" Sei muito bem que, se a realidade não é simples, tampouco o é o mundo imaginário da arte'" FERREIRA GULLAR*
Cunha e Silva Filho
O Olavo era useiro e vezeiro em enviar
cartas, aliás muito bem escritas, solicitando emprego a gerentes de bancos pra jovens que lhe iam ao escritório à procura de emprego, naturalmente
encaminhados pelo deputado
Sousa Santos a fim de ficar bem
com as suas bases eleitorais no Piauí. Uma vez, fui instrumento de suas cartas a gerentes, visto que estava
em fase de arranjar algum emprego.
Lá fui eu a um banco situado no Centro (sempre nesta parte da cidade). Ao
sentar-me diante da mesa de um gerente circunspecto, lhe entreguei a carta do
Olavo. O gerente abriu o envelope, que não estava lacrado e, sem rebuços, olhando
fixamente pra mim, soltou
esta: “”Eu já estou cansado de
receber carta desse senhor me apresentado a jovens candidatos a uma vaga neste
banco. O que pensa ele? Que sou uma
agência de emprego?! Tenha paciência... Me levantei da cadeira.
cumprimentei-o e, num átimo, caí fora. Na rua, senti uma só falta, a do
ar condicionado.
Sempre que ia ao Olavo, encontrava ele em
conversa com um homem ainda novo, um tanto alto, bem vestido,
branco e de cabelos louros. Quem
o visse, logo pensava ser um alemão. E, na verdade era. O alemão, soube pelo
Olavo, era casado com um brasileira. Falava fluentemente português, porém com
sotaque ainda germânico.
Gostava de bater papo com
esse secretário maranhense, pessoa muito lida e, como
acentuei atrás, às vezes sarcástica. Num dia em que me encontrava no escritório, comentou comigo que, pouco minutos antes, tinha estado
com um rapaz, por sinal,
piauiense. O jovem estava
também à cata de emprego e não sei como
conheceu o Olavo. Este me confidenciou: “Esse
rapaz já veio aqui várias vezes e já lhe
fiz várias cartas recomendando-o a
empresas e a bancos.”
“O problema é que não se veste bem e, por cima de tudo, é muito feio. Não é como você,
Francisco, que tem uma aparência mais ou
menos.” Com os meus botões, lhe
reprovei “a expressão mais
ou menos,”posto que me achasse, modéstia à parte, um jovem
de boa aparência, assim me diziam as namoradas. Outro dia em que estive
no escritório, o Olavo me apresentou ao moço piauiense, sobre a feiura do qual me falara de outra vez estive lá :”Francisco, este é o rapaz piauiense de que lhe falei. Então, fiquei
reparando no olhar do secretário e logo associei a presença daquele piauiense ao que me dissera o secretário sobre a aparência dele
que, no meu juízo estético, não
correspondia à opinião do Olavo.
Anos depois, me deparei
com aquele piauiense, numa
galeria da Rua Treze de Maio, onde funcionava
o prédio do antigo INPS. Ele se
me apresentara triste e preocupado e,
não se contendo, me pediu uma ajuda financeira. Lhe dei, sem mesquinharia, uma quantia razoável, ao
contrário de certo personagem machadiano. Seu olhar, tão
suplicante era que, a meu ver, nenhum
cristão verdadeiro deixaria de
atendê-lo. Me beijou as mãos, me desejando
muitas felicidades e saúde.
Nunca mais o vi. E lá se vão muitos anos
desse encontro casual. São os
acasos shakesperianos da vida.
Não permaneci muito tempo com o tio
Zequinha. Talvez uns dois meses, se tanto. Houve um problema
pessoal entre nós dois e resolvi sair de sua casa. Para encurtar a conversa: ele é da família dos Harpagons. Talvez isso seja o principal ingrediente de meu rompimento com ele.
