domingo, 30 de setembro de 2012

O que os povos querem da vida






                                         Cunha e Silva Filho


         Considerando  o nível  de escolaridade,  suas culturas  específicas,  suas aspirações particulares, seus sonhos  e metas coletivas, sua formação  espiritual  diversificada ou não,  os povos, independentemente  de partidos políticos, se excetuarmos os regimes  opressores, autocráticos e, por conseguinte,  cerceadores da liberdade de expressão, de manifestação artística, do direito de ir e vir,  do direito de propriedade,  do direito de exercer sua cidadania  plena, apenas  querem  viver  em paz, na família, na vida social,  no trabalho,  no lazer,    usufruindo, assim,   do direito de acesso  aos bens materiais e imateriais  propiciados  pela modernidade.
         Se assim  é, então o melhor  sistema de governo  é o democrático, seja da direita, seja da esquerda. Já há quem  fale em democracia  híbrida,   i.e., aquela na qual  as liberdades  dos indivíduos  são  limitadas em alguns   aspectos, porém  não é  suprimida  em  outros. Talvez um caso típico seja o da Venezuela de Chávez. Nesse hibridismo  democrático,  o  Estado, quando julgue ser  conveniente ao gerenciamento  da  nação,   interfere nas instituições  privadas chegando ao  ponto mesmo de  estatizá-las. Como se vê, não é um sistema  ideal nem digno de ser  imitado.
Na Venezuela,  houve considerável redução  da pobreza no governo  Chávez, o que  foi  bom  para sua sociedade. Entretanto,  lá os poderes  do  presidente   se sobrepõem  ao judiciário e  ao legislativo, quer dizer,  não há  igualdade  de poderes. No Brasil, reduziu-se a pobreza em regime  plenamente  democrático  mas atravessado,  sobretudo no Collor e, depois, no   governo  Lula, no último  por ondas de corrupção que culminaram no chamado  “Escândalo do Mensalão,”  cujos acusados  estão sendo julgados atualmente pelo Supremo  Tribunal  Federal, a maior Corte  da  Justiça do pais.
O que caracteriza  dois  governos  de países diferentes é que  pode haver  desenvolvimento econômico,  melhoria  da vida do  pobre  combinada  também  com outro  mal,  a violência. No Brasil do governo  Dilma, há  melhoria  da vida dos menos favorecidos,  acompanhada do mal  da violência  extrema.
Neste união de  elementos  contraditórios  de um regime presidencial, há que considerar  a posição  do  pobre,  daquela  grande parcela  da  população  de  reduzida escolaridade  e, portanto,  de  baixo nível de consciência  política. Em outras palavras, com os programas   de  natureza social visando a dar  melhor condições de vida   aos desfavorecidos, o governo  petista ganha os votos  desse contingente  despolitizado, desse  eleitorado   que se contenta  com  uma vida  um pouco melhor  sem se  importar muito  com  a questão  política,  embora se sinta  motivado a  eleger   candidatos de um partido  político que  ainda está no  poder,   o qual, aos  olhos  de observadores estrangeiros,  é classificado  como da esquerda, quando sabemos que  o  governo Lula ajudou  os menos  favorecidos através de seus vários  programas assistenciais, do tipo  Bolsa-família e assemelhado, mas ajudou mais ainda as elites econômicas.
 Não taxando pesadamente os ricos, como está fazendo  agora o presidente da França,  o governo  petista agrada  aos  ricaços e ao mesmo tempo acena  com  os  referidos   benefícios  aos  pobres. Não creio muito  no que  economistas  vêm chamando  de nova classe média que, segundo  os governo  petistas,  foi  um grande avanço social. Melhor seria chamá-la de pobres  com  melhores condições de vida.
O brasileiro  médio está mais interessado  é em ter  um pouco mais de conforto, condições de comprar uma  casinha modesta ainda que  seja  na periferia,  poder adquirir  seus eletrodomésticos  em  prestações  dilatadas,   ver seu futebol, fumar seu cigarrinho, ir à praia,   brincar  no carnaval  e tomar suas cerveja nos botecos do bairro apreciando a beleza esfuziante da mulher brasileira.
 Pouco lhe  importa se  há corrupção ou não  na política  brasileira.Contanto que  não pague  imposto de renda,  o povão vai  se  virando  como  pode e até gastando mais  em bens  de consumo. Em outras  palavras,  no país  os ricos  continuam  tão ou mais ricos do que antes. A classe média, que  paga  imposto,  vive  com restrições  de gastos e endividada com  cartões  de  crédito  e   uso de cheques especiais. Até a suposta  “nova” classe média , mimetizando  padrões  incompatíveis das classes mais altas,  também está seguindo as pegadas erradas dos mais   elevados  na pirâmide social.
O povo, ou os povos em qualquer  parte, desde que  não sejam  a elite nacional ou mundial,   desejam  mesmo  é ser feliz,  praticar seu carpe diem  e completar  seus dias de existência   simples,  anônima, distante  dos  grandes  investimentos,   da lucro  dos magnatas  globalizados, do  exagerado  hedonismo  proporcionado  pelos  multimilionários  neoliberais em escala  planetária, ou dos  esquerdistas  vivendo  estilos  de vida  capitalista no ritmo da dolce vita  de todos os  tempos  e  latitudes.   Desconfio até que Karl  Marx (1818-1883) virou a casaca e foi cooptado  pelos  esquerdistas e pelos  capitalistas  simultaneamente. Quem vai entender essa mixórdia da pós-modernidade?  Quem diria, nesta mixórdia,  O Capital – a mais  célebre  obra de Marx, publicada em  três  volumes, o primeiro, em1867, e, postumamente, o segundo  publicado em 1867 e o terceiro, em 1894 -  capitalizou-se  de vez.


quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Tradução do poema "Inscriptions", de Fernando Pessoa





                 






                 Dando continuidade ao meu projeto de tradução para o português dos poemas compostos em inglês de Fernando Pessoa (1888-1935) segue abaixo a  tradução do poema "Inscriptions",  escrito em Lisboa, em 1920.. Por ser um poema mais longo, não o apresentarei na forma bilíngue, conforme fiz com os “35 Sonnets” e “Epithalamium.”
               Remeto, contudo, o leitor interessado à Obra Poética do grande bardo português. Ver PESSOA, Fernando. Obra poética. Volume único.Organização, Introdução e notas de Maria Aliete Galhoz. Rio de Janeiro, RJ.: Editora Nova Aguilar S.A., 1977, p. 609-611.





                                  INCRIÇÕES





                                      I



Somos travessia e sonho. Sorriso da Terra. Virtude rara.

Em nossa felicidade consciente influem a idade, o dever, os deuses

Esperai pelo melhor e preparai-vos para o pior.

Disto fala aquele conjunto de sabedoria calculada

                                      II



Os poderosos destinos me deram Cloe, uma donzela,

Que pra elas, as sombras povoadas, nada significou.

Essa a vontade dos deuses. Duas vezes sete foram meus anos apenas.

