quinta-feira, 16 de abril de 2015

Minha formação (8)


        " Sei muito bem que, se a realidade não é  simples,                                                                                          tampouco o é o mundo imaginário da arte'"                                                                                                     FERREIRA GULLAR*                                                                                                                             
                                                                                                
                                               Cunha e Silva Filho

         O Olavo era useiro e vezeiro em  enviar  cartas, aliás muito   bem  escritas, solicitando emprego a gerentes de bancos  pra jovens que lhe iam ao escritório  à procura de  emprego, naturalmente encaminhados   pelo  deputado  Sousa Santos a fim de  ficar bem com as  suas bases eleitorais no Piauí. Uma vez, fui instrumento  de suas cartas a gerentes, visto que estava em fase de arranjar algum  emprego.
        Lá fui eu a um banco situado  no Centro (sempre nesta parte da cidade). Ao sentar-me  diante da mesa de um gerente circunspecto, lhe entreguei a carta do Olavo. O gerente abriu o  envelope, que não estava lacrado e, sem rebuços,  olhando  fixamente  pra mim,  soltou  esta: “”Eu já estou  cansado de receber carta desse senhor me apresentado a jovens candidatos a uma vaga neste banco. O que pensa ele? Que sou  uma agência de emprego?! Tenha paciência... Me levantei da cadeira. cumprimentei-o e, num átimo, caí fora. Na rua,  senti uma só falta, a do ar condicionado.
     Sempre que ia ao Olavo, encontrava ele em conversa com um homem ainda novo,  um tanto alto, bem vestido,   branco e de cabelos  louros. Quem o visse,  logo  pensava ser um  alemão. E, na verdade era. O alemão,   soube pelo  Olavo, era casado com um brasileira. Falava fluentemente português,  porém com  sotaque ainda germânico.
    Gostava de bater papo  com  esse secretário maranhense, pessoa muito   lida e, como  acentuei atrás,  às vezes  sarcástica. Num dia em que me encontrava   no escritório, comentou  comigo que, pouco  minutos antes,  tinha estado  com um rapaz, por sinal,  piauiense. O jovem  estava também  à cata de emprego e não sei  como  conheceu o Olavo.  Este  me confidenciou: “Esse rapaz já veio aqui  várias vezes e já lhe fiz  várias cartas recomendando-o a empresas e a bancos.”
     “O problema é que não se veste bem e,  por cima de tudo,  é muito feio. Não é como você, Francisco,  que tem uma aparência mais ou menos.” Com os meus botões,  lhe reprovei  “a expressão  mais  ou menos,”posto que me achasse,  modéstia à parte, um  jovem  de boa aparência, assim me diziam as namoradas. Outro dia em que estive no  escritório, o Olavo me apresentou   ao moço piauiense,  sobre a feiura do qual   me falara de outra vez  estive lá :”Francisco,  este é o rapaz piauiense  de que lhe falei. Então,  fiquei  reparando  no olhar  do secretário e logo  associei a presença daquele piauiense ao que  me dissera o secretário sobre  a aparência  dele  que,  no meu  juízo estético,  não  correspondia à opinião do Olavo.
    Anos depois,  me deparei  com  aquele piauiense, numa galeria da Rua Treze de Maio, onde funcionava  o prédio do antigo  INPS. Ele se me apresentara  triste e preocupado e, não se contendo,  me pediu  uma ajuda financeira. Lhe dei, sem  mesquinharia, uma quantia razoável, ao contrário de  certo personagem  machadiano. Seu  olhar,  tão suplicante era  que, a meu ver,  nenhum cristão verdadeiro  deixaria de atendê-lo. Me beijou as mãos, me desejando  muitas  felicidades e saúde. Nunca  mais o vi. E lá se vão muitos anos desse  encontro casual. São os acasos  shakesperianos da vida.
    Não permaneci muito tempo com o tio Zequinha. Talvez uns dois meses, se tanto. Houve um  problema  pessoal  entre nós dois e resolvi  sair de sua casa. Para encurtar a conversa: ele é da família dos Harpagons. Talvez  isso seja o principal  ingrediente de meu rompimento com ele.
   Ao deixar  sua casa,  me vi  sozinho e sem  lugar para onde ir. Recorri  ao tio Carlitos a  fim de poder  alugar duas vagas, uma pra mim, outra pra  meu  irmão Winston.Tio Carlitos me ajudou  com uma parte  do dinheiro  que me serviria  pra pagar as vagas num  prédio não muito  conceituado,  situado perto da Praça  Onze, Centro do Rio, popularmente  chamado  “Balança  mas não cai.”  Encontrei  as vagas através de um anúncio  de jornal. Meu irmão  Winston viera pro   Rio  a pedido do meu pai, que me escrevera um carta  expondo as razões por que  meu irmão estava  vindo pra cidade grande. Quando chegou, num avião da VASP, eu ainda morava na casa do  tio Zequinha.
    Meu pais erraram em mandá-lo pro Rio, sobretudo  sabendo  que  eu  não tinha ainda emprego e nem podia  alojá-lo na casa do meu tio. Meu pai não era um homem prático. Não atinava no que podia  acontecer. Ainda mais porque não nos podia  mandar uma mesada.
