Cunha e Silva Filho
Ao deixar Teresina, naquele dia de fevereiro, no aeroporto da
cidade, não sabia
quantas coisas boas e ruins iria encontrar no Rio de Janeiro. Alea
jacta est! Mamãe, papai e alguns
irmãos maiores foram me embarcar.
Não me recordo bem se fora num final
de manhã ou no começo da tarde.Chegaria
ao Rio, com ligeira escala em Brasília, lá pelas dez
horas da noite.
Estava envergando um terno cor de vinho, com
camisa clara de manga comprida, gravata (o nó foi feito
por meu pai, pois nunca aprendi a dar nó de gravata satisfatório),
sapato social, tudo novinho em folha. Por
muito tempo, ao usar aquele terno, o nó era o mesmo que meu pai havia feito. Ao subir a escada do avião, olhei pra trás e avistava, a alguns metros, meus pais e irmãos.
Todos com olhos fixos em mim.
Tomei assento do lado da janela e dali ainda podia ver minha
família, todos juntos, um pertinho do
outro, papai, mamãe, os meninos.Semelhava, no seu conjunto, a uma foto de família. Parecia que meus familiares choravam,
se não por fora, por dentro de
seus espíritos. Era demais pro meu coração já saudoso dominado pelas
incertezas futuras. Essa despedida foi
bem retratada num soneto (5)
paterno a mim dedicado e remetido num
recorte do jornal Estado do Piauí, onde fora
publicado, pouco tempo depois da minha partida. Adiante não resisto ao desejo de transcrever o soneto:
O talismã
Cunha e Silva
Com lágrimas nos olhos te vi partir,
Com lenço branco pra mim acenavas
Da janela do avião a sorrir
Pra mim que, com tristeza, me deixavas.
Logo que o avião voo tomava,
Prolongado adeus me concedeste,
Emotivo, lágrimas enxugava
No lencinho que me ofereceste.
Este lencinho tenho-o guardado
E só quero revê-lo quando chegares,
Um dia, com teu sonho realizado.
O talismã da tua felicidade
É ele, meu filho, e, ao regressares,
Devolver-to-ei com ansiedade.
Já estava combinado que faria o curso de medicina, porém sabia
que estava me enganando e apenas sendo
levado pela escolha de meus pais.Medicina era, naquele tempo, um curso
superior muito valorizado, talvez mais do que direito e
engenharia. Significava posição
privilegiada na sociedade teresinense e, além disso, abria caminho
pra uma vida financeira mais rendosa.
A “Cidade Maravilhosa”, do alto da
aeronave, à noite, lembrava uma miríade de jóias preciosas. Tudo
era cintilante, com brilhos que
piscavam o tempo todo. Nunca
vira coisa igual.
No aeroporto Santos Dumont ninguém estava à minha espera. Eu iria ficar na casa de um tio, que morava em Oswaldo Cruz , subúrbio da Central do Brasil. Fiquei amedrontado e me dirigi a uma cabine telefônica que ficava no
piso superior. pois havia trazido
comigo o telefone de um primo, o Wellington, que morava no Flamengo,
um belo bairro próximo do centro,
onde ficava o aeroporto Santos Dumont. Nunca
havia telefonado na minha vida, recorri a uma senhora ainda jovem que estava
com o seu esposo e notara o meu desespero.
Não sei se o casal tinha vindo de Teresina no mesmo avião. Conversando, soube que ele tinha sido aluno do meu pai em Amarante, uma
conhecida e bela cidade piauiense.. Era Eduardo Neiva, alto funcionário do Banco do Brasil. Trabalhava
na Carteira do Exterior dessa instituição. Já o conhecia de nome, porquanto meu pai me falava sobre ele sempre com orgulho. Eduardo Neiva
tinha sido, segundo meu pai, o aluno
mais inteligente que tivera no Atheneu
Rui Barbosa, escola fundada por
meu pai em Amarante.
