Cunha e Silva Filho
A VIRADA.  Vivi em
Teresina dos três ou quatro  aos  até completar dezoito em dezembro de 1963. Em
fevereiro do ano  seguinte,  1964,   embarquei de
avião da Vasp para o Rio de Janeiro, espécie de turning  point que, nessa
cidade,  mudaria o rumo de tudo, mas de
tudo  estruturalmente  falando: vida pessoal,  familiar, estudos,  objetivos 
desviados, enfim,  tudo. Teresina
ficaria para trás durante   dez anos em que, na hoje megalópole carioca,  conforme 
disse acima,  as vias do
percurso  humano e intelectual  iriam 
conhecer alegrias e ao mesmo  tempo  muitos 
óbices que  dilacerariam  em parte o meu mundo interior.
         No entanto,  aqueles dez anos de ausência de Teresina e de
meus  familiares,  foram 
um tanto compensados  pela  volta à “Cidade Verde.” 
        Muita coisa  acontece numa década de ausência, e isso foi
constatado   nessa  minha primeira grande volta a Teresina, em
1974. Fiquei deslumbrado com  as mudanças
da capital mafrense e, para isso, 
remeto  o leitor a uma crônica,  com 
título sugerido por meu pai (ele era ótimo para dar títulos a seus  textos) 
“Impressões da Cidade”,  que se
encontra na minha  obra As ideias no tempo (2010). 
         Falei 
acima  que, ao lado do
deslumbramento ou “alumbramento” bandeiriano, 
de rever  Teresina,  havia trazido comigo  outras 
mudanças: não era mais o adolescente 
 que mal completara dezoito anos,
mas um jovem adulto de  vinte e oito
anos, casado, com  dois filhos  pequenos. i.e., um pai de família que viera
abraçar   os pais, irmãos e irmãs. Mamãe me dizia que eu estava pouco à vontade e que não era mais  o filho de antigamente. Acentuo,  todavia, 
que  a ausência de uma década, de
certa maneira,  havia sido amenizada por
uma correspondência intensa entre mim e meu pai. 
        Através desse canal  de comunicação por carta trocávamos afagos,  confidências de toda a sorte e,  por conseguinte,  virtualmente,   mantive 
um elo  espiritual  e intelectual 
com meu pai que se prolongaria 
por  vinte e seis anos.Papai  se queixava às vezes  reclamando 
que eu quase não  escrevia pra
mamãe.
   Expliquei-lhe
que não era essa a minha intenção, pois, escrevendo-lhe,  intencionalmente  era como  se estivesse  também 
me dirigindo a mamãe, visto que a ela 
sempre me referia e bem assim a meus irmãos. Mas, assim mesmo,  segundo ele, 
mamãe  reclamava de que não lhe
mandava  cartas diretamente pra ela. 
       Hoje, 
entendo o motivo  principal da minha  preferência paterna: sempre estive  em
sintonia com ele mais por razões  intelectuais.
Tanto ele quanto  eu  nos entendíamos muito  bem    por via 
da dimensão  intelectual. Nas
cartas que  lhe enviava em resposta às
dele, que eram mais  numerosas,  sempre fazia 
comentários   críticos,
elogiando-lhe  a qualidade de seus
artigos,  a propriedade  do tema neles 
discutidos, seu estilo  de
escrita   de um jornalismo  “doutrinário,”  segundo a referência  que lhe fez o 
ilustre  jurista   e conterrâneo  Cláudio Pacheco (1909-1993), que foi
assistente, na Faculdade Nacional de Direito, do historiador e professor,   membro da Academia  Brasileira 
de Letras, grande orador, ensaísta, 
político, Pedro  Calmon (1902-1985).
         Pedro Calmon conheci  pessoalmente no Rio de Janeiro, no tempo  a que a ele recorri  pra 
conseguir  gratuidade de inscrição
ao curso de Letras na  célebre  Faculdade Nacional de Filosofia da
Universidade  do Brasil, depois chamada  Universidade 
Federal do Rio de Janeiro.  Na
época,  1965,  Calmon 
era Reitor da Universidade do Brasil e a reitoria  ficava no lindo bairro da Urca, hoje um
velho  prédio que comporta  um dos campi
da UFRJ. Recebeu-me com um sorriso cativante 
e, no corredor,  atendeu-me  ao 
pleito. Saí encantado com  a
sua  cordialidade  e simpatia. 
