Cunha e Silva
Filho
Já morando no novo endereço, “No balança mais não” cai” em
companhia de meu irmão Winston, tocava a vida no bico que o secretário Olavo me conseguira no Diretório Acadêmico de
Engenharia da PUC-Rio. A princípio, achei que não daria conta da tarefa. Tinha procurado o estudante
Arsênio de Sousa Santos recomendado pelo Olavo. Ele era um estudante ainda bem moço, de altura
média, cenho carregado, sanguíneo, usava
óculos. Tinha boa aparência.
De poucas palavras, me mostrou
o que seria a minhas tarefas lá: bater textos relacionados à vida estudantil da
Universidade, especificamente voltados pra
o curso de engenharia. As
atividades no Diretório se
estendiam a fazer correspondência de acordo com
o que me pedia e uma coisa me
chamou a atenção. Havia muita carta que deveria
bater à máquina dirigida a
políticos em Brasília. Não me
lembro bem dos teores das cartas.
Também deveria atender ao telefone e a
estudantes de engenharia que me pedissem
alguma coisa que
exigisse o uso da redação ou outras informações pertinentes ao Diretório.
No primeiro dia que botei o pé no escritório do Diretório e após
ficar a par do que me caberia fazer ali, Arsênio,
rapaz de família de posse, me ofereceu ma carona até ao Centro.Não me
recordo se me dera outras caronas no seu
automóvel. Não sei a marca do carro. Nunca liguei pra estas coisas .
Havia
no escritório do Diretório Acadêmico de engenharia, situado numa espécie
de ruazinha formada de algumas casas independentes dentro do campus da PUC, nas quais
funcionavam escritórios da universidade, ou outros Diretórios, não sei
ao certo, que tinham saída pra Rua Marquês de São Vicente, na Gávea. Um fato
curioso e fora do comum passo a
relatar de um dos primeiros dias de meu trabalho no Diretório.
Alguns
estudantes bem-humorados e
cheios de desejos de encontrar alguma falha em mim seja de que natureza
fosse. A minha se refere ao uso do telefone.
Naquele dia no escritório,
me pediram que telefonasse pra alguém ou algum lugar e qual não foi o
meu vexame. Comecei a discar o número do
telefone indicado por um dos estudantes e eles
perceberam que não levantara o
gancho do aparelho para fazer a conexão.
Gargalhada geral! “Francisco, você não sabe usar o telefone?”
Realmente, tenho que confessar: em Teresina jamais usei dar um telefonema. o telefone era um aparelho raro nas residências, somente as
famílias burguesas, assim como repartições públicas, o possuíam. Como, pois, iria saber,
sem perguntar ninguém, como usar
aquele aparelho tão importante como invenção para a humanidade. Temos que ser
todos gratos a Alexander Graham Bell, esta figura de notável cientista e inventor. Muitos coleguinhas meus de infância,
na Rua 24 de Janeiro, dispunham de telefone nas suas elegantes
e luxuosas residências, Centro de Teresina.
A gargalhada
continuou.Esta ocorrência,
agora, me leva, por alguma analogia, àquela cena do romance Madame
Bovary (1857), de Gustave Flaubert (1821-1880)
na qual Charles Bovary, numa sala de
aula, ao responder ao professor que lhe
queria saber o nome, falou-lhe com voz gaguejante e ininteligível.
O mestre, diante da hesitação do estudante, exigiu que falasse mais alto. Charles,
criando coragem e abrindo uma bocarra
com toda a força de sua voz, pronunciou
o próprio nome: “Charbovari.” A
estudantada passou a repetir por todos
os cantos do ambiente: “Charborari! Charborari! O narrador, no
trecho em causa, assim descrevia a cena hilariante: (...) Uivava-se, latia-se, sapateava-se,” repetindo aquele nome tornado motivo
de pilhéria de colegas de
turma de malcriados.
Fiquei
sem graça diante do riso geral dos estudantes puquianos. Só com o tempo, com
o meu trabalho no Diretório foi mudando
a opinião dos que supunham me colocar
em maus lençóis por espírito de
brincadeira e deboche. Aos poucos
a maioria deles passou a me ver
com um outro olhar. Me impus pelo
que demonstrava ser no que dizia respeito ao meu caráter, às minhas tarefas e aos meus conhecimentos de língua portuguesa .
Começaram a me tratar com respeito e até quem sabe,
perceberam que ali estava um
jovem de dezoito anos mas com
um bagagem de conhecimentos, sobretudo culturais, de
literatura, de línguas. Quem prova o
seu valor jamais deve temer o fracasso e, caso este aconteça, o ânimo
forte do indivíduo supera todos
os óbices a caminho do sucesso.
Alguns
daqueles estudantes, mais tarde,
se tornaram pessoas bem sucedidas no mundo
político e empresarial
brasileiro. Muitos deles também ficaram
meus amigos ainda quando lá trabalhei.Foi um deles, que conheci no restaurante da PUC, que , um dia, me levou pra conhecer uma biblioteca muito
popular entre estudantes secundaristas e
universitários da época.
Era um jovem de boas maneiras, amigo, simples, alegre, companheiro. Ele tinha um
hábito estranho: gostava de tomar
coca-cola de mistura com leite. Achava deliciosa a mistura. A biblioteca, aludida
linhas acima, era a Biblioteca
Demonstrativa “Castro Alves”, pertencia
ao Instituto Nacional do Livro, e ficava no subsolo de um prédio da Rua Treze de Maio,
Centro, ao lado do Teatro Municipal. Essa biblioteca terá um significado especial
na minha vida de estudante e na minha
vida afetiva. Voltarei ainda a comentar
sobre ela.
Havia na seção de publicações da PUC, um escritório no qual
tinha como encarregado um
senhor já na casa dos cinquenta e tantos anos.
Chamava-se
Joaquim Baptista. Foi uma das
pessoas que mais prezei naquela
época em que , não por muito
tempo, estava sob as ordens do Arsênio, presidente do Diretório Acadêmico de engenharia. Joaquim
Baptista era negro, altura média,
delgado, inteligente,de uma compreensão humana que
poucas vezes vi num ser humano. Era
prestativo em todos os sentidos. Sempre que não tinha dinheiro para a passagem de volta pra minha
vaga do mencionado edifício
perto da Praça Onze, lá estava
Joaquim Baptista me ajudando, me animando o espírito, torcendo por mim.
Um dia,
lhe entreguei uma folha de papel
do tipo A4. Nele havia escrito um poema
(sic!), a ele dedicado e do qual era personagem central. Qual não foi a
sua alegria ao ler o meu poema, um breve poema não metrificado, cuja valor se encontrava,
não no nível estético da composição, mas
no conteúdo que imprimi retratando a grande alma
humana que Joaquim Baptista
significou pra mim no período todo em
que exerci aquele bico no Diretório.
Infelizmente, com muitas mudanças de residências, penso que
se extraviou um cópia do poema, com seu valor
mais afetivo do que poético. No
entanto, a lembrança e o semblante do meu querido amigo negro, lúcido,
sábio, prudente, solícito
ao extremo e o que importa mais neste “vale de lágrimas” -
sumamente humano – permanecem ad aeternitatem na minha alma. (Continua)
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