Eduardo
Neiva era competentíssimo e, além disso,
um poliglota de mão cheia. Ajudou
a fundar várias agências do Banco do Brasil no exterior. Foi
sua prestativa esposa que ligou pro meu primo e ele por ela
me avisava que, dentro de uns vinte minutos, estaria no aeroporto para me ajudar. Dito e
feito, meu primo logo
chegou ao aeroporto e se mostrou
muito solícito, um amigo mesmo.
Fez mais: me levou de táxi até à Central do Brasil. De lá pegaríamos o trem que
nos deixaria em Oswaldo Cruz. Eu
levava uma pesada mala, porquanto
nela trazia um bocado de livros de Teresina. Meu primo, coitado, por me haver feito um grande favor, tivera que dormir na casa de meu tio Zequinha, dado que chegáramos à casa dele muito tarde da noite e, na manhã seguinte, o primo Wellington teria que acordar bem cedo para pegar o trem que o deixaria no Centro do Rio. Da estação ferroviária, tomaria um ônibus pro trabalho na Av. Beira-Mar, no qual exercia a função de datilógrafo num escritório do Laboratório Silva Araújo.
Tio Zequinha, meu único tio vivo, trabalhava como chefe de seção de uma repartição pública pertencente ao Ministério da Saúde, a extinta SUCAM. . Era um dos quatro irmãos
de mamãe, que residiam no Rio de Janeiro, um outro chamava-se Ivon,
sargento paraquedista do Exército.
uma boa pessoa, de quem tenho
saudades, pois foi ele que, numa
lambreta, me levou de Owaldo
Cruz, onde também morava com a família, para conhecer o bairro principal da Central, Madureira,
parada obrigatória para quem quer conhecer o
subúrbio carioca atravessado pela antiga
Estrada de Ferro Central do
Brasil. Os outros dois eram o tio Carlitos e o Cláudio. Carlitos foi
pracinha na Segunda Guerra Mundial e lutou na Itália. Sempre me dei bem com ele. Morava com
a família em Sulacap, subúrbio do Rio. Antes havia morado no bairro da Piedade, no subúrbio da Central do Brasil Cláudio, segundo me contaram, exercia a função de policial
civil. Este não tinha praticamente contato com
os outros irmãos; fora criado por
uma outra família que, de Teresina, viera
pro Rio.
Tio Zequinha se desculpou por não ter ido me apanhar no aeroporto
alegando que, no dia anterior, fora me
esperar, conforme combinara com meu pai. Houve, ao que tudo indica,
uma mudança de dia da minha
viagem, que não foi certamente informada a ele. a tempo.
No meu íntimo, sabia
que nunca seria médico,
primeiro porque não me
atraía o curso; segundo, porque o meu boletim escolar contra-indicava qualquer
possibilidade de sair
vitorioso num exame
vestibular: eram baixas as minhas notas
nas disciplinas que mais exigiriam
de mim: matemática, física,
química. Na biologia era um pouquinho
melhor, mas só ela não me levaria
à aprovação.
Me lembro de que mamãe
ficava zangada quando
via o resultado de minhas notas daquelas
matérias do curso científico no Liceu.. “Você precisa estudar
mais física, química,
matemática." Tais disciplinas eram pesadas e apresentavam um conteúdo
avançado. Por exemplo, em matemática
tínhamos cálculo
integral, equação exponencial,
análise combinatória; da mesma sorte, em
física, química, biologia os conteúdos eram complexos pra mim que só tinha olhos
mais pra língua portuguesa, literatura,
espanhol, francês e inglês. Essas ressalvas, por si sós, justificam
por que não teria muita chance em medicina. (Continua)
NOTA:
(5)
Entre o título do soneto e o nome de meu
pai, havia uma dedicatória: “Para o meu bom filho Cunha e Silva Filho.” Por descuido meu, no recorte não coloquei a data de publicação do poema, prém creio que tenha sido publicado em fevereiro de 1964.
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