sábado, 25 de abril de 2015

Apenas memórias (10)




               Cunha e Silva Filho


       Após  a minha  admissão ao Diretório de engenharia da  PUC,   um  mês depois talvez,  Arsênio contratou  os serviços de uma jovem senhora pra cuidar  especificamente da parte datilográfica dos ofícios,  circulares e outros  textos que movimentavam  a vida  naquele  pequeno  escritório. Não me lembro infelizmente  do nome dela. Só sei  ter sido ela uma   pessoa  amiga, afável,  prestativa, que me ajudou  muito  em dar conta  das tarefas  que nos eram   solicitadas a fazer em tempo  certo e por vezes urgente. Arsênio,  segundo  assinalei,  era  um presidente muito  exigente e não era  de brincar no serviço  da sua gestão.
      Quase sempre eu almoçava sozinho  no restaurante dos estudantes da PUC. Em seguida,  retornava ao batente no  Diretório no qual  cumpria  expediente de manhã até a tarde.
     Uma vez,  passei mal de saúde a ponto de a  senhoria  do  apartamento  onde eu  alugara duas vagas, uma para mim e a outra pro Winston, ficar com pena de mim e me indagar do meu estado de saúde. Era uma mal-estar, uma fraqueza que não havia  sentido antes. A senhoria, uma moça ainda bem jovem e bonita,  certamente  preocupada comigo,  me preparou  uma  gemada, que tomei  e, depois, fui deitar-me. O marido dela,  um senhor ainda jovem, alto, muito magro (dizia-se que era tuberculoso),  falando  sobre o meu  estado de saúde,  me aconselhou um outro lugar pra morar. Seria na casa  de uma  tia dele que morava   no bairro da Zona Norte, Vila Isabel. Ela, da mesma forma,  alugava  vagas pra jovens e adultos.
    Fui até lá conversar com a tia   dele,  uma senhora idosa, meio mulata, que me lembrava, pela indumentária,  uma cigana. Ela morava com uma filha,  uma moça muito  atraente. A casa era grande e velha. Para lá fui com o meu   irmão Winston.
    Continuava indo pra PUC a fim de atender ao presidente do Diretório. O meu  amigo  Joaquim  Baptista, de quem falei atrás, sempre   andava bem animado e solícito na seção de  reprografia. Foi quase um pai  pra mim.
   Aquele mal-estar, que sentira antes, já dava outros sinais. Sentia-me mal, um pouco inchado, pálido e fraco. Comecei a  ter nojo de  uma comida  servida por um senhora  que trabalhava  na PUC  em serviço  humilde.   Era a esposa de um dos  vigias, que morava numa casinha  dentro do campus,  bem perto  daquele conjunto de casas, uma das quais a do Diretório.  Quando  ia  almoçar lá, sentia  nojo da comida: resultado provável dos sintomas da doença. A outra alternativa seria o restaurante dos estudantes, onde a comida  era  melhor, porém mais  cara e o dinheiro era curto.
   Estava na  PUC uns  quatro meses, se tanto. A doença  piorava. Sentia vontade de comer  algo  inusitado:  vontade  de comer barro, aproveitando-me de paredes com alguma pequena abertura  de pintura descascada  exibindo  o barro do tijolo. Fazia  isso  várias vezes contra a minha vontade  e as razões da lógica. Era um impulso  irrefreável.
   Não estava realmente bem, precisava  de ajuda, de serviços médicos. Foi quando relatei  esta situação ao meu      irmão  e lhe pedi que falasse com  o Olavo. Já mal  aguentava   trabalhar. Passei a faltar ao  trabalho.
     O deputado  Sousa  Santos tinha sido  informado do meu estado de saúde através  do seu  secretário, e bem assim meus pais. O Olavo falara com meu irmão que me iam  arranjar uma internação no Hospital  Pedro Ernesto, na Rua   28 de  Setembro,  Vila Isabel,  pertinho  da vaga em que  morava.
    Fui com o Winston ao Hospital Pedro Ernesto. Nos dirigimos pro Centro de Hematologia, onde seria  recebido   pelo  Diretor,  o Dr. Hildebrando Monteiro Marinho,  um  médico renomado, que me recebeu  bem, me examinou cuidadosamente e concluiu logo pela minha i mediata internação pra tratamento de anemia.
   Dr. Hildebrando  tinha um  defeito físico, se não me engano,  numa das  pernas,  pois andava descompensado, certamente  por ter uma das pernas  menor do que a outra. Era um  médico notável consoante, com   o passar dos dias em que estive internado, quase uns dois meses,  constatei. Em dias  marcados,  inspecionava  criteriosamente todas  as duas   enfermarias (uma pra crianças e mulheres, outra pra adultos  de  pacientes  com  anemia e sobretudo com  leucemia.
    Levei pro hospital os meus pertences: uma mala com roupas, o meu  único terno, algumas camisas, cuecas, aparelho de barbear, escova de cabelo, escova de dente, pasta de dente, sabonete,  alguns livros e meus documentos. 
   Na enfermaria, iria  encontrar  pessoas inesquecíveis, como  o médico que cuidou de mim, o Dr. Sérgio  Franco, jovem  médico,  alto,  forte, de boa aparência,  simpático,  afetuoso, desses médicos que hoje    estão rareando."Oi, Francisco,como se sente?" Dizia isso pegando a minha mão e examinando-lhe a palma. "Ainda está pálida. Tem que ficar como a minha: coradinha," arrematava o hematologista.
  Outra pessoa  que não posso  jamais  esquecer era um das enfermeiras, que tinha  plantão à noite. Exemplar  profissional da enfermagem.  Atenciosa,   meiga,  bonita, fiquei encantado com ela. Até fizemos  amizade depois de algum   tempo de internação.
    A minha  enfermaria ficava na parte central do segundo  andar do hospital, a qual dava pra  Rua  28 de Setembro, com a sua dupla pista   para os veículos em constante movimento de ir e vir. Da sacada ampla, via o movimento  das pessoas  e dos carros.Na enfermaria  havia sempre   doentes em seus leitos esperando  pela cura de seus males. 
   Numa enfermaria  contígua,  havia crianças,  muitas delas  com leucemia e muitas delas vi  morrer  diante dos olhos dos médicos  e das enfermeiras. Eram cenas  tristes  e mesmo  trágicas. Nunca  me esqueci de  uma linda menina de uns doze anos,  alourada,  clarinha,  que vi morrer. Seu corpinho frágil,  imóvel, muito pálido,  foi retirado  por funcionários e encaminhado para outro setor do hospital. Pobres crianças mortas na flor  dos anos da infância ou  princípio da adolescência!
        Havia também a alegria de pacientes que lá se internaram e vieram pra minha enfermaria. Um senhor  cinquentão muito conversador,  amulatado,  que usava óculos e  era meio  calvo com quem passava horas falando da situação política do país, no início de uma ditadura militar que seria longa. Passou a fazer parte dos meus  conhecidos  de enfermaria. Havia outro paciente com aparência de  nordestino Estava  bem  doente e  veio a falecer alguns dias depois que me internaram. Não suportou a leucemia.
      Nos dias de visitas,  pessoas das famílias dos doentes vinham visitá-los. Eu não tinha ninguém  que me viesse visitar. Ficava  sozinho, deitado no meu leito, perto da seção  da enfermaria. Meu irmão Winston, de  duas em duas semanas,  vinha me ver e aproveitava  pra  almoçar. Isso  se fazia às escondidas, já que o hospital só fornecia  refeições aos doentes.
        Por falar em visitas durante a minha permanência no hospital no Pedro Ernesto, um há que diz de perto do comportamento dos órgãos públicos, o qual, de ordinário, vive da aparência e não da realidade.
        Um dia, vieram me visitar o deputado federal Mauel de Sousa Santos acompanhado do fiel escudeiro, digo,   secretário, o Olavo.A direção do hospital pôs-se em povorosa e o fato era bem mais visível na minha enfermaria. "Chegou um deputado federal pra visitá-lo, Francisco" -  atalhou uma das enfermeiras. De repente, aparece, com movimentos apressados,  o pessoal  da arrumação, varrendo, espanando, lustrando o largo  espaço da minha enfermaria, trocando lençóis, colchas,  travesseiros,  fronhas, roupa limpa pros pacientes. Isso tudo,  claro,   para aparecer que aquele lugar era perfeito, asseado, com tudo em seus  devidos lugares, funcionado às mil maravilhas.
    O deputado e o secretário entraram finalmente na  enfermaria. Foi o Olavo  que logo me viu sentado  no  meu leito. O parlamentar era um senhor ainda  novo, de boa altura,  vestido com  esmero no seu terno de tecido fino; Olavo, da mesma forma,  usava um terno elegante. Conversaram   comigo durante alguns minutos sobre o meu  estado de saúde e me indagaram se o tratamento era de qualidade. Lhe respondi afirmativamente. "Estou sendo bem tratado, me recuperando a olhos vistos. Meu médico,  o Dr, Sérgio Franco é muito bom,  as enfermeiras, também.  Os dois saíram acompanhados de dois senhores que chegaram depois, provavelmente pertencentes à direção  do hospital.
     Poucos dias  depois da minha internação,  recebi uma visita alvissareira: a da minha colega de trabalho do Diretório Acadêmico de  engenharia da PUC. Sua missão  fora  me entregar  uma quantia em dinheiro como indenização   que o presidente do Diretório   resolvera enviar pra mim. Era uma boa quantia, que me deixou  bem alegre,  porquanto dela  iria  precisar  pra pagar uma vaga  onde fosse  morar quando tivesse alta  hospitalar.
