quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Fernando Pessoa: "Sonnets V"

FERNANDO PESSOA: “SONNET V’

Cunha e Silva Filho

Volto, leitor, aos “English sonnets,” desta vez com a tradução do “Sonnet V. ” Veja abaixo:


Sonnet V
HOW CAN I THINK, or edge my thoughts to action,
When the miserly press of each day’s need
Aches to a narrowness of spilled distraction
My soul appalled at the world’s work time-greed?
How can I pause my thoughts upon the task
My soul was born to think that it must do
When every moment has a thought to ask
To fit the immediate craving of its cue?
The coin I’d heap for marrying my Muse
And build our home i’th’ greater Time—to-be
Becomes dissolved by needs of each day’s use
And I feel beggared of infinity,
Like a true-Christina sinner, each day flesh-driven
By his own to forfeit his wished heaven.
Soneto V
COMO PENSAR POSSO, ou em ação meu pensamento transformar
Se a pressão mesquinha da diária necessidade
Anseia pela carência de maiores distrações
E minh’alma se assusta com a avidez do tempo de trabalho do mundo?
Como interromper posso sobre as minhas obrigações meus pensamentos
Quando minh’alma nasceu com o pensamento de realizá-las
Quando, a todo instante, a questionar tem um pensamento
A fim de se ajustar ao anelo imediato de sua sugestão?
As moedas que acumularia para minha Musa desposar
E nosso lar formar num Amanhã mais grandioso
Se tornam nulas com as necessidades do seu diário uso
Assim, me sinto na orfandade da infinitude
Qual pecador, autêntico cristão, a cada dia da carne escravo
Em face de, pelo próprio ato, no céu perder, por castigo, a desejada vez.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Planos de leituras

