sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Tempo de memórias em José Ribamar Garcia




                                                        Cunha e Silva Filho


          Depois do sucesso de Filhos  da mãe  gentil (Litteris Editora, Rio de Janeiro,  2011),  e do bom  acolhimento, sobretudo no Piauí,   de Contos da minha  terra (Nova Aliança, Teresina, PI,    2012, 196 p.),o  contista, o romancista e cronista   piauiense  José Ribamar  Garcia lança seu mais recente  livro,  de título  enigmático com certo tom   lírico-metafórico, E depois, o  trem (Litteris Editora, Rio de Janeiro, 2015.166 p.).
       Desta vez,  não foi  buscar  sua  criatividade  nos gêneros  em que   mais  produziu sua  pena. Os tempos  passaram. Estamos  à altura dos quinze anos  do   século  21. O  autor   já provou que  tinha    fôlego  para  dar continuidade à sua vida literária,  aos  seus projetos de produção  em idade  mais  madura,  já tendo alcançado boas  décadas   de vida, quer dizer,  aquela  fase existencial que, segundo  o grande crítico  Álvaro Lins (1912-1970)  se encontra com  maior  equipamento    tanto   de experiência  acumulada   quanto   de domínio  da linguagem  para  uma   incursão  em  novo  gênero, o das  memórias,  gênero  de natureza  estrutural  algo  híbrida, porque  se aproxima   e se imbrica  com  outros  assemelhados em  alguns   pontos  comuns: a confissão,  a autobiografia, o diário.
        Essa espécie de forma  literária remonta  à literatura  egípcia antiga, penetrou em todas as literaturas   do Ocidente e, para simplificar,  no   domínio da  língua  portuguesa,   foi fértil em Portugal e tem  bons exemplos no  Brasil. Praticaram-na escritores   como Joaquim  Nabuco, Taunay,   Humberto de Campos, com as suas MemóriasMemórias  inacabadas, que li  ainda em Teresina,   Medeiros de Albuquerque,    Álvaro  Moreyra,    Gilberto  Amado Graciliano  Ramos, Rodrigo  Otávio, Pedro Nava, entre  outros.
     A extensão  das memórias  varia  muito de  acordo com  o temperamento  do escritor, a sua disposição  para  narrá-las,   o seu estilo   de escolha  de fatos, lembranças  e acontecimentos  que mais se  lhe  insinuaram no  espírito.
     Os relatos   que se fixaram  em E depois, o trem, exigiram, a meu  ver,  do  autor   um  esforço  cuidadoso de seu  estilo   objetivo,   sintético,  ágil  conhecido  de quem  se acostumou  com  a sua   ficção vívida,  visual,  movimentada, traços  que  o distinguem como  um  escritor  que  constrói seu texto  com  a determinação,   no fundo  estilístico-composicional, de  não ultrapassar  em  excessos  de palavras, mas  armar   sua  exposição ou  o seu  relato  na justa medida   de precisão  fática, visual e estético-emotiva.  
  O memorialista   não  cansa o leitor,  não o enfastia  com   o que seja   dispensável. Sabe dosar o seu quinhão  de  reminiscências e vai  naquelas que  não poderiam  absolutamente  deixar  despercebidas  da história  de sua vida.  Por outras  palavras,   contenta o leitor com um texto   onde cabe tanto a emoção,   a tragédia  quanto   uma  boa dose de humor.
  A arrumação de suas  recordações,  gratas  ou  ingratas,  obedece  a um tempo  não-linear. De um parágrafo  a outro,  vem  o relato  de uma   fato  novo ou de uma   reflexão  que  lhe determinam, no  plano  literário,  a sua  visão de vida  dos homens,  dos fatos  e das  instituições.
    O que releva  considerar  numa   resenha  como  esta  são os  pontos  centrais  de suas memórias:  a  de dar conta   de sua vida  desde as mais remotas   lembranças  da infância  no seio da família: fala  de si como  criança  travessa e irrequieta,  mas viva  e observadora.
    Fala  do pai, seu  grande  ídolo,  fala de sua mãe,  a sempre amada   Dedé,  relata   sua  formação escolar em Teresina, fala de sua família  em geral,  de seus  antepassados mais  próximos,  da sua  mudança  para o Rio de Janeiro aos quatorze anos, de seu  ingresso na universidade  para cursar Direito, da sua formatura de estudante  universitário  pobre que nem dinheiro tinha para  pagar  as despesas  que lhe cabiam  para a colação  de grau.
      Alude aos seus muitos  percalços   vividos  por um adolescente  desejoso de conquistar o seu espaço com dignidade,   garra  e sabedoria na  cidade  do  Rio de Janeiro em tempos difíceis de ditadura  militar. Por sinal,  Garcia, como o autor desta resenha,   atravessou todo  o  período da ditadura, porém  ele, já como  estudante de Direito,  prestou  depoimento  a propósito do assassinato do  estudante  paraense  Edson Luís  Lima Souto, que causou  consternação nacional, ou seja,  o  memorialista  se tornou, assim,   parte da história  brasileira no que tange ao  incidente  da morte de Edson Luís Lima  Souto.
       O assassinato  desse jovem de  17 anos, após a invasão  policial  do restaurante de estudantes   secundários  e universitários  Calabouço, em fins de marco de 1968,  foi o ponto  alto das manifestações  estudantis  contra  a repressão da Ditadura Militar, culminando com  a chamada  passeata dos Cem mil pelo centro da cidade.    
      O memorialista  revela um dado  pouco  conhecido  sobre  o estudante  morto  por policiais. O jovem morto fora  transformado por gente da esquerda, conforme  anota o memorialista, em  “estudante”  meramente para  fins   de reforçar  a opinião  pública   de que um estudante  do  restaurante Calabouço  fora  covardemente   fuzilado  por um  policial. Cito as  palavras do  memorialista  a este respeito: “Quando viram  que o morto era o 'paraense,’ imediatamente preencheram uma ficha de inscrição do curso de Madureza com o nome dele, sem os dados pessoais, ignorados  até então.” (p.119). Garcia  presenciou  todo  o desenrolar daquele fatídico dia e ainda  prestara   declarações ao jornal  O Globo no ano de 1968. Na verdade,  declara  Garcia,  Edson  Luís era apenas um jovem  que frequentava  o Calabouço e ali fazia  “pequenos  biscates.”
   Faz referência a Caryl Chessman, escritor americano, condenado  à cadeira  elétrica e finalmente executado.   Na cela escreveu  alguns livros   que se tornaram famosos  na  época. A leitura  daquele autor, segundo  Garcia,  despertou  nele, no início da adolescência em Teresina,    a vontade de se tornar escritor.
    As memórias de Garcia são as de um  jovem que,  sem favor  algum,  foi  um vitorioso tanto  na profissão    que escolheu, a advocacia,  quanto  no campo da Literatura;  as duas  atividades que  o absorveram  sempre.
   Às vezes,  tenho a sensação de que não estou lendo apenas  as  lembranças   de Garcia, e sim o autor  ficcionalizando-as  em algumas  partes  do livro,  o qual tem   tantas  vinculações com o romance de formação, também chamado de Bildunsgroman ou Künstlerroman E, na realidade,  quem  conhece  sua  obra   publicada,   percebe  bem  que  nele a ficção  de alguns  livros   mantém  fortes liames    factuais  com  essas  memórias  ora   dadas ao  público e mesmo são por ele   próprio  reconhecidas  quando,  no final de seu  texto,  explica, à maneira  de  Manuel  Bandeira em  O Itinerário de Pasárgda,  os  objetivos  que o levaram  a  tematizar    situações  da vida  humana, o que vem  corroborar  o fato de que   o conjunto de sua obra  em parte  está  fortemente  associado  a   aspectos autobiográficos. Ora,  tais   subsídios  dados  pelo  próprio autor tem  grande significado  para o  crítico  literário, já que a  crítica   literária  nunca  esgota as suas  escavações  analíticas.
  O autor  se saiu  bem em duas vertentes de seu  percurso até hoje:  a)  relata  com  competência   a sua  caminhada  de   advogado e neste sentido  nos dá  informações  valiosas   quanto a suas atitudes e ao seu   dinamismo    de experiência advocatícia;b) narra  de  forma muitas vezes admirável   fatos de sua vida  pessoal e familiar. Não há quem  não se comova  com  as passagens em que fala  de  seus  pais, sobretudo de sua  mãe, a Dedé,  figura sempre  presente  e extremamente querida  e amada  por toda a família  Garcia.
    A passagem  da doença   que a acometeu e a levou  à morte  é um  texto de nobreza,    de amor,  de grandeza de um  filho  para com a mãe. Um trecho  de sua página dedicada  à narração das  últimas horas de sua  mãe, Dedé,  merece  a citação seguinte: “Nada tão pungente quanto  a expressão  nunca mais” (p.134).
    Garcia  é exemplo vivo  de  um filho extremado,    para quem   o amor à mãe só podemos  entender   no plano   altamente  espiritualizado. Para os irmãos, os    parentes em geral,  há sempre uma nota  de  sentimento de  solidariedade  e de amor. Dos seus filhos,   fala  como pai  superiormente  dedicado  -    uma espécie de pai que  todos   queríamos  ter   em vida.   Bom filho, pai  grandioso e   advogado   que, combinando  a vocação   do Direito com a da  Literatura,  se completa como  homem e individualidade.
     As  memórias  do autor fazem  convergir  vários  planos:  o existencial, o afetivo,   o da amizade, o da  generosidade, o da gratidão, o da coragem,  o da determinação  para  colimar   seus  projetos  de vida profissional  e literariamente.
   Vale a pena, para concluir   esta resenha,   constatar  um  fato:  estas memórias  testemunham a figura de um  homem  visceralmente  amante da vida,   entendida  em  suas múltiplas circunstâncias. O amor  à natureza,  às viagens,  à terra natal,  ao país, o amor  à vida em toda a sua  plenitude, contraditoriamente  não   por  crenças   religiosas. Que contradição! Define-se como não apegado  a credo  religioso, mas, por outro lado, para quem  o conhece com  maior   intimidade,  Garcia  é daqueles   homens  que  têm  um  profundo   sentimento   da emoção,  da beleza artística,  da  beleza moral  e é um  amigo  das  horas  dos desesperos, um solidário  com  o ser humano e,  para completar-lhe a figura  humana,  um   homem  de bem  que,  no entanto,  não    se dobra  às injustiças, sejam  individuais,   sejam  coletivas.  
   “E depois, o trem é uma obra  de lutas,    de  renúncias,  de  desejos   de  atingir  os valores mais   prezados   pela  humanidade: a liberdade,  a justiça, a felicidade  que  deveria  ter todo   ser que habita  o nosso  planeta.Um adendo:  na leitura  desta edição   identifiquei alguns senões  que escaparam à revisão, como,  por exemplo,  sinal da crase  onde não há necessidade.Louve-se  a beleza da capa e o bom  texto  da orelha assinado  por Antenor  Rego Filho  tanto quanto  o   pequeno e bem  redigido texto da contracapa 

