sexta-feira, 9 de julho de 2010

O perdão

Cunha e Silva Filho


“Não adianta, Euler, revolver as cinzas do passado. Perdoar é um ato de grandeza no ser humano. O que não pode é permanecer na dúvida atroz, que só mal faz ao espírito e mesmo lhe traz prejuízos pra saúde. O passado está enterrado.Você me diz que tem dúvidas com respeito ao que realmente ocorreu. Sim, concordo com você, mas o perdão uma vez concedido a alguém, vai aliviá-lo de tudo. Talvez na alma sua, sensível, vá ficar um resíduo do que nunca aceitou inteiramente. O tempo é remédio para muitas coisas. É remédio e , às vezes, uma forma de cura por resignação.”
Naquela aula de literatura portuguesa, ele não conseguia se concentrar no que estava sendo expondo, logo ele que era vidrado nessa disciplina. Ficava ali sentado na sua carteira, com o pensamento distante, confuso, com imagens que o feriam profundamente, imagens que compunham quadros da realidade e de atos humanos que o repugnavam só de pensar que podiam estar acontecendo. Parecia-lhe estar assistindo, numa vasta sala de exibição, a um filme com cenas repulsivas, em imagens que se embaralhavam com a sua própria experiência de vida. Não se diz comumente que às vezes a vida imita a arte?
As imagens que apareciam eram fortes demais. Suportá-las quem havia de ? Só se fosse a um idiota que não discerne os limites éticos da vida, aquilo seria compreensível. Mas, não, não nascera para ser pisoteado assim como homem, sobretudo como um ser dotado de dignidade e amor próprio. As cenas eram terríveis, inaceitáveis, moralmente hediondas. Via, na imaginação febril, corpos que se encontravam na calada da noite, em delírio, no gozo dionisíaco e supremo dos membros entrelaçados, unidos física e espiritualmente. “Toda nudez será castigada”. As cenas de Othelo lhe vinham também ao pensamento com toda a força de persuasão. “Perdoa-me por me traíres”. No pensamento transversalmente lhe chegavam as reflexões maldosas de Bentinho. A literatura e a realidade se misturavam conspirando contra o dilacerado eu.
Terminou por não entender bem a aula de literatura portuguesa, ou melhor, só se lembrava de que o tema era o mesmo que lhe atormentava as entranhas. Saiu da faculdade arrasado com os seus pensamentos, uma espécie de Hamlet desejando sangue aos inimigos, mas um Hamlet bem parecido com o personagem shakesperiano, com toda a sua carga e desespero da dúvida e do niilismo diante da situação existencial.“Life is but a walking shadow a tale told by an idiot full of sound and fury signifying nothing.” A vida pra ele foi, naquele dia, e com os intervalos e intermitências dos anos, marcada pela ambiguidade diante do “sentimento cruel em Dom Casmurro.” Culpada ou inocente: eis a questão.
Seu irmão Francisco Luiz, os amigos, todos o que o rodeavam, até aquele amigo que o admirava, hoje já sepulto, em uníssono, o exortavam ao sublime e generoso sentimento do perdão. Os espinhos das rosas doem e se eternizam no coração dos homens.

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