      Ainda por falar de visitas de conhecidos ou parentes, as quais, o leitor pôde ver que foram quase nulas, um belo dia (vou-me permitir o lugar comum) apareceram, de repente,  na minha  enfermaria o meu tio Carlitos e um tio-avô materno, o major  Dico, militar do  Exército e, se não me equivoco,  fora  professor de educação física. Fiquei contente com a presença deles. Vieram saber como estava. Entretanto, não quero pensar mal  deles, contudo ele tinham  um  viagem à Teresina, não sei se os dois juntos. Naturalmente,  pra não ficarem  mal com a minha família,  se deram ao trabalho  de me fazer uma  vista. Assim,  quando , em Teresina,  meus pais falassem  - o que lhes seria mais do que  obrigatório -  sobre a minha   internação,  eles teriam  assunto e tudo  estaria perfeitamente nos seus   lugares certos. 
      Ainda não lhe contei , leitor, qual foi a causa da minha doença: uma anemia provocada por um parasito chamado "necator americanus," que se introduz na sola dos pés das pessoas quando descalças.É comum no Nordeste.Alguns parentes pensaram erradamente que sofria de leucemia.Ela não se manifestou em Teresina, porém veio me acometer em terra carioca.
    Meu irmão Winston, que  tinha uma vaga  na  velha casa   da senhora idosa  de Vila Isabel, como não  tinha  arranjado  nenhum emprego,  pediu a ela que   ficasse morando  numa canto da  casa e, como  pagamento,  a ajudaria  em alguma coisa. Assim  foi combinado. Entretanto,  não demorou  muito  e a senhora idosa  pediu que  deixasse a casa. Winston, então,  ficou no olho da rua, sem  saber onde se alojar. 
   Começou uma  peregrinação  na rua,  dormiu até em banco de trem da Central do Brasil. Os parentes não se ofereceram para lhe dar abrigo. Sofreu muito,  inclusive  com  o risco de ser  vítima de algum  bandido  pelas ruas  do  Rio de Janeiro à noite e nas madrugadas. Fosse atualmente, seria perigoso por causa da escalada de violência no paí, sobretudo nas grandes urbes como São  Paulo e Rio de Janeiro.
    Suas idas ao  hospital,  mesmo  em dias  que não  eram   de visita,  se tornaram  recorrentes.. Ele, malandramente,  conseguia  entrar no hospital  e  vinha até a  mim, almoçava às  ocultas  e me pedia dinheiro. Lhe disse que  não mais lhe podia ajudar financeiramente. O dinheiro da indenização  estava  minguando.  Que ele tratasse de voltar   pro Piauí, já que com parentes  não podia contar
    Um primo meu, sabendo que  recebera uma indenização,  me veio  pedir  empréstimo.  Eu o atendi. Ora,    pensei comigo: até doente no hospital  alguém me aparece pra  pedir  dinheiro  emprestado. Pra me visitar como  parente,  não vinham. Era demais. 
      Continuava internado, sendo medicado a tempo e hora No almoço, comia com frequênca, fígado, feijão, arroz e salada de legumes. As palmas de minha mãos já estavam bem mais coradas. Dr. Sérgio vibrava. Amanhã, lhe vou mandar aplicar uma espécie de purgativo, muito forte.Ele deixará você um pouco tonto após evacuar. Mas isso é normal. Seu tratamento está chegando ao fim. O Dr, Hildebrando dará a última palavra e com certeza terá alta.Exultei de contentamento.
    Na manhã seguinte, após fazer a higiene  no banheiro, saí meio tonto.Incontineti, fui me deitar.  Veio, uma hora depois, aquela doce enfermeira.Conversou comigo e me perguntou se estava melhor. Lhe respondi que estava ainda tonto. Ela, então, foi até sua sala, uma espécie de laboratório, e de lá me trouxe um medicamento que me ajudaria a diminuir a tonteira. Me falou ainda que, dali a uma hora, chegaria o Dr. Sérgio Franco que, com de costume, examinava cada paciente dele.
     Com efeito,  uma hora depois, vem o Dr. Franco com olhar simpático e acolhedor. Chegando a minha vez, me perguntou: "Então, Francisco, como se sente agora?" Me pediu que mostrasse as palmas das mãos. "Ah, agora, vejo que estão coradas. O Dr Hildebrando falou-me ontem do seu caso e me me disse que, em quatro   dias, estaria de alta". Todos os cuidados foram tomados, medicação, aplicação de vermífugo. "Você reagiu bem ao tratamento," finalizou ele.
    Antes de deixar o hospital, num domingo, pedi  a um rapaz, que cuidava da limpeza da enfermaria, que me comprasse  um  exemplar do Jornal do Brasil e, por acaso, dei uma olhada nos classificados, seção de empregos. Um anúncio da Embaixada  Americana estava recrutando jovens com, no mínimo, o colegial completo e que tivessem alguma fluência do .inglês. O anúncio exigia agilidade em datilografia. Este último pré-requisito me preocupou, de vez que tinha aprendido  muito pouco datilografia num curso que fiz na Praça  Tiradentes, Escola Edson, no Centro  do Rio. Não consegui concluí-lo. Me faltou dinheiro pras mensalidades  Esqueci esse detalhe. 
   A vontade de obter uma colocação falou mais alto.Pedi  ao Dr. Franco que me permitisse sair do hospital a fim de comparecer à Embaixada   Tirei o terno da minha mala,  uma camisa  clara de mangas compridas,  a gravata com o mesmo nó, lustrei os sapatos e tomei a rua.  Peguei um ônibus que me deixou na Cinelândia. De lá fui caminhando   pra Avenida Presidente Wilson, onde se localizava a Embaixada Americana (hoje Consulado). O  edifício, uma construção moderna, cheia de vidros, é o mesmo de hoje e ainda está bem cuidado, apenas com modificações na calçada em frente para efeitos de segurança.
   Me identifiquei na entrada informando o motivo de estar naquele lugar. Havia homens muito altos fardados. Eram militares americanos que prestavam serviço à Embaixada. Subi no elevador que me levou ao andar  e sala indicados no  anúncio. Entrei numa pequena ante-sala onde uma funcionária me atendei. Ela me pediu que aguardasse um pouco, apontando-me  para um sofá. Havia duas mulheres não muito jovens que conversavam em inglês. Estavam alegres e, de vez em quando, davam  algumas risadinhas inadequadas ao ambiente.
     Fui testado no inglês por uma senhora americana muito séria e objetiva. Segundo ela, passara no exame de conversação. Veio a prova de datilografia  Me entregou uma máquina meio velha e solicitou  a que datilografasse um texto - ainda me lembro - uma carta pedindo emprego justamente à Embaixada. 
   Ao preparar-me pra bater o texto que devia ser executado em breves minutos, talvez uns dez minutos, fui logo sentindo que aquela máquina era diferente das que usara pra treinar no curso da Praça Tiradentes. Em suma. com muito custo, consegui copiar a metade do  texto.A senhora americana foi curta mas não grossa: "Francisco, você não  tem domínio em datilografia. Podemos dar por concluído o teste. Boa sorte. Saí de lá quase  chorando. Sempre a datilografia a perturbar a minha vida!
     De volta ao hospital, a  enfermeira  atenciosa - que pena não me lembrar do nome dela - me perguntou sobre o resultado do emprego. Não lhe contei a verdade.  Ainda bem que faltavam dois dias pra deixar o hospital. Apenas  lhe adiantei que o resultado sairia dali a uma semana.
   Ao deixar o hospital, me despedi de todos.  O  rapaz da limpeza se prontificou a levar a minha mala até à casa na Rua Jorge Rudge, Vila Isabel,  na qual continuei na minha vaga.
  Meu irmão Winston, continuava na rua. Foi, então,  que decidiu voltar pra Teresina. Me recordo de que  fizera a viagem numa kombi conseguida pelo  Olavo. Por incrível que pareça, Winston  estava, no dia da partida, na   casa do tio Zequinha com quem eu  estava de relações cortadas. Por isso,  fiquei aguardando na esquina da Travessa Santa Luzia,em Oswaldo Cruz.
Após colocar a mala num banco da kombi,  meu irmão  me deu um forte abraço. Nem vi direito a cara do motorista.  Acompanhei  o movimento do veículo  até dobrar uma outra esquina.Sentia já saudades dele e ao mesmo tempo  senti solidão.Por outro lado,   regressar à casa paterna seria melhor pra ele. Até hoje,  vislumbro a cena da kombi correndo, em velocidade média, até se perder de minha vista.
  A bela enfermeira me deu, numa pequena folha, o seu endereço. Era em Copacabana. Anotei, depois, numa página final de um Dicionário de gramática, de Walmírio Macedo, na edição antiga publicada pela Edições de Ouro. Mantive comigo durante anos aquele prestimoso e útil dicionário, que consultava amiúde.
  Anos depois, já professor do Colégio Militar do Rio de Janeiro, dei de presente a uma colega, professora de inglês, aquele pequeno dicionário. A professora tinha sido aluna de língua portuguesa do autor, grande filólogo e, vendo eu o quanto a professora admirava o ex-professor Walmírio, terminei por lhe passar às mãos aquela obra. A anotação do endereço daquela formosa  enfermeira se apagara com o tempo. Uma pena!

