Cunha e Silva Filho
 Não se pode falar de Monteiro Lobato (1882—1921) sem associá-lo à literatura infantil. Isso é  já é muita coisa e o suficiente para reconhecê-lo como figura de proa das letras brasileiras. Seu personagem Jeca  Tatu foi logo objeto da atenção do jurista Rui Barbosa que nele via  um símbolo negativo  dos males  da  nação brasileira: o do homem caipira,  abandonado e maltratado pelos poderes públicos, cheio de verminose, vivendo de cócoras, descalço, preguiçoso por conta  dos próprios vermes que lhe roíam por  dentro. 
           Essa figura ganhou  popularidade  pelo  país afora, porém uma popularidade que se prestava também para debates políticos, antropológicos sociológicas da constituição do nosso  povo no que concerne ao problema da raça e de seus elementos formadores num país que longe estava de identificar e corrigir seus defeitos e suas exclusões, quer dizer,  Euclides da Cunha (1866-1909), Lima Barreto(1881-1922), Monteiro Lobato e Graça Aranha (1868-1931), na  fase literária a que se convencionou chamar Pré-Modernismo, contribuíram, cada qual à sua maneira, com uma ponderável visão social para melhor  aprofundar, pelo viés ficcional,  aspectos da  realidade brasileira que estavam a exigir  mudanças de interpretação isentas de  ufanismos e de nacionalismos míopes  que só serviam para escamotear as velhas chagas sociais, políticas e culturais que, no mínimo, vinham  da República Velha. A vertente social desse período da literatura brasileira  é um divisor de águas de estilos literários e de temas relevantes quando a confrontamos  com o Parnasianismo e o Simbolismos, movimentos estes por excelência  absenteísta  nos temas e  requintadamente formal na língua.
A primeira vez que  tomei contato com a ficção lobatiana foi através do conhecido livro de contos, Urupês (1918), que pertencia à biblioteca de meu pai. Na época, não li o livro. Deixaria pra depois, porém um conto dele, “Negrinha”, o primeiro de um livro de título homônimo, li num manual didático já quando professor do ensino hoje chamado fundamental  e médio. Fantástico o conto, e fantástico justamente porque toca num tema polêmico e ainda atual: a personagem central do primeiro conto, ”Negrinha,” que dá nome ao título da obra, é a vítima dos maus tratos da patroa. Nem é preciso dizer por que motivos a patroa a trata assim. Pois bem, essa história põe  o dedo na ferida,  a do preconceito não só em razão de Negrinha ser pobre, mas também por ser preta.
Numa reportagem de ontem, dia 30 de outubro, no jornal O Globo, leio, estarrecido,  uma  notícia de um parecer aprovado  pelos membros do Conselho Nacional de Educação (CNE), órgão subordinado ao MEC. Segundo  esse parecer,  a personagem de Lobato, a tia Nastácia,  tão conhecida por gerações de  brasileiros que se tornaram,   desde crianças,  fiéis leitores do criador   de tantas figuras estimadas  por crianças (e adultos), é, agora, vista como   um exemplo de construção literária vítima do preconceito  racial  da perspectiva  do “autor.”  Ou seja,  os membros do CNE, ab initio, cometeram um erro imperdoável, o de confundir autor de carne e osso, no caso, Monteiro Lobato, e narrador, que representa  apenas  a configuração  imaginária que deve ser compreendida do ângulo  da narratividade e não a partir da realidade empírica  ou referencial.
No mesmo erro  incidiu a Secretaria do  de Educação  Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), que, numa  “nota técnica”   emitiu opinião contrária  ao livro Caçadas de Pedrinho,” argumentando que ele só deveria ser utilizado  caso o professor esteja  preparado(!?)) para fazer  a necessária  contextualização  histórica das   causas  que provocaram  o abominável  regime  escravagista no país e suas sequelas  futuras,  as quais resultaram na estigmatização   racista ainda de alguma forma  resistente  entre nós.