Ao deixar sua casa, me vi sozinho e sem
lugar para onde ir. Recorri ao
tio Carlitos a fim de poder alugar duas vagas, uma pra mim, outra
pra meu
irmão Winston.Tio Carlitos me ajudou
com uma parte do dinheiro que me serviria pra pagar as vagas num prédio não muito conceituado, situado perto da Praça Onze, Centro do Rio, popularmente
chamado “Balança mas não cai.” Encontrei as vagas através de um anúncio de jornal. Meu irmão Winston viera pro Rio a
pedido do meu pai, que me escrevera um carta
expondo as razões por que meu irmão estava
vindo pra cidade grande. Quando chegou, num avião da VASP, eu ainda morava na casa do tio
Zequinha.
Meu pais erraram em mandá-lo pro Rio,
sobretudo sabendo que
eu não tinha ainda emprego e nem
podia alojá-lo na casa do meu tio. Meu pai não era um homem prático. Não atinava no que podia acontecer. Ainda mais porque não nos podia mandar uma mesada.
Além disso, papai e mamãe sabiam que eu já estava de
favor morando na casa do tio Zequinha.
Foram imprevidentes. Por que primeiro não falaram com
o meu tio perguntando-lhe se ele podia
deixar que meu irmão também se hospedasse na casa dele? O pior foi que, quando
Winston chegou ao Rio, o meu tio
se encontrava gozando férias em Teresina depois de vários anos de ausência do Piauí. Me colocaram numa saia
justa, agravada, ademais, pela circunstância de que meu irmão e eu estávamos ainda sem emprego.Uma outra agravante, Winston era boêmio, artista, pintor e escultor de talento, porém pouco dado aos formalismos e exigências de um trabalho sério.
Ele nasceu em Amarante em 1944 Era um jovem fadado ao insucesso na cidade grande, por lhe faltar contatos na sua área artística e por ser arredio a pontualidades trabalhistas. Seria mais um problema pra mim nas condições em que me encontrava. Tanto é verdade que não demorou muito no Rio; ficou apenas um ano e levando vida turbulenta de quase pária. Mesmo sem poder, o ajudei enquanto pude. Ainda voltarei a falar sobre ele nestas relembranças cheia de percalços, de altos e baixos.
Por outro lado, convém frisar este aspecto, havia um contradição entre a minha possibilidade de vir pro Rio fazer medicina e ao mesmo tempo precisar de trabalhar. Pouquíssimos estudantes, então, sem mesada, podiam cursar medicina, curso que exige tempo praticamente integral.
Ele nasceu em Amarante em 1944 Era um jovem fadado ao insucesso na cidade grande, por lhe faltar contatos na sua área artística e por ser arredio a pontualidades trabalhistas. Seria mais um problema pra mim nas condições em que me encontrava. Tanto é verdade que não demorou muito no Rio; ficou apenas um ano e levando vida turbulenta de quase pária. Mesmo sem poder, o ajudei enquanto pude. Ainda voltarei a falar sobre ele nestas relembranças cheia de percalços, de altos e baixos.
Por outro lado, convém frisar este aspecto, havia um contradição entre a minha possibilidade de vir pro Rio fazer medicina e ao mesmo tempo precisar de trabalhar. Pouquíssimos estudantes, então, sem mesada, podiam cursar medicina, curso que exige tempo praticamente integral.
Quando meu tio regressou do Piauí, encontrou-me em companhia do Winston. Não gostou de ver tudo isso, nem
gostou de outras coisas que
considerou erradas da minha parte. Rompi com ele. Se uma
coisa julguei incorreta da parte do irmão de minha mãe
foi a sua atitude nada solidária,
tendo em vista a minha pouca idade. Não
me foi possível mais manter laços de amizade mais íntima com ele. Ficou o
meu ressentimento. Apesar de tudo, não lhe quero mal e só lhe desejo paz e saúde. Ainda que lhe tivesse feito
coisas que o desagradassem, ele
não poderia ter me deixado à deriva, sem
saber pra onde ir. É uma página triste e
virada no meu percurso existencial.
Pensado bem, meu destino seria outro, no que concerne ao fato de ter ido pra casa de um tio, se antecipadamente eu tivesse tido conhecimento de dois auxílios vitais que um estudante daquela época dispunha: 1) o histórico Restaurante Calabouço, demolido, anos depois, pra dar lugar a construções de passarela e a novas pistas.
