quarta-feira, 22 de abril de 2015

Apenas memórias (9)




                                  Cunha e Silva Filho


   Já morando no  novo endereço, “No balança mais não” cai” em companhia de meu irmão Winston, tocava a vida no bico que o secretário  Olavo me conseguira no Diretório Acadêmico de Engenharia da PUC-Rio. A princípio, achei que não daria conta  da tarefa. Tinha procurado  o estudante  Arsênio de Sousa Santos recomendado pelo Olavo. Ele era um  estudante ainda bem moço, de altura média,  cenho carregado, sanguíneo, usava óculos. Tinha boa aparência.
   De poucas palavras,  me mostrou  o que  seria  a minhas tarefas lá: bater  textos relacionados à vida estudantil da Universidade,  especificamente  voltados pra  o curso de  engenharia. As atividades no Diretório  se estendiam  a fazer  correspondência  de acordo com  o que me pedia e uma coisa  me chamou a atenção. Havia muita carta que deveria  bater à máquina  dirigida a políticos  em Brasília. Não me lembro bem dos teores  das cartas. Também  deveria atender ao telefone e a estudantes de engenharia  que me  pedissem  alguma  coisa  que  exigisse o uso da redação ou outras informações  pertinentes ao Diretório.
   No primeiro dia que  botei o pé no escritório do Diretório e após ficar  a par  do que me caberia fazer ali,  Arsênio,  rapaz de família  de posse,  me ofereceu ma carona até ao Centro.Não me recordo se me dera outras caronas no seu  automóvel. Não sei a marca do carro. Nunca liguei pra estas coisas .
      Havia  no escritório do Diretório Acadêmico de engenharia, situado numa espécie de ruazinha formada de algumas casas independentes dentro do campus da PUC, nas quais funcionavam  escritórios da  universidade, ou outros Diretórios, não sei ao certo, que tinham saída pra Rua Marquês de São Vicente, na Gávea.  Um fato  curioso e fora do comum  passo a relatar de um dos primeiros dias de meu trabalho  no Diretório.    
    Alguns  estudantes  bem-humorados  e  cheios  de desejos de encontrar  alguma falha em mim seja de que natureza fosse. A minha se refere ao uso do telefone.  
   Naquele dia no  escritório,  me pediram que telefonasse pra alguém ou algum lugar e qual não foi o meu vexame. Comecei a discar  o número do telefone indicado por um dos estudantes e eles  perceberam  que não levantara o gancho  do aparelho para fazer a conexão. Gargalhada geral! “Francisco, você não sabe usar o telefone?”  
     Realmente, tenho que confessar:  em Teresina jamais usei  dar um telefonema. o  telefone era um aparelho  raro nas residências, somente  as  famílias burguesas, assim como repartições  públicas,  o  possuíam.  Como, pois,  iria saber, sem perguntar ninguém, como  usar aquele  aparelho tão  importante como  invenção para a humanidade. Temos que ser todos  gratos a  Alexander Graham Bell, esta figura  de notável cientista e  inventor. Muitos coleguinhas meus de infância, na Rua 24 de Janeiro, dispunham de telefone nas suas  elegantes  e luxuosas residências, Centro de Teresina.
   A gargalhada  continuou.Esta ocorrência,  agora,  me leva, por alguma  analogia,  àquela cena do romance  Madame Bovary (1857), de Gustave  Flaubert (1821-1880) na qual Charles  Bovary, numa sala de aula, ao responder   ao professor que lhe queria saber o nome, falou-lhe com voz gaguejante e ininteligível.
   O mestre, diante   da hesitação do estudante,  exigiu que falasse mais alto. Charles, criando coragem e  abrindo uma bocarra com toda a força de sua voz, pronunciou  o próprio nome: “Charbovari.”  A estudantada passou a  repetir por todos os cantos  do ambiente:  “Charborari! Charborari! O narrador, no trecho em causa, assim  descrevia  a cena hilariante: (...) Uivava-se,  latia-se, sapateava-se,” repetindo  aquele nome tornado  motivo  de pilhéria  de colegas de turma  de  malcriados.
   Fiquei  sem graça diante  do riso geral   dos estudantes puquianos. Só com o tempo, com o meu trabalho   no Diretório foi mudando a opinião dos que  supunham  me colocar  em maus lençóis por espírito de  brincadeira  e deboche. Aos poucos a maioria deles  passou a me  ver  com um outro olhar. Me impus  pelo que demonstrava ser no que dizia respeito ao meu caráter, às  minhas tarefas e aos meus conhecimentos  de língua portuguesa .
       Começaram a me tratar com  respeito e até  quem sabe,  perceberam  que ali  estava um  jovem de dezoito anos  mas com um  bagagem  de conhecimentos, sobretudo culturais, de literatura,  de línguas. Quem prova o seu  valor jamais deve temer  o fracasso e, caso  este aconteça,  o ânimo  forte do indivíduo supera  todos os óbices  a caminho do  sucesso.
     Alguns  daqueles estudantes, mais tarde,  se tornaram  pessoas   bem sucedidas  no mundo  político e empresarial  brasileiro. Muitos deles também ficaram  meus amigos ainda quando  lá  trabalhei.Foi um deles, que conheci  no restaurante da PUC, que , um dia,  me levou pra conhecer uma biblioteca muito popular entre estudantes  secundaristas e universitários  da época.
    Era um jovem  de boas maneiras,  amigo,  simples, alegre, companheiro. Ele tinha um hábito  estranho: gostava de tomar coca-cola de mistura com leite. Achava deliciosa a mistura. A biblioteca, aludida linhas acima, era a Biblioteca  Demonstrativa “Castro Alves”, pertencia  ao  Instituto  Nacional do Livro, e ficava  no subsolo de um prédio da Rua Treze de Maio, Centro, ao lado do Teatro Municipal. Essa biblioteca terá um significado  especial  na minha vida de estudante e na minha  vida afetiva. Voltarei ainda a comentar  sobre ela.
   Havia na seção  de publicações  da PUC, um escritório  no qual  tinha   como encarregado um senhor  já na casa dos  cinquenta e tantos anos.
  Chamava-se  Joaquim  Baptista. Foi uma das pessoas que mais  prezei  naquela  época  em que , não por muito tempo,  estava sob as ordens do  Arsênio, presidente do  Diretório Acadêmico de engenharia. Joaquim Baptista era negro, altura média,  delgado, inteligente,de uma compreensão humana  que  poucas vezes vi num ser humano. Era  prestativo em todos os sentidos. Sempre que não tinha  dinheiro para a passagem de volta pra minha vaga  do mencionado  edifício  perto da Praça  Onze,  lá estava  Joaquim Baptista me ajudando, me animando o espírito, torcendo por mim.
    Um dia,  lhe entreguei  uma folha de papel do tipo A4. Nele havia  escrito um poema (sic!), a ele dedicado e do qual era personagem central. Qual não foi a sua  alegria ao ler o meu  poema, um breve poema  não metrificado, cuja valor se encontrava, não no nível estético  da composição, mas no conteúdo   que imprimi  retratando  a grande alma  humana que Joaquim   Baptista significou  pra mim no período todo em que  exerci aquele  bico no Diretório.   

    Infelizmente,  com muitas mudanças de residências,  penso que  se extraviou  um cópia   do poema, com seu  valor  mais afetivo do que poético.  No entanto,   a lembrança e o semblante do meu  querido amigo negro,  lúcido,  sábio,  prudente,  solícito  ao extremo  e  o que importa mais neste “vale de lágrimas” -  sumamente humano – permanecem ad aeternitatem na minha alma.  (Continua)

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