       Depois
de cinquenta  e um anos residindo no Rio
de Janeiro,   as reminiscências  se embaralham 
em parte no meu espírito. Porém, 
a intenção  desses relatos
não  tem cunho  cronológico. Será exposta num vaivém, em
fluxo  dependente  do que 
as associações   de camadas  múltiplas do tempo me invadam  o ato da 
escrita e o    desvio 
das linearidades   temporais, ou, para usar um termo de G.Genette, das anacronias 
     No meu primeiro  regresso a Teresina,  meu 
pai  foi meu  guia turístico  e a ele devo 
o que me  mostrou de novidades  andando a pé pelas ruas do Centro de
Teresina  e,  se mais afastado,  tomando 
um  ônibus não muito   confortável. 
Íamos a uma redação  de jornal
para o qual  estava   escrevendo 
mais, o Estado do Piauí, de Josípio  Lustosa. Passávamos pela   velha 
Praça  Pedro II, parando um  pouco 
para vermos  o anúncio de algum
filme do momento no Rex e no Theatro 4 de  Setembro. Gostava de traduzir   alguns 
trechos  do cartaz  de um filme 
italiano.
     Nos dirigimos,   depois, para a
memorável  Praça  Rio Branco, locus  no qual  se reunia, no passado,  a nata da intelectualidade piauiense ou  espaço público   mais adequado
aos grandes comícios   políticos, assim
como   o fora a Praça  Pedro II no tempo da "Geração  Perdida" de que nos fala o crítico literário,  ensaísta e  professor emérito de literatura portuguesa,  o piauiense M.Paulo Nunes.
Paramos numa lanchonete pra bebermos, cada um, dois copos de garapa bem geladinha, acompanhada de um delicioso pastel de carne moída. Uma delícia proustiana! Era costume dele me perguntar se queria repetir o lanche, fosse um copo de garapa, uma prato de coalhada, um sorvete de bacuri ( para mim, a fruta mais gostosa do planeta, que até dela fiz matéria de uma crônica), entre outros refrescos imperdíveis de frutas da terra.
Paramos numa lanchonete pra bebermos, cada um, dois copos de garapa bem geladinha, acompanhada de um delicioso pastel de carne moída. Uma delícia proustiana! Era costume dele me perguntar se queria repetir o lanche, fosse um copo de garapa, uma prato de coalhada, um sorvete de bacuri ( para mim, a fruta mais gostosa do planeta, que até dela fiz matéria de uma crônica), entre outros refrescos imperdíveis de frutas da terra.
    Quando  era pequeno,  fazíamos 
isso com frequência, sendo que ele 
não esquecia de me tomar pela mão e gostava  de, a intervalos,  dar um aperto mais forte  e   carinhoso com aquelas  mãos lindas que Deus  lhe deu e que, em Amarante,  na sua 
juventude e mocidade   se dizia - serem   as mãos mais lindas da cidade. Meu filho
mais velho,  o advogado   público 
e professor universitário  de
direito, Francisco Neto, a meu ver,  
herdou-lhe a beleza das mãos. 
     Fomos ao aeroporto de Teresina.  Até hoje, não sei por que me levara pra
aquele lugar.   Seria por que 
o associava   à possibilidade  de partidas e de despedidas com o coração entrecortado de saudades antecipadas ?
Esse fato  me leva  -  não sei 
também  por quê  -  à poesia  de 
Cesário  Verde (1855-1886),
sobretudo do  emblemático poema  “Sentimento de um Ocidental.” Quem pode  decifrar 
os escaninhos  das memória  e das sondagens profundas  do tempo 
passado?  De repente,  sentados que estávamos   a uma mesa 
de um espaço aberto do aeroporto e bebericando  um refrigerante, meu pai solta   essa 
declaração  num tom  de desabafo 
e de pedido  de  perdão: “Meu filho,  você se fez sozinho. Conseguiu,   até agora, 
realizar tudo sem a minha ajuda.” Nada fiz  por você.” 
        Naquele 
instante de quase silêncio, reparei  com atenção no seu   belo semblante,  de rosto arredondado e voz   expressiva, aquela voz  que, por vezes,   por causa dos anos,   com
esforço mal  consigo   ouvir agora e que, por isso,  me 
causa  tristeza. O sons,  o cheiro, 
o perfume  impregnados  na memória 
nunca deveriam se perder no tempo da velhice. Estávamos,  segundo 
assinalei  atrás,  no mês de julho de 1974. Foram alguns dias de
férias  que aproveitei  a fim de 
matar a saudade  dele, de mamãe,
de meus irmãos e alguns parentes 
mais  queridos. Àquela altura da
vida,  ainda  cursava a universidade e trabalhava, no Rio
de Janeiro, capital do então  denominado  estado da Guanabara,   no bairro 
da Penha, como  professor de inglês
e português  de cursinho  pré-vestibular (Curso  Policultura) 
e preparação para os exames do Artigo 
99.  (Continua).       
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