Vejo esse incidente lamentável como um  sinal  perigoso, ou melhor, obscurantista, para que novos casos  semelhantes  possam  ocorrer com os autores brasileiros. Me  lembro de  que, certa vez, o  escritor Darcy Ribeiro foi  também  vitima de leitura  deformada, que via, na fala de um personagem de uma  de suas obras ficcionais, conceitos inadequados do ponto de vista “moral”. 
Situações como  estas  devem receber  o repúdio  dos que   prezam  a livre  expressão do pensamento, sobretudo em se tratando de obra  ficcional. Não estamos  mais na Idade Média, nem  vivemos  num país  fascista ou  numa ditadura comunista,  onde se costumava  levar livros às fogueiras,  apreendê-los  ou punir os autores  com prisões ou deportações  para os Gulags  da vida. O Santo Ofício é coisa para ser  sepultada  de forma definitiva.  O  Index librorum prohibitorum, que me perdoe o Vaticano,   não  foi bom  exemplo para  países que   respeitam   os direitos de expressão  oral e escrita. Acredito  até que os Nihil obstat nem mais aparecem nas páginas do verso de  livros didáticos dos maristas. Ainda bem.
Por conseguinte, o Parecer do CNE, que deverá ser ou não homologado pelo Ministro da Educação, após a análise  da Secretaria de Educação Básica,  não pode ser  deferido pelo Ministro, porque isso seria um retrocesso   para a democracia  que se  afirma estar vivendo  o Brasil.
O livro de Lobato, afirma a reportagem,  já tinha sido  distribuído  a escola públicas do ensino fundamental através  do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), entre 1998 e 2003. Cumpre  lembrar, segundo  a citada reportagem,  que a liberação  desses livros  só se efetuou após seleção aprovada por especialistas  recomendados pelo MEC. Como explicar  essa mudança agora? Em questões que dizem respeito a seleção de obras  para os alunos,  cabe  aos professores habilitados na área de literatura    o encargo de  cuidarem  de assuntos  dessa natureza. Não é porque algum  estudante, mesmo   de mestrado,  com deficiência flagrante dos pressupostos  práticos e teóricos de leitura e de conhecimentos sólidos  de literatura,   venha a   fazer leitura  unilateral e,  aí si, preconceituosa de um autor,  que seja  levado em conta  por órgãos  da administração pública na área da educação, e provoque  dissonâncias  prejudiciais  à memória de um dos  escritores  mais respeitados  da história da literatura brasileira, autor querido do público  infantil, aplaudido, certa vez,   em Buenos  Aires por seus méritos de autor  para a infância. E não estamos  ainda  falando do seu papel em defesa do petróleo brasileiro, do ferro,   da sua atividade  de editor de   à frente da Companhia A Editora Nacional. E de outras  experiências editoriais, como a Revista do Brasil,
Se observarmos atentamente a condição da escola pública  brasileira, quantas mazelas, quantas metas devem ser atingidas para que saia de um situação  praticamente  crônica que a tornou, aos olhos da sociedade,  motivo de piada, de descrédito, tanto em relação à estrutura das escolas em si, a salientar sobretudo a  baixa qualidade de ensino e de condições de trabalho, quanto no que tange aos  vis salários ainda  pagos aos professores brasileiros.Por que o MEC não se volta, isso sim,  para esses graves  problemas enfrentados  pela educação  do país?  Se o fizesse, não haveria  tempo  e ócios bem remunerados por técnicos e coordenadores  de universidades públicas e de órgãos do MEC para, em leituras  apressadas e mal assimiladas, encontrar  interpretações  literais  para textos que exigem  um aparato mais complexo  além das referencialidades  extra-contextuais. É preciso atentar para o fato que não é apenas a  aprovação de uma lei contra o racismo entre nós  que vai mudar  o interior  das pessoas. O buraco está mais  embaixo, quer dizer,  está  simplesmente no  preparo cívico-moral  de nossas crianças, desde a mais tenra a idade, para saber   conviver com  as diferenças de cor sem que isso implique  inferioridade    uma  ou outra. Instilar a prática da convivência harmônica entre  etnias  me parece a melhor forma de  se cumprir uma lei. O estigma do preconceito deve ser  extirpado em definitivo  do nosso  mundo interior, de nossa ética de cidadania e  respeito às alteridades.
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