sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A maior alegria de um escritor




Cunha e Silva Filho


                Talvez o título desta crônica seja um tanto óbvio para algumas  pessoas, leitores, amigos, ou até mesmo   adversários; dos últimos,  quem não os  tem aberta ou  na encolha.?
Não sei  se todos  que escrevemos, num gênero literário ou  em  diversos gêneros, veem pela mesma  ótica  esse assunto  que trago à baila, mas para mim  a melhor  alegria  é saber que alguns me leem, seja  por um  vez só , seja por varoas  vezes, seja  por muito tempo. Sei que nem sempre  estamos   com a vontade de ler  um colunista  ou  outro. Tiro por mim. Passo  muito tempo  lendo  um  escritor. Depois, por um motivo  ou  outro,  paro de o ler. Procuro, então,  ler outro ou outros e assim  sucessivamente. Ocorre,  também  que, passado  algum tempo,  volto a ler  aquele/e   escritor,  cronista/s – e é de cronista que  estou  de preferência  tratando  nestas linhas -, que não vinha lendo  há algum tempo. Volto a ele ou a eles e com ele ou eles faço as pazes naquele sentido teórico de  “pacto  narrativo”  entre o  escritor e o leitor.  
Contudo,   essa alegria,  repito, é imensa,  preenche e amacia o nosso  ego, a nossa  auto-estima,  a confiança  de que   demos   algum recado a alguém que conosco  se afinou ou se identificou, ou concordou  com  as nossas ideias, ainda que com  algumas ressalvas,  o que é natural porque seria grande pretensão de um escritor  ser tão narcisista a ponto de    antecipar que  todos  gostarão de tudo  o que  escreva. Seria isso  pedir  o  impossível. Nem os best-sellers teriam  essa pretensa,  uma vez que  outros tantos leitores  não gostam  desse tipo de autores.
Uma  vez um professor  universitário de Letras,  ele próprio ficcionista,  me confessou: “eu não entendo  por que  Paulo  Coelho  é tão vendido?  Eu faço  das tripas coração,  aprimoro  minha  técnicas narrativa,  conheço  a estrutura  de um romance  por dentro e por fora,  e cadê os leitores  que não me leem? Estou agora, me lembrando de um cronista que certa  vez me  segredou: “Que diabo, escrevo,  escrevo, escrevo  e ninguém me faz um  simples comentário sobre o que  falo. Só pode ser  perseguição dos leitores que não sabem apreciar a importância  da minha  escrita e dos  temas que  abordo   com   o máximo cuidado  e amor  ao ato  da escrita, aos cuidados  com a linguagem. Me dá às vezes vontade de gritar : comentem meus  textos,  deixem de ser  ruins  e injustos comigo, não veem que tenho valor,  que domino  os meus recursos   de escritor!” Meu amigo só faltou  afirmar que  era merecedor de um  Nobel de Literatura...
O fato é que  ninguém pode  obrigar   leitores  a ler seus  textos.  O prazer  da leitura que se encontra  num autor  advém  das afinidades, da capacidade que o autor  tem  de atrair  seus  leitores  para  as suas  mensagens, seja em que  gênero for. Se o autor consegue captar a atenção do leitor levando-o  a  partilhar de muitas  de suas ideias e posições  diante dos acontecimentos da vida,  se o autor  transmite no que  escreve alguma verdade  e sinceridade, se de alguma  maneira  estabelece um diálogo  proveitoso   com  quem o ler,  se  o autor  como    intelectual  demonstra  reunir  em sua personalidade um conjunto de   elementos    significativos  e  válidos  como   conceitos,  reflexões  e posições  assumidas  com autenticidade com  relação  à complexidade    e aos desafios  da  existência  considerada  social,  filosófica, histórica,  culturalmente, então  é bem  provável que  o leitor seja por ele  conquistado.
Há poucos dias  li de alguém  que, se referindo  ao  colunista da Folha de São Paulo,  Elio Gaspari,  comentou    que esse  jornalista nunca escreve os seus textos  na primeira  pessoa. Impessoalidade pura  que,  no entanto,  não me agrada  muito. Gosto dos textos que  têm  nervos,  frêmitos,  emoção,  sensibilidade,  subjetividades,   textos em que  palpita a vida ainda que  cuidando de temas dos quais se exige objetividade Aprecio antes,  opinião  pessoal,  o jornalismo doutrinário.. Um certo  tipo de jornalismo  atual  se esmera por  ser destituído  de  alma. Na reportagem pura,  sim,  é possível    revesti-la  de  objetividade, de secura,  de ausência  de espírito. Na crônica,  não, ela  precisa do  dado  subjetivo,  mesmo  lírico, como  o  encontramos  em Rubem Braga,   em Vinicius de Moraes,  em  Fernando  Sabino,   em Drummond,  em  Ferreira Gullar, entre tantos outros. 
O maior exemplo desse  fato  imponderável,  que é o   número  de leitores  desejados  pelo autor, se pode  ver  naquela  nota  introdutória – “Ao leitor” - do  narrador-personagem, autor-defunto  Brás Cubas, em Memórias  póstumas de Brás Cubas,[1] de Machado de Assis. Ao se “admirar” e  se “consternar” que Stendhal  tivesse  declarado   que teria      escrito um de seus livro  para cem  leitores,  o narrador-personagem de Machado  se aproveita  para  usar de sua  verve irônica estendendo  a ideia de escassez de leitores  para auto-ironizar a quantidade de leitores que poderia   atingir  a sua  própria  obra  apresentada ao leitor,  fazendo-lhe  um prognóstico muito à feição machadiana  de corrosão  e ao mesmo  tempo  jocosidade: “O que não admira, nem provavelmente consternará é  se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem  cinquenta, nem vinte, e quando muito,  dez. Dez? Talvez cinco.” 
