contemporâneo (1975-2000). São Paulo: Ed. UNESP, 2010, p. 42.
2. NETO, Adrião. Eterna aliança. Teresi na: Edições Geração 70, 2000.
3. _____. Dicionário biográfico escritorres piauienses de todos os tempos. Teresina: Halley S.A. 1995. Prefácio de Elmar Carvalho
4. ESTEVES, Antônio R. Op. cit., p. 233..
5. AGUAIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da literatura. 6 ed. Coimbra: Almedina, 1984, p. 629-630.

6. Idem, ibidem.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Salvem os bombeiros do Rio de Janeiro

Cunha e Silva Filho



A lei existe para ser cumprida. Entretanto, em algumas situações-limite, ela tem que se ajustar a novas realidades, ou seja, é possível, sem a desrespeitar, considerar as contingências humanas não contempladas pela legislação e passíveis de serem atendidas. A lei é lei até que não venha ferir a dignidade humana ou praticar gritantes injustiças, quando, então, deixa de ter força de lei e se transforma em abuso ou arbítrio da máquina do Estado.
O que se viu recentemente da reação do governador Sérgio Cabral foi um ato de autoritarismo, lembrando resquícios de práticas de uso da força de um passado brasileiro que ninguém deseja ressuscitar. Ao chamar os bombeiros em greve de “vândalos e irresponsáveis”, o governador, mais uma vez, recordando uma greve de médicos também em seu governo, comportou-se sem equilíbrio e sem postura exigida de quem ocupa um cargo de alta responsabilidade quanto o de governador de Estado. Só em situações de extrema desordem urbana que venham a pôr em risco a ordem pública, seria lícito da parte do governador exercer a sua autoridade para reprimir desmandos.
Não foi esse o caso das manifestações pacíficas de nossos gloriosos bombeiros que resultaram na invasão do Quartel do Corpo de Bombeiros no Centro do Rio de Janeiro. Entraram, sim, no pátio do quartel, mas não para depredar ou cometer desatinos contra o seu comandante nem contra a integridade física dessa instituição militar.
Ali ninguém era fora-da-lei, pois inclusive a manifestação contou com o apoio moral de familiares dos bombeiros. Ali havia crianças acompanhando o pai, bombeiro. Os manifestantes só queriam uma coisa: reclamar dos aviltantes salários que recebem, o mais baixo de todo o país, mais clamorosos sobretudo para o nível de importância do estado do Rio de Janeiro. O pleito deles se fundamentou numa lei, que não é a dos legisladores, mas aquela proveniente da justiça natural dos homens, lei que não está no papel nem na Constituição, porém se encontra no espírito dos homens de bem.
Há muito tempo não lia um documento tão comovente e ao mesmo tempo tão justo quanto a “Carta aberta à população do Rio de Janeiro” que li na Internet repassada a mim por amigos. Essa Carta não é só um texto reivindicatório das condições de vida precária dos bombeiros do Rio de Janeiro, mas também serviria a outras categorias ( a dos professores e de outras categorias mais modestas ) do funcionalismo do Rio de Janeiro. É muito mais, já que põe a nu a dura realidade dos bombeiros do Rio, a qual, por extensão, se associa a outros fatores negativos do funcionamento da administração pública do setor estadual.