PLANOS DE LEITURAS


Cunha e Silva Filho


Leitor, você não pode comparar o nosso tempo, que vive sob o signo da urgência, com o tempo do século 19 ou até mesmo o das primeiras décadas do século passado ou de todo os séculos que remontam à descoberta da imprensa pelo alemão Joahnnes Gutemberg ( c. 1390-1468), embora você me possa responder com justificativas indefensáveis que, em qualquer fase da história da humanidade, somos nós que fazemos os nossos horários, os nossos esquemas e planos de leitura, porque, afinal, este artigo tem como núcleo temático ou provocativo a leitura ou a falta dela e suas consequências danosas.
Agripino Grieco (1888-1973), o temível crítico impressionista, famoso até por ter morado no subúrbio do Méier, que é atravessado pela antiga Estrada de Ferro Central do Brasil, afirmara num dos seus livros, ou artigo, não me lembro bem onde, que Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde, 1893-1983)) – outro crítico grandioso, de orientação expressionista, do Modernismo, era daquele tipo de escritor que, toda a manhã, praticava uma ginástica intelectual que se lhe tornara hábito e que consistia em dedicar aquele período do dia a intensas leituras, seja de escritores brasileiros, seja dos bons autores estrangeiros, que lia no original. Era o que se chama de leitor compulsivo, lia intensa e extensivamente. Há outros escritores brasileiros devoradores de livros, sacrificando até horas de descanso para poderem dar conta da leitura de tantos volumes. Confesso que não estou na lista desses leitores contumazes. Leio muito, mas dentro de uma normalidade, sem desesperos nem compulsões. Entretanto, admiro quem o é. Sou mesmo um grande adiador de leituras, o que é um defeito. Mas, vou ver se me corrijo desse defeito. Não se pense, no entanto, que sou um leitor indolente, pois costumo retomar as leituras já encaminhadas e as concluo rigorosamente.
A quantidade de livros que saem a cada semana e os lançamentos estão aí pra provar -, é imensa. Basta contabilizar cada caderno semanal de literatura nos jornais que ainda felizmente encontram umas poucas páginas para uso exclusivo de publicar resenhas, entrevistas, crônicas e notícias sobre o que estão publicando no país para concluirmos que o número é assustador. Impressiona o volume de novos livros, nos diversos gêneros, que são colocados ao repertório do leitor.
Imagine-se o que pensariam aqueles dois críticos antigos se hoje fossem vivos. Livros por toda a parte, de todos os tamanhos, de todos os gêneros, livros para todos os gostos, até para a falta de gosto. Não importa. Cada um que se imagina autor lá vai preparando seu volumezinho ou mesmo seu calhamaço, e haja publicações, e haja impressora! Pouco importa a qualidade. A falta de autores virou excesso de autores que, por sua vez, redundou em carência de leitores. Escreve-se mais do que se lê.
Não deixa de ser fascinante um estudo que relatasse o que está acontecendo com a vida editorial no país. Daria uma ótima pesquisa de campo, quiçá uma dissertação ou tese que fossem levantar dados refletindo a realidade do universo da história dos livros, que examinasse a imensa quantidade de livros impressos e sua contrapartida, a história dos leitores desses livros.
Um exposição do percurso do livro desde a saída das oficinas impressoras até chegar às mãos do leitor. Isso sem se falar dos estudos de estética de recepção, e de outras campos de investigação literária dos nossos tempos.
A par disso, há ainda a concorrência assombrosa da internet, através dos blogs, dos e-books, das grandes bibliotecas virtuais, espaços gigantescos que chegam mesmo a atordoar o leitor perplexo diante de tanta massa de textos que se lhes colocam à disposição, bastando para isso dominar um pouco o uso do computador. Ultimamente, li de um jornalista ou escritor, ou crítico, não sei ao certo, que ninguém lê blogueiros, que estes escrevem para si próprios. Não concordo com ele. Sua crítica não deixa de ser um tanto cáustica e, por vezes, injusta. Há blogueiros e blogueiros, como há bons autores impressos e péssimos autores impressos e ainda há autores ruins que, não sei por que motivos, em escala mundial, vendem milhões de livros. Me tornei blogueiro, em razão de uma vantagem que eles têm : o espaço amplo, ilimitado que os jornais não nos permitem ter, já que o espaço no jornal é muito caro. O grande problema do blogueiro é que sua visibillidade demora para surgir. É preciso que sejam bem habilidosos e consigam ampliar o leque de leitores que o irão acompanhar e lhe serem fiéis. Dado esse passo, o blogueiro se tornará respeitado e até pode alcançar um grande número de leitores. Porém, é preciso que seu texto seja honesto intelectualmente falando, além de ter que ser atraente.
Me desculpe, leitor, se fugi do tema central do artigo, pois falei no início de plano de leitura. Entendo por plano de leitura aquela situação do leitor que, tendo de fazer leituras de autores-chave não o fizeram ainda por diversos motivos: falta de organização, falta de recursos financeiros para a compra do livro, falta de tempo, indisposição física ou psicológica, doença etc.Há ainda o fato de que são tantos os autores de importância ainda não lidos que o leitor em falta fica receoso de não ter tempo suficiente de vida para realizar tais leituras, o que lhe causará frustração. Por isso, vejo como um gesto lindo de leitor compulsivo o do professor e escritor piauiense M. .Paulo Nunes, que, de vez em quando, diz em artigos de jornais ou mesmo em livros: “Leitor, antes de morrer, não deixe de ler estes autores ”.
Um plano de leitura convém fazer-se, ainda que algumas vezes, por uma impossibilidade ou outra, não possamos cumpri-lo na íntegra. Uma regra última: afastem de si, leitor, o fantasma do adiamento. Não somos eternos