Esquecido estou em minhas distantes solidões.



                                   III



Na colina da minha aldeia por longo tempo olho

Para a murmúrio citadino.

Um dia, então, retirei (a vista da vida doentia, esperança malograda
Da cabeça o manto

Um gesto simples é algo valioso)

Como se fora uma asa solta.


                                   IV



Nem Crecops das minhas abelhas cuidou.

Minhas oliveiras produziram azeite como o sol. Meus vários rebanhos, distantes, baliam.

O viajante, respirando, à minha porta repousava

Ainda cheira a terra molhada; minhas narinas mortas estão.


                                   V



Vitorioso sou. Bárbaros distantes de mim notícias têm.

No meu jogo os homens não passam de dados.

Na verdade, contudo, do meu próprio risco, pouco me sobrou.

Dados lancei. O Destino, é a soma.



                                VI



Tanto quanto possível alguns amados foram, outros, premiados.

Para um homem nutrido.uma esposa natural, minha companheira,

Suficiente fui pra quem suficiente pareci.

Sem um destino, mudei, dormi, suportei e envelheci .



                              VII



O prazer de lado ponho como uma taça alienígena

Austero, separado, independente, olho para onde os deuses  se encontram.

Por detrás de mim, ocultou-se a sombra comum.

Sonhando não estar dormindo, meu sonho dormi.



                          VIII



Após decorridos apenas cinco anos, morri também.

A morte veio e levou a criança que ele encontrou.

Nenhum deus a poupou, ou o destino disso sorria, mãos

Tão pequena, tão pouco seguravam-se ao redor.



                              IX



Há silêncio onde uma pequena cidade envelhecera.

Cresce a relva onde memória alguma jaz na terra.

Nós, que com bulha, jantávamos, somos areia. A história acabou.

Emudeceram os afastados cascos. Apagou-se .a última luz da estalagem.



                              X



Nós dois , que aqui jazemos, amamos.Somos o esquecimento.

Com a ausência do seio dela minha perdida mão se esfarela

O amor é evidente. Cada amante é um anônimo.

Nós ambos leais nos sentimos. Beijar, era isso que fazíamos.



                            XI



Pela saudade de minha cidade, longe lutei e caí.

Não poderia dizer

O que, de fato, desejava ela, sabendo que me queria.

Que suas muralhas se libertem,

Que seu discurso se mantenha tal como falei. Os homens morrem.

Que ela não morra, como eu.



                           XII



A vida em nós viveu, não nós na vida. Enquanto as abelhas absorvem,

Olhamos, conversamos e possuímos. Como nós, crescem as árvores

Amamos os deuses apenas quando um navio avistamos.

Nunca cientes estamos de estarmos cientes. Passamos.



                         XIII



Findo é o trabalho. Guardaram o martelo.

Os artesãos, que edificaram a preguiçosa cidadezinha,

Substituídos foram por aqueles que ainda a constroem.

Tudo isso é algo a que falta alguma coisa ainda oculta.

Carece de sentido o pensamento completo,

Porém, junto à muralha do Tempo, jaz como um esvaziado cântaro



                       XIV



Isto, que me cobre, outrora pra mim tinha o céu azul.

Este solo, em que antes pisei, me esmaga. A minha mão

Pôs estas inscrições aqui, sabendo pela metade seu motivo.

Finalmente, a visão total, a multidão transitória.



                                                                                            (Trad. de Cunha e Silva Filho)







segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Dois países com extrema violência: Venezuela e Brasil






Cunha e Silva



Qualquer pessoa minimamente consciente do que ocorre pelo mundo afora, sabe que a roda do planeta não vai bem no que tange à tranquilidade do indivíduo. Como não podemos, neste espaço de artigo, abarcar toda história da violência que algumas nações estão sofrendo, fiquemos, por ora, com a situação preocupante do que anda acontecendo com a Venezuela e o Brasil, dois países que detêm posições de altíssimo nível, no sentido de violência como sinônimo de criminalidade, de atos bárbaros, de assaltos, e de mortes de inocentes que caiam nas mãos de bandidos, sobretudo nas ruas dos dois países.

Quem acompanha como eu, seja pela imprensa, seja principalmente pela televisão através de programas especificamente destinados a apresentar a realidade espantosa e crudelíssima da violência e crime no Brasil, bem sabe que não estou exagerando ou transformando esse tema em sensacionalismo como fazem/faziam velhos jornais cariocas de pequeno porte, os quais, segundo, uma afirmação feita de humor bem carioca, se fossem espremidos, jorrariam sangue...

A realidade da violência dos dois países em questão em bem semelhante conforme se pode ver deste pequeno trecho extraído do primeiro parágrafo de uma reportagem de Paula Daibert publicada em O Globo (22/09/2012): “Duas crianças brincam em uma favela de Caracas. Em uma troca de tiros, um dos meninos é atingido nas costas e morre. Uma imagem de sangue invade as ruas da capital venezuelana.” A reportagem , baseada em dados colhidos da OVV ( ONG Observatório Venezuelano da Violência) constata que o ano de 2011 foi “o ano mais violento da história do país”. São as seguintes as estatísticas: 19.459 homicídios, o que corresponde a 1.621 vítimas por mês, 53 por dia , ou como declara a jornalista, “... a cada meia hora um venezuelano é morto! O Brasil, por sua vez, anda bem próximo disso.

Resta agora, refletir sobre o tema e a urgência de soluções que se devem tomar em ambos os países. São inúmeros os tipos de violência que resultam na morte de contingentes da população desses países. Mas, há três grandes fatores que concorrem para a ausência de medidas que seriam fundamentais para frear esta escalada diabólica de criminosos:a) a falta de vontade política dos governos federal e estaduais para atacar o problema da criminalidade; b) a facilidade na aquisição de armas por diversos modos de acesso; c) a falta de maior sentimento nacional de indignidade da população de cada país exigindo permanentemente, por diversos canais de união de forças sociais, que as autoridades apresentem planos de alta envergadura técnica e estratégica a fim de efetivamente redundar em soluções realistas com vistas a diminuir significativamente os níveis de crimes no país.

Tentemos refletir sobre o primeiro dos três fatores discriminados acima.

Ninguém mais atento a questões sociológicas pode ignorar que, no exemplo brasileiro, país de dimensões continentais, com profundas deficiências no seu sistema carcerário, sobretudo caracterizado pela superlotação das prisões e de outras deficiências de infra-estrutura do sistema penal, lerdeza da justiça no andamento dos processos e outros males específicos reconhecidos pelos especialistas do assunto, vários tipos de crimes poderiam ser considerados em suas causas e consequências. Porém, um componente na complexidade do universo do crime e da lei, não pode ser minimizado. Ele prende-se a um fato determinante: o país é demasiado leniente com os criminosos de qualquer espécie. O passo decisivo a ser dado só se efetivaria caso houvesse alterações substanciais no Código Penal, cuja reforma e atualização estão em processo de formação. Só pediria que os juristas encarregados dessa reforma, não excluíssem do seu debate e das suas preocupações, a possibilidade, posto que por tempo provisório, da instituição da pena de morte para casos de crimes de extrema hediondez e da absoluta segurança de que o acusado foi o autor do crime. No caso de não instituirmos essa penalidade extrema, que, pelo menos, seja implantada a prisão perpétua cumprida na íntegra.