Cunha e Silva Filho é crítico  literário e Pós-Doutor  em  Literatura  Comparada  pela UFRJ.

       


domingo, 22 de fevereiro de 2015

Democracia e caráter de seus supostos praticantes



                                                            Cunha  e Silva Filho


     Em entrevista  concedida por e-mail ao Globo pelo  filósofo  húngaro István Mészaros, atualmente  professor  emérito da  Universidade  de  Sussex, na Inglaterra,  ao repórter  Leonardo Cazes do   Prosa&Verso, (sábado, 21/02/2015),  Mészaros centraliza  sua discussão  em torno   do tema   abordado  no seu   recente livro  lançado  no Brasil, A montanha que devemos  conquistar (Editora  Boitempo).
      Não vou  esmiuçar  todas as considerações   tecidas  pelo filósofo que, na obra,  conforme informa  o entrevistador,  trata de questões  altamente  relevantes, como   a situação  do capitalismo  de hoje, os “impasses” da democracia e  surgimento de “novos  partidos na Europa.”  Por novos  partidos   entende Mészaros os de esquerda, citando  os exemplos  de  Syriza, na Grécia,   e o Podemos,  na Espanha. Mészaros  é marxista  e, ainda, segundo   Leonardo  Cazes, foi  aluno, ainda na  Hungria,  de  György Lukács,  sendo considerado   o seu principal  herdeiro  intelectual . 
      Dos temas   ventilados  na citada obra,  Mészaros   analisa    três tipos de democracia a democracia  direta, a democracia   representativa e a que  ele  próprio  propõe, a “democracia substantiva,” para ele a que  melhor   atende  à realidade  mundial   contemporânea, uma vez que  se estriba  no conceito  de  “igualdade substantiva”,  ou seja,   seu funcionamento   depende  de uma   “alteração  radical” no  processo  de efetivação do funcionamento    da sociedade e, para conseguir  isso,   substitui  a natureza  da alienação e tira  do  Estado   todo o poder “alienante”   que  vem a ser   a subordinação    autoritária  que os sistemas democráticos  exercem sobre a sociedade, ainda que esta   só de fachada   se autodenomine   representativa  da vontade  popular. Neste  ponto  é que  passo,  agora, a  tentar  fazer   alguns comentários  e mesmo  reflexões  sobre  o que  no país   vive  o chamado  estado democrático.
       Em tese,  o país vive  uma democracia,  com   os poderes  funcionado   livremente e  independentes. Porém,  na realidade,   se  o governo  Dilma, no seu segundo mandato  e no  dois governos de Lula, o partido  pelo qual   foram   eleitos  se denomina , em tese,   da esquerda,  será um contrassenso  fazer  coexistir  uma  democracia   da esquerda,    do mesmo modo que seria   contraditória  uma democracia da direita ou do centro.
    Ora,  se a esquerda se fundamenta  em princípios de governança da sociedade de natureza marxista, onde o Estado  pode tudo e é voz soberana   dos destinos da  nação,  e se, no Brasil,   afirma  termos   uma democracia  plena,  há algo  muito   errado  no que  concerne aos conceitos  e  às práticas   políticas   em vigor não só no  Brasil mas em outros   países.
    Inclusive porque   se chamarmos ao  governo  Dilma  de  socialista só porque destina   vultosas  milhões de reais em  benefícios sociais  não bem   distribuídos,  os quais não passam  de “migalhas”  se comparados  à minoria   endinheirada  dos brasileiros,  então  não me parece  correto   afirmar  que  somos  um    país  dirigido  por um partido  de esquerda. Sabemos que, na realidade,   os fatos  são  diferentes  e ricos  aqui  continuam   tendo  as mesmas  regalias e os altos  padrões de vida.  
    No  Estado  brasileiro,   os  seus   membros  dirigentes, a elite  palaciana, nos três poderes,  levam  vida   de  altos burgueses, enquanto a  chamada  classe média tem  vida  limitada  financeiramente  e  vive endividada.  Há ainda  os menos favorecidos  que  lutam  duramente  pela sobrevivência e com  sérios  problemas  relacionados  a benefícios   públicos em vários setores   essenciais: saúde pública,  ensino,  transporte. 
    O filósofo  húngaro acredita  ainda no socialismo e o vê como a  única saída para  a sobrevivência  da Humanidade. Ao  dar  prioridade  ao socialismo,  o  filósofo  desacredita   o capitalismo, o  neo-liberalismo,  a sociedade consumista. Acredita ele que,  se mudarmos  a “ordem de desigualdade  substantiva” pela  “ordem de  igualdade substantiva” será possível  pensar-se numa  efetiva   mudança  das sociedades  que vivem  em grandes dificuldades, sobretudo  na sua organização política. Mészaros fala ainda   da  exaltada  ‘destruição  produtiva’,  produto do capitalismo  que, para ele,  está  declinante. Repudia  ainda o que chama de  “produção  destrutiva” aliada  à “produção  de mercadorias” e, finalmente,    refere  à “ameaça de destruição militar em defesa da ordem estabelecida.” 
   O Estado Brasileiro,  a meu ver,   se  definiria como  um Estado  híbrido, contraditório,  socialmente   desigual,  autoritário e  profundamente  afundado  no mal da corrupção   exercida  entre  políticos  e empresários e num sistema de Justiça   pouco  confiável  em razão de que,   por exemplo,  temos um  Supremo   Tribunal  Federal  no qual  seus  membros, na maioria,  foram    indicados pelo autoritarismo populista do petismo ou lulismo que vai ao  povo mas não lhe permite  ter voz política.
    O mais alarmante   é que  não  é só no  petismo  que  identificamos   gravíssimos e, em  alguns aspectos,  semelhantes  problemas  de natureza  política. A política brasileira atual  tem  um viés  de simbiose   no qual os extremos  se tocam nos seus males  e nos seus defeitos  crônicos. Em resumo, muito dos regimes políticos se ressentem de alguns membros  que  não  dão  nenhum exemplo  de  uma personalidade de  caráter firme e de integridade moral a toda a prova. Este atributo, em qualquer  forma de democracia,  leva um  projeto  político à ruína e à  desmoralização. Ou seja,  tudo se resume a  uma pré-condição: a falta de ética  na  práxis  política. 