Era bem localizado. Ficava paralelo à Avenida Beira-Mar, espaço bem arborizado até hoje. Nele se podia contar com, pelo menos, duas refeições gratuitas servidas a estudantes secundaristas e mesmo universitários; 2) Para alojamento havia, pelo menos, três do meu conhecimento: a Casa do Estudante do Brasil, perto da então Embaixada Francesa, a Maison de France (hoje consulado), o CEU (Casa do Estudante Universitário), restrita a este nível de estudantes, que ficava na Rua das Marrecas, também no Centro, e a CESB (Casa do Estudante Secundário do Brasil), situada aos fundos do Palácio do Itamaraty, na Rua Senador Pompeu, da mesma forma, no Centro. Ora, só vim a saber disso tudo após a minha saída de Owaldo Cruz. e, o que é melhor, isso teria evitado o entrevero entre mim e meu tio. Não somos profetas de nossa caminhada no planeta Terra... Sobre a CESB, em outro passo destas lembranças, dela me ocuparei.
Pensado bem, meu destino seria outro, no que concerne ao fato de ter ido pra casa de um tio, se antecipadamente eu tivesse tido conhecimento de dois auxílios vitais que um estudante daquela época dispunha: 1) o histórico Restaurante Calabouço, demolido, anos depois, pra dar lugar a construções de passarela e a novas pistas.
Era bem localizado. Ficava paralelo à Avenida Beira-Mar, espaço bem arborizado até hoje. Nele se podia contar com, pelo menos, duas refeições gratuitas servidas a estudantes secundaristas e mesmo universitários; 2) Para alojamento havia, pelo menos, três do meu conhecimento: a Casa do Estudante do Brasil, perto da então Embaixada Francesa, a Maison de France (hoje consulado), o CEU (Casa do Estudante Universitário), restrita a este nível de estudantes, que ficava na Rua das Marrecas, também no Centro, e a CESB (Casa do Estudante Secundário do Brasil), situada aos fundos do Palácio do Itamaraty, na Rua Senador Pompeu, da mesma forma, no Centro. Ora, só vim a saber disso tudo após a minha saída de Owaldo Cruz. e, o que é melhor, isso teria evitado o entrevero entre mim e meu tio. Não somos profetas de nossa caminhada no planeta Terra... Sobre a CESB, em outro passo destas lembranças, dela me ocuparei.
Mais uma vez, voltei ao escritório do secretário Olavo.
Dessa vez, me dera um boa notícia:
arranjara um bico pra trabalhar no diretório acadêmico de engenharia da
PUC -Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), localizada no aprazível bairro da Gávea,Zona Sul carioca. Olavo me conseguira a colocação com um
irmão do deputado Sousa Santos, chamado
Arsênio de Sousa Santos, irmão mais novo do deputado, o qual estava cursando engenharia (penso que civil) naquela universidade. A família Sousa Santos era dona de uma empresa de construção, com escritório na Rua do Carmo, Centro. Ainda me reportarei sobre o Arsênio, então presidente do Diretório Acadêmico de Engenharia da PUC-Rio. Era ainda o ano de 1964. (Continua)
* Apud Folha de São Paulo. Ilustrada, E8, 19 de abril de 2015.
Muito boa, esta iniciativa, Cunha e Silva Filho. Afinal, você vivenciou um período importante de nossa história, tanto no Piauí, quanto no Rio, e isso faz de suas memórias um precioso documento. Creio que, por isso, seja muito importante você vasculhar os seus "escaninhos" e relatar fatos em que "contracene" com nomes sugestivos da vida literária, política e jornalística do Rio e do Piauí. Sucesso nesta empreitada.
ResponderExcluirMilho:
ExcluirMeu caro poeta Luiz Filho:
Grato pelas suas palavras, que só me emocionam pelo entusiasmo que me levantam o ânimo. Na verdade, não sei até onde vão dar estes relatos. Porém, o objetivo deles será contar uma parte significativa dai minha formação cultural,.
Como V. pôde verificar até agora, este ângulo se imbrica com a confissão, a autobiografia. Desta forma, fatos paralelos da vida pessoal e de outras pessoas se cruzam inevitavelmente.Não há como fugir a isso.
Espero conseguir levas estas memórias a bom termo.
Um abraço do
Cunha e Silva Filho