Cunha e Silva Filho
“Não adianta, Euler,   revolver as cinzas do passado. Perdoar é um ato de grandeza no ser humano. O que não pode  é permanecer na dúvida atroz, que  só mal faz ao espírito e mesmo  lhe traz prejuízos pra saúde.  O passado está enterrado.Você me diz que tem dúvidas com respeito  ao que realmente  ocorreu. Sim,  concordo com você, mas o perdão uma vez concedido a alguém, vai aliviá-lo de tudo. Talvez  na alma sua, sensível, vá ficar um resíduo do que nunca aceitou inteiramente. O tempo é remédio para muitas coisas. É remédio e , às vezes, uma forma de cura por resignação.”   
Naquela aula de literatura  portuguesa, ele não conseguia se concentrar no que  estava  sendo  expondo, logo ele que era vidrado nessa disciplina. Ficava  ali sentado  na   sua carteira,  com o pensamento distante, confuso, com imagens que o feriam profundamente,  imagens que  compunham quadros da realidade e de atos  humanos  que  o repugnavam só de pensar que podiam estar acontecendo. Parecia-lhe estar  assistindo, numa vasta sala de exibição, a um filme   com cenas repulsivas, em imagens que se embaralhavam com a sua própria experiência  de vida. Não se diz comumente que  às vezes  a vida imita a arte? 
As imagens que apareciam  eram fortes demais. Suportá-las quem havia de ? Só se fosse  a um idiota que não discerne os limites  éticos da vida, aquilo seria compreensível. Mas, não,  não nascera para  ser pisoteado assim como homem, sobretudo  como  um  ser dotado de dignidade e amor próprio. As cenas eram  terríveis,  inaceitáveis, moralmente  hediondas.  Via, na imaginação  febril,  corpos que  se encontravam na calada da noite, em delírio,  no gozo dionisíaco e  supremo  dos membros entrelaçados, unidos  física e espiritualmente.  “Toda nudez será castigada”.   As cenas de Othelo lhe vinham também  ao pensamento  com toda a força de persuasão. “Perdoa-me por me traíres”.  No pensamento  transversalmente lhe chegavam  as reflexões  maldosas de Bentinho. A literatura e a realidade se misturavam conspirando contra o dilacerado  eu. 
Terminou por não entender bem a aula de literatura portuguesa, ou melhor,  só  se lembrava  de que o tema  era o mesmo que lhe atormentava as entranhas.  Saiu  da  faculdade arrasado com os seus    pensamentos, uma espécie de Hamlet  desejando  sangue aos inimigos, mas um  Hamlet bem parecido com  o personagem  shakesperiano, com  toda a sua carga e desespero  da dúvida e do niilismo  diante   da situação  existencial.“Life is but a walking shadow a tale told by an idiot  full of sound and fury signifying nothing.” A vida pra ele foi, naquele dia,  e com os  intervalos e intermitências  dos anos,  marcada pela ambiguidade diante do “sentimento cruel  em  Dom Casmurro.”   Culpada ou inocente: eis  a questão.
Seu irmão Francisco Luiz, os amigos, todos o que   o rodeavam, até aquele amigo que o admirava, hoje já sepulto, em uníssono,  o exortavam ao  sublime  e generoso sentimento do perdão. Os espinhos das rosas  doem e se eternizam no coração dos homens.
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