  Só para  rematarmos as  reflexões provocados  pelo pensamento  de Mészaros, vejo  que  o   filósofo, passando  ao  campo   da ordem  política  internacional,   não vê com  otimismo  a condição   das sociedades  convulsionadas   de todo os lados  por   perigos   iminentes, e um deles  seria  pelo fato de que  somente  poucas nações   poderosas    têm o poder de “destruir  a espécie  humana, e por isso   usam  termos-chave como  ‘segurança,’  ‘autodefesa’, ao passo que   a maior parte  dos  povos nada podem fazer  diante   dessas   injunções  do poder armamentista,  que é minoritário  mas  perigoso.  Fora do que   conceituou como democracia substantiva,  será difícil  a melhoria  da sociedade e essa  espécie  de  sonho  do filósofo  é algo  que   não se faz  em  vinte anos. Demora tempo, mas pode,  segundo ele,   ser realizável.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O medo de perder o "bonde da História"



                                               Cunha e Silva Filho


             Ignoramus, vamos chamá-lo assim, se dizia importante diante do   volume incalculável de informações que, no mundo virtual,  e no mundo comezinho da nossa  realidade  chã e cinzenta, são guardadas, sob  diversas  formas, muitas das  quais confesso  desconhecer por não dominar  o  assunto por demais  técnico para a minha  compreensão  já gasta  com o tempo, citando  aqui as antigas: pergaminhos,    livros,   jornais,   revistas,  fora  outras ainda   existentes e  ultrapassadas:  LPs, disquetes,  CDs etc.
          Ignoramus  não ignora que a humanidade atual  sofra desse  incômodo resultante da multiplicidade de meios  de informações próprias do áureo   período   dos computadores, que, de início,   gigantescos,  com  o progresso,  se tornaram  bem pequenos   se comparados  à  forma  primitiva  do  tempo  de Barbage.  Falo de computadores   e de seus derivados: celulares, notebooks, tablets, pen drivers e tantos  outros  gadgets que, cada   dia que passa, mais sofisticados  se tornam, provocando,  nas gerações   mais antigas, um certa  perplexidade e até medo da máquina, de como  aprender a manipular  o mouse fazendo com que  ele movimente o cursor  para o lado  que  nos  aprouver (acho que  esse verbo soou  caduco  demais,  não, leitor?).
      Por outro lado, as crianças, a meninada, em geral  lá pelos seus quatro a ou cinco anos,   já está  usando com naturalidade  alguns passos do computador que nos causam   surpresa. Elas movimentam  seus dedinhos  com   tanta  velocidade  e   habilidade que os mais  velhos  não  conseguem  acompanhar  como  chegaram  a  determinado   ponto de manipulação. O que  é pior:  tal  precocidade  e  jeito  para  lidar  com a máquina deixa  os mais velhos abismados. Essas crianças  parecem dar sinal de que  já nasceram   predispostas  a dominar  os procedimentos desses inúmeros aparelhinhos eletrônicos   cheios  de  labirintos  a percorrerem   nas telas.    São  como alguns  animais que,   caindo  na água,  nadam  como se fossem   pessoas   que aprenderam   esse  esporte.
      O nosso  personagem  principal, que mal  estou  delineando  ante  seus  olhos, leitor,  mas sem querer descer nos detalhes  fisionômicos, por não  estar nos  meus  planos  desta narrativa, inclusive  porque  ninguém  me pode obrigar a  respeitar  todo  o figurino   do arcabouço  ficcional.  
    Ele  cita  um exemplo  de   um incidente  de que  foi  testemunha  ocular e do qual  também  seria vítima semelhante : um amigo dele (espere  o leitor que, mais adiante,  direi o nome), que  praticamente atravessa  os mesmos  problemas midiáticos, segredou-lhe que,  mesmo  sem   comprar jornal  ou  revista diariamente,  viu-se em apuros, os quais  consistiam  em,   a cada ano,  pelo menos,   empilhar uma  enorme  quantidade  de jornais  e revistas que, por um motivo  ou outro, não conseguira  ler na íntegra.Na verdade,   havia um componente  não mencionado aqui: a  mulher do amigo   estava sempre  lembrando-lhe  que não havia  tanto  espaço  para  manter   toda aquela  papelada em  casa,   ou  melhor,  num apartamento  de tamanho médio.
     Essa situação lhe causava  angústia,   sentimento  de  incompletude, de não  fazer as coisas  por inteiro, ou até mesmo  por  incapacidade  de empregar  melhor  o tempo,  com frequência   “muito” para algumas  futilidades diárias, e “pouco” para realmente  resolver  o que  era  premente  e  útil. Muita gente há que sabe  dividir  o tempo, sem  se  estressar e sentir-se  culpada  por não  o saber  aproveitar  corretamente, se bem que  ninguém  possa negar  que o mundo  de hoje já não  obedece ao  antigo  preceito  “Festina lenta,” mas  ao da correria,    do  imediatismo,   do “quero  agora.”
         Com  esse  comportamento, i.e.,  o de  ter  séries dificuldades  em  saber  ocupar  bem  o  tempo  e o  ócio,    é que parece  que  só agora  descobriram que a vida é curta. O jovem  de agora   age como se  o amanhã  não houvesse e,  portanto,   cumpriria  resolver  tudo cedo, ganhar a vida   cedo,  ter sucesso  em  pouco tempo,  além  de, no início da carreira, desejar  um salário que, antigamente,    só     desfrutaria  após   muitos anos  de  trabalho árduo   e  larga experiência.
     Veja, leitor, uma  pessoa que vai   discar o número de um   telefone. Se não  o fizer  com certa  rapidez,  perde a vez de completar  a ligação. Da mesma  maneira,   quando   está diante   do caixa eletrônico,  se não se apressar em   ler  as instruções na  tela e segui-las  com a rapidez de um raio,  não  logrará  concluir os  procedimentos   eletrônicos: ver seu saldo, examinar  seu extrato, fazer um empréstimo,   fazer uma transferência,  pagar uma conta,   retirar  um  dinheiro entre outras necessidades.
     Se não fizer isso  tudo  com  rapidez,  nada feito, o melhor será  pedir   a  ajuda da atendente  do  banco. Eis por que os  velhos não  conseguem  geralmente    manipular   os caixas eletrônicos.O mundo pós-moderno   é o dos que  sabem   conviver  com  a rapidez, esse ritmo   fabuloso, porta de entrada para  a felicidade  e paz  no  planeta  Terra...
