Cunha e Silva Filho
Depois do sucesso de Filhos
da mãe gentil (Litteris Editora, Rio
de Janeiro, 2011), e do bom
acolhimento, sobretudo no Piauí, de Contos
da minha terra (Nova Aliança, Teresina, PI, 2012, 196 p.),o contista, o romancista e
cronista piauiense José Ribamar
Garcia lança seu mais recente
livro, de título enigmático com certo tom lírico-metafórico, E depois, o trem (Litteris Editora, Rio de Janeiro, 2015.166 p.).
Desta vez, não foi
buscar sua criatividade
nos gêneros em que mais
produziu sua pena. Os tempos passaram. Estamos à altura dos quinze anos do
século 21. O autor
já provou que tinha fôlego
para dar continuidade à sua vida
literária, aos seus projetos de produção em idade
mais madura, já tendo alcançado boas décadas
de vida, quer dizer, aquela fase existencial que, segundo o grande crítico Álvaro Lins (1912-1970) se encontra com maior
equipamento tanto de experiência acumulada quanto
de domínio da linguagem para
uma incursão em
novo gênero, o das memórias, gênero
de natureza estrutural algo
híbrida, porque se aproxima e se imbrica
com outros assemelhados em alguns
pontos comuns: a confissão, a autobiografia, o diário.
Essa espécie de forma literária remonta à literatura
egípcia antiga, penetrou em todas as literaturas do Ocidente e, para simplificar, no
domínio da língua portuguesa,
foi fértil em Portugal e tem bons
exemplos no Brasil. Praticaram-na
escritores como Joaquim Nabuco, Taunay, Humberto de Campos, com as suas Memórias, Memórias inacabadas, que li ainda em Teresina, Medeiros de Albuquerque, Álvaro Moreyra,
Gilberto Amado Graciliano Ramos, Rodrigo Otávio, Pedro Nava, entre outros.
A extensão
das memórias varia muito de
acordo com o temperamento do escritor, a sua disposição para
narrá-las, o seu estilo de escolha
de fatos, lembranças e acontecimentos que mais se
lhe insinuaram no espírito.
Os relatos que se fixaram em E
depois, o trem, exigiram, a meu
ver, do autor
um esforço cuidadoso de seu estilo
objetivo, sintético, ágil
conhecido de quem se acostumou
com a sua ficção
vívida, visual, movimentada, traços que o
distinguem como um escritor
que constrói seu texto com a
determinação, no fundo estilístico-composicional, de não ultrapassar em
excessos de palavras, mas armar
sua exposição ou o seu relato
na justa medida de precisão fática, visual e estético-emotiva.
O
memorialista não cansa o leitor, não o enfastia com o que seja
dispensável. Sabe dosar o seu quinhão
de reminiscências e vai naquelas que
não poderiam absolutamente deixar
despercebidas da história de sua vida.
Por outras palavras, contenta o leitor com um texto onde
cabe tanto a emoção, a tragédia quanto
uma boa dose de humor.
A arrumação de suas recordações,
gratas ou ingratas,
obedece a um tempo não-linear. De um parágrafo a outro,
vem o relato de uma
fato novo ou de uma reflexão
que lhe determinam, no plano
literário, a sua visão de vida
dos homens, dos fatos e das
instituições.
O que
releva considerar numa
resenha como esta
são os pontos centrais
de suas memórias: a de dar conta
de sua vida desde as mais
remotas lembranças da infância
no seio da família: fala de si
como criança travessa e irrequieta, mas viva
e observadora.
Fala do pai, seu
grande ídolo, fala de sua mãe, a sempre amada Dedé,
relata sua formação escolar em Teresina, fala de sua
família em geral, de seus
antepassados mais próximos, da sua
mudança para o Rio de Janeiro aos
quatorze anos, de seu ingresso na
universidade para cursar Direito, da sua
formatura de estudante universitário pobre que nem dinheiro tinha para pagar
as despesas que lhe cabiam para a colação de grau.
Alude aos
seus muitos percalços vividos
por um adolescente desejoso de
conquistar o seu espaço com dignidade,
garra e sabedoria na cidade
do Rio de Janeiro em tempos difíceis
de ditadura militar. Por sinal, Garcia, como o autor desta resenha, atravessou todo o período
da ditadura, porém ele, já como estudante de Direito, prestou
depoimento a propósito do assassinato
do estudante paraense Edson Luís Lima Souto, que causou consternação nacional, ou seja, o memorialista se tornou, assim, parte da história brasileira no
que tange ao incidente da morte de Edson Luís Lima Souto.
O assassinato
desse jovem de 17 anos, após a invasão policial
do restaurante de estudantes
secundários e universitários Calabouço, em fins de marco de 1968, foi o ponto
alto das manifestações estudantis contra
a repressão da Ditadura Militar, culminando com a chamada
passeata dos Cem mil pelo centro da cidade.
