Cunha e
Silva Filho
Vivemos num mundo asfixiantemente impessoal, cercado de gadgets,
de aparelhos de comunicação, numa palavra,
de máquinas eletrônicas, afora todas
as consequências do espaço
virtual em que estamos afundados até o
pescoço.Em casa, dominam o
computador, a televisão, o rádio,
os tablets, os celulares.O reino, se assim podemos chamar, da virtualidade tem algo de mágico, mas
é um mágico da objetividade, das distâncias do “eu.” Quem com ele mais se afina são as novas gerações, as crianças de agora, que parecem
nascer já com a vocação de lidar
com todas esses equipamentos eletrônicos, ao passo que os mais velhos, os bem velhos
sobretudo, sentem um certo
receio de se aproximarem desse
novo mundo. Com eles não se identificam,
podem até deles gostar ou odiar,
quem sabe.
Na rua,
pessoas falando em celulares,
absortas nos seus problemas pessoais mais imediatos, mais parecendo estar falando
sozinhas como se fossem loucos.
Realmente, antes do advento dos
celulares, quando alguém,de repente, passava ao nosso lado falando sozinho,
a única conclusão que tirávamos era
de que se tratava de um desvairado
conversando sozinho. Hoje, já não nos
causa tanta estranheza quando alguém fala ao celular. Quer dizer, nos habituamos aos poucos
com a força e a
influência da tecnologia.Há poucos anos, saíam
notícias de que o uso imoderado de celulares causaria
câncer nas pessoas.Agora, ninguém
mais fala nessa possibilidade. Às favas, o mal
que possam causar, o que querem mesmo
é falar, falar, falar.
Porém, não é
este exatamente o assunto que me
traz a esta coluna. O que lhe quero relatar,
leitor, é algo que está acima do
puramente racional, lógico,
cartesiano. É algo que se
situaria na esfera da fé religiosa. Tem-se fé ou não se tem. Acredita-se em Deus
ou não, quando nos alinhamos
aos ateus. Ou, seguindo outro
caminho, não podemos afirmar nem negar a existência de Deus, o que nos poria na posição de agnósticos. Ficamos, neste caso, em cima do muro.Neste domínio da fé e do
espiritual, já mesmo ouvi dizer que alguns padres – acredito que
são bem poucos - não
acreditam piamente em Deus.
Em questão de
fé, acho admirável quem tenha
esse sentimento, com toda a força de sua convicção. Me emociono
profundamente quando vejo
alguém orando e, no seu olhar,
percebo claramente a pureza do senti mento que lhe vai na alma, no semblante, nos gestos,
nas atitudes. Vejam os peregrinos no
interior do país. Veja os devotos dos santos padroeiros,
veja a multidão nas catedrais, nas igrejas, das mais ricas e belas às mais humildes. Veja ainda os devotos
do padim Ciço, os peregrinos de Aparecida..Veja os peregrinos que
visitam o Vaticano, a Basílica de São Pedro e querem receber a bênção papal. Veja os que
creem nos três
pastorinhos de Fátima, em Portugal. Veja os que
viajam a Jerusalém, a fim de
percorrer os mesmos caminhos
trilhados por Jesus ou visitam a
Igreja do Santo Sepulcro, ou o
lugar do Horto das Oliveiras, ou vão a
Nazaré, ou molhar os rostos no
rio Jordão, ou orar junto
ao Muro das Lamentações.
Quem não se comove
ao ler o Velho e o Novo
Testamento, ou as hagiografias dos santos
famosos, ou as leituras de Santo
Agostinho? De Tomás de Aquino? Ou a Oração de São Francisco de Assis? Quem não se enternece
também com aquele conto
maravilhoso de Eça de
Queiroz, o “Suave Milagre?” Quem não aprecia
os poemas religiosos do
padre José de Anchieta?Quem não se sente confortado e protegido
com as orações da Ave-Maria
e do Padre-Nosso? Acredito que
até os ateus...
Hoje
mesmo, pensando haver perdido
minha identidade, fiquei desesperado e pus toda a família em polvorosa,
com todos procurando, em lugares os mais
impensáveis, onde eu havia
colocado a identidade. Chegamos ao ponto de
sair de casa e perguntar nos lugares
por onde andamos, um
restaurante na vizinhança, a livraria do Shopping, uma farmácia onde
compramos um remédio. E nada de
alguém dizer que havia
encontrado o objeto.E olhe,
leitor, que só hoje dei conta de que
a identidade tinha sumido.
Contando os dias, a provável
perda teria acontecido no domingo, dia 3
de agosto. E só dei conta do sumiço da
carteira porque hoje
teria que ir ao banco pagar contas. Um Deus-nos-acuda. De
repente, me vem à lembrança aquele santo
popular, São Longuinho, que,
segundo informações colhidas no Google,
só é reverenciado na Espanha e no Brasil. As origens dele
são imprecisas. Contudo, teólogos
e estudiosos de hagiografia afirmam ter sido ele um centurião
romano, de nome Cássio, convertido ao
Cristianismo e por isso foi
martirizado. Ao se converter, fugiu
para Cesareia e, ao ser descoberto, foi
decapitado.
Conta-se que, na condição de soldado
e escolhido para vigiar Cristo na Cruz, acertou
o coração de Jesus
com uma lança e, ao fazer isso,
recebeu um jato de sangue nos olhos. Acontece que Cássio sofria de uma
doença da vista. Há relatos de que sofria de ‘cegueira espiritual,’ segundo informa o padre
Aparecido Pereira, pesquisador da vida
dos santos.” O respingo do sangue de Cristo
curou-lhe a enfermidade. “instantaneamente.”
Regressando pra
casa, outra maratona vasculhando tudo,
armários, gavetas, livros,
papéis, envelopes etc. etc. Nada
de aparecer a identidade. Entretanto,
enquanto procurava a carteira de identidade, me veio a ideia de invocar a ajuda de São Longuinho.Só no meu íntimo passei a lhe pedir que me fizesse
encontrar o objeto desaparecido. Me deu vontade de reabrir um dos armários, revirei
umas pastas e, vendo tudo com cuidado,
tive a impressão de que do nada
surgiu a carteira de identidade. Gritei: São Longuinho! São Longuinho!
Obrigado!
Tudo à
nossa volta serenou. Chorei lágrimas
de felicidade, de alívio,
de saber que, não encontrasse
a identidade, teria aqueles problemas todos que o brasileiro
tão bem conhece: ir à Delegacia de Polícia fazer o boletim de
ocorrência do objeto
perdido; o medo que se tem de um objeto
dessa espécie cair nas mãos
de marginais; tirar foto para
um novo pedido de identidade,
enfim, uma série de problemas.
Desgaste inútil
andando
pelas ruas e lugares em que
poderia encontrar o objeto
perdido. São Longuinho foi a
salvação da pátria, ou melhor, do lar. A
história de São Longuinho é folclore? É. É uma simpatia popular entre nós? É. Mas, a verdade é que a fama desse Santo querido e amado já correu país afora.
Já é antiga e a minha esposa me conta que a avozinha dela costumava
invocar São Longuinho nas horas
do aperto, i.e.,
nas horas das perdas, assim como
ainda falava aquela avozinha que, ao se
receber o milagre, a agente tem que dar
três pulinhos e dizer três vezes:
“Obrigado São Longuinho.”
Folclore ou não,
o certo é que São Longuinho
me salvou: “Suave milagre.”
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