   O amigo de Ignoramus , com seu   ato de lançar  no lixo   material  de leituras ( vale   repetir,  jornais,  revistas,  sobretudo), segundo  já  relatei,   sem os   ter lido  na  íntegra,   lamentava  profundamente o prejuízo que  essa atitude lhe causaria à condição ideal  de estar “atualizado” com as notícias, as reportagens,  os editoriais,  as colunas específicas de sua preferência, os cadernos culturais, as páginas  sobre  política  nacional,  internacional,  economia, as páginas   sobre  esportes.  as  páginas  de eventos,  espetáculos  teatrais, musicais  que poderia   escolher  para  seu  lazer cultural.   Por  essa razão,  lhe era   acabrunhante  ao espírito ávido  de notícias e de informações   livrar-se dessa  pressão e, como  acontecia com  o amigo, urgia que juntasse  uma  pilha  enorme  de jornais e revistas  e a jogasse no lixo.
       O pior   era que  havia  outra  pilha  que crescia   semanalmente, a de partes de jornais  que não lhe interessavam: os  classificados. Mas, para  estes já  havia  uma destinação;  serviriam  para utilidades domésticas de limpeza, como  forrar  a área do tanque e usá-los até como  capachos da cozinha, da área e das dependências, ou , em  outros casos,   seriam  úteis quando  se necessitasse  dar uma pintura nova  ao apartamento. 
     Ignoramus,  contudo,  não havia  tomado  as mesmas   medidas que o  amigo.Disse para si que ainda  ia refletir sobre  esse assunto. É que para seguir  o exemplo do amigo acreditava que ia  ter grandes  problemas psicológicos ou frustrações  profundas intelectualmente  falando, pois  pensava com seus botões   quanta matéria  relevante poderia  lançar no lixo. E se precisasse de algum material  de pesquisa, onde  iria  achar   com a facilidade que, em casa,  tinha sempre a pouca distância? Nos arquivos  públicos ou  privados, teria  que  obedecer  aos trâmites   e regulamentos  burocráticos e,  por esta  razão,  não se sentiria à vontade  em ambientes  tais como  gente  vigiando-lhe os passos  e sem aquele  conforto  do doce lar.
    O receio de Ignoramus era, com  efeito,  o de perder  o “bonde da História,  o de não estar  sintonizado” com as notícias. Ele, como muita gente mais,  tinha  a  certeza de que o jornal sobretudo, era um capítulo de um livro  interminável.  Daí sua  constante preocupação de não perder as leituras dos  periódicos. Se perdesse, seria  como  deixar de  almoçar todo o dia. A leitura do jornal era uma forma  de  se manter  vivo e útil. Para si  pelo menos.
      Essa obsessão, essa  compunção de não perder a leitura de periódicos comprados  e lidos, em grande parte ,   no mesmo  dia em que era comprado  na banca  mais próxima  de  casa, deixava-lhe conturbado,  incompleto,   sem  direção. Claro que seções do jornal  dedicadas a temas culturais  e literarios  eram lidos  nos dias seguintes. Algum matérias   eram  recortadas  para  compor  arquivos pessoais  com   os recortes   colocados em  envelopes  grandes, contendo  o nome do  jornal,  a seção   e a data de publicação.
        Pelos motivos  assinalados  antes,  é que  penso  no que se  transformou a cabeça  de Ignoramus: um homem letrado, mas idiossincrático tanto quanto o amigo.
       Em outros  aspectos de sua vida, se mostrava  um  indivíduo  normal, de espírito  aberto,  sensível, compreensivo, honesto e amigo  de sua família. Estava prestes  a se aposentar como  burocrata  do Ministério  da Aeronáutica, onde trabalhava na seção  encarregada  de fazer  os cálculos das folhas de pagamento, que, depois, seriam  encaminhadas para  Brasília a fim de serem  processadas.
    Da última vez que o vi – e foi  na semana  passada – ainda  não se decidira se acompanharia  o  exemplo  do amigo. Me perdoe, leitor,  por não  declarar  o nome do amigo até agora: Ilustrissimus. É um advogado trabalhista,  com escritório na Rua  Álvaro, Centro do Rio de Janeiro. Ilustrissimus  é o que podemos chamar de bookwrom.
    O desenlace desta narrativa prometo para um dia desses. Promessa é dívida, Deixemos,  por enquanto, os dois amigos ainda com as suas  manias e obsessões, que o tempo urge e  não é amigo dos que  compõem o grupo de  vagarosos e pacientes habitantes  dos tempos que correm.

           
    


quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Tradução do poema "The Laws of God, the Laws of Man, " de A. E. Housman (1859-1936)




The Laws of God,  the Laws of Man


The laws of God, the laws of man,
He may keep that will and can;
Not I: let God and man decree
Laws  for themselves and not for me;
And if my  ways are  not as theirs
Let them mind their own affairs.
Their deed I  judge and much condemn,
Yet when did  I make laws for them ?
Please yourselves, Say I, and they
Need not only look the  other way.
But no, they will not; they must still
Wrest their neighbour to their  will,

And make me dance as they  desire
With  jail and gallows and hell-fire.
And how am I to face the odds
Of  man’s bedevilment and God’s?
I, a stranger and afraid
In a world I never made.
They will be   master,  right or wrong;
Though both are foolish, both are strong.
An since, my soul, we cannot fly
To Saturn   nor to Mercury,
Keep we must,  if  keep we can ,
These foreign laws of  God and man.


As Leis de Deus, as Leis do Homem

As leis de Deus, as leis do  homem.
Prevalecer pode  a vontade  Dele.
Não, a minha: que Deus e o homem  as ordenem
Para si próprios, não para mim.
E, se não são  os deles os meus caminhos,
Que sejam  eles  os responsáveis.
Julgo-lhes as ações e com  rigor as condeno.
Entretanto,   alguma vez  voz me  deram  para legislar?
Exultem-se com elas,  assim  entendo, eles apenas
Observando-as necessitam de ficar.
Porém, não,  não o farão;  o que devem  ainda tentar é
Seduzir   e  convencer seus semelhantes.

Oscilar me fazem segundo  o seu desejo,
Entre a prisão, a forca e o fogo do inferno.
Neste  impasse,  como  enfrentar os desafios
Das durezas dos homens  e de Deus?
Um  estranho  amedrontado  me sinto
Num mundo que não construí.
Estando certos ou  errados,  soberanos    serão.
Embora tolos ambos sejam, ambos  são fortes.
E, desde que, como  espíritos,  não possamos  voar
Para  Saturno nem para  Mercúrio,
Estas leis de Deus e do homem, quanto possível,   
Obedecer devemos ainda que delas discordando.

                                           (Trad. de Cunha e Silva Filho)

 





sábado, 14 de fevereiro de 2015

Carnaval em casa: retiro ou solidão?




