Cunha e Silva Filho
Num antigo artigo que escrevi para jornal do Piauí, lá dava minhas justificativas porque não me agradava ler logo a seção do jornal sobre coisas de economia. Nunca poderia começar a ler um jornal por essa seção. Não que eu tivesse aversão ao assunto por completo. Longe disso. Seria passar atestado de autoincompetência ou de grossa ignorância desprezar de todo uma parte do jornal que tanto serve como termômetro da vida social e do quotidiano das pessoas na engrenagem intricada dos lucros e perdas.
O artigo, porém, tinha um viés nada lisonjeiro à práxis da economia, ou seja, a economia compreendida na sua miudeza, nas suas mesquinharias, no seu afã de tornar as pessoas dependentes de suas vicissitudes, de suas incertezas de altos e baixos nas Bolsas de Valores ou nas visitas insossas aos agentes financeiros a fim de saber quanto se ganhou no mês anterior ou se seria melhor mudar a natureza dos investimentos. Esse acompanhar, no miúdo, todas as transações da engrenagem shylockiana é que me desesperava e me causava desconforto na condição de leitor de jornal. Claro que a Ciência Econômica tem lá sua grande importância. Só um néscio poderia negá-la.
O assunto desta crônica não é bem o economês, mas tentar extrair algumas reflexões sobre a vida contemporânea, em especial concentrando-me no país que mais conheço, ou seja, no único país que até agora conheço de forma mais íntima.
Abro o jornal e vejo uma diversidade de assuntos focalizados: o Brasil, competindo com países desenvolvidos, ganhou o direito de sediar, em 2016, os próximos Jogos Olímpicos e Para-Olímpicos. Eis a manchete-chave que muito elucida algumas premissas internas e inconfessáveis da nossa realidade social-político-histórica. Alegria contagiante, da Dinamarca ao país do carnaval, do samba e do futebol.A nós vencedores coube-nos abocanhar um cheque de US1,5 bilhão, isto é, aproximadamente R$ 2,67 bilhões destinados aos direitos de imagens nas transmissões de TVs do mundo inteiro. É um tento e tanto! Abro mais outras página do jornal e leio coisas que me causam indignação: continua a violência solta no Rio de Janeiro, disparando balas perdidas ou praticando atos de ferocidade humana em todos os pontos da cidade dita maravilhosa, inclusive dentro de nossos lares. Noutra página, me relatam que a impunidade e a imoralidade da política em Brasília continua firme e intocável. Viraram causa pétrea. Nade mudou e ficou como era antes e sempre.
Mais uma página, e lá se relata o desespero das enchentes e dos estragos causados no Sul do país. Para piorar, na Amazônia, se o aquecimento global continuar subindo, os “pulmões “ do planeta poderão registrar até 10 graus a mais de aquecimento em sua temperatura, significando que a “grande floresta” poderá ser destruída em sua maior parte e, para concluir, cientistas já afirmam que o rio São Francisco, o Velho Chico, pode ter seu volume d’água .reduzido em 25% .
Ninguém,, em sã consciência, pode refutar que o Rio de Janeiro é lindo e continua lindo apesar das mazelas e do maltrato que sucessivos desgovernos lhe têm infligido. São décadas de descaso nos vários setores da sociedade: transporte, segurança saúde, educação. Moro no Rio desde 1964 e , como ex-professor do estado e do município, nada de substancial melhorou na vida dos professores. Eles continuam com baixos salários e sofrendo violência quando, em passeata, reclamam por melhoria salarial.
Por falar da cidade, que será sede dos Jogos Olímpicos, convém não esquecer que a paisagem carioca, em alguns pontos, é de envergonhar o turista e o próprio carioca da gema ou que adotou o Rio como cidade do coração. Veja-se o Centro da cidade, que está mal cuidado, sujo, confuso, reduto de mendigos e de vagabundos.Vejam-se os bairros do subúrbio abandonados à própria sorte, sem policiamento, com sinalizações desrespeitadas pela ausência de guardas municipais, com alguns bairros, que eram bons, agora sitiados pelo narcotráfico. Veja-se a Zona Oeste, enclave de domínios da milícia ou reféns da criminalidade.Vejam-se os transportes de ônibus, de vans, os clandestinos, com motoristas irresponsáveis, correndo em alta velocidade, colocando em risco a vida dos passageiros.
O Rio real não está pronto para sediar evento de tal magnitude. Para que seja um cidade ideal e digna de receber os atletas é imperativo que os governos estadual e municipal e mesmo federal estabeleçam prioridades urgentíssimas livrando a cidade de tantos gravíssimos e crônicos problemas.
Nem é honesto da parte do governo federal que se aproveite da onda de sorte do Presidente Lula a fim de faturar dividendos políticos, a ponto de a candidata do Chefe da Nação já andar falando em PAC Olímpico, numa clara demonstração de transformar os Jogos Olímpicos em seu cabo eleitoral para 2010.
Não sou pessimista, mas não vejo com tanta alegria tantas manifestações antecipadas acerca da nossa futura Olimpíada quando tantos problemas o país enfrenta internamente, sobretudo os ligados à crise de confiança política, à corrupção, à gastança desbragada no seio da própria Presidência ( li, na internet, um notícia estarrecedora,sobre os gastos do Palácio do Planalto, uma afronta à pobreza e à dignidade dos homens sérios, verdadeiro rega-bofe do dinheiro público), enquanto o contribuinte da Receita Federal se estrebucha para saldar as parcelas do maior imposto de renda do mundo E ai de quem não as saldar no vencimento!
A conquista, a vitória que conseguimos para sediar os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016 é um fato que nos deixa orgulhoso. Só não o é na medida em que a alienação popular deixe ofuscar os grandes problemas da nação brasileira. Copacabana, a princesinha do mar, não pode ser usada como o grande palco da alegria que soa falsa quando a torcida pelos jogos olímpicos sirva como grande caixa de ressonância hipócrita para ocultar as misérias e os descalabros praticados contra a dignidade do povo, em geral definido como bom e ordeiro como instrumento fácil de manobra das elites para driblar os sucessivos atos imorais oriundos dos donos do poder.
Quando, na primeira página de JB de hoje, dia 3 de outubro de 2009, a manchete diz: “Sim, nós vencemos”, é preciso antes refletirmos melhor e antes repensarmos: que país queremos para nós que seja digno de tantos festejos à altura de merecermos sediar as Olimpíadas de 2016? Naturalmente, não é o que vemos diante de nossos olhos direcionados para a cidade, o povo, as condições de vida da nossa gente, as injustiças partidas dos próprios poderes públicos. Queremos um Rio de Janeiro livre e fagueiro, sem necessidade de deslocarmos tropas das forças armadas para realizarmos o sonhos das Olimpíadas. Soldados fortemente armados lembram estado de sítio, golpes, quarteladas revolução, opressão falta de liberdade, toque de recolher que não são dignos de um país de nossa dimensão continental e de nossa maturidade cultural. Não queremos uma alegria de aparência, fingindo que a cidade é segura, acolhedora e bela. Queremos um Rio autêntico, com todos festejando as vitórias de nossos atletas, e recebendo bem os atletas das outras nações, sem rifles nem baionetas, nem cenhos carrancudos. O país precisa ser verdadeiro. Só isso.
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