sexta-feira, 10 de abril de 2015

Minha formação (4)

                     

                                               
                                                           Cunha e Silva Filho


A VIRADA.  Vivi em Teresina dos três ou quatro  aos  até completar dezoito em dezembro de 1963. Em fevereiro do ano  seguinte,  1964,   embarquei de avião da Vasp para o Rio de Janeiro, espécie de turning  point que, nessa cidade,  mudaria o rumo de tudo, mas de tudo  estruturalmente  falando: vida pessoal,  familiar, estudos,  objetivos  desviados, enfim,  tudo. Teresina ficaria para trás durante   dez anos em que, na hoje megalópole carioca,  conforme  disse acima,  as vias do percurso  humano e intelectual  iriam  conhecer alegrias e ao mesmo  tempo  muitos  óbices que  dilacerariam  em parte o meu mundo interior.
         No entanto,  aqueles dez anos de ausência de Teresina e de meus  familiares,  foram  um tanto compensados  pela  volta à “Cidade Verde.”
        Muita coisa  acontece numa década de ausência, e isso foi constatado   nessa  minha primeira grande volta a Teresina, em 1974. Fiquei deslumbrado com  as mudanças da capital mafrense e, para isso,  remeto  o leitor a uma crônica,  com  título sugerido por meu pai (ele era ótimo para dar títulos a seus  textos)  “Impressões da Cidade”,  que se encontra na minha  obra As ideias no tempo (2010).
         Falei  acima  que, ao lado do deslumbramento ou “alumbramento” bandeiriano,  de rever  Teresina,  havia trazido comigo  outras  mudanças: não era mais o adolescente   que mal completara dezoito anos, mas um jovem adulto de  vinte e oito anos, casado, com  dois filhos  pequenos. i.e., um pai de família que viera abraçar   os pais, irmãos e irmãs. Mamãe me dizia que eu estava pouco à vontade e que não era mais  o filho de antigamente. Acentuo,  todavia,  que  a ausência de uma década, de certa maneira,  havia sido amenizada por uma correspondência intensa entre mim e meu pai.
        Através desse canal  de comunicação por carta trocávamos afagos,  confidências de toda a sorte e,  por conseguinte,  virtualmente,   mantive  um elo  espiritual  e intelectual  com meu pai que se prolongaria  por  vinte e seis anos.Papai  se queixava às vezes  reclamando  que eu quase não  escrevia pra mamãe.
   Expliquei-lhe que não era essa a minha intenção, pois, escrevendo-lhe,  intencionalmente  era como  se estivesse  também  me dirigindo a mamãe, visto que a ela  sempre me referia e bem assim a meus irmãos. Mas, assim mesmo,  segundo ele,  mamãe  reclamava de que não lhe mandava  cartas diretamente pra ela.
       Hoje,  entendo o motivo  principal da minha  preferência paterna: sempre estive  em sintonia com ele mais por razões  intelectuais. Tanto ele quanto  eu  nos entendíamos muito  bem    por via  da dimensão  intelectual. Nas cartas que  lhe enviava em resposta às dele, que eram mais  numerosas,  sempre fazia  comentários   críticos, elogiando-lhe  a qualidade de seus artigos,  a propriedade  do tema neles  discutidos, seu estilo  de escrita   de um jornalismo  “doutrinário,”  segundo a referência  que lhe fez o  ilustre  jurista   e conterrâneo  Cláudio Pacheco (1909-1993), que foi assistente, na Faculdade Nacional de Direito, do historiador e professor,   membro da Academia  Brasileira  de Letras, grande orador, ensaísta,  político, Pedro  Calmon (1902-1985).
         Pedro Calmon conheci  pessoalmente no Rio de Janeiro, no tempo  a que a ele recorri  pra  conseguir  gratuidade de inscrição ao curso de Letras na  célebre  Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade  do Brasil, depois chamada  Universidade  Federal do Rio de Janeiro.  Na época,  1965,  Calmon  era Reitor da Universidade do Brasil e a reitoria  ficava no lindo bairro da Urca, hoje um velho  prédio que comporta  um dos campi da UFRJ. Recebeu-me com um sorriso cativante  e, no corredor,  atendeu-me  ao  pleito. Saí encantado com  a sua  cordialidade  e simpatia.