                                           Cunha e Silva filho


    Há  tempos não assisto à festa do  carnaval, sobretudo  o mais empolga, o do Rio de Janeiro, com  os  famosos   desfiles de escolas de samba, onde até  crianças  de três ou cinco anos  mostram  todo o seu  talento  no toque   rítmico da bateria.
      São os  geniozinhos,  desses que, de  vez em quando,  em  todas  as áreas  da atividade  humana,   surgem deixando-nos  boquiabertos  pelo   especial  precocidade. Não é só na bateria que surgem,  surgem   também   como  um    mestre-sala e    uma  porta-bandeira.Têm o sangue  da folia,  do samba no  pé,  esse talento  de mostrar a que veio  na  Avenida, ou melhor,   na pista do Sambódromo.
    Meu carnaval  se perde lá nos tempos em que se ia,  sozinho ou acompanhado,  ver  a passagem eletrizante  dos blocos  cariocas na velha  Avenida  Rio Branco e, depois,  na  Presidente   Vargas, as duas caras  do Rio. 
   Dizem que os blocos da rua estão  se revitalizando. Vêm  eles da Zona Sul,do Centro e dos subúrbios,  todos   sintonizados  com   o país  de ponta-cabeça,  esquecido das suas  grandes  mágoas e defeitos. Alguns desses blocos   se  tornaram   parte da vida   do carnaval carioca,: o Bola  Preta,  a Banda de Ipanema e inúmeros  outros   que  descem  das periferias , dos morros para o  Centro  da cidade de São Sebastião.
   Em quase todos os bairros cariocas  há sempre um   palco, uma espécie de coreto atualizado a fim de que  pessoas dos bairros  ali possam  se reunir com as suas fantasias  e fantasias  da imaginação. Para os mirins,  há também  lugares  em que  ali  podem,   fantasiados,   entrar na folia, pular, dançar e cantar  as marchinhas novas  ou antigas, estas ensinadas  pelas  avós.  No carnaval  valem as brincadeiras,   as formas   diversificadas de  fantasia, as transformações, as trocas de papéis,   em que  o  que é sério passa a não sê-lo. O antropólogo  Roberto  DaMatta  foi quem,  talvez,   mais  aprofundou  uma análise e compreensão  do que significa  alegoricamente  o carnaval. Festa de todos, do rico e do pobre,  do  político e do eleitor,   tudo,  à sua volta se  transmuda em  inversão de   funções   sociais. O carnaval  almeja  o brilho,  o  som,  a música,  a folia,  a ginga, a malandragem,  o samba.
       Gosto do carnaval, agora,  à minha  moda,  mais como   meditação  entre  o retiro e a solidão. Porém, fundas estão as  boas lembranças  do carnaval; primeiro,  as de Teresina, com o seu anual  corso atravessando  numerosas  ruas   da capital  verde, formado de  carros com  belas moças e rapazes  da  sociedade mais aquinhoada, automóveis,  e sobretudo daquele  caminhão das meninas  e menos meninas  da Paissandu, motivo,  com a sua   passagem,  de críticas  de mal-amadas e de  donzelas  ungidas na fé católica   e  inimigas do pecado  da carne, assim como    são  fortes ainda as reminiscências do carnaval  no Clube dos  Diários, ali na  Rua  Álvaro Mendes,   Centro de  Teresina. 
       Alguns meninos  e meninas,  que  não  eram  filhos de sócios do  clube  da  alta sociedade,  ficavam maravilhados  e ao mesmo  tempo   desapontados  por não  poderem  adentrar  o salão  do    saudoso   clube dos endinheirados. Naquele  meu tempo,  inícios da década de 1960, um fato  trágico entristeceu as  memórias  do carnaval. Era  tempo em que o uso do lança-perfume se fazia  presente entre jovens, não para  borrifar  as fantasias  das meninas  bonitas como  sinal de que  por elas  se interessavam, o que seria  normal e até romântico.  Um desses jovens,    o Almedinha,   com quem  tive  pouco  contato,  inalou  em dose  excessiva  o  perfumado éter, não sei ao certo  se misturado  a alguma  bebida. Foi o bastante para que lhe causasse  a morte na flor da vida.   Foi um consternação geral  em Teresina esse   infausto    incidente, especialmente  porque  o jovem  era muito  querido..             
       Assisti, menino e adolescente, a muitos  desse corsos e, no tempo,  me divertia  muito. Numa das ruas  em que morei,  a Arlindo Nogueira,  o percurso do corso num dos anos  em que  ali  residia,     passava  pela  minha rua.
      O corso se resumia num desfile de carros com  seus ocupantes  fantasiados ou não, apenas com  o prazer de  ostentar que  possuíam   carros e  se diferenciavam  da multidão   que ficava  grudada  na  visão dos que   passavam  indiferentes   aos seus olhos  de espectadores. Aplausos  e  motejos  se confundiam  aqui e ali, dependendo  do que  se estava vendo na passarela das rodas.
    O carnaval  carioca  mudou.  Mudamos  nós, também. O carnaval   carioca perdeu   um pouco do antigo charme,  da naturalidade,  de um certa  “pureza.” As novas marchinhas  perdem para as antigas,  tanto é que, durante  os  carnavais  dos novos  tempos,  elas, as antigas,  continuam sendo  cantadas  pelo  povo, na rua  ou  em clubes. Pertencem a diversas décadas. Mas ainda   têm  a sua  presença  na folia  carioca. “Corta o cabelo dele, corta  o cabelo dele!,”  “Viva o Zé Pereira,”  e as célebre  marchinhas  dos anos 20, 40, 50 ainda  hoje relembradas  de geração a geração.
    A figuração do carnaval brasileiro penetra  praticamente  todas as formas  de artes. São  livros  com o título  de Carnaval, de Manuel  Bandeira,  são  poemas, como o de Da Costa e Silva: “Carnaval”, que se encontra  na obra sob  o título  Alhambra: “Amplo salão alucinado de luz,  música e perfume,/o éter germina  sensações de  alegria e volúpia...”;  no cinema,  temos  o  “Orfeu do carnaval, filme de 1959, com direção de Marcel  Camus,  adaptado  da peça  de Vinicius de Morais, Orfeu da Conceição.” O mesmo  filme teve um  outra versão a cargo de Cacá Diegues, em 1999, mas com  outro  título:  Orfeu.No romance,  Marafa, de Marques  Rebelo, temos  uma  passagem  magnífica  da descrição  eletrizante  que  o ficcionista    faz  de cenas  do carnaval  carioca por  volta  de 1930. 
     Os grande  compositores  já se foram. Até os bailes de gays  tinham   a sua  noite  de esplendor.  Muitas  das  figuras  emblemáticas do carnaval  carioca, os compositores   Braguinha,   Zé Kéti, Jamelão,    já  não estão mais entre nós. Outras  figuras,   verdadeiros ícones, do carnaval   carioca,  como   Clóvis Bornay,  Blecaute e tantos   outros  deixaram  um vazio  eterno  nesta  festas das folias, de momices,  de  confetes e serpentinas, de Pierrôs e Colombinas.   A História  registra os faustos,  mas a  saudade  permanece.
   Acredito que tanto  em Teresina quanto no  Rio de Janeiro,  Salvador,  Recife,  o carnaval  perdeu  o antigo   glamour, mas este  cronista, sem se fechar em copas,   transita    entre  o  sentido do  “retiro” e da solidão -  limites  entre  ideias,  livros  pra ler  e recordações   que não se deixam  apagar no tempo e no  espaço.      
           