domingo, 11 de outubro de 2009

Uma poeta (ou poetisa) de Curitiba:Roza de Oliveira

Uma poeta (ou poetisa) de Curitiba: Roza de Oliveira


Cunha e Silva Filho


Leitor, dessa vez esta coluna pede um espaço para uma referência a uma escritora, a Roza de Oliveira, que conheci, faz pouco tempo, numa viagem do Rio de Janeiro a Curitiba. Ela estava acompanhada de seu esposo, Julio Enrique Gómez, um argentino com coração de brasileiro, virtuose da música, pianista talentoso. Os dois formam um tipo de casamento que eu diria perfeito, não só porque essas duas criaturas se harmonizam no amor, mas sobretudo porque são almas gêmeas dedicadas às duas espécies de arte já mencionadas.
Roza foi professora de literatura, fez mestrado em literatura brasileira, defendendo uma dissertação sobre a poesia de Tasso da Silveira, de título As imagens do ar nos poemas de Tasso da Silveira, em 1988, na Universidade Federal de Santa Catarina, posteriormente publicada em livro pela Secretaria de Estado de Cultura do Paraná em 2001.157 p.
Roza não é paranaense, pois nasceu em Santo Antônio de Pádua, estado do Rio de Janeiro. Aos sete anos, sua família foi para o Paraná. Seus estudos primários e secundários fez em Paranavaí. Graduou-se em Letras pela Faculdade de Filosofia e Letras de Paranavaí. Foi professora desde a adolescência .Em 1979, transferiu-se para Curitiba. Em seguida, a partir de 1996, foi lecionar na Universidade Tuiuti.
Roza de Oliveira, antes de mais nada, é visceralmente poeta, sobretudo distinguindo-se como trovadora e declamadora de mérito indiscutível, além de ter dado importante contribuição ao ensaio literário, à ficção infantil(contos), entre outros gêneros. Roza me dá a impressão de que é uma artista da poesia totalmente envolvida com sua arte. Tem belíssima voz e sabe declamar como poucos. Além disso, é dotada de uma extraordinária memória, que a auxilias muito como declamadora. Conversando com ela, no aconchego do lar do casal, pude verificar o quanto Roza significa como artista do verso. Improvisadora, parece ter aquele talento que só encontramos em grandes repentistas do cordel. Erudita no conhecimento teórico da arte poética, amante das grandes vozes da poesia brasileira independentemente de estilos de época, Roza nos surpreende com a sua versatilidade, com o seu convívio íntimo com a poesia.
Escritora querida entre seus pares, respeitada em todo o estado do Paraná, Roza vai, assim, espalhando poesia por toda a parte, em eventos, em palestras, em conferências. O mais belo nisso tudo é que ela está sempre ao lado de Julio, trabalhando em conjunto. Ele,, ao piano, ela, declamando poesias de grandes poetas e dela própria. Ativos ambos, viajam muito, sempre e sem pré fazendo apresentações lítero-musicais e com sucesso.
Uma vez, perguntei à Roza se ela declamava qualquer grande poeta, seja nacional, seja de outros países. Ela me respondeu que só gosta de declamar o poema que a emociona. Nisto, a meu ver, se revela como uma poeta seletiva e cuidadosa com a sua sensibilidade e critério estéticos.
Roza merece estudos mais desenvolvidos tanto com respeito à sua produção poética , que é considerável, quanto com respeito às sua publicações ensaísticas.
A escritora é Presidente da Academia Paranaense da Poesia. Pertence à Academia Sul Brasileira de Letras, à Academia de Letras José Alencar, à Academia Feminina de Letras, ao Círculo de Estudos Bandeirantes, ao Centro de Leras do Paraná e à UBT.
A propósito do lançamento que hoje, fiz do meu livro Breve introdução ao curso de Letras: uma orientação (Rio e Janeiro: Editora Quártica, 2009, 120), Roza me mimoseou (reconheço que o termo é um tanto antigo) com as seguintes trovas, todas dedicadas àquele evento e, com isso, quero homenageá-la nesta coluna, em retribuição ao seu gesto elegante e carinhoso:


ALGUMAS TROVAS PARA A TUA TARDE DE AUTÓGRAFOS

Roza de Oliveira

Que a luz de Deus te ilumine
neste sagrado momento.
Que o livro a todos fascine
na tarde do lançamento.
*

Que a luz de Deus seja o norte
em todo e qualquer momento.
Que o teu livro brlhe forte
na tarde do lançamento.
*

Que a luz de Deus, majestosa,
exponha o livro ao sedento.
Desejam o Júlio e a Roza
na tarde do lançamento.