O governador do Rio de Janeiro agiu intempestivamente quando ordenou que o BOPE entrasse em confronto com os bombeiros; aquele armado até os dentes, estes contando apenas com o prestígio que desfrutam junto à população do Rio de Janeiro. Contra os manifestantes não se pouparam bombas de gás lacrimogêneo, até tiros foram disparados, felizmente sem vítimas fatais. Encurralados, inermes, os bombeiros receberam ordem de prisão.
Esse erro crasso do governador vai lhe custar muito caro politicamente. O autoritarismo demonstrado na greve prova que Sérgio Cabral está longe de reunir as qualidades inerentes a um político e sobretudo a um governador: paciência, tato, linguagem adequada exigida pela gravidade do momento e sobretudo sensibilidade, diplomacia, comedimento e postura de quem serve a um mandato público em sociedade democrática e civilizada.
Ele foi, por infelicidade, mexer justamente com talvez a única corporação militar que ainda é respeitada e admirada pelo cidadão brasileiro.
O estado do Rio de Janeiro, bem como os demais da Federação, precisa de ter em vista que o mandato de governador é conseguido pelo voto popular. Qualquer ação falha, por incompetência, ou por atitudes discricionárias, põe em risco a carreira de um político que, por ser ainda jovem, ambiciona outras conquistas.
Ao governador cabe revestir-se de ampla visão do conjunto da estrutura do funcionalismo. Deve, portanto, saber localizar onde há grandes injustiças em setores que, como o dos heroicos bombeiros do Rio de Janeiro, clamam por dignidade no trabalho e na vida. Como é possível que bombeiros de patentes mais baixas estejam percebendo o salário exibido nos contracheques para as telas de TV?! Chega a ser desumana tal remuneração que o governo estadual paga aos bombeiros que, hoje, segundo se viu numa reportagem pela TV, estão com as geladeiras vazias de alimentos para seus filhos e para si mesmos.
Pergunta-se; como esses homens tão úteis à vida das grandes e pequenas cidades podem ter ânimo e força para a sua nobre tarefa sem um salário que lhes proporcione uma vida decente e sadia?
A sociedade brasileira precisa entender que diferenças gritantes de salários têm sido razões de sobra para que categorias como as do bombeiros, professores e funcionários de níveis mais baixos permaneçam há longos anos em confronto com as autoridades dos governos estaduais.
É tempo ainda oportuno que os pleitos dos bombeiros e de outras categorias sejam atendidos. Ninguém está pedindo reajustes absurdos de categorias privilegiadas do governo estadual, mas salários com os quais se possa levar uma vida honrada e feliz. É indecente que um funcionário público não possa sobreviver com seus rendimentos até o final do mês, fato que está ocorrendo com os bombeiros e outras categorias.
Repense, por conseguinte, o governador do Rio sobre os seus atos e devolva ao povo fluminense, livres de punições, os admiráveis salvadores de vidas, nossos bombeiros a fim de que, retornando aos quartéis, possam, da mesma forma que sempre o fizeram há mais de cem anos, continuar prestando inestimáveis serviços à coletividade. Que a sirene de seus carros vermelhos, tão nossa conhecida, continue soando e ressoando pelos quatro cantos das cidades sempre que alguém, desesperado, necessite urgentemente de seus préstimos – que é esse árduo e intrépido trabalho, muitas vezes arriscando a própria vida, de debelar incêndios, salvar pessoas e patrimônios públicos e privados. Glória, pois, aos bombeiros do Brasil e, em particular, aos sofridos bombeiros da velha cidade de São Sebastião!