      

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

O que se questiona no governo Dilma




                                          Cunha e  Silva Filho

         Correlacionar  as ações do governo  Dilma com  autores   como  Derrida,  Walter  Benjamin ou qualquer  outro  pensador,   crítico  literário  ou  filósofo   para  poder-se  convalidar  as ações  e práticas  políticas da presidente até  se pode  tentar fazê-lo,  pois mesmo   Heidegger  foi  já  censurado  por suas ideias  de simpatia pelo  nazismo  hitlerista. 
       Tampouco  se pode negar   certo  desenvolvimento  verificado  no país   que  data dos  princípios  de governança do  petismo.  O que,  todavia,   é impossível  esconder  é justamente  o comportamento  ético no sentido  mais amplo  do termo do  que veio a ser  a face  desconhecida  da  imoralidade   petista, ou seja,  do que  o partido,  supostamente  considerado  de esquerda, passou  a ser  tendo  em vista  dois  grandes    escândalos: o do Mensalão e do Petrolão.
          Ou, por outra,  as administrações  tanto do Lula quanto da Dilma, agora,  em  início de segundo mandato, não se têm   revelado o mínimo  dignas  de aprovação do  ponto de vista   moral, visto que   governar  não é só  melhorar  parcelas  desfavorecidas  da sociedade  brasileira,  mas   dar exemplo  de  integridade  política  dos atos  governamentais, do relacionamento sem subserviência  com  outros partidos, da escolha de   seus ministros e da posição   do governante   máximo  do pais. Tudo isso  se tem revelado  o oposto do que seria  um governo   de esquerda, cuja   atuação  se conduza  ao bem  coletivo geral e não  o que   tem   feito  reiteradamente   o petismo  atual  como  instrumento de  práticas  públicas  que   levem   o país  a um  patamar  de respeito,  reais  realizações  e   modelos   de atitudes.
   Os recorrentes   ‘malfeitos”   do governo  ao lidar  com  a corrupção, com o tráfico  de influência   política,  com  o gigantismo desnecessário de  ministérios  que  só servem para   a gastança   do Erário  Público, com a  cooptação  com   membros  do partido  julgados   corruptos,  com  decisões  tomadas  na contramão do que  a presidente   prometeu  antes  de ser eleita, i.e., agindo  nos palanques   da forma  mais  populista   possível,  escondendo  da sociedade  os reais  e  cruciais   problemas que  o  governo   concorreu  para  que  resultassem   em malefícios de  vária natureza, econômica,  social,   trabalhista,    de benefícios   adquiridos   com a luta dos trabalhadores    brasileiros, entre outras práticas   demagógicas    que vieram   logo após  o juramento   do novo mandato, ou seja , no  mês  seguinte da certeza de sua  vitória apertada na eleição presidencial,  são evidências  cabais de que  houve má-fé da parte dela e de seus   correligionários.
       Mudando  o approach  na condução  da economia,  a presidente  não o faz simplesmente  para a   pôr nos eixos  a economia   nacional, mas para   captar   recursos  via impostos, inflação  e aumentos  de juros  e alterações  no pagamento de  pensões e do   fundo de  garantia. Quer dizer,  a presidente cortou  despesas   em  setores  que  não devia    mexer.
     Mal  se estava  formando  o novo mandato,   os três poderes   se deram aumentos  altos  para as condições  de  endividamento  do país: deputados, senadores,  ministros,    a presidente,  o poder  judiciário    foram  céleres  em  se defender   de possíveis   perdas  salariais. Por outro lado,  o funcionalismo federal há pelo menos  três anos  não   tem tido  nenhum aumento  do governo, o que, por si  só,  indica   o quanto   o governo    procede  irresponsável e injustamente      contra  os direitos   dos servidores.
       Ora,   além  do mais,   quando  membros    no  poder legislativo ou  judiciário,   que já  percebem  altos salários, ainda  são   mimoseados  com   benefícios   indecorosos do tipo  auxílio-residência , i.e.,  para  políticos  ou   membros  do  poder  judiciário, os quais  são  pessoas que, em geral,  têm a sua  bela  casa  ou o seu confortável apartamento, ou já são  indivíduos  ricos   independentemente  de serem    políticos, assim  agem  na estrutura   do  poder  do Estado,  não há  cidadão  que  não  fique  indignado  contra  essa  ações  que só  desservem  à democracia  e tornam a imagem   desses grupos  privilegiados   uma afronta  inominável  ante os olhos  dos  brasileiros   que   trabalham  duramente  e ganham   salários muito aquém  de seus méritos  e de sua  real e efetiva   contribuição ao  desenvolvimento   da nação. 
   Por esses e outros   muitos motivos que poderia  arrolar,  é que  o mal  da presidente  é de natureza  ética, assim como   são os males dos   outros poderes   que  formam  o Estado  Brasileiro. 

   Fazer elucubrações  que mais   satisfazem   ao paladar   de intelectuais  burgueses,  sofisticados e deliciados que  ficam  com  a complexidade  das ponderações    que  têm seu   eixo  principal  no  mero intelectualismo estéril    a fim de apontar   solucionar concretas   e  exequíveis aos   problemas   brasileiros    com  citações  de  figuras   de nomeada  do cenário cultural   mundial, cujas  ideias,  na  práxis   da vida  social,  política e cultural desse país  ainda periférico e cheio  de   vidas severinas,  pouco  efeito,  no meu juízo,  exercem  ao bem-estar   da sociedade brasileira. Precisamos,  aí sim,  de presidentes,  de políticos, de juízes,  de   membros   do Supremo  que  pensem  em fazer valer   a justiça   dos  injustiçados, que  é a grande maioria  do povo brasileiro. O resto   são mistificações   e  conveniências   de orgulho  próprio de altas funções.  Nada mais. Quereis um exemplo  do que  somos  nós  que   pensamos  em  nossa superioridade sobre os outros? Vou-lhes dar uma sugestão que,  pelo menos, para mim,  é brilhante:  leiam o ato V, cena 1 da tragédia de Hamlet.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Estranho Homem