O
memorialista revela um dado pouco
conhecido sobre o estudante
morto por policiais. O jovem
morto fora transformado por gente da esquerda,
conforme anota o memorialista, em “estudante”
meramente para fins de reforçar
a opinião pública de que um estudante do
restaurante Calabouço fora covardemente
fuzilado por um policial. Cito as palavras do
memorialista a este respeito: “Quando
viram que o morto era o 'paraense,’ imediatamente preencheram uma ficha de inscrição do curso de Madureza com o
nome dele, sem os dados pessoais, ignorados
até então.” (p.119). Garcia presenciou todo o
desenrolar daquele fatídico dia e ainda
prestara declarações ao
jornal O Globo no ano de 1968. Na verdade,
declara Garcia, Edson Luís
era apenas um jovem que frequentava o Calabouço e ali fazia “pequenos
biscates.”
Faz
referência a Caryl Chessman, escritor americano, condenado à cadeira
elétrica e finalmente executado. Na cela escreveu alguns livros que se tornaram famosos na época.
A leitura daquele autor, segundo Garcia,
despertou nele, no início da adolescência em Teresina, a vontade de se tornar escritor.
As memórias de Garcia são as de um jovem que,
sem favor algum, foi um
vitorioso tanto na profissão que escolheu, a advocacia, quanto
no campo da Literatura; as
duas atividades que o absorveram
sempre.
Às vezes,
tenho a sensação de que não estou lendo apenas as lembranças de Garcia, e sim o autor ficcionalizando-as em algumas partes do livro, o qual tem tantas vinculações com o romance
de formação, também chamado de Bildunsgroman ou Künstlerroman E, na realidade, quem conhece
sua obra publicada,
percebe bem que
nele a ficção de alguns livros
mantém fortes liames factuais
com essas memórias
ora dadas ao público e mesmo são por ele próprio
reconhecidas quando, no final de seu texto,
explica, à maneira de Manuel
Bandeira em O
Itinerário de
Pasárgda, os objetivos
que o levaram a tematizar
situações da vida humana, o que vem corroborar
o fato de que o conjunto de sua
obra em parte está
fortemente associado a
aspectos autobiográficos. Ora,
tais subsídios dados
pelo próprio autor tem grande significado para o
crítico literário, já que a crítica
literária nunca esgota as suas escavações
analíticas.
O autor se saiu bem em duas vertentes de
seu percurso até hoje: a)
relata com competência
a sua caminhada de
advogado e neste sentido nos
dá informações valiosas
quanto a suas atitudes e ao seu
dinamismo de experiência
advocatícia;b) narra de forma muitas vezes admirável fatos de sua vida pessoal e familiar. Não há quem não se
comova com as passagens em que fala de
seus pais, sobretudo de sua mãe, a Dedé,
figura sempre presente e extremamente querida e amada
por toda a família Garcia.
A passagem
da doença que a acometeu e a
levou à morte é um
texto de nobreza, de amor, de grandeza de um filho
para com a mãe. Um trecho de sua
página dedicada à narração das últimas horas de sua mãe, Dedé,
merece a citação seguinte: “Nada
tão pungente quanto a expressão nunca mais” (p.134).
Garcia é
exemplo vivo de um filho extremado, para
quem o amor à mãe só podemos entender
no plano altamente espiritualizado. Para os irmãos, os parentes em geral, há sempre uma nota de
sentimento de solidariedade e de amor. Dos seus filhos, fala
como pai superiormente dedicado - uma
espécie de pai que todos queríamos
ter em vida.
Bom filho, pai
grandioso e advogado que, combinando a vocação
do Direito com a da Literatura, se completa como homem e individualidade.
As
memórias do autor fazem convergir
vários planos: o existencial, o afetivo, o da amizade, o da generosidade, o da gratidão, o da
coragem, o da determinação para colimar seus
projetos de vida
profissional e literariamente.
Vale a pena, para concluir esta resenha, constatar
um fato: estas memórias testemunham a figura de um homem
visceralmente amante da
vida, entendida em
suas múltiplas circunstâncias. O
amor à natureza, às viagens,
à terra natal, ao país, o
amor à vida em toda a sua plenitude, contraditoriamente não
por crenças religiosas. Que contradição! Define-se como
não apegado a credo religioso, mas, por outro lado, para
quem o conhece com maior
intimidade, Garcia é daqueles
homens que têm
um profundo sentimento
da emoção, da beleza
artística, da beleza moral
e é um amigo das
horas dos desesperos, um solidário com o
ser humano e, para completar-lhe a
figura humana, um
homem de bem que,
no entanto, não se dobra
às injustiças, sejam
individuais, sejam coletivas.
“E depois, o trem é uma
obra de lutas, de
renúncias, de desejos
de atingir os valores mais prezados
pela humanidade: a
liberdade, a justiça, a felicidade que
deveria ter todo ser que habita o nosso
planeta.Um adendo: na leitura desta edição identifiquei alguns senões que escaparam à revisão, como, por exemplo, sinal da crase onde não há necessidade.Louve-se a beleza da capa e o bom texto da orelha assinado por Antenor Rego Filho tanto quanto o pequeno e bem redigido texto da contracapa
Cunha e Silva Filho é crítico literário e Pós-Doutor em Literatura Comparada pela UFRJ.
Cunha e Silva Filho é crítico literário e Pós-Doutor em Literatura Comparada pela UFRJ.