Só mudanças deste calibre poderiam, ao longo de sua vigência em lei, se refletir na consciência da população, fazendo com esta reduza o seu poder de ousadia criminosa e fique certa de sua punição real caso cometa ações delituosas bárbaras ou de crimes de menor grau de violência. Isso funcionaria como fator inibidor a se infiltrar culturalmente no seio da sociedade. Em outras palavras, o criminoso, seja de que condição social for, está ciente de que irá ser julgado e a pena ser-lhe-á aplicada com o rigor da lei, o que acabaria com os excessos de brechas e de benéficos de que ainda desfrutam os criminosos brasileiros e certamente os venezuelanos.

O segundo fator, o da questão das armas, merece toda a atenção de nossos governantes. Vários setores de segurança do governo poderiam ser empregados no combate sem tráfico de armas por criminosos: a polícia Federal e as Forças Armadas, principalmente, que atuariam junto às fronteiras do país, estacando toda tentativa de criminosos transferir de seus países, por terra, água e ar, arsenais de armas pesadas destinadas a suprir grupos do crime organizado. Seria uma espécie de plano-piloto dedicado à solução do tráfico de armas no país. Mas, para isso, o governo federal teria que fazer acordo de cooperação com os estados a fim de que as ações federais de combate à venda ilícita de armas de ponta se realizassem harmonicamente com um corpo de elite de policias militares estaduais, bem preparados e bem remunerados, numa ação conjunta empregando todos os recursos tecnológicos e de logística de que os serviços de segurança dos países adiantados já dispõem.

O terceiro e último fator caberia à sociedade civil que, no Brasil, por exemplo, não vejo assim tão unida como em outras nações, por exemplo, a Argentina, a Espanha, a Grécia, entre outras. O país se ressente de maior sentimento de união entre seus habitantes. Somos uma sociedade muito fragmentada, pelo menos em três grupos maiores, os ricos, a classe média e os pobres.Não há nenhuma canal de comunicação entre estes três níveis da pirâmide social.

O sentido pleno de fraternidade civil, do que seja ser compatriota está ausente no país por uma série de razões culturais e de níveis de escolaridade. Só com o avanço de uma educação aprimorada para, pelo menos, a maioria da população, possivelmente nos tornaríamos mais solidários. Só com uma conscientização política mais elevada o nosso povo se mostraria mais unido para enfrentar os grandes desafios que ainda temos pela frente. A modernidade no Brasil só atingiu alguns níveis restritos da nossa sociedade. O país ainda se defronta com práticas arcaicas e costumes embrutecedores em várias regiões brasileiras e o fenômeno se dá tanto ainda nas capitais quanto no interior. Neste estágio assimétricos de sociabilidades não é possível convivermos solidariamente e reivindicarmos as mudanças esperadas por todos a fim de minimizar a escalda da violência de nosso cotidiano. A mesma coisa se aplicaria, guardadas as diferenças culturais e avanços econômicos, sociais e políticos, ainda profundos, entre o Brasil e a Venezuela. Na violência, contudo, infelizmente estamos praticamente no mesmo barco da insegurança, da impunidade e no medo de enfrentarmos a rua, à luz do sol ou da noite enluarada.



segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Considerações em torno do poema "(Re)presa", de Dílson Lages

Cunha e Silva Filho





(Re)presa



A água debaixo da ponte

agita-se com o reflexo do céu

e devora a noite

tecendo o rio de estrelas



Debaixo da ponte

os lábios das margens

molham-se de delírios

e os lírios olham a imensidão.



Debaixo da ponte

o corpo da água escorre

entre os dedos de concreto

e esbarra no beijo da vegetação.(1)







O poema faz parte de um tipo de leitura: a releitura, a volta ao princípio do poema, tantas vezes quanto necessárias - condição primordial de o leitor ou receptor fruir sua validade de arte e de beleza. Um poema, e aqui falo daqueles nos quais sentimos o dedo da consciência da composição, das exigências do ofício de produzir a emoção estética, de comover e também de fazer refletir tanto ao nível de suas imagens provocadoras quanto de apreendermos o que delas possamos extrair como sentido da vida, da natureza, dos homens e dos objetos que constituem a materialidade e a espiritualidade do universo.

A realidade do poema se contém nele mesmo. Vale por si mesma, graças ao caráter poético de sua função básica e imprescindível, de jogar com os artifícios da linguagem elevada ao nível criativo, à vontade firme de não se repetir como invenção, mas de se realizar com novos sentidos, se possível, de forma original, que é o objetivo principal da literatura, seja na ficção, seja na poesia, na peça teatral considerada na sua forma escrita.

O poema “Re(presa)”(2) de Dílson Lages como peça literária se comporta segundo os pressupostos assinalados nos parágrafos anteriores. O poeta, como qualquer artista, seleciona aquilo que, de repente, logra captar como matéria de poesia, como motivação inescapável do que lhe vem consciente ou inconscientemente através da sua percepção visual ou intelectiva ou mesmo por associações de ideias que vão formando, pela linguagem, estruturas imagéticas naquele instante apreendidas e formalizadas segundo um tema, uma provocação externa que o impressiona e o mobiliza para o ato da escrita. Ou seja, a poesia se instaura no seu espaço específico através da passagem da matéria prima, a vida, a paisagem, o rio, para o estado modificado pela injeção do componente lírico, universo dos sentimentos, locus da linguagem como invenção, não mais como reprodução mimética. Aí se instala o poético na sua virtualidade e na sua materialidade gráfica. O poema se corporifica e assume sua independência de fôrma literária.Está pronto para ser lido e no leitor despertar a emoção, um sentido, um dado existencial.

No caso particular do poema comentado, o objeto visual, concreto é uma “represa” lexema manipulado quanto à sua morfologia e sua semântica. Para alcançar este  objetivo estético-composicional, o poeta desarticula aquele lexema, e o divide em dois sentidos, no que tange ao elemento "água:" a) o do elemento liquido preso às margens, i.e., à lateralidade e sua fluidez contínua, horizontal  ou, por vezes, irregular em direção ao mar; b) o mesmo elemento, visualizado, no seu fluir descontínuo, levado pela mão do homem e dos recursos da ciência, a uma espécie de vida líquida dependente e limitada nos seus movimentos e na forma que assume seu curso artificial, o qual só existe pela necessidade de ser repositório d’água. O rio torna-se símbolo da liberdade, enquanto a represa é um estado líquido em estado de escravidão, dependente sempre da potência da decisão humana.