Um poema de Longfellow

Um poema de Longflellow


Cunha e Silva Filho


Em 1969, publiquei , em jornal de Teresina, uma artigo com título “Incompreensão dos Moços,” que nascera da indignação minha contra uma crítica que um colega universitário do Rio de Janeiro fizera contra um crítico literário a quem admirava muito.. Não me lembro, agora, exatamente do crítico. Mas, era um crítico da velha guarda, talvez Agripino Grieco (1888-1973) não sei. Só sei que, me colocando em defesa dos velhos, soubera que o grande cronista, professor, jornalista e escritor A. Tito Filho (1924-1992) havia feito elogios ao meu artigo para um amigo de papai. Meu pai, por sua vez, me transmitira a referência do meu ex-professor do Liceu Piauiense.Ora, são trinta anos que se foram desde a publicação daquele artigo. O elogio da velhice conheceu, na literatura norte-americana, um grande intérprete, o poeta Henry Wadsworth Longfellow (1807-1882), através do belíssimo poema ‘Morituri, salutamos”. No meu artigo, além de fazer o elogio à velhice digna e produtiva, aproveitei para fazer uma tradução livre desse poema que, com algumas melhorias da antiga tradução, aqui reproduzo, leitor, na sua forma bilíngüe.
Henry Wadsworth Longfellow pertenceu, no século 19, ao grupo aristocrático de escritores chamados de “Brahmins”, sendo a maioria deles pertencente a tradicionais e ricas famílias de Boston. No geral, conforme informa Peter B. High,1 esse grupo admirava a literatura inglesa, cujos autores muitas vezes não só o influenciavam, mas eram por ele imitados literariamente. Esses escritores norte-americanos viam Boston como “o centro do pensamento americano do próprio planeta.”2 Reuniam-se num espaço chamado “Saturday Club”, e se encontravam uma vez por mês num sábado.
Os”Brahmins’ eram o alvo da admiração dos estrangeiros cultos. Do grupo faziam parte, além de Longfellow, Hawthorne, O.W. Holme, J. G. Whittier, James Russell Lowelll e os conhecidos historiadoesr Prescott e Motley. O grupo fundou uma revista, a Atlantic Monthly, que teve forte influência na vida intelectual da época em Boston, e durante pelo menos três décadas, foi a publicação de maior penetração nos Estados Unidos.3
Longfellow, durante muito tempo,foi um poeta querido e admirado e amado pelos leitores. Foi o primeiro poeta americano a viver de poesia. Seus poemas são simples na forma e até no pensamento. Seus versos diziam o que o povo comum queria ouvir de um poeta. Nada de interiorizações ou formas sofisticadas de construção poética. Veja-se como ele definia a vida: “A vida é verdadeira! A vida é séria!/E a sepultura não é seu objetivo último...”4 Entre os temas de sua poética, se encontram a perserverança, a transitoriedade da vida, a melancolia
Era otimista, direto, prático, patriota, admirador do otimismo e do trabalho árduo do seus compatriotas. da vida saudável. Os críticos lhe reprovam falta de originalidade. Mas, recorrendo a uma afirmação do ensaísta Peter B. High, Longfellow, expressava o ideal do homem comum americano daquele século.Pouco importa a crítica que se lhe fazia e tem razão High quando assinala que Longfellow sabia aproveitar o material colhido graças ao conhecimento literário que tinha de várias línguas europeias, como o alemão, o holandês, o finlandês.5 Essa culpa não se lhe pode imputar. Haja vista o caso de Shakespeare, que se aproveitara frequentemente de material fora de sua imaginação para o tornar obra-prima . Manuel Bandeira (1886-1968) foi outro poeta por vezes criticado por alguns críticos que nele alegavam falta de originalidade. Até Da Costa e Silva(1885-1950) o foi. Dessa pecha sofrem muitos poetas que, por serem demasiado cultos, produzem obra cheia de citações e alusões, as quais são por vezes mal interpretadas como carência de criatividade.
Longfellow, entre outras produções poética, deixou: Evangeline (1847); Hiawatha (1855) e The Courtship of Miles Standish (1858 ). Veja-se abaixo a tradução de “Morituri, salutamos”:

“Morituri, Salutamos”


..................Ah, nothing is tôo late
Till the tired heart shall cease to palpitate.
Cato learn ed Greek at eighty; Sophocles
Wrote his grand Oedipus, ad Simonides
Bore off the prize from his compeers,
When each had numbered more than foourscore years, --
And Teophrastus, at fourscore and ten,
Had but begun his “Characters of Men”.
Chaucer, at Woodstock with the nightingales,
At sixty wrote the Canterburt Tales;
Goethe at Weimar, toiling to the last
Completed Faust when eihty years were past.
These arae indeeed exceptions; but the show
How far the gulf stream
Of your youth may flow
Into the Artic regions of our lives,
Where little else than life itself survivees.
Whatever poet, orator, or sage
May say of it, old age is still old age.
It is the waning, not the crescent moon;
The dusk of evening, not the blaze of noon;
It is not strength, but weakness; not desire
But the surcease; not thr fierce heat of fire,
The burning and consuming element,
But that of ashes and of embers spent,
In which some living sparks we still discern,
Enough to warm, but not enough to burn.
What then? Shall we sit idly down and say
“The night hath come, it is no longer day”?
The night hath not yet come; we are not quite
Cut off from labor by the failing light;
Something remains for us to do or dare;
Even the oldest tree some fruit may bear;
Not Oedipus Coloneus, or Greek Ode,
Or tales of pilgrims that one morning rode
Out of the gateway of the Tabvord Inn.
But other somehting , would we but begin;
For age is opportunity no less
Than youth itself in another dress,
And as the evening twilight fades away
The sky is filled with stars, invisible by day.6