       Depois de cinquenta  e um anos residindo no Rio de Janeiro,   as reminiscências  se embaralham  em parte no meu espírito. Porém,  a intenção  desses relatos não  tem cunho  cronológico. Será exposta num vaivém, em fluxo  dependente  do que  as associações   de camadas  múltiplas do tempo me invadam  o ato da  escrita e o    desvio  das linearidades   temporais, ou, para usar um termo de G.Genette, das anacronias 
     No meu primeiro  regresso a Teresina,  meu  pai  foi meu  guia turístico  e a ele devo  o que me  mostrou de novidades  andando a pé pelas ruas do Centro de Teresina  e,  se mais afastado,  tomando  um  ônibus não muito   confortável.  Íamos a uma redação  de jornal para o qual  estava   escrevendo  mais, o Estado do Piauí, de Josípio  Lustosa. Passávamos pela   velha  Praça  Pedro II, parando um  pouco  para vermos  o anúncio de algum filme do momento no Rex e no Theatro 4 de  Setembro. Gostava de traduzir   alguns  trechos  do cartaz  de um filme  italiano.
     Nos dirigimos,   depois, para a memorável  Praça  Rio Branco, locus  no qual  se reunia, no passado,  a nata da intelectualidade piauiense ou  espaço público   mais adequado aos grandes comícios   políticos, assim como   o fora a Praça  Pedro II no tempo da "Geração  Perdida" de que nos fala o crítico literário,  ensaísta e  professor emérito de literatura portuguesa,  o piauiense M.Paulo Nunes.
    Paramos   numa  lanchonete pra   bebermos, cada um,  dois copos de garapa bem geladinha,  acompanhada de  um  delicioso  pastel de carne moída. Uma delícia  proustiana! Era  costume dele  me perguntar se queria  repetir o lanche, fosse um copo de garapa,  uma prato de coalhada, um sorvete de bacuri ( para mim, a fruta mais  gostosa   do planeta, que até dela fiz  matéria de uma crônica), entre outros  refrescos   imperdíveis  de frutas da  terra.   
    Quando  era pequeno,  fazíamos  isso com frequência, sendo que ele  não esquecia de me tomar pela mão e gostava  de, a intervalos,  dar um aperto mais forte  e   carinhoso com aquelas  mãos lindas que Deus  lhe deu e que, em Amarante,  na sua  juventude e mocidade   se dizia - serem   as mãos mais lindas da cidade. Meu filho mais velho,  o advogado   público  e professor universitário  de direito, Francisco Neto, a meu ver,   herdou-lhe a beleza das mãos.
     Fomos ao aeroporto de Teresina.  Até hoje, não sei por que me levara pra aquele lugar.   Seria por que  o associava   à possibilidade  de partidas e de despedidas com o coração entrecortado de saudades antecipadas ? Esse fato  me leva  -  não sei  também  por quê  -  à poesia  de  Cesário  Verde (1855-1886), sobretudo do  emblemático poema  “Sentimento de um Ocidental.” Quem pode  decifrar  os escaninhos  das memória  e das sondagens profundas  do tempo  passado?  De repente,  sentados que estávamos   a uma mesa  de um espaço aberto do aeroporto e bebericando  um refrigerante, meu pai solta   essa  declaração  num tom  de desabafo  e de pedido  de  perdão: “Meu filho,  você se fez sozinho. Conseguiu,   até agora,  realizar tudo sem a minha ajuda.” Nada fiz  por você.”
        Naquele  instante de quase silêncio, reparei  com atenção no seu   belo semblante,  de rosto arredondado e voz   expressiva, aquela voz  que, por vezes,   por causa dos anos,   com esforço mal  consigo   ouvir agora e que, por isso,  me  causa  tristeza. O sons,  o cheiro,  o perfume  impregnados  na memória  nunca deveriam se perder no tempo da velhice. Estávamos,  segundo  assinalei  atrás,  no mês de julho de 1974. Foram alguns dias de férias  que aproveitei  a fim de  matar a saudade  dele, de mamãe, de meus irmãos e alguns parentes  mais  queridos. Àquela altura da vida,  ainda  cursava a universidade e trabalhava, no Rio de Janeiro, capital do então  denominado  estado da Guanabara,   no bairro  da Penha, como  professor de inglês e português  de cursinho  pré-vestibular (Curso  Policultura)  e preparação para os exames do Artigo  99.  (Continua).       


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