O poema se compõe  de doze versos, distribuídos em três estrofes, de quatro versos cada uma. No primeiro verso,  o poema apenas descreve o espaço de seu todo, no qual o lirismo ainda não se faz presente; já no segundo verso, o elemento-núcleo do poema, "água,"metonicamente, equivalente a "rio" já principia seu movimento em direção às alturas, em cujo limite está um céu noturno e estrelado, pronto, assim, a gerar metáforas, comparações e,  por conseguinte, lirismo subjetividades, desvios semânticos. Ou seja, o poema vai adquirindo sua energia interna, sua potencialidade lírica, sua opacidade formal de construção no campo sintagmático.

O fluir da água, na sua aparência visual noturna de calmaria, sofre uma transformação, “agita-se," forma verbal que de certa maneira concede ao líquido um espaço de visibilidade provocada pela claridade das estrelas. Esse agitar-se da água tem algo já de características humanas,tanto assim que se comporta antropofagicamente, “devora” a “noite”(ausência de iluminação, que na dicção simbolista, exprime “dor”, “luto” (3) a fim de, pelo reflexo da luz das estrela, formar um novo rio, nessa bela imagem aliterante e ao mesmo tempo humanizada constituída pelo quarto verso da estrofe inicial: “tecendo o rio de estrelas.”. Veja-se que o lexema “estrelas”, reportando-se ainda na linguagem do Simbolismo, à cor, remetendo à luminosidade, claridade, brancura e, portanto, “pureza”, “virgindade”(4) .
 Anote-se a presença da vogal anterior “e”,  vogal  recorrente na primeira  estrofe e, além disso,  com força aliterante reforçada pelo fonema fricativo, alveolar surdo, graficamente figurado pelas sílabas -cen-, as-, es- e -as. Esta camada fônica é expressiva à medida em que o verso adquire conotações ligadas às ideias de suavidade, de ação espontânea, feita com o requinte e a habilidade artesanal, que muito bem poderia equiparar-se ao trabalho intelectual do fazer poético, ato de metamorfose, de desvio de formas, de recriar sentidos, de mostrar perspectivas, de indicar planos diferentes visuais, tácteis, sonoras, enfim, sinestésicos.

A expressão adverbial locativa, à maneira de uma anáfora,, “debaixo da ponte”, que aparece quatro vezes, simboliza o lugar de passagem, assim como conota uma ideia de obstáculo, ponto intermediário entre duas situações distintas que, no caso das águas de uma represa, o curso do rio vai sofrer alterações de volume e de mudança da natureza e ambiente.O rio que se desvia para a construção de uma represa, uma barragem, é um rio que perde parte de seu curso d’água, do seu movimento normal.

Na segunda estrofe, a imagem surgida compõe-se de um lexema pertencente ao homem , “lábios,” integrando uma outra metáfora relativa ao núcleo temático, o rio, desdobrado em todos as suas partes materiais e naturais, como  "margens",  "vegetação". Neste ponto, as metáforas aí estão   representadas pela segundo e terceiro versos, formando um cavalgamento (enjambement) perfeito e ainda, sinestesicamente, corroboram a natureza humanizante que sustenta a significação geral do poema.

Observe, atentamente, uma série de consoantes laterais, o “l” e o “lh”, respectivamente, fonemas alveolares e palatais. De resto, nesta estrofe há uma espécie de combinação de uma série  dos  mesmos fonemas que resultam num efeito gualmente aliterante, revigorando a dimensão fônico-expressiva entre o tema e a forma. Os lexemas relativos ao corpo humano se acumulam até ao desfecho do poema.

Para os parnasianos,(5) a consoante “l” e o grupo consonantal “lh” designam sonoramente estados “brandos e melífluos.” A consoante “l” já se classificou outrora como líquida, assim como “r” e “m.”O grupo consonantal “lh”, igualmente já teve a classificação de lingual-palatal molhada. Tais fonemas podemos considerar associado ao conceito de “fluidez das palavras”. Segundo Bachelard (1884-1962) (6) “a fluidez da palavra é, para nós, o desejo mesmo da linguagem.” Mais adiante, Bachelard assinala: “A linguagem quer fluir. Ela flui naturalmente. Seus sobressaltos, suas pedras, suas durezas, são ensaios mais factíveis, mais difíceis de naturalizar.” Da mesma forma, esse filósofo falando da “imaginação criadora”, acentua: “Ora, a imaginação reprodutora mascara e impede a imaginação criadora. Finalmente, o verdadeiro campo para estudar a imaginação não é a pintura, é a obra literária é a palavra, é a frase.” Neste caso como a forma é pouco! Como a matéria comanda. Que grande mestre é o rio!” (7)

Ocorre, ademais, aí o seguinte:  partes do corpo humano(como "lábios") se aliam a elementos inanimados, concretos ou mesmo abstratos, por exemplo, "lírios"  “margens, "ponte", "imensidão"(segundo verso, segunda estrofe). O terceiro verso da mesma estrofe, “molham-se de delírios” reitera o aspecto humanizante através do lexema “delírios”, termo da mesma forma,  abstrato,  o qual remete a um estado de sensualismo da linguagem. Novamente ai o dado do corpo e dos sentidos se associa ao inanimado:   "margens",  "vegetação".
Como se fora num olhar partindo das margens, o quarto verso final da estrofe reforçaessa presença do corpo através do verbo “olhar”, i.e., agora parte da perspectiva das margens, por intermédio de um elemento inanimado, concreto,  “lírios, ” mediante a estratégia da consciência técnica do poeta em desarticular do lexema “delírio”, outro lexema “lírio,” num expediente de palavra puxa—palavra através do recurso da contiguidade dos lexemas e sobretudo pela carga rimático-sonoro-estilística que daí advém e , de outra parte, pelo esvaziamento do sentido de estado de desequilíbrio em troca de uma imagem positiva , harmoniosa e visual e tactilmente bela, senão pura, expressa pelo lexema “lírios em verso lapidar: “E os lírios olham a imensidão”( quarto verso da segunda estrofe. De resto, o lexema “imensidão” aponta para dois lados: para o espelho d’água , o “rio” e para um outro “rio” metaforizado no último verso da primeira estrofe.

Na terceira e última estrofe, completa-se o desdobramento do poema, tornando-o uma unidade de sentido e de peça literária acabada nos seus recursos poéticos e linguístico-semânticos. Empregando os mesmos instrumentos retóricos, quer dizer, a formação de imagens ou metáforas fundindo partes que formam o ser fisco do homem, em imagens, como pudemos ver, que antropomorfizam o inanimado, presentes elas em todo o poema e, agora, culminando com o todo, sinalizado pelo lexema “corpo”, “dedos” e “beijos”, já mencionado este último na segunda estrofe, os versos finais atestam a capacidade descritiva do da voz lírica no desenho físico e humano, na sua beleza e nos seus óbices, aqui imageticamente figurado pelas águas “escorrendo” entre as pilastras da ponte (“os dedos de concreto”) em direção limitada pela vontade do homem e da técnica da engenharia, na transformação de elementos naturais – o rio, a vegetação, as matas, o meio ambiente em si por imposição de novas necessidades de satisfazer o homem, predador e vítima a um só tempo. Sinal do crescimento urbano, demográfico, gerando mais energia e desfigurando ou arrasando a ecologia com todas as sequelas civilizatórias.