“Morituri Salutamos”

................. Ah, nada é tarde demais
Até que o coração, cansado, cesse de pulsar.
Aos oitenta anos Catão grego aprendeu; Sófocles
Escreveu seu Édipo e Simônides
Conquistaram a admiração de seus pares
Quando ambos contavam mais de oitenta anos;
E Teofrasto, nonagenário,
Havia iniciado seu Caracteres dos Homens
Chaucer, em Woodstock, junto aos seus rouxinóis,
Escreveu, sexagenário, os Contos de Canterbury;
Em Weimer, Goethe, mourejando até ao derradeiro instante,
Concluiu o Fausto quando passadas oitenta primaveras.
Sem dúvida, são exceções; porem, provam
Até que ponto se prolonga o fluxo criativo na juventude
Em direções às regiões árticas de nossas vidas,
Nas quais pouco mais sobrevive do que a própria vida.
Seja qual for o poeta, orador ou sábio
Que sobre ela fale, a velhice é ainda a velhice.
Não é ela a lua crescente, mas a decrescente;
Não é o brilho do meio-dia, mas o crepúsculo da tarde;
Não a força, mas a fragilidade; não o desejo,
Mas a cessação; não o calor medonho do fogo,
O elemento candente e devastador,
Mas aquele consumido pelas cinzas e brasas,
Por entre as quais algumas fagulhas persistem visíveis,
Suficientes ainda para aquecer, porém incapazes de queimar.
O que, então, fazer-se? Devemos sentar-nos indolentemente e dizer:
“A noite chegou, o dia já se foi?”
A noite está chegando; não estamos ainda
Ao cair da noite desobrigados do trabalho
Alguma coisa nos resta para fazer ou ousar;
Até mesmo a árvore mais velha algum fruto pode dar.
Não é o Édipo Coloneus, ou a Ode grega,
Ou os contos dos peregrinos que, certa manhã, saíram
Pelos portões da Estalagem do Tabardo,
Porém, outras coisas mais que mal havíamos começado;
Porquanto a velhice é oportunidade não menor
Do que a juventude com roupa diferente.
E, à proporção que a tarde vai morrendo,
O firmamento se nos desvela prenhe de estrelas, invisíveis à luz do dia.


NOTAS:

1HIGH, Peter B. An outline of American literature. New York: Longman, 2002, p.61.
2 Idem, ibidem.
3 Idem, p.62.
4 Idem, p.59.
5 Idem , p.61. Para outros dados contidos neste artigo, consultar também SKIPP, Francis E. American literature. Barron’s EZ-101 study keys. Hauppage, New York: Barrons’s Educational Series Inc., 1992, p. P.34.
6 O poema “Morituri Salutamos” foi extraído da obra de SCHORSSKE, Geoçre. The new applied English grammmar. 2nd vol. Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1942. Outlines of English literature.(Fifth Part), p. 245-246.