    Meu pai tinha uma filha  da primeira  mulher  com quem  se
 casou em 1927, no  Rio de Janeiro. Ao chegar ao  Rioa., me foi  apresentada pelo primo Wellington que, um dia, me levou  à casa dela. O Wellington era aquele mesmo  que  me  ajudou na minha chegada  ao  Aeroporto Santos Dumont. Nélia era seu nome. Morava com a mãe no Centro  do Rio, na Rua  do Senado. Mercedes era  o nome  dessa primeira mulher de meu pai.
  Nélia era uma moça ainda jovem, alourada,  de tez  clara, muito espirituosa, brincalhona, nem feia, nem bonita..  Trabalhava, então,  no Laboratório  Silva Araújo Centro, na Avenida Beira-Mar, Centro. Estava noiva de um  diretor  de firma, que vim a conhecer. Estive na festa elegante  do seu casamento, realizada num  apartamento em Botafogo. Ate´ me fotografaram. A foto, anos depois,  me foi  mostrada pela minha  meia irmã.Eu estava ainda com os meus dezoito anos, em plena  mocidade.
  O esposo de Nélia,  meu cunhado, era um moço  de ótima aparência,  educado,  muito claro, de estatura média,  sempre envergando  um  terno elegante, talvez fosse até mais novo do que a minha meia irmã carioca.
  Na festa,  estava com os meus primos,  o Wellington, que sempre foi amigo de Nélia e o seu irmão, Weyden, Este, no breve  tempo em que morei  com  o  tio Zequinha,  viera também  pro Rio a fim de  trabalhar  e talvez estudar  Sobre  ele ainda me  reportarei nestas remembranças.
   Após o casamento, Nélia foi morar em Vila Isabel, num apartamento  pequeno, mas bem  confortável  Pouco tempo depois de casada, me convidou a passar uns dias com ela. Fui  com prazer e fizemos alguma amizade. Agora,  me recordo,  seu esposo tinha por nome Ernani. Não sei se ainda está vivo. Não o vejo há muito tempo. 
     Esta meia irmã faleceu  tempos atrás e em circunstância trágicas, segundo me informaram: ela havia sido vítima de um enfermeiro psicopata que, num hospital do Méier, andava matando pacientes dando-lhes medicamentos mortais. Nessa época, minha meia irmã beirava  os sessenta anos.   Deixara  dois filhos, um rapaz uma moça.. Tivera três. O primogênito, contudo,  faleceu bem jovem, chamava-se  também Ernani, nome do pai. Eu o vi no seu primeiro dia  de nascimento, numa clínica na Rua  Riachuelo, Centro da cidade. Tornou-se um jovem de ótima aparência. Era  meio gordinho, baixo e muito  educado. Antes de falecer,  trabalhava num  Banco. Acho que o SAFRA, no Centro da cidade.


   A última vez que tive contato com ela foi em 1985,  quando meu pai e minha mãe  passaram   uns dias  comigo no Rio, tempo em eu que residia num apartamento da Vila da Penha, subúrbio da Leopoldina.  A viagem  de papai ao Rio fora um despedida. Seria a última de sua vida. Mamãe faleceria poucos anos depois. 
  Meu pai,  minha mãe, minha esposa e eu fomos de carro, minha esposa dirigindo,  à nova  residência de Nélia, no bairro  de Lins, Zona  Norte carioca.    A boa imagem que levei dela datava dos dias em que com ela convivi em Vila Isabel e a lembrança mais grata foi esta: um dia,  chegando de algum  lugar,  a encontrei  passando a  minha roupa com  cuidados de uma boa irmã. Senti vontade de chorar com  aquela cena  comovente. (Continua)

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Apenas memórias (9)




                                  Cunha e Silva Filho


   Já morando no  novo endereço, “No balança mais não” cai” em companhia de meu irmão Winston, tocava a vida no bico que o secretário  Olavo me conseguira no Diretório Acadêmico de Engenharia da PUC-Rio. A princípio, achei que não daria conta  da tarefa. Tinha procurado  o estudante  Arsênio de Sousa Santos recomendado pelo Olavo. Ele era um  estudante ainda bem moço, de altura média,  cenho carregado, sanguíneo, usava óculos. Tinha boa aparência.
   De poucas palavras,  me mostrou  o que  seria  a minhas tarefas lá: bater  textos relacionados à vida estudantil da Universidade,  especificamente  voltados pra  o curso de  engenharia. As atividades no Diretório  se estendiam  a fazer  correspondência  de acordo com  o que me pedia e uma coisa  me chamou a atenção. Havia muita carta que deveria  bater à máquina  dirigida a políticos  em Brasília. Não me lembro bem dos teores  das cartas. Também  deveria atender ao telefone e a estudantes de engenharia  que me  pedissem  alguma  coisa  que  exigisse o uso da redação ou outras informações  pertinentes ao Diretório.
   No primeiro dia que  botei o pé no escritório do Diretório e após ficar  a par  do que me caberia fazer ali,  Arsênio,  rapaz de família  de posse,  me ofereceu ma carona até ao Centro.Não me recordo se me dera outras caronas no seu  automóvel. Não sei a marca do carro. Nunca liguei pra estas coisas .
      Havia  no escritório do Diretório Acadêmico de engenharia, situado numa espécie de ruazinha formada de algumas casas independentes dentro do campus da PUC, nas quais funcionavam  escritórios da  universidade, ou outros Diretórios, não sei ao certo, que tinham saída pra Rua Marquês de São Vicente, na Gávea.  Um fato  curioso e fora do comum  passo a relatar de um dos primeiros dias de meu trabalho  no Diretório.    
    Alguns  estudantes  bem-humorados  e  cheios  de desejos de encontrar  alguma falha em mim seja de que natureza fosse. A minha se refere ao uso do telefone.  
   Naquele dia no  escritório,  me pediram que telefonasse pra alguém ou algum lugar e qual não foi o meu vexame. Comecei a discar  o número do telefone indicado por um dos estudantes e eles  perceberam  que não levantara o gancho  do aparelho para fazer a conexão. Gargalhada geral! “Francisco, você não sabe usar o telefone?”  
     Realmente, tenho que confessar:  em Teresina jamais usei  dar um telefonema. o  telefone era um aparelho  raro nas residências, somente  as  famílias burguesas, assim como repartições  públicas,  o  possuíam.  Como, pois,  iria saber, sem perguntar ninguém, como  usar aquele  aparelho tão  importante como  invenção para a humanidade. Temos que ser todos  gratos a  Alexander Graham Bell, esta figura  de notável cientista e  inventor. Muitos coleguinhas meus de infância, na Rua 24 de Janeiro, dispunham de telefone nas suas  elegantes  e luxuosas residências, Centro de Teresina.
   A gargalhada  continuou.Esta ocorrência,  agora,  me leva, por alguma  analogia,  àquela cena do romance  Madame Bovary (1857), de Gustave  Flaubert (1821-1880) na qual Charles  Bovary, numa sala de aula, ao responder   ao professor que lhe queria saber o nome, falou-lhe com voz gaguejante e ininteligível.
   O mestre, diante   da hesitação do estudante,  exigiu que falasse mais alto. Charles, criando coragem e  abrindo uma bocarra com toda a força de sua voz, pronunciou  o próprio nome: “Charbovari.”  A estudantada passou a  repetir por todos os cantos  do ambiente:  “Charborari! Charborari! O narrador, no trecho em causa, assim  descrevia  a cena hilariante: (...) Uivava-se,  latia-se, sapateava-se,” repetindo  aquele nome tornado  motivo  de pilhéria  de colegas de turma  de  malcriados.
   Fiquei  sem graça diante  do riso geral   dos estudantes puquianos. Só com o tempo, com o meu trabalho   no Diretório foi mudando a opinião dos que  supunham  me colocar  em maus lençóis por espírito de  brincadeira  e deboche. Aos poucos a maioria deles  passou a me  ver  com um outro olhar. Me impus  pelo que demonstrava ser no que dizia respeito ao meu caráter, às  minhas tarefas e aos meus conhecimentos  de língua portuguesa .
       Começaram a me tratar com  respeito e até  quem sabe,  perceberam  que ali  estava um  jovem de dezoito anos  mas com um  bagagem  de conhecimentos, sobretudo culturais, de literatura,  de línguas. Quem prova o seu  valor jamais deve temer  o fracasso e, caso  este aconteça,  o ânimo  forte do indivíduo supera  todos os óbices  a caminho do  sucesso.
     Alguns  daqueles estudantes, mais tarde,  se tornaram  pessoas   bem sucedidas  no mundo  político e empresarial  brasileiro. Muitos deles também ficaram  meus amigos ainda quando  lá  trabalhei.Foi um deles, que conheci  no restaurante da PUC, que , um dia,  me levou pra conhecer uma biblioteca muito popular entre estudantes  secundaristas e universitários  da época.
    Era um jovem  de boas maneiras,  amigo,  simples, alegre, companheiro. Ele tinha um hábito  estranho: gostava de tomar coca-cola de mistura com leite. Achava deliciosa a mistura. A biblioteca, aludida linhas acima, era a Biblioteca  Demonstrativa “Castro Alves”, pertencia  ao  Instituto  Nacional do Livro, e ficava  no subsolo de um prédio da Rua Treze de Maio, Centro, ao lado do Teatro Municipal. Essa biblioteca terá um significado  especial  na minha vida de estudante e na minha  vida afetiva. Voltarei ainda a comentar  sobre ela.
   Havia na seção  de publicações  da PUC, um escritório  no qual  tinha   como encarregado um senhor  já na casa dos  cinquenta e tantos anos.
  Chamava-se  Joaquim  Baptista. Foi uma das pessoas que mais  prezei  naquela  época  em que , não por muito tempo,  estava sob as ordens do  Arsênio, presidente do  Diretório Acadêmico de engenharia. Joaquim Baptista era negro, altura média,  delgado, inteligente,de uma compreensão humana  que  poucas vezes vi num ser humano. Era  prestativo em todos os sentidos. Sempre que não tinha  dinheiro para a passagem de volta pra minha vaga  do mencionado  edifício  perto da Praça  Onze,  lá estava  Joaquim Baptista me ajudando, me animando o espírito, torcendo por mim.
    Um dia,  lhe entreguei  uma folha de papel do tipo A4. Nele havia  escrito um poema (sic!), a ele dedicado e do qual era personagem central. Qual não foi a sua  alegria ao ler o meu  poema, um breve poema  não metrificado, cuja valor se encontrava, não no nível estético  da composição, mas no conteúdo   que imprimi  retratando  a grande alma  humana que Joaquim   Baptista significou  pra mim no período todo em que  exerci aquele  bico no Diretório.   