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Um poema de Charles Mackay (1814-1889)

Um poema de Charles Mackay (1814-1889)




The Giant


There came a Giant to my door,
A Giant fierce and strong,
His step was heavy on the floor,
His arms were ten yards long.
He scowled and frowned; he shook the ground; -
I trembled through and through; -
At length I looked him in the face
And cried: - Who cares for you?

The mighty Giant as I spoke
Grew pale and thin and small,
And through his body, as it were smoke,
I saw the sunshine fall.
His blood-red eyes turned blue as skies,
He whispered soft and low.
Is this, I cried, with growing pride,
Is this the foe mighty foe?

He sank before my earnest face,
He vanished quite away,
And left no shadow on his place
Between me and the day.
Such Giants come to strike us dumb –
But weak in every part,
They melt before the strong man’s eyes,
And fly the true of heart.


O Gigante


À minha porta um Gigante assomou,
Irado e possante Gigante,
Sobre o soalho o passo pesava-lhe,
Nove metros de braços possuía.
Carrancudo o olhar, franzidas as sobrancelhas, o chão estremecia.
Dos pés à cabeça tremia.
Por fim, nos olhos olhei-o
E gritei: - Quem de ti cuida?

Mal lhe disse isso o poderoso Gigante
Empalideceu, suavizou-se, apequenou-se,
E, no corpo, qual fumaça,
A luz solar surgir vi.
Azuis tornaram-se de sangue os olhos vermelhos.
Baixo e suave, murmurou.
É este exclamei, com maior orgulho,
É este o poderoso inimigo?