O poema “(Re)presa” se insere literariamente naquela tendência ou vertente da poesia brasileira contemporânea em que ao poeta cabe a escolha livre e independente de sua criação, fora já dos "ismos" datados, mas ancorada na modernidade e na ousadia da imagens que,  renovadas e aprendidas nas fontes dos que lhe antecederam consegue fazer poesia optando pela linha que vem sendo perseguida desde os  tempos mais recuados da tradição literária. Num capítulo de título “Futuro da poesia”, de um livro que agora estou lendo, O que é literatura?, de José Veríssimo (1857-1916), não hesito em afirmar que o velho crítico adversário de Sílvio Romero (1851-1914), tem realmente uma visão certa e profética da perenidade da poesia como genro,  conforme o leitor pode ver de suas palavras finais: "É o que creio também, e nos meus escritos, tenho sempre sustentado. Escolas, tendências, modas, passam; ela[a poesia]fica, invariável na sua essência, não obstante a diversidade da sua forma...”(grifo meu). (8)





Notas bibliográficas:



(1)Poema postado no site Entretexto. Acesso : www.portalentretextos.com.br

(2Na análise proposta façoa leitura do poema no sentido de ‘represa”, conquanto não disponha de uma informação factual mediante  a qual provavelmente o poeta tencionou realizá-lo. A desarticulação do vocábulo, entretanto, abre espaço para esta possibilidade. Questão de visão do ensaísta, sobretudo no domínio da “imaginação poética."

(3)LIMA, Rocha. Gramática normativa da língua portuguesa. 27 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1986, p. 464-465.

4)Idem ,.ibidem.

(5)WEY,Válter. Lingua portuguesa. Terceira série. Curso colegial. 6 ed. São Paulo: Editora do Brasil S/A, 1963, p. 159.

(6)In: QUILET, Pierre (org.). Introdução ao pensamento de Bachelard. Rio de Janeiro: Zahar Editores. . Trad. de César Augusto Chaves Fernandes, 1977, p. 191. Remeto o leitor desejoso de dispor de uma síntese excelente sobre o pensamento de Gastón Bachelard, consultando  MELO E SOUSA, Ronaldes de. Epistemologia e hermenêutica em Bachelard. In: 90 Reflexão e participação/2 , 25 anos. Tempo Brasileiro, julho – setembro de 1987, p. 47-93.

(7) idem, ibidem, p. 192.

(8)VERÍSSIMO, JOSÉ. O que é literatura? e outros ensaios.. Introdução de João Alexandre Barbosa.  São Paulo: LANDY Editora, 2001, p. 51.



quinta-feira, 13 de setembro de 2012

O Brasil está agindo mal



Cunha e Silva Filho



Na questão tumultuada e sobretudo trágica da Síria, fico estarrecido com a posição da diplomacia brasileira que vem se comportando com tibieza, em cima do muro, e, para piorar este estado de indecisão, mostra-se agora abertamente favorável ao governo do ditador Bashar al-Assad. Isso não é bom para a imagem de nosso país diante das nações mais adiantadas. Ou melhor, o Itamaraty, que deve naturalmente refletir o pensamento e as recomendações do governo da presidente Dilma, recomendações que devem ser cumpridas pelo Ministro das Relações Exteriores, pode sair bem arranhado na esfera da diplomacia internacional, mormente junto à ONU, ao Conselho de Segurança e a outras instâncias internacionais que lutam pela paz, pelos direitos humanos e contra os crimes cometidos por qualquer pais .

Uma postura desse jaez deixa o nosso país numa situação no mínimo constrangedora se atentarmos para a circunstância de que o governo se gaba, tanto quanto outros setores da estrutura do Estado brasileiro, o Judiciário e o Legislativo, e mesmo setores privados da indústria e do comércio, da comunicação, de que vivemos um momento de plena democracia. Ora, se prezamos esta democracia não fica confortável para nós cooptarmos ações criminosas de um governo reconhecidamente ditatorial como a Síria.

Na tevê hoje de manhã, num flash de reportagem, uma embaixadora brasileira não conteve sua indignação e seu sentimento de humanidade reclamando contra a atitude de nossa diplomacia frente aos massacres que vem há uns doze meses sofrendo a sociedade civil síria – vítima de uma das mais repugnantes ações bélicas de que se tem notícia dirigidas contra sua população.

Ao mostrar-se inclinada à cumplicidade de visão política com o ditador, pessoa reconhecidamente truculenta e com tendência a comportamento genocida, a diplomacia brasileira está agindo mal e, assim, não reflete um milímetro do que os brasileiros de bem pensam sobre o ditador e suas selvagerias perpetradas contra os próprios compatriotas.

Assad é maquiavélico, bifronte. A um tempo que, com leve sorriso dissimulado, recebe delegações ou autoridades diplomáticas que com ele vão discutir os impasses da situação da Síria diante de seus gravíssimos problemas, forças do exercito sírio estão diariamente sacrificando a população indefesa. Como um Nero enraivecido e incendiário de Roma pondo a culpa nos cristãos pelo seu ato ignóbil, o ditador culpa grupos terroristas e mercenários, segundo ele, a soldo de outros governos de oposição, pelo que está acontecendo no país, quando é evidente que são suas tropas do exército que estão ceifando inocentes civis de todas as idades, transformando o país num palco gigantesco de escombros e de ruínas, além de estar deixando o país estagnado na dinâmica de sua vida social e de seu cotidiano. A nação Síria não pode mais se definir politicamente como um país com suas instituições funcionando normalmente, de vez que ali se estabeleceu o caos da guerra civil com todas as sequelas de um vazio de ordenamento jurídico necessário a uma sociedade.

Até hoje, desde as diversas tentativas de alcançar solução para o conflito sírio entre a ditadura e os rebeldes, como fez a ONU enviando representantes seus e de outros países desejosos de uma solução conclusiva para um diálogo com o ditador, nenhuma solução foi conseguida. Chegou-se a um ponto de exaustão pelos canais pacíficos da diplomacia através dos organismos internacionais responsáveis pela segurança da paz mundial.

Não é possível que um único papel caiba só à gloriosa Cruz Vermelha Internacional, sempre cumprindo o seu admirável e corajoso dever humanitário de socorrer feridos, de propiciar alimentos, remédios e assistência geral, de olhar pelos refugiados e de amenizar a fome e o sofrimento do povo sírio.

Já estou descrente da capacidade e competência da ONU como instrumento de defesa e de assegurar o mínimo de paz às nações mundialmente. Estou ciente de que outros países estão também sofrendo injustiças internas, massacres, guerrilhas, terrorismo que, parece, não acabarem nunca.Conflitos religiosos, ideológicos, econômicos e de outra natureza se espalham por outras partes do planeta.O mapa-múndi está doente em muitos aspectos, pois nos dá a impressão de que os homens não querem viver sob o domínio da paz e da concórdia. É hora de pensarmos globalmente, em defesa dos ofendidos e violados. A barbárie não pode sobrepujar os valores da justiça e da união entre as nações..