    Infelizmente,  com muitas mudanças de residências,  penso que  se extraviou  um cópia   do poema, com seu  valor  mais afetivo do que poético.  No entanto,   a lembrança e o semblante do meu  querido amigo negro,  lúcido,  sábio,  prudente,  solícito  ao extremo  e  o que importa mais neste “vale de lágrimas” -  sumamente humano – permanecem ad aeternitatem na minha alma.  (Continua)

terça-feira, 21 de abril de 2015

Explicação necessária

                      Cunha e Silva Filho


       A partir desta coluna faço modificações que alvitrei necessárias. A primeira é que, o título destas memórias,  na sequência, até agora, de 8 textos, Minha  formação,  passa a denominar-se Apenas memórias. Peço minhas desculpas ao leitor/a quando, tendo  lido  algum texto  meu deste blog, haja se deparado com  erros de digitação ou mesmo  algum  lapso de linguagem em  texto que se pretende   escrever com o melhor apuro  possível da  norma culta em língua portuguesa. Por outro lado,   não tenho  pejo de me permitir  empregar  formas  do uso  coloquial do português brasileiro que o espírito  intelectual  progressista  de Mário de Andrade (1893-1945) ) considerava  normal. Por exemplo, o uso da forma  "pra" e seus derivados, mesmo num ensaio,   assim como o fazia  na sua  obra  ficcional  e poética.
      Por conseguinte,  o leitor  inteligente  e ainda apegado aos exageros da normatividade   gramatical há de me entender e até de escusar-me por não parecer tão gramatiqueiro.Professores  que, graças a Deus, tive ou conheci  na universidade,  linguistas de renome nacional e internacional,  como  Mattoso  Câmara Jr. (1904-1970),  Aryon Dall'Igna Rodrigues, Sílvio  Edmundo  Elia (1913-1998)  e outros  mais jovens. – esses sábios  tão sintonizados com os avanços da linguística, me abriram  os olhos  para que não ficassem fechados  na  pura normatividade culta,  sabendo aqueles mestres que a língua é dinâmica no tempo e no espaço e o seu uso não pode virar absolutamente uma camisa  de força que, de resto,  tanto  emperra  a liberdade  criativa de um escritor.
    O poeta Manuel  Bandeira (1886-1968)), poeta  criativo  e progressista, tradutor e conhecedor de línguas,  além de profundo  conhecedor do vernáculo,   no seu tempo, já vislumbrava  a ineficácia e  o reacionarismo  dos puristas num poema famoso,  "Poética"  - signo de sua aderência ao modernistas de 1922: [...] “Abaixo os puristas// Todas as palavras, sobretudo os barbarismos universais/Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção/Todas os ritmos sobretudo os inumeráveis” [...] (1)
       Os leitores que me conhecem há tempos, especialmente os piauienses  de mais  idade,   seguramente  nunca  pensarão que um estudioso como eu  possa  cometer  erros palmares  após ter feito  uma carreira  acadêmica desde a graduação até o  pós-doutorado na UFRJ.  e carregando, atrás  de si,  há anos o tirocínio de conviver com  o exercício da língua portuguesa  no ensaio, na crítica,  no artigo doutrinário,  na crônica, enfim, em qualquer "texto" (aqui empregado no sentido que lhe dava o  tradutor, ensaísta e crítico literário  José Paulo Paes (1926-1998).
     Por outro lado, qualquer  professor, escritor está sujeito a cometer  erros gramaticais  que lhe escapam  muitas vezes inconscientemente e é por esta razão que existem  os revisores de textos de publicações  sérias, os quais  são  profissionais  conhecedores da língua  em que o  texto  está escrito e que, por sua vez, não podem nem devem ser tão  puristas  e  retrógrados na sua atividade   que reputo  das mais  importantes  na edição de uma obra, quer literária, quer científica ou técnica.
   O leitor/a  culto/a não pode cometer  a injustiça  se pensar  que  um   escritor  seja perfeito  qual um Deus da gramática normativa e, desta maneira, por pressa,  subestimar  ou  julgar mal  a reputação ou o valor  de um escritor  que, por um motivo ou outro,  possa “parecer” – não “ser’ -  mal interpretado, mais por falha do analista, naquilo que  escreve  com  elevada dedicação  e mais  genuíno  amor  às potencialidades  que o ato da escrita lhe pós à criatividade  e originalidade.
   Lembro, ademais,  a circunstância de que um texto postado não  está esgotado nas suas possibilidades de acréscimos, correções, limpezas gramaticais ou estilísticas,  assim como de  dados  referenciais. Me parece mais um  primeiro  rascunho, uma   versão  provisória suscetível dessas alterações. São inúmeros os escritores brasileiros que sempre fizeram  modificações,  por vezes, substanciais em suas obras.  
   Haja vista  o caso do   romancista  piauiense, O.G. Rego de Carvalho (1930-2013), o qual passou a vida  modificando sua obra, num sentido afirmativo, de atingir  a melhor  forma literária possível, tornando-se, assim, um  prato cheio para a crítica  genética.Se não tivesse optado  por estudar no Mestrado o poeta  Da Costa e Silva (1885-1950), teria feito  um  trabalho  exegético da obra  desse  brilhante ficcionista  de Oeiras, sua  terra natal.
   Ao bom  leitor,  lhe interessa mais o valor  intrínseco da obra. É com  esse dado que fará  um  juízo da  dimensão,  qualidade ou  fracasso   dela visto que,  numa escala  quádrupla,  há obras ótimas,  boas,  médias,  fracas ou falhadas.
   Lima Barreto (1881-1922) foi injustamente  muitas vezes tachado por críticos gramaticais, de “escritor desleixado” com a língua, com a gramática. Por miopia de  alguns críticos  literários, que não  souberam  interpretar  as intenções  estilísticas  do autor de O triste fim de Policarpo Quaresma (1909, edição feita em Lisboa) no período que se   convencionou denominar Pré-modernismo. Só mais tarde, uma crítica mais bem  aparelhada com  inovações  na análise literária, constatou os motivos  estéticos  da linguagem  renovadora  limabarretiana.  Aqueles críticos  gramaticais  ou filológicos  só tinham olhos para  escritores  ditos puristas, de linguagem  rebuscada,  à Coelho Neto (1864-1934) e à Rui Barbosa (1849-1923)..
  Peço vênia ao leitor/a  para fazer uso de um jargão  jurídico,  que não me tomem  por pretensioso  ao fazer estas ponderações, mas  seja indulgente com o fato de que,  se escrevo  meus textos, sobretudo se mais longos  ou em séries,  à semelhança do que, no século  XIX, faziam  os  escritores  de folhetins (feuilletons)  como  Manuel  Antonio de Almeida (1831-1861),  Joaquim Manuel Macedo (1820-1882),  José de Alencar (1829-1877) e outros, é bem  possível  e até  escusável  que algumas gralhas    escapem, mesmo  se forem  uma concordância errônea, um erro de regência. uma vígula mal colocada. São os “disparates de todos  nós” de que falava o  mordaz e brilhante  crítico impressionista  Agripino Grieco ( 1888-1973)

   Na próxima coluna,  darei  continuidade às memórias e, para não cansar o leitor/a,  intercalarei artigos de natureza vária.Até breve!