Ante meus olhos sucumbiu,
Sumindo de todo
Sem deixar nem sombra de si
Entre mim e o dia.
Gigantes como esses assustar-nos vêm
Porém, frágeis em todos os sentidos,
Suavemente, diante dos olhos do homem, se portam
Ao coração deixando que falasse a verdade

(Trad. de Cunha e Silva Filho)

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Filhos da mãe gentil: uma radiografia do Brasil*

Cunha e Silva Filho

Descontextualizado, com leve alteração sintática, dos belos e ao mesmo tempo super-ufanistas versos (na letra, em estribilho) do Hino Nacional Brasileiro, compostos por Joaquim Osório Duque Estrada (1870-1927) e música de Francisco Manuel da Silva (1795-1865), o título do romance Filhos da mãe gentil ( Litteris Editora, capa de Ivan Szule, 2011, 142 p.), de José Ribamar Garcia, ficcionista piauiense radicado no Rio de Janeiro, de imediato produz um marca de ambiguidade diante de dois modos de olhar o país: enxergá-lo como uma nação viável e promissora, ou simplesmente encará-lo como um pais conhecido pelos seus defeitos e mazelas crônicos - lugar ideal para oportunistas que colocam os seus interesses individualistas e seus objetivos atingidos, em geral, por meios escusos, sempre acima do bem-estar da sociedade brasileira.
Este é o nono livro no campo literário de um autor, também advogado, que vem construindo uma obra literária na qual os esforços do aperfeiçoar-se nos domínio da narrativa são bem visíveis de livro para livro, a maioria no gênero do conto, todos editados pela Litteris, sendo que três deles foram publicados, em primeira edição, por outras editoras. O autor publicou também um livro de ensaios, Crise da justiça e direito do trabalho – ensaios críticos ( LTR Editora, 2001).
Filhos da mãe gentil se inscreve entre aquelas narrativas que, ao final da sua leitura, nos deixam um sentimento de espanto e indignação em face de uma realidade que faz parte de nosso cotidiano e para a qual nos sentimos impotentes como brasileiros a dar-lhe resposta imediata. Isto é, o povo sabe que é assim e está assim e que pouco pode fazer contra ela dado que o caráter do povo é por demais conhecido como “ordeiro e pacífico,” “cordial” ou mesmo indiferente pelos demais compatrícios.
É nessa realidade humana, política, econômica e social que um personagem central como Ricardo Pimenteira se movimenta numa história contada a partir da realidade urbana, em décadas próximas de nós, que já vinha se transformando nesta violência galopante do frenético cenário carioca contemporâneo - realidade física que, neste romance de espaço, compreende as várias divisões de bairros, a Zona Sul, o Centro do Rio, o subúrbio carioca, a Zona Norte, sobretudo a Tijuca, o Méier, a Baixada Fluminense, a Zona Oeste (Realengo, Campo Grande) e vai além dos limites fluminenses, atingindo Vitória, no Espírito Santo, e seu interior.
Nesse deambular de espacialidade (atente-se o leitor para a grande quantidade de nomes de ruas e bairros cariocas e, em menor número, de cidades fluminenses ou fora do Rio de Janeiro que reforçam a dinâmica itinerante em que as ações do romance transcorrem, além de ambientes interiores) vai se configurando, diante dos olhos do leitor, o caráter escorregadio, manhoso e determinado de Ricardo Pimenteira à procura de, por meios espúrios, pelo crime e apoiado na impunidade brasileira, uma forma de, por contatos com um amigo dele conterrâneo, chegar até ao empresário de médio porte, Zeloni - dono de uma empresa distribuidora de produtos farmacêuticos, de nome ambíguo, Santa Engrácia Distribuidora.
Meio empresário e meio bandido, a fortuna de Zeloni fora conquistada graças aos golpes sujos de engendrar assaltos, as chamadas “operações especiais,” a caminhões transportadores de produtos daquela natureza. Para isso, usava gente de confiança como Ricardo Pimenteira e dois comparsas auxiliares, Paulão e Luisinho, que também serviam a Zeloni.
Este é um dos motivos principais da narrativa. Tudo o mais que compõe os ingredientes da história, com exceção de poucos personagens (Graciete, os parentes da namorada, a filha de Pimenteira, Ritinha, entre outros) não contaminados pelo lama do crime e do embuste a serviço do arrivismo capitalista sem escrúpulo de que Zeloni é um exemplo lapidar, se distribui em erotismo, lesbianismo, masoquismo, adultério, aborto, incipiente violência urbana trazida pelo trafico e exemplos do que há de mais deslavado da política brasileira, cujo símbolo maior se concentra na figura sinuosa do multimilionário senador, amigo de Zeloni.
De resto, ressalte-se que, na galeria de personagens do romance, se pode falar aqui de personagens-símbolos, funcionando metonimicamente como representações ficcionais dos variados segmentos da sociedade brasileira incluindo, é claro, instituições, a máquina do Estado, a burocracia, o judiciário, o eleitorado brasileiro, o sistema de saúde pública, o sistema de segurança, as entidades privadas. Retrato do Brasil, pois.
Ribamar Garcia, em obras anteriores, já mostrara, com menos intensidade, essa vertente de uma ficção de desnudamento crítico da realidade brasileira, seja no campo, seja na urbe, nos romances Em preto e branco, Entardecer; nos contos Cavaleiros da noite, Pra onde vão os ciganos?, Ao lado do velho monge; nas crônicas Imagens da Cidade Verde, sua obra de estreia (1981), Além das paredes, Ressonâncias.