Geografias literárias

Geografias literárias


Cunha e Silva Filho


A idéia é auspiciosa, essa de se levar a bom termo pesquisas interdisciplinares envolvendo a geografia, a estatística, a literatura e a historia.
A idéia partiu de geógrafos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), todos eles já familiarizados com trabalhos de campo por várias regiões brasileiras. O objetivo da pesquisa se concentra, agora, no levantamento de dados históricos e geográficos partindo da leitura de escritores brasileiros, antigos e modernos.
Interligar a geografia à literatura brasileira como instrumental complementar dos dados estatísticos e históricos oferece-se, assim, como um novo filão nos estudos literários que só enriquecerão a pesquisa no campo da literatura brasileira.
A idéia dessa forma de pesquisa não é nova nem original, pois, ao que tudo indica, ela se inspira nos trabalhos pioneiros do ensaísta italiano Franco Moretii, que já vinha imprimindo a marca de suas investigações nos estudos de literatura servindo-se do arsenal interdisciplinar das disciplinas geografia, teoria da evolução e história quantitativa.
Os pesquisadores do IBGE almejam traçar um Atlas das Representações Literárias de Regiões Brasileiras. Escritores brasileiros como José de Alencar ( um autor de talento indiscutível, mas discutível no seu “imaginário geográfico” de fundo romântico de um Brasil que, em parte, segundo se sabe, não conhecia in loco), Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, Coelho Neto, Dinah Silveira de Queiroz já foram contemplados pelos volumes concluídos.
Torcemos para que, mais uma vez, ao abordarem na pesquisa a região nordeste, não se esqueçam de escritores piauienses que, por suas características locais e de validade literária, bem poderiam se enquadrar no escopo dessas pesquisas. No exemplo da geografia literária do Piauí, creio que não faltará interesse por autores tais como Francisco Gil Castelo Branco, Bugyga Brito, Fontes Ipiapina, Abdias Neves (Um manicaca,1909), Alvina Gameiro, Artur Passos, Permínio Ásfora Magalhães da Costa, Assis Brasil, William Palha Dias, Afonso Ligório Pires de Carvalho, O. G. Rego de Carvalho, Humberto Guimarães, Chico Miguel de Moura, Adrião Neto, Oton Lustosa, José Ribamar Garcia e outros autores que não me chegaram ao conhecimento.
A divisão do trabalho de pesquisa feito pelos estudiosos do IBGE, auxiliados por informações colhidas em especialistas de literatura e história, levou em conta a “ocupação do território brasileiro: Costa, Sertão, Brasil Meridional e Amazônia.” (Cf. Carolina Leal, “A literatura brasileira, enfim, está no mapa”, Jornal do Brasil, Caderno Ideias, 01/08/09).
Acredito que, em algumas situações, não só caberiam autores de ficção, mas também alguns poetas brasileiros com obras bem coladas à geografia brasileira e que bem poderiam ampliar o leque das pesquisas do IBGE. O “espaço” poético, bem diverso do tratamento do “espaço” trabalhado pelos ficcionistas, apresentaria também, a meu ver, inegáveis subsídios ao “conhecimento humano” dentro dos parâmetros de pesquisas que poderiam ser empreendidas pelos trabalhos desses geógrafos brasileiros.
Se a geografia como ciência se concentra no estudo do espaço físico da região, de sua topografia, clima, flora, fauna, ser humano, costumes, usos, cultura, folclore e manifestações artísticas, a importância desse Atlas Literário ganha ainda maior vigor quando aliada às inúmeras investigações, no campo da teoria literária contemporânea, dedicadas aos estudos da espacialidade da obra ficcional, espacialidade esta que não se cinge apenas à physis brasileira mas também à psiquê humana. Essa categoria literária tem muito a oferecer aos pesquisadores.
Aguardamos, pois, que o Atlas das Representações Literárias de Regiões Brasileiras não olvide os contributos que autores piauienses, antigos e novos, podem propiciar a esse novo campo de investigação literária.