NOTA:

(1) BANDEIRA,  Manuel. "Poética" In: -- .Poesia completa e prosa.  Volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 207.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Minha formação (8)


        " Sei muito bem que, se a realidade não é  simples,                                                                                          tampouco o é o mundo imaginário da arte'"                                                                                                     FERREIRA GULLAR*                                                                                                                             
                                                                                                
                                               Cunha e Silva Filho

         O Olavo era useiro e vezeiro em  enviar  cartas, aliás muito   bem  escritas, solicitando emprego a gerentes de bancos  pra jovens que lhe iam ao escritório  à procura de  emprego, naturalmente encaminhados   pelo  deputado  Sousa Santos a fim de  ficar bem com as  suas bases eleitorais no Piauí. Uma vez, fui instrumento  de suas cartas a gerentes, visto que estava em fase de arranjar algum  emprego.
        Lá fui eu a um banco situado  no Centro (sempre nesta parte da cidade). Ao sentar-me  diante da mesa de um gerente circunspecto, lhe entreguei a carta do Olavo. O gerente abriu o  envelope, que não estava lacrado e, sem rebuços,  olhando  fixamente  pra mim,  soltou  esta: “”Eu já estou  cansado de receber carta desse senhor me apresentado a jovens candidatos a uma vaga neste banco. O que pensa ele? Que sou  uma agência de emprego?! Tenha paciência... Me levantei da cadeira. cumprimentei-o e, num átimo, caí fora. Na rua,  senti uma só falta, a do ar condicionado.
     Sempre que ia ao Olavo, encontrava ele em conversa com um homem ainda novo,  um tanto alto, bem vestido,   branco e de cabelos  louros. Quem o visse,  logo  pensava ser um  alemão. E, na verdade era. O alemão,   soube pelo  Olavo, era casado com um brasileira. Falava fluentemente português,  porém com  sotaque ainda germânico.
    Gostava de bater papo  com  esse secretário maranhense, pessoa muito   lida e, como  acentuei atrás,  às vezes  sarcástica. Num dia em que me encontrava   no escritório, comentou  comigo que, pouco  minutos antes,  tinha estado  com um rapaz, por sinal,  piauiense. O jovem  estava também  à cata de emprego e não sei  como  conheceu o Olavo.  Este  me confidenciou: “Esse rapaz já veio aqui  várias vezes e já lhe fiz  várias cartas recomendando-o a empresas e a bancos.”
     “O problema é que não se veste bem e,  por cima de tudo,  é muito feio. Não é como você, Francisco,  que tem uma aparência mais ou menos.” Com os meus botões,  lhe reprovei  “a expressão  mais  ou menos,”posto que me achasse,  modéstia à parte, um  jovem  de boa aparência, assim me diziam as namoradas. Outro dia em que estive no  escritório, o Olavo me apresentou   ao moço piauiense,  sobre a feiura do qual   me falara de outra vez  estive lá :”Francisco,  este é o rapaz piauiense  de que lhe falei. Então,  fiquei  reparando  no olhar  do secretário e logo  associei a presença daquele piauiense ao que  me dissera o secretário sobre  a aparência  dele  que,  no meu  juízo estético,  não  correspondia à opinião do Olavo.
    Anos depois,  me deparei  com  aquele piauiense, numa galeria da Rua Treze de Maio, onde funcionava  o prédio do antigo  INPS. Ele se me apresentara  triste e preocupado e, não se contendo,  me pediu  uma ajuda financeira. Lhe dei, sem  mesquinharia, uma quantia razoável, ao contrário de  certo personagem  machadiano. Seu  olhar,  tão suplicante era  que, a meu ver,  nenhum cristão verdadeiro  deixaria de atendê-lo. Me beijou as mãos, me desejando  muitas  felicidades e saúde. Nunca  mais o vi. E lá se vão muitos anos desse  encontro casual. São os acasos  shakesperianos da vida.
    Não permaneci muito tempo com o tio Zequinha. Talvez uns dois meses, se tanto. Houve um  problema  pessoal  entre nós dois e resolvi  sair de sua casa. Para encurtar a conversa: ele é da família dos Harpagons. Talvez  isso seja o principal  ingrediente de meu rompimento com ele.
   Ao deixar  sua casa,  me vi  sozinho e sem  lugar para onde ir. Recorri  ao tio Carlitos a  fim de poder  alugar duas vagas, uma pra mim, outra pra  meu  irmão Winston.Tio Carlitos me ajudou  com uma parte  do dinheiro  que me serviria  pra pagar as vagas num  prédio não muito  conceituado,  situado perto da Praça  Onze, Centro do Rio, popularmente  chamado  “Balança  mas não cai.”  Encontrei  as vagas através de um anúncio  de jornal. Meu irmão  Winston viera pro   Rio  a pedido do meu pai, que me escrevera um carta  expondo as razões por que  meu irmão estava  vindo pra cidade grande. Quando chegou, num avião da VASP, eu ainda morava na casa do  tio Zequinha.
    Meu pais erraram em mandá-lo pro Rio, sobretudo  sabendo  que  eu  não tinha ainda emprego e nem podia  alojá-lo na casa do meu tio. Meu pai não era um homem prático. Não atinava no que podia  acontecer. Ainda mais porque não nos podia  mandar uma mesada.
   Além disso,    papai e mamãe sabiam que eu já estava de favor  morando na casa do tio Zequinha. Foram imprevidentes. Por que  primeiro não falaram com  o meu tio  perguntando-lhe  se ele podia  deixar que meu irmão  também  se hospedasse na casa dele? O pior foi que, quando Winston  chegou ao Rio,  o meu tio  se encontrava gozando férias em Teresina depois de vários anos  de ausência do Piauí. Me colocaram numa saia justa, agravada, ademais,  pela circunstância  de que meu irmão e eu  estávamos ainda  sem emprego.Uma outra agravante,   Winston era boêmio, artista,  pintor e escultor de talento, porém  pouco dado aos formalismos e exigências de um  trabalho sério. 
   Ele nasceu em Amarante em  1944 Era  um jovem fadado ao insucesso na cidade grande, por lhe faltar   contatos  na sua área artística e por  ser arredio  a  pontualidades  trabalhistas. Seria mais um problema  pra mim nas condições em que me encontrava. Tanto é verdade que não demorou muito no  Rio;  ficou apenas um ano e levando  vida turbulenta de quase pária. Mesmo sem poder, o ajudei enquanto  pude. Ainda voltarei a falar sobre ele nestas  relembranças cheia de percalços, de altos e baixos.
  Por outro lado,  convém  frisar este aspecto,  havia um  contradição entre a  minha possibilidade de vir pro Rio  fazer medicina e ao mesmo tempo precisar de trabalhar. Pouquíssimos estudantes, então,  sem mesada, podiam cursar medicina, curso que exige tempo praticamente integral.
   Quando meu tio regressou do Piauí,  encontrou-me em companhia  do Winston. Não gostou de ver tudo isso, nem gostou de outras coisas  que considerou  erradas  da minha parte. Rompi com ele. Se uma coisa  julguei    incorreta da parte do irmão de minha mãe foi  a sua atitude   nada solidária, tendo em vista  a minha pouca idade. Não me foi possível mais  manter  laços de amizade mais íntima com ele. Ficou o meu ressentimento. Apesar de tudo, não lhe quero mal e só lhe desejo  paz e saúde. Ainda que lhe  tivesse feito  coisas que o desagradassem,  ele não poderia ter  me deixado à deriva, sem saber pra onde ir. É uma página  triste e virada no meu  percurso  existencial.
    Pensado bem,  meu destino  seria outro, no que concerne ao fato de ter ido  pra casa de um  tio, se antecipadamente eu tivesse tido  conhecimento de dois auxílios  vitais que um estudante daquela  época dispunha:  1) o  histórico Restaurante  Calabouço,   demolido, anos depois,  pra  dar lugar a construções de passarela  e  a novas pistas. 
  Era bem    localizado. Ficava   paralelo  à Avenida  Beira-Mar,  espaço bem arborizado até hoje. Nele se  podia contar com,  pelo menos,  duas refeições gratuitas servidas  a estudantes  secundaristas e mesmo  universitários;  2) Para alojamento havia,  pelo menos,  três do meu conhecimento: a Casa do Estudante do Brasil,  perto da então Embaixada  Francesa, a Maison de France (hoje consulado), o CEU (Casa do Estudante Universitário), restrita a este nível  de estudantes, que ficava na  Rua das Marrecas, também no Centro, e a CESB (Casa do Estudante  Secundário do Brasil),  situada aos fundos  do Palácio do Itamaraty, na Rua Senador  Pompeu, da mesma forma, no Centro. Ora,  só vim a saber disso tudo  após a minha  saída  de Owaldo Cruz. e, o que é melhor,  isso teria  evitado  o entrevero entre mim e meu tio. Não somos  profetas  de nossa caminhada no  planeta Terra... Sobre a CESB, em outro passo destas lembranças, dela  me ocuparei.
    Mais uma vez,  voltei ao escritório do secretário Olavo. Dessa vez, me dera um   boa notícia: arranjara um bico pra trabalhar no diretório acadêmico de engenharia da PUC -Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), localizada no  aprazível bairro da Gávea,Zona Sul carioca.  Olavo me conseguira a colocação com um irmão  do deputado  Sousa Santos,  chamado  Arsênio de Sousa Santos, irmão mais novo do deputado, o qual   estava cursando  engenharia (penso que  civil)  naquela universidade. A família Sousa Santos  era dona de uma  empresa de construção, com escritório na Rua do Carmo, Centro. Ainda me  reportarei  sobre  o Arsênio, então   presidente do  Diretório Acadêmico de Engenharia da PUC-Rio. Era ainda o  ano de 1964. (Continua)
   
   * Apud  Folha de São Paulo. Ilustrada, E8, 19 de abril de 2015.