Dono de um estilo fluente, onde a linguagem literária, sem assumir níveis mais complexos ou ousados de experimentalismos narrativos, como fazem certos autores contemporâneos, mas também sem cair no vezo de um Neorrealismo ou Neo-naturalismo superados, Ribamar Garcia sabe como trabalhar a arquitetura de sua história. Não se furta a técnicas bem conduzidas de cortes narrativos, estilo indireto livre, de flashback ou de prolepses. A trama bem urdida, bem como todos os elementos que sustentam a diegese - personagens, espaço, tempo, ambientes, perspectiva do narrador onisciente e por vezes irônico -, vão naturalmente produzir na obra um desejado senso de equilíbrio e de verossimilhança.
Sua linguagem, sendo, como disse atrás, fluente, se caracteriza pela sobriedade do uso de algumas comparações que admiravelmente se encaixam no contexto da narrativa: “Mulata, de gestos grotescos e inchada que nem um sapo-cururu”” (p. 22); “Ou começar e não terminar, que nem mosquito” (p.27); “Baixinha, magra, e feia que nem a peste suína”(p.112).
Nestes poucos exemplos de comparação, recorde-se a similitude do autor com algumas comparações de natureza zoomórfica do contista João Antônio ( 1937-1996). Aliás, em Ribamar Garcia há muitos indícios de escritores, como Lima Barreto (1881-1922 ), na crítica social, visão suburbana carioca, João Antônio, também na denúncia de nossas mazelas e numa espécie de aspereza por parte do narrador ou personagens, assim como se podia ainda citar Ernest Hemingway (1898- 1961) por certos traços másculos, cortantes, diretos, na narrativa, fora os diálogos vivos e largamente empregados pelo escritor norte-americano. Posso afirmar isto porque tenho familiaridade com a ficção ribamargarciana.
Outra particularidade observada com mais vigor na sua ficção e no que já produziu até agora, diz respeito ao elemento cômico inserido na narração, feito com exemplar maestria e convencimento, como é exemplo a situação hilariante vivida por um personagem secundário da trama, uma figura caricatural, carnavalizada, a do major maragato que assumiu na empresa de Zeloni a chefia do setor de transporte.
Além deste recurso narrativo, há no romance passagens em que se pode depreender outro recurso na economia da obra: a polifonia de vozes (já utilizadas na narrativa machadiana, em Quincas Borba (1892), por exemplo) evidentes, sem dúvida, naquelas falas de personagens que nem mesmo são definidos pelo nome de batismo. São vozes de funcionários da empresa de Zeloni que fazem comentários soltos visando a alguma vantagem ou por mera maledicência – situações essas comuns em empresas onde bajulação se alia à incompetência e a traições de toda a sorte.
Durão com os subalternos, exigente, no entanto, no convívio com a mulher, virava um marido submisso, tímido, “marido mandado”, pronto a aguentar dela as arruaças e impropérios, seja diante de quem quer que estivesse presente. O major mandão, ante os frequentes escândalos armados pela mulher, uma baixinha folgada e perdulária, se borrava de medo, lembrando, mutatis mutandi, aquele famoso personagem do conto “Joãozinho da Babilônia” da obra Leão-de-chácara (1975) de João Antônio, o velho balofo, inclusive político, Batistão Pamplona, que forma um triângulo amoroso com o malandro Joãozinho da Babilônia e a mulata Guiomar.
Outras passagens jocosas são recorrentes no romance, como aquela de um motorista português cujo caminhão foi também assaltado por Pimenteira e seus comparsas a serviço do Zeloni, cena que constitui na narrativa, além do elemento cômico, um traço escatológico igualmente presente na história, embora sem a intensidade de alguns textos de Rubem Fonseca.
Narrativa metonímica, segundo já ressaltei, Filhos da mãe gentil figura um microcosmo do país e de suas degradações morais e sociais, econômicas e políticas, em todas as instâncias do poder e das nossas instituições públicas e privadas.
Pelo cuidado de elaboração desta nova obra de Ribamar Garcia, pela ampliação de sua visão crítica patenteada na narrativa de Filhos da mãe gentil, pela brevidade da trama em termos de páginas, traço que, no meu entender, se deve ao traquejo maior do ficcionista com o gênero conto, o escritor sai mais fortalecido, mais amadurecido com esta obra no que tange às suas possibilidades de ficcionista.
Na trama do romance, as mazelas sinalizam para continuísmos, os crimes se apagam, os acertos abomináveis do poder cuidam de driblar os seus próprios abusos. Os atos de corrupção se transformam em viagens maravilhosas no exterior com dinheiro da nação. Tudo se compra com o dinheiro. O silêncio é a palavra final e a impunidade é o seu maior triunfo (ou trunfo) conforme, perto do clímax do romance, expressou o narrador através de um tom de mordacidade mas coerente com os fatos: “E tudo se concretizou como dito e previsto – de acordo com os cânones do código dos homens honrados – filhos da mãe gentil”(p.125).
Pimenteira, o protagonista, finalmente, realiza seu sonho longamente acalentado - a compra da sua pousada no Espírito Santo. Deixa para trás um espólio de vilanias e ao mesmo tempo, embora contraditoriamente, de ações até generosas. Leva consigo, no entanto, sua admiração pelo Visconde de Mauá, seus livros e sobretudo sua impunidade, que é uma das pragas sociais mais devastadoras da realidade nacional e é motivo nuclear desta narrativa mais recente de Ribamar Garcia.