                               Cunha e Silva Filho


         Aquele  homem  grande,  meio calvo,  corpulento e de cara amarrada  bateu  três   vezes na  porta  principal  com os dedos em punho. Do lado de dentro, eu achei esquisito  a chegada ali  daquela  pessoa. O homem foi logo   dizendo que  tudo estava errado.  Eu e minha  família, isto é,  minha esposa e meu  filho não entendemos  o porquê  do  transtorno  daquele  homenzarrão de cara feia que, sem  motivos,  vinha  nos  importunar  do nada. “Quem  é o senhor? O que  quer de nós? Não fizemos nada errado.A casa é minha, pago meus  impostos em dia e sou  um funcionário  público em final de carreira”.
      “Tudo quase aqui em sua casa está irregular, até a arrumação  da casa, a mesa  não deve   estar neste lugar aqui,  o sofá  é grande demais  pra casa,  a geladeira,  o fogão,  o tanque,  enfim, tudo  na casa  está  irregular.”
“Mas, por que me diz  tudo  isso,  senhor?’ “Não quero  saber de sua  resposta. O senhor, que se diz  dono da casa deve me acompanhar"
    Era noite.  Mas, o que  disse era da boca  pra fora,  pois, como se verá, no final   da conversa,  ia exigir que fosse na manhã seguinte prestar  declarações ao chefe  sobre  todas  as "ilicitudes"  que  conseguiu anotar  numa caderneta.   
  "Vejo,  inclusive,   que  sua cama   é grande demais,  não  tem  o tamanho  adequado  para  um casal  tão  pequeno e com  pouco  peso  se somados  os dois. O quintal  está, da  mesma  forma,   todo  fora da lei,  assim como  os bichos que cria. Eu vou  precisar de ter  documento  seu  comprovando  que o senhor  foi quem   comprou   os bichos: galinhas,   patos,   uma tartaruga,  um cachorro vira-lata e um gato  branco.E até os passarinhos nesta gaiola  não são permitidos   por lei.Vou ter que levar  bichos  e aves”.
    Esqueci de  informar que  o  brutamontes  estava acompanhado  de um   homem   pequeno,   de olhos  vesgos  e  trazia, debaixo do braço, uma pasta   marrom, dessa  pastas que  comumente  vemos  na  cidade  gente  carregando cheia de  papéis com ares de   burocrata  certinho  e bem organizadinho.
          “Se o senhor  não  arrumar sua casa conforme  as recomendações   legais,  será  daqui  expulso e até mesmo,   caso   reclame de alguma coisa, sairá preso, perderá  o emprego 'para o bem do serviço  público.’   E nem  pense  que  conseguirá algum  advogado  pra defendê-lo. De nada  adiantará, se for o caso de prisão,  será prisão mesmo” Habeas corpus para nós,  diz  o armário, é conversa  mole  de excesso de proteção  a criminoso”.
         “Mas, nada fiz  de errado,  levo  uma vida  correta,   não tenho vícios,   não tenho, ao que pareça,  inimigos,  e  só tenho  um hobby,  o  de  colecionar  velhos   livros  de matemática,  matéria  que  sempre  estudei, dela fui  aluno exemplar. Como são,  em geral,   livros   raros ou  de  décadas  atrás,  encomendo-os pelas livrarias virtuais. Eles chegam  sem problemas. Veja, ali naquela   estante,  quanto  deles   coleciono. Se disponho de mais tempo,   leio-os  e  resolvo  os problemas  propostos  por seus autores. Até os mais cabeludos.Alguns deles  têm a chave dos exercícios, destinada aos  professores, então designada “Parte do Mestre” (se não me engano,  introduzida  pelos  Maristas   da Coleção  primorosa,  a F.T.D.) para  que  confira  se  acertou  resolver  os problemas  ou  não.”
   “O senhor está me fazendo  perder  o tempo  com  conversa fiada. O meu  assunto  aqui  nesta casa é vir  cumprir  o que meu chefe  me  determinou e lembre-se  de que eles são  tão sensíveis  quanto   os robôs e os programas   de computador. São frios e calculistas e, ao  lidarem com  o ser humano,    pouco  ou  nenhum valor lhe dão. Portanto,  vá cuidando do que  tem  a declarar ao chefe  superior. Aqui está  o endereço  a que deve comparecer, leve  o máximo  possível de documentos e notas   fiscais  de compras  dos objetos   que  a sua casa possui. O grandalhão  entregou-me um  papel  timbrado e  me  pediu   que o assinasse. O comparecimento  ao chefe seria  no dia seguinte,  às 9 00:hs.
     O brutamontes, acompanhado do homúnculo, saíra  da casa sem  despedir-se. Ao contrário,  bateram  com a porta e sumiram  para um  lugar   desconhecido. Era noite.    Em casa, agora sozinhos,  não sabíamos   o que  dizer, tomados de medo  e desespero.  Descobri, de repente,  que  apenas mal  acordara  de um pesadelo e, agora, nem me recordo bem  se  os fatos se deram  conforme  o relato  precedente. Me acuda, leitor, que o mundo é louco mesmo  e sem sentido.
   Não  viu o que fizeram   com  aquele famoso  personagem de Kafka, preso  sem saber  por quê? E mesmo  a figura real  de  Graciliano Ramos,  o que de errado  fez  pra merecer  uma prisão no Estado Novo? Experiência  de preso injustiçado   que  lhe rendeu literariamente  uma grande  obra,  Memórias do  Cárcere. O pai  deste narrador também  foi preso em 1935, no mesmo  período  discricionário,     injustamente  somente  porque  tinha  em casa  uns livros marxistas que, de resto,  tinham  sido deixado na  casa dele  por um  seguidor  do comunismo,   o qual por acaso  estivera de passagem  por Amarante,  cidade  piauiense.Um dedo-duro  denunciara  meu  pai  que,  por isso,   amargara  um período de cadeia em Teresina. A experiência de prisão de meu pai o inspirou a escrever  um  dos  melhores capítulos  do  seu livro, Copa e cozinha.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Tradução de um poema de Henri Gilarès





Le chemineau


Il s’en va, le front lourd, l’air las, le long d’un mur,
Car il sait que son coeur n’est plus fait  pour la joie,
Lui que fuit tout le jour et de peur qu’on ne voie
Sous le faix qu’est le sien, ce qu’il y sent de dur…

Des chants gais e des ris, il n’en a rien,  pour sûr!
Le soir a mis sur lui, tel  un poids que le broie,
Le deuil de tous les  biens, qui le suit, veut sa proie.
Pour lui, plus rien de bon, plus rien que lui  soit pur!..

.”Où vas-tu de ce pas? --- Eh bien! je bois la lie!...
Et sa voix n’a plus rien de ce qui fait les forts;
Et sa main, vers de le ciel, a cru voir tous les torts!...
“Tiens, prends ce peu pain…” Quand le mal  en  ta vie
A mis des pleurs de sang, là-haut, du fond des cieux,
Le Dieu né loin de tous a tout vu  dans  tes deux…


O Mendigo

Lá vai ele, o olhar  fundo, a lassidão junto à parede a caminhar.
De seu coração  a alegria não partilha.
De dia  some a fim de que não lhe vejam
 O fardo e a aflição em que  vive...

No seu viver não há  lugar  para  alegria e risos.
Sobre ele, esmagando-o com seu peso se abateu a noite
Despojado  dos seus bens, seu  destino segue,  sua vítima procura.
Segundo ele,  nada de bom e de puro a vida lhe reserva!...

“Aonde vais  com tanta pressa? Queres saber? beber a borra fétida!...
Na sua voz de resistência  não há  mais sinal algum.
Erguida ao céu sua mão só injustiças  vislumbra.
“Ei, leve esta lasca de pão... Quando o mal de tua vida
Prantos, se fez sangue, lá nas Alturas, dos confins  celestiais
Longe de todos, o Deus nascido em teus olhos  tudo viu...!

                                                                      (Trad. de Cunha e Silva Filho)


Nota do Tradutor
       Como pode o  prezado leitor  verificar, os versos  do  poema  se compõem de  palavras  monossilábicas, por exemplo: “Il”, “s’en “, “va, ”  “le”, “front.” Daí ter o poeta  intitulado  a composição de Poèmes monossilabiques. Entretanto,  por impossibilidade de vertê-los nestas condições, o fiz  sem esse traço  distintivo
     Sobre o autor  do poema , até agora,  tive dificuldades de obter  informações  biobibliográficas. Por esse motivo,  não coloquei  a data de nascimento e de falecimento segundo venho costumeiramente  adotando  em minhas traduções. 