   

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Minha formação (7)

                                                                                    [.....]
          Mas eu, que sempre te segui os passos
          Sei que cruz infernal prendeu-te os braços
          E o teu suspiro com foi profundo!
                           CRUZ E SOUSA*
                                                                                                                              "
      
                                                         Cunha e Silva Filho


   UM ANO DIFÍCIL: 1964 Tendo chegado  ao Rio quase no final de fevereiro de 1964, poucos dias  da minha permanência na cidade,  estourou  o golpe militar em 31 de março. Eu estava de volta do curso à noite na  Senador Dantas e, a pé,   em  direção à   Central do Brasil a fim  de  tomar o trem pra  Oswaldo Cruz. Havia um ar diferente naquele dia. Durante o meu  percurso até à Central percebi que algo  estava  errado. Pessoas  falavam   alto,  discutiam, gesticulavam. Vi movimentos de soldados  da Polícia Militar,  do Exército, todos bem armados passarem  por ruas do Centro da cidade.
        Ao chegar à Estação, tive uma surpresa  desagradável: o serviço de trens estava interrompido. Só tinha uns trocados pra tomar  o trem,  os quais  não davam pra comprar a passagem de ônibus. O que seria de mim?, me perguntei. Estava  apavorado. Foi, então,  que perguntei  a um  transeunte em frente à Central por que os trens estavam parados. Ele, um senhor  idoso,  me respondeu que era porque os militares tomaram  o poder no Brasil.
         Aquela noite de 31 de março iria passar em claro, sentado a um batente de uma das entradas da Estação. Ficara com  vergonha de pedir a alguém  que me conseguisse uma quantia pra tomar o ônibus que me deixaria  em Oswaldo Cruz. No dia seguinte, sem dormir -  une  nuit à la belle étoile - me animei com  raro  esforço a pedir a alguém  o dinheiro pra voltar  pra casa. Ao entrar na casa  de meu tio, após bater no portão,  ele, com ar apavorado e condenatório, me  disse: "Garoto,  o que houve? Você  não deu notícia alguma. Onde dormiu? Lhe contei tudo. Era apenas um  jovem  garoto de dezoito anos,  ingênuo e inexperiente na grande  cidade de São Sebastião. 
       Aos dezoito anos,  nunca  fora um jovem dado a questões  políticas,  à militância geralmente da ala esquerdista, como tantos jovens mesmo  mais novos do que eu e entre os quais  tive grandes amigos, como  sobretudo  o jovem  Dirceu, sobre o qual  ainda tecerei comentários nestas anotações.  Costumo  afirmar que a minha grande militância, no tempo  da ditadura militar, era com a sobrevivência,  o ganha-pão, com os estudos, não que fosse um absenteísta, ou um  jovem que pudesse ser  tachado de  direitista  ou a favor do Estado  autoritário  que se implantou no país  de 1964 a 1985.     
    Contudo,   noção  de que o país  estava  em situação de impasse  político não me era  novidade,  uma vez que o Olavo, secretário de um deputado  federal do MDB que meu pai havia conhecido em Teresina, me arranjara para estagiar no conceituado  jornal Diário de Notícias. Ora, que melhor lugar para se ouvir  falar em política do que a redação  de um jornal? 
   Me lembro bem de parte de um bilhete que o Olavo   me pediu que levasse até ao chefe de redação daquele   jornal, que ficava na Rua Riachuelo, Centro. Era um  prédio robusto,  em cuja fachada havia,   acima  da larga porta principal, o nome  do jornal em destaque.  Parte do bilhete  ao redator-chefe  tinha o seguinte teor: "O portador  deste é um jovem filho de um amigo meu do Piauí.  Ele tem  regular cultura geral e alguma experiência em redação, pois colabora  esporadicamente  pra jornal  em Teresina.Veja o que pode fazer por ele."  
       Obviamente,  o Olavo  era conhecido do  chefe da redação. Este me recebeu  solícito, educado e me encaminhou para uma  outra seção pedindo-me que levasse um bilhete a um jornalista,  seguramente o  responsável por estagiários  do periódico. Li o bilhete antes de entregá-lo à pessoa  indicada: “Por favor,  inicie  o jovem portador deste no estágio  e comece a lhe pedir  tarefas  “suaves.”  
      No dia seguinte,  lá estava eu na redação do Diário de Notícias. Um jornalista-repórter que me atendeu, também muito simpático,  me colocou um crachá da imprensa   com  o nome do  jornal na minha  lapela. Eu estava de terno  e gravata. Tínhamos uma missão  importante  pela frente: fazer  uma cobertura  de um comício  do João Goulart, a realizar-se no Arsenal da Marinha a poucos dias  da tomado do poder  pelos militares.
     Confesso que apenas fiquei  observando  intrigado e surpreso  com o desenrolar  do evento. Os meus colegas,  jornalistas  tarimbados, não me pediram nada. Fui mais pra acompanhá-los e me familiarizar  com  a atividade  de  um repórter. Passei uma semana neste ritmo de vida  agitada  e apressada, que é o jornalismo. Porém, um problema havia: não tinha  condições de,  todo dia,  ir  à redação. Estava sem dinheiro  pra almoçar, fazer um lanche. Além disso,  só tinha um terno que usei  na viagem de Teresina  pro Rio.

        Um dia, no curtíssimo período do meu estágio,  o  repórter, do qual  falei acima,  vendo que não dispunha de dinheiro pra almoçar,  me convidou a fazer a refeição  com ele num restaurante que havia na  Rua  da Carioca, Centro. Logo desisti de continuar a frequentar  o jornal.
    Quando  viajei pro Rio,  trazia o endereço do secretário do deputado  Sousa Santos. A ele entreguei uma carta de meu  pai, dando  informações sobre mim e lhe pedindo  que  me  arranjasse uma colocação.O secretário do deputado federal, de nome Olavo,  era maranhense, um senhor de meia idade,  muito  inteligente,  escrevia bem, era quem cuidava dos discurso  do deputado  Sousa  Santos e de outras  tarefas  correlatas  ao seu cargo. Seu escritório ficava no belo  edifício  Central, do qual  já  falei  atrás.
   A primeira  vez que fui ao seu escritório, que ficava num dos andares  mais altos,  fui acompanhado do tio Zequinha, visto que ainda não sabia  andar bem na cidade. Tive boa impressão do Olavo, pois, a par de ser  inteligente, era  um bom  causer que aliava a essa qualidade  uma  ironia   às vezes  ácida. Fui ao seu escritório  muitas vezes e me dava bem  com ele,  principalmente  porque     possuía  cultura  literária,   um espírito crítico e muito franco, às vezes em demasia. Olavo  recebia  sempre  exemplares do jornal  Estado do Piauí, no qual  meu pai  colaborou por muito tempo, tanto com  artigos    assinados quanto  com artigos de fundo. Nesse jornal,  publiquei muitos artigos  sobre literatura, analisando  obras  ou discutindo  acerca  de  outras questões  de literatura.  

     Certa vez,   me confessou   algo  que não me agradou. Falara  que meu pai era um  bom jornalista mas, mas não  era bom  poeta. Ele se  referia a  alguns poemas, sobretudo, sonetos, que papai  estampava naquele jornal. Meu pai começou a escrever  poesia aos sessenta anos, um ano depois que  saí de Teresina. Segundo me relatou em carta, se tornara poeta  sessentão em face das “agruras da  vida.”  Quanto ao meus artigos,  o secretário do deputado julgava  que tinham  algum mérito. Olavo não era de elogiar muito ninguém.  Ao contrário, tinha uma língua afiada pra fofocas  literárias. ou seja,  pra falar  mal  de  grandes escritores. Creio, todavia,  que, em literatura,   era um espírito  mais conservador,  pois não  me citava nunca  escritores brasileiros  mais novos. (Continua)

* SOUSA, Cruz e. Vida obscura. In:___Poesias completas.( Broquéis, Faróis, Últimos sonetos). Introdução e Tasso da Silveira. Rio de Janeiro: Ediouro, p.161.s.d.

terça-feira, 14 de abril de 2015

Minha formação (6)