* O romance Filhos da mãe gentil será lançado brevemente.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Centenário de nascimento de Afrânio Coutinho e algumas reflexões à parte

O
Cunha e Silva Filho


Assisti, ontem, dia 30, a uma homenagem prestada a Afrânio Coutinho numa dos auditórios do Instituto de Letras da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Comemorava-se data do centenário do seu nascimento. O escritor e Membro da Academia Brasileira de Letras nasceu em Salvador, Bahia, em 1911 e faleceu no Rio de Janeiro em 2000.
Foi convidado pelo Departamento de Letras daquela universidade a fim de fazer uma palestra alusiva à data o filho do escritor, Eduardo de Faria Coutinho, professor titular PH.D de literatura comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A apresentação do palestrante coube ao ensaísta e professor Roberto Acízelo de Souza, lecionando hoje na UERJ. Acízelo, segundo relatou no evento, foi aluno de Afrânio Coutinho décadas atrás.
Eduardo Coutinho, por sinal, conhecia de vista nos meados dos anos sessenta quando éramos alunos de graduação no curso de letras da conceituada Faculdade Nacional de Filosofia. Só depois, cheguei a conhecê-lo mais de perto. É pessoa educada e acatado ensaísta e pesquisador na sua área. Fez mestrado e doutorado em universidades americanas de renome. Por conseguinte, ninguém mais indicado para fazer uma exposição sobre o papel sobranceiro que seu dileto pai representou para os estudos literários universitários no país.
Na palestra que de improviso fez (embora tenha afirmado que havia preparado um texto) para um auditório lotado, Eduardo Coutinho revelou abalizado conhecimento da vida profissional do pai e ressaltou, pelo menos, três aspectos que justificariam o respeito e a admiração que gerações de estudantes de letras dispensavam a Afrânio Coutinho. Muitos desses ex-alunos se tornaram também, como o próprio filho, eminentes professores do nosso ensino superior.
O primeiro aspecto diz respeito ao pioneirismo da ação pedagógica exercida pelo critico, historiador literário e ensaísta Afrânio Coutinho ao divulgar, no meio acadêmico-universitário, o chamado new criticism, de procedência norte-americana logo que o crítico regressou ao país e retomou sua atividade docente. Sem dúvida alguma, a novidade de abordagem crítica repercutiu como divisor de águas entre o que os estudos literários eram até então e o que começaram a ser daí por diante.
Com seus estudos realizados na Universidade de Colúmbia, Nova Iorque, aproveitando sua permanência de 1942 a 1947, Afrânio Coutinho pôde entrar em contato com grandes mestres norte-americanos e europeus com os quais desenvolveu sólida formação teórica nos domínios da teoria literária, historiografia literária e crítica literária. Foi lá que conheceu o teórico René Wellek, Roman Jakobson. Com o primeiro fez amizade e manteve correspondência.
Coutinho, como diretor da Faculdade Letras da UFRJ, no final da década de sessenta e início de setenta, convidou, em diferentes oportunidades, aqueles dois scholars a proferirem conferências no auditório daquela faculdade quando ainda se localizava precariamente na Avenida Chile, Centro do Rio de Janeiro.
De posse dessa formação em bases atuais, de regresso ao país, Afrânio Coutinho procurou reestruturar o nosso ensino de literatura e métodos de análises e interpretação da obra literária hauridos nos Estados Unidos. Por certo encontrou vários obstáculos para que suas idéias se materializassem.
Afrânio Coutinho era formado em medicina, porém nunca exerceu efetivamente essa atividade, porquanto sua vocação, ainda quando estudante de medicina, o dirigia aos estudos literários e históricos, chegando mesmo a lecionar, em Salvador, no curso secundário, literatura e história Já em 1941 fora convidado a fazer parte do corpo docente da Faculdade de Filosofia da Bahia.
Sobretudo após a estadia na América, sua carreira docente deslanchou, pois, já em 1947, foi estabelecer-se no Rio de Janeiro quando o nomearam catedrático interino do Colégio Pedro II na disciplina literatura. Em 1951, faz concurso para catedrático efetivo de literatura daquela instituição de ensino defendendo a tese Aspectos da literatura barroca, estudo que lhe deu notoriedade e que, nos anos futuros, o tornaria um respeitado especialista, até mesmo no exterior como citação bibliográfica na conhecida obra Teoria da literatura de René Wellek e Austin Warren e na indispensável obra Teoria literária de Vítor Manuel de Aguiar e Silva.
Em 1951, ainda foi professor da Faculdade de Filosofia do Instituto Lafayette e nela fundou a cadeira de Teoria e Técnica Literária sendo pioneiro na implantação dessa disciplina no país.