O sinal das águas

OS SINAIS DAS ÁGUAS


Cunha e Silva Filho


Creio que o leitor já o tenha percebido. Hoje, mais do que no passado, as águas nos invadem impiedosamente e com elas vão levando todo pela frente, sujeiras, objetos, carros, pedaços de árvores, numa fúria sem precedentes. Sua fúria, porém, não se contenta só com isso. Vai mais longe na sua devastação inconsciente e aí é que se vem se tornando a tragédia dos campos, da periferias pobres e das áreas nobres. A fúria das águas tem se mostrado um grave problema comum a todos os níveis de vida, pois até destrói palacetes e invade as principais avenidas, das cidades pequenas e das grandes urbes, dos barracos das encostas até os prédios de luxo.
A fúria derruba tudo que encontra como obstáculo: invade casas, desmorona paredes, muros, casas, inundando tudo e todos. Sua força não conhece limites, sobretudo quando vira tragédia ceifando vidas humanas sem dó nem piedade, trazendo prejuízos ao comércio, à indústria, à vida normal das cidades e da as população.
Com os meios avançados de comunicação, somos informados de que a violência das águas não se confina a um estado do país. Não, o fenômenos das enchentes violentas tomou conta de todos os continentes habitáveis. Globalizou-se, para usar essa palavra tão cara aos amigos do livre mercado. A devastação das águas aumenta substancialmente quando vem em forma de tsunamis, dessas assustadoras ondas gigantescas lembrando os tempos bíblicos de Noé e sua Arca.
O que temos visto no noticiário das diversas mídias causa calafrios, sobretudo em países asiáticos já de si assolados por frequentes terremotos em níveis máximos na escala Richter. Parte da Terra tem sido sistematicamente castigada por esses acts of God, por essas ações perversas da natureza, vitimando milhares de pessoas, destruindo povoados, cidades, ilhas, como se fossem formas de punição divina infligida aos terráqueos. A expressão inglesa atrás mencionada nem apropriada é porque deixa visível a acepção de perversidade associada ao nome do Criador. Contudo, convém assinalar, aquela associação apenas é aparentemente contraditória, porque os desastres que ocorrem no planeta Terra sempre existiram, mas em níveis não tão severos e freqüentes quanto em nossos tempos pós-modernos.
Aí, então, é que cabe invocar as razões científicas de causa e efeito. As águas que despencam sem misericórdia das nuvens ou que, em forma de tsunamis, arrasam as cidades e os campos, de certa maneira podem ser explicadas pelas mudanças climáticas deflagradas pelo conhecido efeito estufa, ou seja, pelo aquecimento da temperatura do nosso planeta. E tal aquecimento não e gratuito, não vem sponte sua. Sua causa são as mãos do homem, ou melhor, das suas ações com efeitos destruidores. Portanto, sua causa é cultural e envolve outros componentes, em especial de ordem econômico-financeira. Vamos encontrar suas raízes na sociedade super-industrializada, exigente em sua voracidade de produtividade a todo custo, estimuladora do consumismo desenfreado com reverberações danosas atingindo todos os níveis sociais neste reino encantado do deus-consumo, do deus-luxo, do deus-individualismo, do deus-egoísmo, dos objetos e seres descartáveis, anulando quase por completo as relações humanas verdadeiras e sólidas. Mundo de países que não têm cumprido acordos internacionais de combate à poluição no planeta, que viram as costas para os perniciosos efeitos das emissões de gases, desse vilão do clima que é o CO2. O pior é que alguns desses países, entre os quais os Estados Unidos, têm reiteradamente, em particular durante a era Bush filho, se negado a assinar acordos internacionais de redução nas emissões de gases, mesmo a longo prazo.
Reuniões recentes das Nações Unidas têm sido improdutivas no sentido de chegarem a acordos com objetivos de diminuir a poluição no planeta. Alguns países são refratários à reduções mais drásticas das emissões de gases causadores do crescimento do efeito estufa.
Países que agem assim estão preparando fogo para a sua própria destruição. On ne badine pas avec la Nature, parafraseando uma antiga frase lida na minha juventude,. e principalmente com as águas provindas do derretimento das geleiras polares que, a pouco e pouco, vão aumentando o nível do volume das águas oceânicas.
Em dezembro próximo, vai haver encontro das Nações Unidas em Copenhague.Recorde-se que, após 2012, deverão vigorar novas metas de redução das emissões de gases poluidores, a serem obedecidas sobretudo, creio eu, por parte dos países mais ricos, ocasião na qual vencerá o “primeiro período de compromisso” do Protocolo de Quioto.
Desnecessário afirmar que esses compromisso entre nações desenvolvidas e as em desenvolvimentos, como o Brasil, China e Índia, envolvem interesses cruciais (leia-se econômicos) a fim de chegarem a conclusões plausíveis. Nosso representante, embaixador Luis Alberto Figueiredo, teme até a possibilidade de alguns países desejarem acabar com aquele Protocolo, abrindo uma vazio lamentável e perigoso no enfrentamento da questão climática mundial. Isso seria um contrassenso e até mesmo uma pretensão criminosa de países que pensarem dessa forma.
O que está em jogo é o destino de nosso planeta. Os governos que jogarem contra a solução dessa questão vital para a saúde do planeta deveriam ser punidos por instâncias internacionais competentes. Até agora são muito tímidas as porcentagens, se confrontadas com as recomendações do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), de redução de gases poluidores. Dever-se-ia criar uma espécie de Corte de Justiça Internacional para defender com firmeza e isenção as condições climáticas já em níveis de alerta. Tal instância de defesa não poderia abrir mão de medidas permanentes que de fato proíbam nações infratoras de acordos internacionais sobre condições climáticas. Nações irresponsáveis põem em risco a segurança a Terra - planeta que pertence a todos nós e não apenas ditos aos países ricos.
O sinal das águas já se faz notar entre as nações. Não será por falta de avisos dos homens de boa vontade aos poderosos grupos dos ricos, mortais eles também. Fatores econômico-financeiros não devem, por conseguinte, sobrepor-se ao sinal das águas.