                                            Cunha e Silva Filho


     O subúrbio carioca não é bonito  para quem  chega ao Rio de Janeiro pela  primeira vez. O único bairro  da ex-Central do Brasil, o Méier, é uma exceção. É um bairro  mais rico,  mais  elegante,  tem movimentos semelhantes a  bairros da Zona Sul, os mais  belos  do Rio. Posteriormente,  dedicarei um capítulo ao subúrbio carioca, parte do Rio de Janeiro tão bem retratada por escritores como  Lima Barreto e  Marques Rebelo, entre outros  ficcionistas.
     Tendo ido  morar com  o  tio Zequinha em Oswaldo Cruz,  segundo já mencionei,  achei  o  Rio feio,  uma cidade que  nada tinha a ver com  aquelas  cenas urbanas  das chanchadas divertidas de  Carlitos e Grande Otelo assistidas na Teresina   no final dos anos 1950 e início dos anos 1960 no  Theatro ou Rex. Lindas  e excitantes  eram as cenas  filmadas  no Centro   da capital  carioca ou as  de outros   filmes  rodados  no  Rio em que  apareciam   partes  elegantes   da cidade situadas  na Zona Sul,  mostrando  Copacabana, a “Princesinha do Mar,” e a sua   esfuziante beleza, sobretudo  os calçadões  da  praia  bem cuidada e ainda  não poluída como nos tempos atuais,   com suas belas   mulheres  usando  maiôs.
       Só depois de alguns dias,  indo  ao Centro do Rio, fui mudando  de  opinião  com  referência  à cidade que esperava   encontrar. Só quando  vi  a Av. Presidente  Vargas,  e as Candelária  sempre à frente no meio da paisagem urbana, e sobretudo a  majestosa  Av. Rio Branco,  o palácio Monroe,  o magnífico  Theatro Municipal,  a Biblioteca  Nacional , Escola de Belas Artes, a Cinelândia e seus bares,  os  seus  cinemas (daí  Cinelândia), o prédio da Mesbla,   o Edifício Serrador e aqueles outros  arranha-céus, sendo  o mais  belo  de então  o Edifício Central  e tantos  outros  antigos  prédios de arquitetura  construído em diferentes estilos, clássico,  neoclássico, art-nouveau art décor, manuelino, barroco, moderno, pós-moderno.   Neste  prédio altíssimo, o Edifício Central  - um luxo pra  época, nos primeiros anos  de  inauguração, no qual tudo  funcionava bem -    pude  perceber que  tinha  me  equivocado  sobre  o que era o  Rio e o seu  justo   renome mundial de  grande e majestosa  cidade cercada de belezas e de paisagens   paradisíacas que  deixam os turistas de  queixo caído. Sim, o Rio é belo, era e  será sempre belo, e assim  continuará sendo  a despeito de tantas  prédios que foram  derrubados  com a construção do Metrô, como o  suntuoso  Palácio  Monroe, situado  quase ao final  da   Av. Rio Branco e com   outras modificações  que o Centro da cidade vem sofrendo  ao longo  do tempo.
      Me matriculei num curso pré-vestibular para medicina, Curso Arquimedes, situado  num prédio, hoje, já antigo  e maltratado,  o  Edifício Santos  Vale,  na Rua    Senador  Dantas.  As aulas eram à noite e por isso  chegava Oswaldo Cruz bem tarde mas sem medo dos assaltos  e da violência galopante de hoje Sempre que  passo  por este  edifício, me lembro do notável  crítico literário,  Álvaro  Lins (1912-1970)  que o menciona  num livro de memórias diplomáticas – Missão em Portugal (6).
      Esse livro me foi  ofertado  por um ex-aluno, Manuel  Chuva, um filho de portugueses, do tempo  em que lecionei no  Curso Policultura, já citado  anteriormente. Por pouco tempo, fiquei  no curso pré-vestibular. Primeiro,  em razão de não  querer  mais  cursar medicina; segundo,  porque  não  tinha  dinheiro  pra  pagar  o curso.Juntei ambos os motivos  e larguei de vez  a ideia de fazer medicina. Contudo,  neles havia  professores dedicados e competentes, todos  estudantes de medicina já em final  de curso.
     O diretor,  um rapaz  ainda bem jovem, pessoa  boa  e humana,  dava aulas de física e  português. Certa vez,  passara uma  tarefa de redação que consistia em  dissertar  sobre o tema “por que desejo ser médico.”  Escrevi  meu texto e lhe entreguei  para correção.  No dia   de devolução  dos  textos  corrigidos, li as observações  que  o diretor  me fez,  que foram  as seguintes: a)  “Você  tem algum  jeito para  redigir;  b) A sua  redação peca por falta de objetividade; c) A prática  de redação  lhe dará  muitos  progressos; d) Nunca esquecer de que deve dar margem  aos parágrafos.”
   O reparo do diretor igualmente  me  despertou  para o fato  de que, em Teresina,  ao escrever um artigo à mão,  não dava margem aos parágrafos. O jornal é que cuidava de  me enquadrar no formato  apropriado. Essa passagem de minha vida  sobre ela  já relatei   alhures num artigo no qual  falava sobre a experiência  inicial do  grande crítico Antonio Candido     de escrever pra colunas  de jornais. Recordo  ainda sobre  esse assunto que meu pai,  escrevendo  à mão seus artigos e outros  textos de sua  produção,  não  dava a margem aos parágrafos,  conforme anos mais tarde,  sendo encarregado por ele de   copidescar  seu livro Gatos do palácio(8), notei que, mesmo  a cópia  datilografada da obra,  não  estava com  as margens  dos parágrafos, o que  os ingleses chamam de indented lines
     Confesso que não gostei da afirmação de que  tinha “algum jeito” pra redigir. No meu  orgulho  próprio de quem,  em Teresina,  havia  escrito alguns    artigos pra jornais,  sendo até elogiado  pelo   professor, escritor e jornalista  A.Tito Filho,  como   ousaria  o diretor  me  dizer  que tinha  apenas “algum jeito pra redigir? Por algum tempo,  me   abespinhei  com aquilo   que, pra mim,  soava como crítica ou falta de valorização  maior que   julgava merecer. Puro  excesso de orgulho  juvenil.
    Das observações  do diretor, uma delas me serviu muito  de então pra diante   quando  escrevesse   algum texto: daria sempre  a margem ao texto, ao contrário do estilo  dos americano, em carta  comercial,  que não dão margem aos parágrafos.
  Disso tomei  conhecimento  quando, nos anos de  1967  a 1968, trabalhei como  "auxiliar", conforme está no meu  resisto da Carteira  Profissional,  da seção de Câmbio  do Banco do Intercâmbio Nacional (já extinto). Na verdade, veja-se a  exploração  capitalista -  fazia mais era  redigir cartas em inglês, ou verter textos bancários e comerciais  para esta língua, o que me  obrigou a  aprender  inglês comercial  e bancário através de bons  livros  comprados com dificuldades, sendo um dele – o excelente Correspondência comercial inglesa de J. L. Campos Jr.(7) -   adquirido  com  um dinheiro dado   por meu pai na sua  passagem pelo  Rio de Janeiro para um Congresso de Jornalistas em Porto Alegre, anteriormente   referido nestas      memórias. 
     A única  coisa ruim  que me aconteceu durante o período naquele banco  foi uma observação  de um  dos diretores ou gerentes, um cearense metido a besta, que falara mal do meu  inglês para o  gerente geral do Banco do Brasil, Moacyr Freyre, piauiense, pessoa humana que estava sempre ais necessitados.Soube  dessa  crítica do cearense através do que contou à minha   esposa, Elza, a Dona Santuzi, esposa do Sr Mocyr Freire. O casal era muito  amigo da minha  esposa. Sempre lhe deram, desde solteira,  muito apoio, mesmo até os primeiros meses de meu casamento.
   Mas,  lembra Shakespeare  com  profundidade  filosófica: "The evil that men do, lives after  them."   Aquele gerente   cearense, um  dia,  no banco  me chamou  à sua sala, no andar térreo,  que dividia com um outro  gerente ou diretor. O assunto  tinha sido uma carta em português que me pedira para verter pro inglês. Ele e o seu colega  de sala me perguntaram sobre   um enunciado que, segundo eles,  não  estava correto. 
    As memórias falham, mas, às vezes, acertam com uma nitidez   que nos  surpreende.   O  trecho  da  carta com o qual  estavam  implicando comigo era este  : "Sempre  que a oportunidade se fizer necessária,  far-lh-ei uma visita  em seu  seu escritório  em Londres." Desse modo  foi por mim  redigida: "Whenever an opportunity  presents  itself,  "I will pay you a visit at  your office in London." O cearense e o colega  desconheciam  os idiomatismos e os torneios   da língua de  John Milton.
    Os deuses estavam ao meu lado.  Naquela tarde, aconteceu  de chegar à sala dos gerentes ou  diretores um  senhor  de olhar afável embora  mostrasse ser pessoa  séria, inteligente e distinta. Era grego. Tinha  negócios de  exportação ou  importação, não sei ao certo. Soube, depois, conversando com ele a sós, que tinha  grande  convívio com a língua inglesa e era  um  homem  viajado. Aproveitando-se da presença  do senhor  grego, cliente  vip do banco,  os dois  gerentes, mostrando-lhe a minha  versão,  lhe indagaram   se aquilo  estava correto. "Corretíssimo!  -  respondeu com firmeza o senhor grego.    "Este rapaz, acrescentou  o senhor grego,   está com a razão". Os sabichões gerentes, sobretudo o cearense,  perderam  a voz e mudaram  o tom antes  doutoral. Era hora  de almoço, deixei a sala e tomei  a rua. Naquele  instante,  o senhor grego, virou-se pra mim e me perguntou:  Por que você não  procura a  Man  Power? Lá pode  encontrar uma colocação  para quem sabe  inglês. Disse isso e se despediu de mim. Nunca mais o vi.
    Antes que me esqueça, de outubro  1966 a março de 1967, trabalhei no First National  City Bank, Departamento de Câmbio na função de  "escriturário  principiante," segundo consta na  Carteira  Profissional. Na realidade,  trabalhava no balcão por ter  conhecimentos de inglês. Atendia mais a estrangeiros em tarefas  como  desconto  de cheques,  remessa  de dinheiro pro  exterior,  recebimento  de remessa de dinheiro,  fazer os respectivos cálculos  de conversão, preenchimento  de  formulário. 
   Na hora dos cálculos por vezes me  enrolava, de vez que nunca fui bom   em cálculos financeiros. O uso do inglês era diário. Entretanto,   os meus cálculos  tinham que passar pela  checagem de um  funcionário  e, desse modo,  se cometesse algum erro,  ele corrigiria. Consegui a colocação  graças a um colega meu de Faculdade, um  moço educado,  prestativo e amigo. de origem  espanhola.
   Passei por uma prova oral  - conversação em inglês, com um "officer"  -, cuja única ressalva  feita  foi  me afirmar que, ao falar inglês,  denunciava  um pouco de sotaque.   No mais, tudo bem, estava  por ele  aprovado. Além disso,  antes de concluir a entrevista  me perguntou se me interessava fazer,  em Nova Iorque,  um curso de trainee e, depois,  complementar com um curso em economia ou administração. Fui muito  franco  e sincero com ele, dizendo-lhe que não queria  me dedicar à   área  bancária, porque  estava   cursando  Letras. Não me respondeu nada. "The conversation   was over." 
    Em seguida,  tive uma última  etapa antes de ser admitido ao emprego. Era um  entrevista com o chefe de recurso humanos, de nome Tassinary ou algo  bem próximo a esse nome. Não me lembro,  todavia,   ter feito  prova  de conhecimentos  gerais. De uma coisa  estou certo,agora depois de  tantos anos: o que o City Bank me pagava não valia  as minhas  lágrimas  derramadas na presença de minha esposa  quando dele fui demitido. Era uma mixaria pra tanto   trabalho e exigência. 
   Durante o período no City Bank, conheci  muitas pessoas,  brasileiros e estrangeiros. Certa feita,  chegara ao balcão uma senhora idosa e de traços finos,   ainda bem disposta, acompanhada  de uma   jovem senhora muito   bonita. Elas vinham receber uma  valor  relativo a uma ordem de pagamento. A mais velha me entregou  um  aviso pra  comparecimento ao  Banco a fim de  receber a importância remetida. Eu mesmo as atendi. Assim que  vi  o sobrenome Da Costa e Silva,  meio sorridente  ia-lhes perguntar sobre o sobrenome. Elas,  porém, se adiantaram e me disseram : "Não é do  Presidente  Costa e Silva. É do poeta  piauiense Da Costa e Silva." 
   Então,  lhes disse que efetivamente não  estava pensando no Presidente  Costa e Silva, mas no  poeta da minha  terra,  Da Costa e Silva. Ficaram   surpresas com a minha   afirmação.As duas  senhoras eram  Dona  Creuza Fontenele da Costa e Silva e Alice Fontenele da Costa e Silva, respectivamente, a   segunda    esposa do "poeta da Saudade" e uma das filhas.a Alice, a mais nova.  de três filhos do poeta amarantino. Mal  imaginara   que,  anos depois,  ia revê-las justamente na casa  de Dona Ceuza, na Tijuca, justamente  durante a minha  pesquisa de mestrado versando  sobre o tema da saudade  do maior  poeta   piauiense.
  Data dessa data a amizade que    estabeleci com  a família  Da Costa e Silva.  Foi o período em que  tive o primeiro contato com  o  filho de Dona Creuza, o diplomata  e escritor  Alberto da Costa  e Silva, o qual me franqueou tudo que lhe foi  possível pra  desenvolver  a minha pesquisa sobre o seu pai.  O diplomata   me enviava  do exterior  farto material  bibliográfico sobre  Da Costa e Silva. Conseguira o primeiro contato  cm ele através do endereço do  diplomata no exterior  que me forneceu  um funcionário do  velho e majestoso Palácio do Itamaraty,  situado na  Avenida Marechal Floriano,  Centro do Rio. Com  o  Alberto  da Costa e Silva, troquei algumas  correspondências sobre o andamento da minha pesquisa.  O funcionário, muito solícito,   referia-se ao  diplomata  pelo nome  Da Costa,dito de forma  afetiva.  
     Noutra  ocasião,  chegou ao balcão do City Bank uma americano, a quem atendi  com  a tenção que me caracterizava exercendo  aquela função bancária. Conversando com ele,  soube que  admirava  o estudo  de línguas  orientais. Morava em  Niterói, no Saco do São Francisco.Chamava-se  Leonard Mesnar. Vi-o outra vez tempos  depois quando o encontrei perto de outro  banco  em que trabalhei, Banco de intercâmbio  Nacional, na  rua  Primeiro de Março, Centro.  Mr. Mesznar  me havia   dito  uma verdade: "Você só aprende uma língua  praticando-a  sempre,  em convívio com quem a fala, sobretudo se nativo." Não era uma novidade , porém era uma verdade. Não cheguei a procurá-lo no seu endereço   talvez por timidez ou  mesmo   acomodação.
    Outra vez,   apareceu  um senhor ainda  moço, muito gentil e  sorridente que me dissera: "Você trata bem demais  os clientes, sempre sorrindo e de bom  humor. Talvez mude com o tempo, pois a vida  nos vai  mostrando com as decepções pelas quais vamos  passando."  Ele era estudioso  de mapa astral e me   pediu  o  meu  nome, o  mês  e ano de meu aniversário. Um mês depois, se tanto,  voltou ao balcão pra  tratar de alguma coisa  e me  entregou  um envelope, no qual   constava  o mapa astral. alusivo ao meu signo, sagitário.Lendo-o em  casa,  pude constatar  que muita coisa  que ali  dizia dizia  repeito à minha personalidade. Durante algum tempo,  gostava de ler, nos jornais,   a seção  de horóscopo. Me divertia  sempre que  me era favorável  o teor  do meu  signo.
   Um outro dia,  apareceu no balcão  um  moço  a quem atendi. Havia outros dois colegas de trabalho  que   atendiam  no mesmo balcão. Ele veio  descontar um cheque. Conversa vai, conversa vem, vim a saber que ele era de Paranaíba, cidade litorânea  do  Piauí. Era funcionário da FAO (Food Agricultural Organization). Morava num país  de língua  inglesa. Depois,  me disse que era filho de um  escritor  piauiense,   Alarico da Cunha, cujo nome  não me era estranho,  pois meu pai  me falra  bem  dele e tanto  ele quanto  meu pai  colaboraram  no Almanaque do Parnaíba. Me recordo de um  exemplar   que folheei e nele havia um  artigo de meu  pai  que  estampava a foto dele no canto  superior  direito da página do artigo. Papai  estava bem moço, com o cabelo  ainda  negro.Esse moço de Parnaíba , vendo meu interesse por línguas,  me  recomendou que  ouvisse muito  discos com gravações   reproduzindo  diálogos  em línguas  estrangeiras modernas. "Ouvir  com frequência as gravações e os textos   respectivos  melhorava muito  a nossa pronúncia e a nossa   fluência." 
   De lembranças  gratas do banco  americano propriamente dito só levei de Mr. Dudley, um velhote americano,  um outro  "officer" de grande respeito junto ao à Seção de Câmbio.Com ele sempre falava em inglês. Sempre que ia à sua mesa, que ficava num canto  aos fundos da ampla sala de Câmbio,   a ele me dirigia pelo nome carinhoso de "Daddy."  Em apuros, recorria a ele, até quando me deparava, "at the counter," com uma gringazinha  que falava num   inglês  difícil de entender. "Don't  you worry, Francisco,  she's really   got a strange accent.  Matter of  region, you know.  Virando-se pra ela  disse: Just turn around the corner,   young girl,  and you'll find  the place you want." Saudades do velho Dudley! - uma autêntico  personagem de um filme de cowboy de uma cidadezinha  americana   conversando com outros   velhotes  sobre  bandoleiros  que acabavam de  assaltar um banco...
  Continua).