Em 1958, prestou concurso para livre docente de literatura brasileira da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil que, depois, passou a denominar-se Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Com a livre docência, obteve o título de doutor em letras clássicas e vernáculas. Aposentando-se Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) da cátedra de literatura brasileira da Faculdade Nacional de Filosofia, em 1963, Coutinho tornou-se professor catedrático interino daquela disciplina. Em 1965, Afrânio Coutinho foi aprovado em concurso para professor catedrático efetivo, preenchendo, assim, a vaga deixada por Alceu Amoroso Lima. Sua carreira de professor universitário estava agora consolidada só se interrompendo com a sua aposentadoria em 1980.
É preciso não esquecer que essa ação pedagógica visando a mudar práticas conservadoras no ensino de literatura e na crítica literária no país não se fez pacificamente. Coutinho ganhou desafetos notadamente no âmbito da crítica literária. Sua veemência revestida do propósito de divulgar os princípios e métodos do new criticism não deu trégua a seus opositores. Polemizou desabridamente com Álvaro Lins, conforme se pode ver da leitura do livro No hospital das letras (1963).
Entretanto, tanto Álvaro Lins quanto Afrânio Coutinho constituem duas personalidades de intelectuais que deram uma forte contribuição à cultura brasileira. Por terem formação intelectual diversa, embora fossem contemporâneos cronologicamente, infelizmente, exageraram e cometeram injustiças mútuas no desforço polêmico que só o tempo e o distanciamento poderão ser melhor compreendidos em seus papéis e nas suas respectivas visões crítico-teóricas. Álvaro Lins tipificou um modelo de crítico de formação humanística com um impressionismo original e de grande vocação para o julgamento de obras.
Por outro lado, Afrânio Coutinho representa a reação crítica ao mau impressionismo, sobretudo baseado no chamado “achismo” no julgamento de obras. O new critcism, sem desprezar completamente os aspectos subsidiários da obra, fundamentados no contexto histórico-social-biográfico, desloca a atenção do analista da obra para os seus elementos constituintes, de base supostamente científica, assentados no objeto da análise da obra, ou seja, na autonomia do texto literário que somente o conhecimento teórico pode propiciar ao crítico: a linguagem, o conhecimento interno de que se compõe uma obra, o exame de suas partes, sua visão da vida, suas técnicas suas estratégias, sua formalização em gêneros, suas especificidades estilísticas, ou como resumiria T.S. Elliot, a autonomia do fenômeno literário é o pilar primordial do entendimento da obra ( apud Martin Gray) Quer dizer, ao historicismo prevalente da crítica tradicional preferiu-se a close reading, na qual o texto seja visto como uma estrutura em que as partes formadoras de uma obra permaneçam num estado de “tensão de paradoxo”, ‘ironia” e “ambiguidade”, “palavras”, símbolos, “imagens” (Martins Gray, ibidem)
É bem verdade que, no caso de Álvaro Lins, com rigor, não poderíamos rotulá-lo de “impressionista”, mas de um crítico em permanente inquietação com novas aberturas e perspectivas de tratar o fenômeno literário., i.e., um critico arguto “...muito próximo do modo de ler dos franceses pelo gosto da análise psicológica e moral” (Alfredo Bosi).
Álvaro Lins não abomina o new criticism anglo-americano Ele se indispunha contra o exagero de alguns seguidores dessa corrente crítica, os quais passaram a dar uma sensação de que a obra literária seja um objeto que possa ser dissecado com frieza e excesso de cientificismo, meramente como uma abordagem mecanicista que afastasse o crítico, o professor de literatura, e o leitor do que, mais tarde, já no período pós-estruturalismo, alguns teóricos (à frente Todorov) chamariam de análise dissociada do “prazer da leitura”.
Afrânio Coutinho era homem de temperamento forte e combativo, mas capaz de atitudes reconhecidamente humanas e corajosas – sobretudo quando diretor da Faculdade de Letras nos anos difíceis da ditadura militar. Não poucas vezes lidando com agentes da repressão, sempre que possível, procurou proteger alunos ideologicamente adversários da ditadura implantada ao país.
O segundo aspecto digno de anotação na carreira de Afrânio Coutinho foi seu pertinaz trabalho de educador e de organizador da vida acadêmica universitária. Nesse ponto, seu esforço foi igualmente notável. Conseguiu desmembrar o curso de letras da Faculdade Nacional de Filosofia transformando-o em Faculdade de Letras da UFRJ, com a ajuda, conforme assinou Eduardo Coutinho na palestra, de professores como Celso Cunha, Thiers Martins Moreira e outros. Isso foi uma decisão nova e original no ensino de letras do Rio de Janeiro que provavelmente deve ter se alastrado por outras regiões do país. Em suas muitas viagens ao exterior ( Estados Unidos, Alemanha e França), países nos quais também foi professor visitante, Afrânio Coutinho examinou minuciosamente as estruturas burocráticas e curriculares de cursos de humanidades que resultaram na formação de Faculdade de Letras naqueles lugares visitados. Daí, pois, aquele desejo de aqui implantar uma faculdade de letras.
