sábado, 11 de setembro de 2010

TRAVESSIA

TRAVESSIA

A grande questão agora é enfrentar a realidade atual decorrido meio século. É uma vida. Se falarmos em idade, naquela época estava em plena adolescência. Tempo de sonhar acordado, de projetar um futuro meio fosco, com muitas imagens passando na minha frente, imagens que me faziam por vezes chorar. Agora, não me lembro por que “chorava” lá na minha terra natal, deitado numa rede, num quarto meio escuro, com uma a janela dando pra rua, e duas portas que me levavam a outros dois quartos, um de papai e mamãe, e outro de meus irmãos. Ah, me lembro de que havia mais dois quartos, um que ia dar na sala de visitas, ampla sala, arejada. O outro mais parecia destinado a um pequeno escritório, mas nele dormia mais um irmão.O quarto dava pra rua e não tinha janelas, só três portas. Raramente, abria uma delas. Lá, de dia ou de noite, usava como escritório.. Tinha uma mesa grande, com duas cadeiras, uma de frente pra outra.Foi ali que comecei a despertar para a palavra escrita. Éramos onze. Hoje só restam nove. Ainda bem que não houve tantos desfalques. Contudo, dois deles, afetivamente, valem por milhões: os meus pais, hoje em outro plano, o do mistério final revelado, ou não. Saber, quem há de? Nunca se sabe onde tudo passa a ser escuridão a não ser que pendamos pro kardecismo ou outros princípios religiosos ou científicos. A filosofia é útil, mas não pra explicar o além-túmulo.
Em cinquenta anos, quanta mudança em tantos aspectos! O país é outro para o bem ou para o mal. A inauguração de Brasília.. A conclusão do curso científico. A viagem pro Rio. A universidade. A troca de carreira. Muita coisa deu certo. Outras não. Não é assim a vida? A mudança política. O radicalismo militarista de 64. As perseguições. O AI-5. A tragédia brasileira Os exilados. Ou auto-exilados. Os futuros oportunistas. Fiquei de fora. Papai não me queria nas fileiras contra a opressão e o autoritarismo. “Não filho, tenha cuidado. É perigoso demais. Podes perder a vida. Te quero vivo e feliz”. Concordei com ele. Não me arrependo.
Cinquenta anos... O mundo lá fora também mudou, e muito: guerras, conflitos, um genocídio miserável. Desbundes. A ruptura do bom-mocismo conservador. A guerra fria. A queda do Muro de Berlim. A derrocada soviética. O homem na Lua. O vendaval neoliberal. A globalização. O fim (?) da História. O homem deixou de amar socialmente. Tudo se fragmentou. Perdemos as referências. O avento das novas mídias: o computador, a internet, o celular. O universo virtual e a era dos e-mail, dos Orkuts, do Twitter, do e-book. O efeito estufa. O risco da destruição do Planeta. As guerras cibernéticas.
Amigos perdidos hoje, “dormem profundamente” como no poema de Bandeira. Ubi sunt? E eu aqui, sessentão, já penso nas aproximações do percurso derradeiro. Fiz o que pude. Me formei. Tenho família, filhos, netos. Liguei as duas pontas da vida? Lá vem Machado. Ainda não, mas não custa chegar. Até veio a aposentadoria com todos os seus percalços e pequenas alegrias, pelo menos a de maior tranquilidade, a de não mais ser obrigado a horários rígidos e a de obedecer como o “soldado amarelo” de Graciliano. A voz foi recuperada, voz própria, voz ativa, sem sequestros e interditos vindos de cima, ou seja, sem prepotência nem mandonismos.
Cinquenta anos... Uma porção de tempo onde tudo quase já nos aconteceu nas coisas básicas do quotidiano brasileiro. “E agora, José?” A festa acabou? A festa quase acabou, pois ainda há ar pra respirar, há tempo, não tanto, pra amar, e há uma esperança tênue de, qualquer dias desses, recebermos uma notícia boa, não estas notícias miúdas do ramerrão, mas a grande notícia, aquela que nos tornará plenos de felicidade quando nada nos poderá faltar, porque tudo já terá acontecido. É bem possível que esta grande notícia resumiria aqueles sonhos acordados do verdes anos da adolescência, quando me encontrava deitado na rede chorando na projeção do futuro. Só, agora, entendi por que chorava tanto naquela época, naquele quarto meio escuro e naquela casa de tantos irmãos. Cinquenta anos... .É uma vida, leitor, que não pode retroceder. E agora? Teria Drummond a chave?

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