   Além disso,    papai e mamãe sabiam que eu já estava de favor  morando na casa do tio Zequinha. Foram imprevidentes. Por que  primeiro não falaram com  o meu tio  perguntando-lhe  se ele podia  deixar que meu irmão  também  se hospedasse na casa dele? O pior foi que, quando Winston  chegou ao Rio,  o meu tio  se encontrava gozando férias em Teresina depois de vários anos  de ausência do Piauí. Me colocaram numa saia justa, agravada, ademais,  pela circunstância  de que meu irmão e eu  estávamos ainda  sem emprego.Uma outra agravante,   Winston era boêmio, artista,  pintor e escultor de talento, porém  pouco dado aos formalismos e exigências de um  trabalho sério. 
   Ele nasceu em Amarante em  1944 Era  um jovem fadado ao insucesso na cidade grande, por lhe faltar   contatos  na sua área artística e por  ser arredio  a  pontualidades  trabalhistas. Seria mais um problema  pra mim nas condições em que me encontrava. Tanto é verdade que não demorou muito no  Rio;  ficou apenas um ano e levando  vida turbulenta de quase pária. Mesmo sem poder, o ajudei enquanto  pude. Ainda voltarei a falar sobre ele nestas  relembranças cheia de percalços, de altos e baixos.
  Por outro lado,  convém  frisar este aspecto,  havia um  contradição entre a  minha possibilidade de vir pro Rio  fazer medicina e ao mesmo tempo precisar de trabalhar. Pouquíssimos estudantes, então,  sem mesada, podiam cursar medicina, curso que exige tempo praticamente integral.
   Quando meu tio regressou do Piauí,  encontrou-me em companhia  do Winston. Não gostou de ver tudo isso, nem gostou de outras coisas  que considerou  erradas  da minha parte. Rompi com ele. Se uma coisa  julguei    incorreta da parte do irmão de minha mãe foi  a sua atitude   nada solidária, tendo em vista  a minha pouca idade. Não me foi possível mais  manter  laços de amizade mais íntima com ele. Ficou o meu ressentimento. Apesar de tudo, não lhe quero mal e só lhe desejo  paz e saúde. Ainda que lhe  tivesse feito  coisas que o desagradassem,  ele não poderia ter  me deixado à deriva, sem saber pra onde ir. É uma página  triste e virada no meu  percurso  existencial.
    Pensado bem,  meu destino  seria outro, no que concerne ao fato de ter ido  pra casa de um  tio, se antecipadamente eu tivesse tido  conhecimento de dois auxílios  vitais que um estudante daquela  época dispunha:  1) o  histórico Restaurante  Calabouço,   demolido, anos depois,  pra  dar lugar a construções de passarela  e  a novas pistas. 
  Era bem    localizado. Ficava   paralelo  à Avenida  Beira-Mar,  espaço bem arborizado até hoje. Nele se  podia contar com,  pelo menos,  duas refeições gratuitas servidas  a estudantes  secundaristas e mesmo  universitários;  2) Para alojamento havia,  pelo menos,  três do meu conhecimento: a Casa do Estudante do Brasil,  perto da então Embaixada  Francesa, a Maison de France (hoje consulado), o CEU (Casa do Estudante Universitário), restrita a este nível  de estudantes, que ficava na  Rua das Marrecas, também no Centro, e a CESB (Casa do Estudante  Secundário do Brasil),  situada aos fundos  do Palácio do Itamaraty, na Rua Senador  Pompeu, da mesma forma, no Centro. Ora,  só vim a saber disso tudo  após a minha  saída  de Owaldo Cruz. e, o que é melhor,  isso teria  evitado  o entrevero entre mim e meu tio. Não somos  profetas  de nossa caminhada no  planeta Terra... Sobre a CESB, em outro passo destas lembranças, dela  me ocuparei.
    Mais uma vez,  voltei ao escritório do secretário Olavo. Dessa vez, me dera um   boa notícia: arranjara um bico pra trabalhar no diretório acadêmico de engenharia da PUC -Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), localizada no  aprazível bairro da Gávea,Zona Sul carioca.  Olavo me conseguira a colocação com um irmão  do deputado  Sousa Santos,  chamado  Arsênio de Sousa Santos, irmão mais novo do deputado, o qual   estava cursando  engenharia (penso que  civil)  naquela universidade. A família Sousa Santos  era dona de uma  empresa de construção, com escritório na Rua do Carmo, Centro. Ainda me  reportarei  sobre  o Arsênio, então   presidente do  Diretório Acadêmico de Engenharia da PUC-Rio. Era ainda o  ano de 1964. (Continua)
   
   * Apud  Folha de São Paulo. Ilustrada, E8, 19 de abril de 2015.

   

2 comentários:

  1. Muito boa, esta iniciativa, Cunha e Silva Filho. Afinal, você vivenciou um período importante de nossa história, tanto no Piauí, quanto no Rio, e isso faz de suas memórias um precioso documento. Creio que, por isso, seja muito importante você vasculhar os seus "escaninhos" e relatar fatos em que "contracene" com nomes sugestivos da vida literária, política e jornalística do Rio e do Piauí. Sucesso nesta empreitada.

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    1. Milho:
      Meu caro poeta Luiz Filho:

      Grato pelas suas palavras, que só me emocionam pelo entusiasmo que me levantam o ânimo. Na verdade, não sei até onde vão dar estes relatos. Porém, o objetivo deles será contar uma parte significativa dai minha formação cultural,.
      Como V. pôde verificar até agora, este ângulo se imbrica com a confissão, a autobiografia. Desta forma, fatos paralelos da vida pessoal e de outras pessoas se cruzam inevitavelmente.Não há como fugir a isso.
      Espero conseguir levas estas memórias a bom termo.
      Um abraço do
      Cunha e Silva Filho

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