Claro é que nessa mudança burocrático-administrativa muita coisa deixou, no inicio, a desejar, sobretudo na infraestrutura parte burocrática, como, por exemplo, a questão da implantação de créditos, os períodos de inscrição nos cursos que, por vezes, prejudicavam a vida acadêmica de alunos que não dispunham de horário integral para fazer o curso, atrasando-os no itens cruciais que são a conclusão dos créditos para a obtenção dos diplomas de bacharelado e licenciatura.
Contudo, no plano pedagógico, como diretor da Faculdade de Letras, o professor Afrânio Coutinho revelou-se sempre dinâmico e progressista, compensando, desse modo, deficiências pontuais de natureza burocrática.. Exemplo disso foi a criação dos cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado, os quais obrigavam,, pela necessidade de sua continuidade e aperfeiçoamento, os próprios professores da Faculdade de Letras, que ainda não tinham mestrado pelo menos, a fazerem o mestrado e doutorado, ou mesmo, em alguns casos, a procurarem realizar tais cursos no exterior. Com os anos, os cursos de pós-graduação stricto sensu, coordenados por ele, se tornaram um centro de alta qualidade no país. Realizações como essas só dignificam a trajetória bem-sucedida de Afrânio Coutinho na vida acadêmica brasileira, em especial no âmbito dos estudos e ensino de literatura. Finalmente, foi também de sua iniciativa a criação da Biblioteca a Faculdade de Letras, considerada hoje a melhor de que o Rio de Janeiro dispõe na área de humanidades.
Seu dinamismo intelectual também se refletiu no plano pessoal, como é exemplo a dedicação e amor aos livros (segundo seu filho, era um leitor voraz), reunindo, ao longo da vida, uma quantidade assombrosa de obras, de documentos, de arquivos, pastas, manuscritos que ia adquirindo e que se transformou numa das mais preciosas bibliotecas particulares. Foi dessa biblioteca, de seu valioso acervo, que fundou a sua Oficina Literária Afrânio Coutinho (OLAC), espaço cultural destinado a uma multiplicidade de eventos culturais, com maior ênfase para a divulgação e conhecimento da literatura brasileira. Com a sua morte, em 2000, a biblioteca pessoa do escritor foi vendida e incorporada à Biblioteca da Faculdade de Letras da UFRJ. Nada mais justo que o fundador da Faculdade de Letras, pelo menos no plano material, se juntasse ao seu espaço de direito e de fato.
O terceiro aspecto da vida desse crítico e educador está fortemente conexionado com a sua produção literária e às suas iniciativas de poder legar à posteridade relevantes realizações no campo editorial. Foi ele quem dirigiu, orientou e planejou a ambiciosa obra Literatura no Brasil, em seis volumes (1968-1971), trabalho empreendido por uma equipe de especialistas de diversas orientações críticas, precedido cada volume de uma introdução do organizador. Essas várias introduções lhe renderam uma das melhores obras de sua produção intelectual, que é a Introdução à literatura brasileira, já traduzida para o inglês e o espanhol. Sobressai nesta obra a riqueza da bibliografia criteriosamente selecionada pelo autor, bibliografia abrangente, atualizada e fonte de consulta obrigatória para o estudioso de letras.De sua produção ressaltaria a obra A tradição afortunada, os seus estudos do Barroco, a Coleção Fortuna Crítica por ele dirigida e editada pela Civilização Brasileira, reunindo importantes textos críticos escritos por grandes nomes da literatura brasileira, além de incluir introdução ao volume, cronologia da vida e obra do autor selecionado e bibliografia ativa e passiva. Mencionaria ainda a sua prestimosa e utilíssima Enciclopédia de literatura brasileira, em 2 volumes (2001)

Sua atividade de crítico militante e combativo na imprensa (Diário de Notícias, Última hora, em livros e revistas especializadas foi fecunda e incessante. Seus diversos ensaios críticos merecem ainda ser lidos e pesquisados por estudiosos da literatura brasileira e, last but not least, seus criteriosos trabalhos de organizador de edições críticas de diversos escritores brasileiros do passado que, com suas judiciosas introduções, compõem um retrato intelectual desse escritor que, durante toda a existência, se empenhou, de corpo e alma, na defesa dos valores estéticos da produção literária brasileira, de um ensino atualizado e da profissão e valorização do professor brasileiro em todos os níveis.Seu centenário de nascimento é digno de comemoração e sua obra está ainda a merecer justificada atenção da intelectualidade brasileira.

Referências:

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 38 ed. Cultrix: São Paulo, 2001, p. 491-492
GRAY, Martin. A dictionary of literary terms. Second Edition, 3rd impression, 1994,. Longman York Press, p. 195-196.
LINS, Álvaro. Teoria literária. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1970, p. 119-150.