   O pequeno  poema foi  extraído do volume 1 de La grammaire par la langue,  de J. de Matos  Ibiapina. Porto Alegre: Editora Globo,  1936, p. 149-150. Esta  obra pertencia  aos livros de meu pai e leva a  assinatura dele na página de rosto. Se, por acaso, algum leitor  de poesia francesa  puder  me fornecer mais  dados  sobre Henri  Gilères, me prestaria, assim,   um  grande favor.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Da literatura e de intelectuais


                                                Cunha e Silva Filho


               Após uma  já longa   experiência de vida, de leitor e de quem lida  com a  escrita, seja no  meio  acadêmico, seja fora dos muros  da universidade, posso distinguir dois  tipos  principais de  intelectuais: a) os que  só vivem  para a literatura; b) os que, no seu labor  intelectual,    imbricam  literatura  e  prática   política.
             Ao me   referir à prática política,   quero significar  aqueles  estudiosos das questões literárias, seja no  campo  poético, seja, no da ficção ( romance, conto,  novela,   seja finalmente na dramaturgia), que  se expõem a seus leitores  por escrito  ou  verbalmente,   sua visão  da realidade brasileira    tomada em todos os seus  ângulos. Não somente se expõem de corpo e alma  sobre temas  que afligem e dizem respeito  à condição  de  ser brasileiro,   de cidadania,   de  posição ideológica, religiosa  e política.
              Não é preciso citá-los  todos, nem no passado nem  no presente. O leitor,  que acompanha  a história  da literatura brasileira e estrangeira,  sabe a  quem me  reporto.  Ele há de  perceber que  a minha preferência recai  sobre  os  escritores, que deram  atenção igualmente aos aspectos  sociais,   não diria  apenas engagés,  à direita ou  à esquerda, segundo   costumavam ser rotulados  autores  como  Sartre,  Lima Barreto,  Oswald de Andrade,    Jorge Amado,  Graciliano Ramos,    Álvaro Lins na crítica,     Camus,   Máximo  Górki,  Zola, Leandro Konder como filósofo, Carlos Nelson  Coutinho como  ensaísta,   Plínio Salgado,  Astrogildo Pereira como ensaísta,  Nelson Werrneck Sodré, como ensaísta,  e historiador,  Antonio Candido,  como crítico, ensaísta  e historiador, Carlos  Heitor Cony, Fausto Wolff,    João Antônio, Plínio Marcos como dramaturgo, Dias Gomes, como dramaturgo,   Otávio  Paz,  José Guilherme Merquior como  pensador,  crítico e historiador, Tristão de Athayde, como pensador  e crítico, José Saramago,    Vargas Llosa,  Ferreira  Gullar, como  poeta e cronista,  Roberto  Schwarz, como  crítico. Seria,  entretanto, digno de nota assinalar  uma circunstância: alguns  deles ( e quero, neste  caso,  aludir apenas aos brasileiros) segundo os rumos   da  história política,  fizeram  mudanças  político-ideológicas ou  se calaram  diante das   prepotências  de partidos  no poder   aos quais  já  pertenceram.  Apenas aqui  foram  citados  a esmo algumas figuras de destaque,  que,  na sua atividade   intelectual,   em jornais e livros,  dão conta   de questões  que   falam de perto   sobre  as condições  em que vive o  povo, uma sociedade. 
      Por outro lado, a vida  intelectual  estritamente   isolada das discussões  que  afetam  a sociedade,  o mundo, o destino  dos povos  me parece  incompleta, como se ainda  se apresentasse presa a uma “torre de marfim.” Respeito,  no entanto,   o comportamento   desses escritores. Questão de opção de cada um.
          Não desconheço  que alguns  ficcionistas propõem  questões  que  estão   intimamente  conexiondas  com  problemas sociais  e de condições de vida  de seus  personagens nos vários  níveis  sociais, ou que  ensaístas de várias matizes, ao  discutirem   temas  humanos   e  mesmo  filosóficos,  se mostrem  com   posições críticas sobre a  sociedade      vistas    através de  abordagens  comparativas. Não é  possível  que  o intelectual   se  restrinja  a parâmetros  teóricos     exclusivamente    de ordem   estrutural e técnica. 
           Contudo,  não  vejo  com  bons olhos   uma  posição    de um escritor    meramente    considerando   a obra literária   como  artifícios  técnicos,  um   produto pensado   nos  escrínios   do laboratório seco  e insensível. Por ser a  obra literária   fruto  da imaginação   humana e criadora, o conjunto  de  elementos  que  a constituirão não  pode  perder de vista  o  seu  fundamento   individual,  social   e existencial, forjado na experiência,  na memória  e na formação   literária  por que  passou  o criador da obra.
         O que  a velha crítica definia  como    autêntica   criação  literária  seria   que  esta   fosse  resultante   de  visões  do mundo e do homem numa  determinada   sociedade   e em tempo  demarcado. E se  ainda se  fala do mistério  da criação literária,   é porque  tal  “mistério”  está   indissoluvelmente  associado  a estratégias  de  composição  da linguagem   literária  e da mesma forma  da predisposição  do autor  para   criar mundos  fictícios  que nos dão   a insuperável    impressão   de que estamos,    enquanto  leitores,  vivenciando   fatos,  ações,   conflitos de  situações   determinadas  e convincentes   da existência humana a ponto de  embarcarmos  na aventura da narrativa -  um mundo que  se sustenta por si mesmo -   ou  no conjunto de imagens   poéticas   elaboradas  que nos emocionam,  nos fazem   refletir  sobre  a vida, os outros e nós mesmos. 
      A denominada catarse grega vale  igualmente  para  a ficção,  a poesia e mesmo  para o ensaio, o qual  pode  provocar  o sentimento da emoção   estética e  a identificação ou dissenso    teórico-conceitual  com  o autor.  Veja-se o  exemplo  que  encontramos  na afirmativa  do velho  crítico  Agripino  Grieco ao  comentar   personagens de Jorge Amado: o romance ou  qualquer outro  tipo de ficção forçosamente teria  que  ter  personagens  de “carne e osso.”    
       Ora,  essa expressão, atualizada,  diante da  multiplicidade  de abordagens  críticas, elucida   bem  a questão  crucial   do que  faz um   romance  um artefato  pleno de vida,  de  experiência  e de convencimento,  de uma  invenção,  pelos múltiplos  recursos da  linguagem   literária, de uma  sociedade,  e do  indivíduo particularmente, como  realidades  “possíveis.”
       Se o leitor,  o receptor,  não  é atraído  para  mundos   criados   com   tanto  discernimento e que  permitem  um aprendizado, uma fruição,  um  acompanhamento, passo a passo,   do que  ocorre  com  a narrativa  e a vida de seus  personagens e não se confunde com   a referencialidade   chã  e  simplista  do cotidiano  da  realidade    temporal, espacial  e psicológica, então  a composição  desse  mundo   inventado se nos afigura   artificial,   nos causa    dúvida  sobre a sua  “veracidade”  tanto  da história narrada  quanto   do arcabouço   ficcional  construído  com  o que  Vitor  Manuel  de Aguiar e Silva chama de “competência literária”  diferenciando-a da “competência linguística.”
     Existe um atributo,   um dado  pré-determinado  que chamamos  de talento, ou de vocação,  ou  de predisposição  inata que, no meu  juízo,  não pode ser  desprezado  no conjunto  do conceito  geral   de  criação artística  em todas as suas modalidades. E essa  talento   não se cinge apenas  à criação   literária; pode-se  localizá-lo  igualmente  nas vocações   de outros  talentos  : nos ofícios,  no campo  tecnológico,  no campo  científico,  nas profissões liberais, na política, nos estudos filosóficos, enfim, em  inúmeros  campos  da atividade  humana.
        Um oficina de  criação  literária  não faz um grande  escritor se este não traz em seu  intelecto  a chama  de criador   inescapável. Não se é escritor  porque  o queiramos, mas  porque  somos   tragados  para  os  braços   do mundo  da criação,   da linguagem com fins   estéticos,  na luta  do escritor   com  o trabalho   espinhoso  da formalização   do  objeto  literário. A técnica  da criação  literária  é valiosa  e deve ser  cultivada,   aperfeiçoada e, ademais,   desenvolvida  com   a observação   das leituras  dos  grandes  escritores de todos os tempos.A consciência do ofício  da criação  deve estar sempre  presente no ato de escrever   vidas,  problemas  humanos,   aos quais  se  juntam   questões de toda ordem e em  terrenos   múltiplos: a natureza,  o espaço físico,  o tempo,   a arquitetura  da obra.