quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Um conto e uma conjunção

Cunha e Silva Filho


Era na Rua Arlindo Nogueira, espaço da minha memória recorrente por motivos já por muitas vezes mencionados nos meus escritos. Apesar da pouca idade, fiz boa amizade com um senhor idoso, de cujo nome não me lembro mais. Vou deixar mais pra frente e seguir o conselho de Álvaro Lins (1912-1970)
O meu amigo, pela distância do tempo, vejo mais agora como um personagem saído de um romance ou conto regionalista dos anos trinta. Poderia ser José Lins do Rego (1901-1957), Graciliano Ramos (1892-1953), Raquel de Queiroz (1910-2003) ou outro.
Vou me explicar com o leitor por que essa lembrança me vêm à tona. Há muitos anos, depois que deixei Teresina, um dia me despertou a ideia – melhor dizendo, uma tentativa - de escrever uma narrativa, um conto inspirado naquele senhor velho.
O fio do conto situava-se no domínio da gramática. Sem ter, àquela época, a consciência do que hoje denominamos metalinguagem, o fulcro da história centrava-se numa função jakobsoniana. Toda vez que entretinha conversa com ele, meu amigo costumava repetir a conjunção “ao passo que”. O uso exaustivo que dela fazia me chamou logo a atenção. Não era algo que pudesse passar despercebido. O homem tinha mesmo especial mania ou predileção pelo conectivo, agora mais conhecido, pelos linguistas modernos, como conector.
Como era engraçado o amigo velho reiterar a dita conjunção naqueles diálogos cheios de experiência interiorana, recheados de histórias que passavam oralmente de geração para geração! De engraçado chegava a virar histriônico. Mal continha a vontade picaresca de um riso, ou mesmo gargalhada. “Ao passo que.., ao passo que..., ao passo que..” O abuso da conjunção parecia ecoar pelos quatros cantos daquela acanhada Teresina. Ah, meu velho amigo velho, como me divertia aquele vaivém em cena da conjunção! “Ao passo que” era, com efeito, a súmula da proporção ou do contraste do idioleto do amigo velho!
Hoje, penso que meu amigo e vizinho da mesma rua, sem menos dar conta do real sentido da expressão, a usava infinitamente como forma de dar alguma aparência de bom usuário da língua. O certo é que a expressão conectora, de tão repisada, passou a ser parte inseparável de sua figura simplória e cordial.
Se não me engano, tinha vindo de Piripiri, cidade piauiense. Era casado e tinha um filho, um rapazola, e duas filhas moças.
Morava numa casa simples e acolhedora. A porta sempre aberta como se quisesse dar boas vindas a todos que ali fossem bater .Eu próprio o visitava com assiduidade.
O amigo velho, quando não estava ocupado dentro de casa, às tardezinhas, tinha o hábito de sentar-se numa cadeira rústica na calçada, em frente de sua casa. Ali via a passagem de todos, recebia os cumprimentos de conhecidos e amigos. Se eu por acaso ali passasse, ali ficava por uma boa meia hora, indo, depois, me encontrar com colegas, mais adiante, na outra esquina.
Sua fisionomia era típica daquele homem do interior, semiletrado, mas dono da sabedoria dos mais velhos. Era disso que eu gostava. Homem afeito a acordar cedo quando vivia em Piripiri, a ver os primeiros raios da manhã em contraponto com a leve brisa que soprava dentro de sua casa de tijolo, mas com telhado de palha.Os cabelos lisos e brancos, a barba sempre por fazer. O corpo magro. A simpatia em pessoa.
No entanto, o que me ficou dele foi aquele uso da conjunção e um outro fato nada agradável. Essas duas coisas me levaram a escrever o conto com o título “Ao passo que”.
Um dia qualquer do nosso convívio, o filho do meu amigo, o Piripiri, aos prantos, veio até à minha casa avisar que seu pai acabara de falecer. Que eu desse um pulo na casa dele. Lá fui, nervoso e apavorado com a notícia intempestiva. Meu amigo estava deitado na cama do quarto do casal. A esposa, ao lado, chorando e passando-lhe as mãos nos cabelos. As duas filhas não sabiam o que fazer. Só havia choro e tristeza. Inânime, pálido, com os olhos fechados, ali estava o meu amigo. A casa, agora, estava apinhada de vizinhos, amigos, curiosos de passagem pela rua.
Seu filho, Piripiri, apelido familiar daquele rapazinho da minha idade, me pediu um favor: que ajudasse a vestir o pai com roupa nova, uma blusa de manga comprida, cor de rosa, e uma calça de gabardine azul, se não me falha a memória. Aceitei o encargo. Piripiri me agradeceu enternecido, em lágrimas. Não me recordo do seu nome de batismo. Voltei pra casa desolado. Só me lembro de que a morte do meu amigo foi, se não a primeira, a mais forte experiência daquela época e por uma razão a mais, a que já fiz referência: ajudei a tirar a roupa do meu amigo. Nunca pensei que tivesse coragem de fazê-lo. Vê-lo despido e morto foi muito difícil e trágico pra mim naquela idade.
Vestimo-lo da melhor forma possível. Piripiri penteou-lhe os cabelos, arrumou-lhe carinhosamente as vestes. Tudo em silêncio. Estava pronto para receber o carro funerário. Não fui ao cemitério pra lhe dirigir o último adeus e as minhas preces.Todos esses fatos procurei transfundir literariamente no conto, com algumas tintas de tragicidade e de lirismo. Assim, se construiu o conto. Um amigo escritor o leu aqui no Rio. Gostou do entrecho, mas fez sérios reparos quanto à técnica narrativa. O conto nunca foi publicado e, ademais, o perdi em mudanças.

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