As cidade sírias, sua capital, por toda a parte que dirijamos um olhar através da tela da tevê, estão praticamente na condição de terra arrasada. Alguém, em sã consciência, pode chamar de país, de nação organizada a um lugar no qual só vemos destroços de casas, prédios, monumentos e ruas? Não, isso não é mais um governo, uma estrutura, uma organização político-institucional. É, antes, um mar encapelado de mortos, de mutilados, de inocentes que sucumbiram, muitas vezes, de forma abrupta, como se fosse uma explosão atômica, um terremoto. A Síria, há quase um ano, amanhece sempre, ao olhar dos sobreviventes e do mundo, como uma visão aterradora de um espaço geográfico estéril, acabado, sem esperança. Essa a visão que tenho dessa sofrida parte do Oriente.

Quando uma diplomata brasileira chega ao ponto de declarar publicamente o estado de profunda calamidade física e humana de um povo é porque sob os céus da Síria, de Damasco, de Allepo e de outras cidades se implantou o terror contra seu povo e a Humanidade. Tenham dó desse país!

sábado, 8 de setembro de 2012

Estamos em pleno gozo da democracia no país?




Cunha e Silva Filho


A censura à obra de Arte literária está dando sinais de perigosa atitude de intolerância com obras ficcionais de autores brasileiros. Foi reaberto o debate, iniciado em 2010, sobre a censura a uma obra de Monteiro Lobato (1882-1948)de título Caçadas de Pedrinho, editada nos idos de 1933. A polêmica se originou em razão de que a obra faria parte de um grupo de livros a serem distribuídos pelo MEC às escolas públicas. Alguém ligado a uma instituição de defesa da igualdade de negros e de combate contra o preconceito racista interferiu, junto ao MEC, para que o livro de Lobato fosse impugnando, já que, na visão dessa pessoa, a narrativa de Lobato continhas referências negativas que a comprometiam como obra racista.

O imbróglio já passou por dois pareceres do Conselho Nacional de Educação e encaminhados ao MEC. Além disso, foi objeto de dois processos movidos junto ao Supremo Tribunal Federal. Só está aguardando agora uma audiência de conciliação com o ministro Luiz Fux para terça-feira, da próxima semana. A grande questão que abre agora, a partir do resultado dessa reunião, é a dúvida do que será estabelecido pela Justiça no tocante ao que possa vir a se caracterizar como uma forma de censura ou proibição, com a possibilidade de o livro de Lobato ser distribuído com ressalvas de teor de natureza censória., i.e., permitir a distribuição pelo MEC mas tendo como condição prévia , segundo diz a reportagem hoje, publicada no caderno Prosa, de O Globo. “promover a capacitação de professores a fim de sistematizar a abordagem ..” pelos docentes da questão do preconceito contra negros na educação básica. Ora, reduzir a complexidade interpretativa de uma obra a uma abordagem imposta e didaticamente unificadora quanto à sua ideologia, a meu ver, se constitui em grave retrocesso da liberdade de pensamento e de expressão criativa de um autor. Este é o busílis da questão que cumpre ser discutido sem os interditos do poder público.

Por conseguinte, obscurantista e cerceadora da criatividade de um escritor passa a ser a denúncia feita pelo Sr. Antônio Gomes Costa Neto, segundo a reportagem de Mariana Moreira, técnico em gestão educacional. A denúncia, formada de citação de passagens da obra lobatiana, foi encaminhada à ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Sppir). Na visão desprovida de conhecimentos no campo da narratividade e do que sejam os protocolos que norteiam a composição de uma obra de imaginação, o mencionado técnico alega que Monteiro Lobato promove o preconceito racial a partir do tratamento que o escritor dá a personagens como a tia Anastácia. Ora, o técnico , naturalmente como lhe é inerente à função, se atém à literalidade ( não confundir com literariedade do formalismo russo) da leitura, e, portanto, faz uma leitura do texto de Lobato sem nenhuma base crítico-teórica. Destarte,, provavelmente até por desconhecimento, comete um ato falho, dando ensejo a que o associemos aos tempos sombrios da ditadura militar , ou, muito longe no tempo, à época dos livros listados pelo “Índex,” tenebroso tribunal romano do século XVI, que, em obediência a um cânon do Concílio de Trento, tinha o encargo de analisar obras que lhe eram  encaminhadas pelo poder eclesiástico para aprovação (“Nihil obstat”) ou para a sua proibição.

O Brasil, que já dá grandes passos para ser um país maduro, não pode retroceder em práticas terroristas e totalitárias dos tempos da Revolução cultural chinesa e dos Gulags comunistas. A obra de arte literária, e aqui estou, com todas as letras, incluindo Monteiro Lobato, é um produto construído pela linguagem, tendo seu mundo próprio, que não pode ser confundida com a factualidade da existência. Sua base é a mímesis, ou seja, uma possibilidade de construção de vidas e de realidades sociais respeitando procedimentos técnicos próprios parecidos (mera coincidência) ou não com a chamada realidade empírica, mas que, conforme preceitua Aristóteles, não copia a vida tal qual é dentro de nossas percepções. No momento em que vida se fecha como referencialidades e diferenças ideológicas, a ficção passa a existir por si própria, graças à linguagem adequada   a cada  gênero literário. O mesmo se pode afirmar das artes em geral. A censura é do universo da realidade pálida e cinza; a ficção, a poesia, o drama, são criações do espírito artísitco, da capacidade de inventar “realidades” que emocionam e o fazem tanto quanto  ou mais em maior potência do que na vida pura e simples do cotidiano estéril.

Segundo um estudioso da literatura infantil Ilan Brenman, autor de A condenação de Emília: o politicamente correto na literatura infantil (Aletria) citado na reportagem, o que está acontecendo com Lobato poderia abrir um precedente para que obras de outros autores brasileiros, como Aluísio de Azevedo e Castro Alves. Daqui a pouco, serão Graciliano Ramos, Jorge Amado e outros mais. Uma vez, quiseram também  censurar a fala de um personagem de uma obra de Darcy Ribeiro. Tal fato, embora de modo diferente, já está ocorrendo, conforme relata em breve artigo Suzana Velasco, na mesma página do caderno Prosa.Somos informados que o escritor Dalton Trevisan teve um livro seu, Violetas e pavões (Record, 2009) retirado da relação de obras que fariam parte do concurso de seleção do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Viçosa (UFV).