NOTAS:

(6)LINS,  Álvaro Lins.  Missão em Portugal (primeiro  volume).  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960.
(7)CAMPOS JR.,  José Luís. Correspondência comercial  inglesa.   São Paulo: Editora LEP S.A, 1964. Li quase toda a obra desse autor.

(8) Esta obra, uma sátira  política,  quase nos moldes de outra obra dele,  Copa e Cozinha (Teresina,PI.: Academia Piauiense de Letras/Projeto  Petrônio Portella, 1988), conforme informou uma das minhas irmãs,foi  extraviada. Eu diria  por  negligência de meus familiares. É lamentável   que tenha  sido perdida. Tal  fato não ocorreria  se ainda morasse em Teresina. Enquanto  vivi com meu pai, cuidava de sua biblioteca, a que chamo afetivamente de  “quarto-biblioteca.”   Depois do falecimento de  meu pai (1990), tudo se esboroou do seu  pequeno mas valioso acervo, com obras  de muito valor e, por incúria,  extraviadas.  Eu me sentia  o “warder” de seu  espólio  bibliográfico.É imperdoável   esse fato.Outro fato desagradável que constatei foi o seguinte: a tese de meu pai,  O papel de Floriano  Peixoto na obra da proclamação e consolidação da República (1957)   - é triste  afirmar – foi  também extraviada. Por algum tempo,  estive com ela  aqui no Rio de Janeiro. Depois,  por amor  aos livros e respeito ao  acervo de meu pai,  numa das viagens a Teresina,  devolvi a tese ao se lugar  nas estantes. Não deveria ter  devolvido se soubesse que não iriam cuidar bem dos  seus livros,  ficaria com  a Tese que iria ter um lugar de honra  na minha biblioteca.A primeira Tese dele,  graças a Deus, se  encontra na minha biblioteca. Tem por título  A odisseia do cativeiro no Brasil. Foi  submetida  à Escola Normal  “Antonino Freire,” no concurso   para catedrático de Historia do Brasil, 1952. Essa Tese foi defendida e aprovada Meu pai suou muito, .  pois havia um  membro da banca. adrede escolhido  pra prejudicá-lo por questões  político-educacionais.. Menino, acompanhei meu pai  durante a defesa. Mais do que sua voz,  vejo a sua gesticulação   expondo eloquentemente o assunto ventilado. O dito  inimigo ali presente,  nas suas considerações, alegou  que meu pai  estava mais  no papel  de orador do que de professor. A  Tese que  foi  extraviada  foi  submetida  à cátedra de História do Brasil do Colégio  Estadual do  Piauí (antigo Liceu Piauiense), a qual não foi, no entanto,   defendida. Desconheço as razões.