Ora,  neste  breve nota ao leitor,  Machado se põe visivelmente na condição  de crítico,  de analista,  se utiliza da meta-ficcionalidade,  ao falar  de alguns de seus  processos  de criação literária pela boca  do narrador  Brás Cubas: a) Para  ele,  o romance  que o possível  leitor  vai ler  é por ele  definido  como “obra  difusa”; b) Adotou  a “forma livre” de Sterne ou de  Xavier de Maistre; c) Coloca em  dúvida se  na obra instilou  algum  “pessimismo”; d) Afirma ser “obra de finado;”  e) Foi escrita com  a “pena da galhofa” e a “tinta da melancolia”;f) Hesita quanto ao  resultado   dessa mistura, se assim posso  afirmar.
Falando ao eventual  leitor, tem  dúvidas quanto à classificação  de gênero  do  ponto de vista do leitor que, no caso,  corresponderia,  segundo  Brás Cubas, a dois tipos de leitores: “ gente  grave” e “gente frívola.” Quanto ao gênero de ficção, ao primeiro tipo de leitor  pareceria  ser  um  “puro romance”;   ao segundo, não seria  aquela narrativa a que  estava acostumado. Tudo, porém, é inferido  de  modo   propositalmente indeciso. Concluindo:  o  narrador-analista  se vê  diante de um  problema : constata que  a narrativa não  terá    uma  acolhida favorável de nenhum dos dois  tipos de leitores, o que  deixa  o narrador  num beco sem  saída quanto  à validade  do texto que está  oferecendo  ao leitor.
Isso tudo não passa de um  artifício  retórico do narrador Brás Cubas, ou seja,  o de  desconstruir,  construindo, o de  negar , afirmando,  o de    não meta-ficcionalizar,  meta-ficcionalizando. Em outras palavras,  o analista- narrador tanto  faz  o que diz quanto  não  faz  o que afirma.Por cima de tudo,  há, no segundo  parágrafo da  nota “Ao leitor,”   uma retomada  do tema  do relacionamento  entre  autor e leitor, e, agora,  o  analista-narrador  já fala em  captar as simpatias  do leitor e para isso  cumpriria  atender a alguns  procedimentos  retórico-técnico-narrativos, colocando-se, assim,  o analista-narrador na posição  de teórico:a) Evitar um  “prólogo explícito e  longo;”  b) O melhor  prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de m jeito obscuro e truncado.”
No que concerne ao  item “b” do parágrafo acima, pode-se  deduzir que    o hermético  tem lá seus  efeitos  válidos e sua razão de ser.   Mais adiante,  o processo  meta-ficcional  se torna,  nesta  nota  “Ao leitor,”  uma reafirmação de que  o trabalho  da criação  ficcional  das “Memórias” fornece ao  leitor  especializado, ao crítico,  a consciência  artesanal  do ofício  da escrita em elevado  nível  de qualidade  artística e,  por conseguinte,  para o leitor  comum, assim  podemos   inferir,  seria para ele  “desnecessário ao entendimento  da obra.” No final  da nota  “Ao leitor,”  o narrador lapidarmente dá a entender  ao leitor que o fundamento  da  obra ficcional poderia bem  corresponder  a esta   afirmação: “A obra em si mesma  é tudo” [..]
Ou por outra:  o leitor  é a  última e primordial  instância  na fruição  de uma  obra  literária. Tudo o mais  é matéria  do artista, do seu talento,  da sua competência  e da sua função.Por outro lado,   o autor se sente   compensado   com a  boa recepção  que   possa encontrar   junto aos leitores  e este é o motivo  pelo qual  dei o titulo  a esta crônica Todavia,  para o analista-narrador, para Machado, ao final de contas, se o leitor  não se sente atraído  pelo  que o narrador lhe está   relatando,  só lhe resta levar  um  “piparote.”  Machado  não tem culpa de um  ouvido  torto. Machado  é mutável. Brinca, ironiza  e, desse modo,    na folha  impressa  refaz a vida.
.Entre o  afirmar e o  negar,   entre o dizer  e o ocultar, o analista-narrador  desvela   e dessacraliza  o chamado  “ilusionismo  narrativo,” ao expor  ser a obra de arte  um produto de  imaginação, uma realidade  artística   feita  de  linguagem,  de palavras,  de artifícios  técnicos  esteticamente  “harmonizados” e, o que é mais  fascinante,  dando  sentido de autenticidade  ao que  o  texto  transmite de realidade humana.  Ou seja, a   Literatura  faz-se com palavras, mas estas  nos dão  uma sensação  profunda e total  da existência e por isso  nos comoverá sempre que penetrarmos   na leitura  de um  romance,  de um conto,  de um  poema.




[1] Cf.  ASSIS, Machado de. Memórias  póstumas de Brás Cubas. In:  Obra  completa  -romances. Organizada por Afrânio Coutinho.  vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1997, p. 513.

Nenhum comentário:

Postar um comentário