A alegação de tal retirada se deve a reclamações de pais e professores (sic!) de escolas e de cursinhos preparatórios para ingresso naquela instituição federal. Não sabia que a esta altura do campeonato, a família brasileira e educadores estejam dando demonstração de moralismo anacrônico e de hipocrisia social quando sabemos em que direção dever-se-iam dirigir as nossas reivindicações contra a atual imoralidade galopante, o devastador festival de filmes violentos e pornográficos  mostrados tanto em programas emburrecedores na tevê brasileira (tipo Big Brother et caterva) quanto nas chamada novelas, onde a ética e os chamados “bons costumes” burgueses da “Família, Pátria e Liberdade” há muito viraram letra morta, de tanto serem exibidos em todos os cantos do país.

Onde estão os processos encaminhados aos tribunais de Justiça do país para tanta bandalheira, corrupção, hedonismo e “malfeitos” de nossos políticos e homens públicos? Qual vai ser o desfecho dos condenados do Mensalão, ou seja, quem irá mesmo para a cadeia sem as brechas e subterfúgios de amplos e recorrentes recursos legais, por seus crimes contra o Erário Público?

Jamais achei correta uma lei brasileira que decreta, que impõe de cima pra baixo, o crime do preconceito racial e, neste ponto discordo de uma velha crônica de Rachel de Queiroz (1910-2003), ao ficar emocionada no exterior quando alguém, dirigindo-se a ela, elogiava o país que criara uma lei contra o preconceito racial. O estrangeiro referia-se à lei Afonso Arinos.

O combate ao preconceito racial – que é um sentimento abominável - deveria ter sido uma conquista natural na cultura brasileira, nascido de um combate constante na formação e educação de nosso povo, uma lição sincera, espontânea, sem hipocrisia, destinada a vencê-lo , como disse, através da mudança de mentalidade de um povo, do resgate do elemento negro pela via de condições de melhoria na saúde, na escola, nos aspectos éticos e no respeito às diferenças de cor, de nível social e de igualdade de oportunidades no emprego, na universidade e no direito de alguém poder assumir qualquer função sem os crônicos reflexos oriundos do nosso passado escravagista.

A verdadeira lei em defesa dos negros , sem laivos coercitivos, seria a que parte do interior do ser humano, da compreensão lúcida de que a pigmentação diferente nada comprova qualquer atitude irracional racista. Como cidadão, acato, sim, a lei contra o preconceito, mas no íntimo sei que ela não passou de uma imposição, de algo artificial, por vezes mais provocador de racismo do que de harmonia entre brancos, pretos e mestiços. A harmonia entre pretos e brancos, que deveria existir, esconde, pela hipocrisia, o racismo que deve ser extirpado na consciência e dignidade da sociedade brasileira. Enquanto houver hipocrisia, convencionalismo legal, o estigma persistirá na nossa vida social.



quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Algo errado na política americana?





Cunha e Silva Filho



A globalização é em essência, contraditória, com aspectos positivos, com outros negativos e até hilários. Entre a riqueza e a miséria, a nobre nação de Lincoln vai se virando aos arrancos das marés. Basta dizer que, segundo um artigo de Vinicius Torres Freire ( “Cenas da miséria americana”, Folha de São Paulo, 26/08/2012), “Mais ou menos um de cada sete americanos depende de assistência do governo federal para comer.” Essa é uma contradição. Uma outra seria a alegação de que o país continua sendo a nação mais poderosa do mundo.

Ora, além de ser uma outra contradição, ainda se definiria como uma tragédia, a de seus ricos, inclusive seus parlamentares republicanos, não se importarem com os seus patrícios, o que, neste ponto, se igual ao Brasil. Contudo, há um lado hilário, é quando o articulista citado fala dos benefícios da “renda média” de US$783,00 das famílias que fazem parte do programa “Food Stamps” (cupons de comida), auxílio social correspondente mais ou menos ao nosso “Fome Zero,” benefício idealizado pelo presidente Roosevelt em 1939.

A chamada linha de pobreza americana como dado oficial é de US1.542, tendo por base uma família de três pessoas. Convertendo tudo isso em reais vê-se o quanto os pobres ou miseráveis brasileiros estão distantes em desvantagem dos americanos “pobres” e “miseráveis.”

De acordo com informações do artigo são aproximadamente 46,5 milhões de americanos que estão contemplados neste programa. Desde 2007, os pedidos de auxílio cobertos pelo “Food Stamps” cresceram 70%.

Como é tudo isso possível numa sociedade de multimilionários que convivem com uma parte imensa da população sem condições de ter plano de saúde (Medicare) condigno ou se o tem, graças ao governo de Obama, é modesto e insatisfatório. Mas, enquanto Obama do partido democrata ainda consegue fazer alguma coisa do muito que prometeu no discurso de posse, os republicanos, pela voz de alguns de seus parlamentares, pouco estão se lixando para os benefícios públicos de que, bem ou mal, o atual governo concede aos americanos necessitados. Os republicanos, repito, querem  cortes maciços nestes programas de natureza assistencial.

Pagando menos imposto de renda do que a classe média, a alta burguesia americana não está nem aí para os desafortunados. Impregnados de individualismo, pelo grande valor que dão ao dinheiro e ao lucro, os americanos, em geral, não podem mesmo apoiar os altos gastos de programa de alimentação concedido aos menos favorecidos. Por isso, Obama tem ainda um grande trunfo nesta segunda corrida à presidência dos EUA. Desde a crise aguda da bolha imobiliária, estopim para outros retrocessos na economia americana, dentre os quais o desemprego e o empobrecimento da sua população de renda média ou mínima, chances há ainda para o seu segundo mandato apostando que existem ainda meios de encontrar saídas para uma melhoria da vida dos americanos.

Se Obama contornar o fosso de desigualdade crescente entre pobres e ricos, mantendo cada vez mais baixos os índices de desemprego e conseguindo para os despossuídos alguns ganhos de ajuda social, ser-lhe-á possível tentar implantar uma mudança de consciência coletiva se lograr sensibilizar os americanos para entenderem que a riqueza da nação e sua segurança dependem da união de todos os segmentos da sociedade numa luta comum para a conquista da paz social, a qual só se concretizará caso haja uma mudança de consciência nacional de um povo formado de diferentes etnias e de diversidades culturais.

Até mesmo pela sua condição de mestiço, Obama seguramente tem convicção de que não deverá decepcionar o povo americano. Não seria bom para a imagem que os negros e mestiços faziam a princípio do primeiro presidente não branco dos EUA. Poderia assim ser interpretado como uma derrota da capacidade política da raça negra para dirigir os destinos do povo americano. Abriria, assim, um precedente negativo, que ninguém desejaria para a nação americana.

Um país da sua magnitude geográfica e de alto alcance científico-tecnológico há de encontrar uma solução democrática, como, ao longo de sua história, tem sido, sobretudo internamente, já que, em política externa tem sido responsável pela inimizade que criou com a sua política considerada imperialista , principalmente na Ásia e no Oriente Médio. Esta posição ainda privilegiada o país não poderá deixar escapar. Mas, somente conseguirá atingir metas econômico-financeiras favoráveis  se persistir na direção da diminuição de desigualdades sociais e fizer um pacto suprapartidário, no qual os mais ricos devem ceder espaço econômico e de condições melhores de vida do  povo americano.





segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Um poema de Alfred de Vigny ( 1797-1863)







La Maison du berger*



Si ton coeur, gémissant du poids de notre vie,

Se traîne e se débat comme um aigle blessé,

Portant, comme le mien, sur son aile asservie,

Tout un monde fatal, écrasant et glace;

S’il ne bat qu’en saignant par sa plaie immortallle,

S’il ne voit plus l’amour, so étoile fidèle,

Éclairer pour lui seul l’horizon effacé;



Si ton âme, enchaînée ainsi que l’est mon âme,

Lasse de son boulet e de son pain amer,

Sur sa galère, en deuil laisse tomber la rame,

Penche sa tête pâle e pleure sur la mer,

Et, cherchant dans les flots une route inconnue,

Y voit en frissonnant, sur son épaule nue,

La lettre sociale écrite avec le fer;



Si ton corps, frémissant des passions secrètes,

S’indigne des regards, timide et palpitant,

S’il cherche à as beauté de profane insultant;

Si ta lèvre se sèche au poison des mensonges,

Si ton beau front rougir de passer dans les songes

D’um impur inconnu que te voit et t’entend;



Pars courageusement; laisse toutes les villes,

Ne ternis plus tes pieds aux poudres du chemin ;

Du haut de nos pensers vois les cites serviles

Comme les rocs fatals de l’esclavage humain.

Les grands bois et les champs sont de vastes asiles,

Libres comme la mer autour des sombresîles..

Marche à travers les champs une fleur à la main.



La Nature t'attend dans un silence austère ;

L'herbe élève à tes pieds son nuage des soirs,

Et le soupir d'adieu du soleil à la terre

Balance les beaux lys comme des encensoirs.

La forêt a voilé ses colonnes profondes,

La montagne se cache, et sur les pâles ondes

Le saule a suspendu ses chastes reposoirs.



Le crépuscule ami s'endort dans la vallée

Sur l'herbe d'émeraude et sur l'or du gazon,

Sous les timides joncs de la source isolée

Et sous le bois rêveur qui tremble à l'horizon,

Se balance en fuyant dans les grappes sauvages,

Jette son manteau gris sur le bord des rivages,

Et des fleurs de la nuit entr'ouvre la prison.



Il est sur ma montagne une épaisse bruyère

Où les pas du chasseur ont peine à se plonger,

Qui plus haut que nos fronts lève sa tête altière,

Et garde dans la nuit le pâtre et l'étranger.

Viens y cacher l'amour et ta divine faute ;

Si l'herbe est agitée ou n'est pas assez haute,

J'y roulerai pour toi la Maison du Berger.



Elle va doucement avec ses quatre roues,

Son toit n'est pas plus haut que ton front et tes yeux ;

La couleur du corail et celle de tes joues

Teignent le char nocturne et ses muets essieux.

Le seuil est parfumé, l'alcôve est large et sombre,

Et là, parmi les fleurs, nous trouverons dans l'ombre,

Pour nos cheveux unis, un lit silencieux.



Je verrai, si tu veux, les pays de la neige,

Ceux où l'astre amoureux dévore et resplendit,

Ceux que heurtent les vents, ceux que la neige assiège,

Ceux où le pôle obscur sous sa glace est maudit.

Nous suivrons du hasard la course vagabonde.

Que m'importe le jour ? que m'importe le monde ?

Je dirai qu'ils sont beaux quand tes yeux l'auront dit.



Alfred de Vigny, Les Destinées (1844)













A Casa do Pastor





Se teu coração do peso de nossa vida sofrendo

Se arrasta e se debate qual uma águia ferida,

Carregando, igual à minha, em tua asa escravizada,

Todo um mundo fatal, deprimente e insensível,

Se ele senão sangrando por sua aflição não bate,

Se não vê mais o amor, sua estrela fiel,

Pra ele sozinho iluminar o horizonte invisível,



Se tua alma, assim com está a minh’alma,

Cansada de combates e de amargo pão,

Deixa cair o remo na galera enlutada,

Inclina a cabeça pálida e sobre o mar chora ,

Ao procurar nas ondas uma rota desconhecida,

Ali vê, estremecendo, no teu ombro desnudo,

Escrita com o ferro a letra social.



Se teu corpo,vibrante de paixões secretas,

Tímido e palpitante se revolta com olhares,

Se em sua beleza profundos refúgios procura

Para do profano injurioso melhor ocultar-se,

Se com o veneno das mentiras teu lábio se seca,

Se tua bela fonte enrubesce ao encarar os sonhos

De um impuro desconhecido que te vê e te espera,



Parte com ânimo; esquece todas as cidades,

Com a poeira das estradas não ofusques mais teus pés.

Do alto de nossos pensamentos vês as cidades servis

Como as rochas fatais da servidão humana.

Os grandes bosques e os campos são vastos asilos,

Livres como o mar das sombrias ilhas em torno.

Caminha pelos campos tendo na mão uma flor.



Num silêncio austero te espera a Natureza.

Sua nuvem da noite a erva a teus pés se ergue

E do sol à terra o suspiro de adeus

Como turíbulos sacode os belos lírios

Tem a floresta velado suas grandiosas colunas,

E, sobre as pálidas ondas, se oculta a montanha,

Seus castos repousos suspendeu o salgueiro.



Adormece na planície o crepúsculo amigo

Na erva de esmeralda e no ouro do relvado,

Nos tímidos juncos da fonte isolada.

E nos bosque sonhador estremecendo no horizonte

Se balança fugindo nos cachos selvagens

Sobre a margem  das praias seu manto cinza arremessa

E das flores da noite a prisão entreabre.



Na minha montanha existe uma espessa urze

Por onde os passos do caçador dificilmente penetram,

O qual, mais alto do que nossas frontes, a cabeça altaneira ergue,

E na noite vigia o pastor e o estrangeiro.

Vem ali esconder o amor e a tua divina culpa

Se a erva agitada está ou não bastante alta,

Ali tua Casa do Pastor rolarei pra ti.



Com suas quatro rodas vai ela suavemente,

Não é mais alto do que tua fronte e teus olhos seu telhado..

A cor do coral e a de tuas faces

A carruagem noturna e seus mudos eixos tingem.

Perfumado é o umbral, a alcova,  grande e sombria,

E, ali, entre as flores, a sombra encontramos,

Um leito silencioso pra nossos cabelos unidos.



Verei, se quiseres, da neve os países,

Aqueles que o astro amoroso devora e brilha,

Aqueles que os ventos ferem, aqueles que a neve cerca,

Aqueles nos quais o pólo obscuro no gelo é maldito.

O  rumo vagabundo seguiremos ao acaso.

Que me importa o dia? Que me importa o mundo?

Direi que são belos quando o terão dito teus olhos.





                                                                                   (Trad. de Cunha e Silva Filho)


*Nota:  O poema  "La maison  du berger"  compreende 336 versos. Deste  modo,  a parte  traduzida  constitui apenas uma fração  do  poema.
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