Tradução de um poema de Charles Lamb

Tradução de um poema de Charles Lamb


Cunha e Silva Filho


Charles Lamb (1775-1834), como poeta, não seguiu nenhum movimento literário, nem ninguém e, de acordo com George Schorske,* não conheceu nenhum seguidor. Acrescenta o mesmo autor, Lamb foi único. Além de poeta, notabilizou-se como romancista e ensaísta.
Londrino da gema, Lamb, dos oito aos quinze anos, teve, no Christ Hospital, como colega escolar Samuel Taylor Coleridge(1772-1834). Foi empregado em escritório de contabilidade, o India House, até 1825.
Com Coleridge se uniu para escrever sonetos para o “Morning Post”. Fez, depois, amizade com Robert Southey (1774-1843). Tempos depois, deu a lume um breve e “patético” conto em prosa, Rosamond Gray , no qual faz alusões a um aspecto biográfico triste que rondou a sua família, a loucura a tal ponto que sua irmã mais velha, Mary, num dos muitos surtos de loucura, terminou por matar a própria mãe, apunhalando-a. Entretanto, Mary, quando lúcida, colaborou com ele na elaboração dos seus Tales founded on the plays of Shakespeare (1807). Nesse trabalho conjunto, a irmã cuidava das comédias e Lamb, das tragédias. Essa obra tornou-o respeitado e estimado.
No ano seguinte, Lamb publicou um livro de ensaios insuperável contendo observações críticas de vulto, Specimens of English dramatic poets. Editou ainda Poetry for children, em colaboração com a sua irmã Mary. Uma década depois, apareceram Works em dois volumes.
Àquela altura, Lamb deu como encerrada sua carreira literária, Todavia, animado pela “London Magazine”, ainda escreveu uma série de outros ensaios, tendo por título Essays of Elia, obra com a qual sua reputação literária atingiu seu ponto mais alto.
Em 1833, conseguiu reunir sua melhor produção em prosa. Sob o título The last essays of Elia. Foi essa obra o seu “canto de cisne”, segundo assinalou o citado Schorske. O poeta Robert Southey dele afirmou: “ Lamb foi um homem bom de quem me lembro com ternura.”
O poema que você, leitor, ira ler, em tradução bilíngue, explora o tema do “ubi sunt?”, tema encontradiço em muitos poetas de diversas épocas e países, como, entre nós, em Manuel Bandeira, Da Costa e Silva e outros. Veja-o abaixo:


The old familiar faces


I have had playmates, I have had companions
In my days of childhood, in my joyful schoool-days;
All, all are gorne, thee old familar faces.

I have been laughing, I have been carousing,
Drinking late, sitting late, with my bosom coronies;
All, all are gone, the old familiar faces.

I loved a Love once, fairest among women:
Closed are her doors on me, I must not see her –
All, all are gone, the old familiar faces.

I have a friend, a kinder friend has no man;
Like an ingrate, I left my friend abruptly;
Left him, to muse on the old familiar faces.

Ghost-lide I paced the haunts of my childhood,
Earth seem’d a desert i was bound to traverse,
Seeking to find the old familiar faces.

Friend of my bvosom, thou more than a brother,
Why wert thou born in my father’s dwelling?
So might we talk of the old familiar faces.

How some have died, and some they have left me,
And some are taken from me; all are departed:
All, all are gone, the old familiar faces.


Os velhos rostos conhecidos

Amigos tive de folguedos, companheiros tive
Nos dias da minha infância, nos meus alegres dias de escola;
Todos se foram, os velhos rostos conhecidos.

Muitas risadas, tantas farras homéricas.
Libações noturnas, varando madrugadas, com os meus velhos amigos do peito;
Todos, sem exceção, se foram, meus velhos rostos conhecidos.

Certo dia, o Amor bateu-me à porta. Era a mais bela mulher:
Vê-la mais não devo, suas portas se me fecharam –
Todos se foram, todos, meus velhos rostos conhecidos.

Um amigo tenho, igual não há;
Ingrato, irrefletidamente, o abandonei;
Sim, abandonei-o só para meditar sobre os velhos rostos conhecidos.

Qual fantasma, percorri os lugares de minha infância,
Um deserto a Terra se me afigurava, cuja travessia cumpria fazer,
Procurando encontrar os meus velhos rostos conhecidos.

Amigo de verdade, tu vales mais do que um irmão,
Por que, no seio da minha família, não nasceste
Para que pudéssemos falar dos velhos rostos conhecidos?

Perdi a conta dos que se tornaram eternos, alguns de mim se afastaram,
Outros me foram arrancados; todos partiram;
Sim, não sobrou um sequer dos velhos rostos conhecidos.


* As referências biobibliográficas e de história literária foram colhidas em SCHORSKE, George. The the new applied Grammar. 2º tomo. V. Parte: Esboço de literatura inglesa. Porto Alegre: Edições da Livraria do Globo, 1942, p. 203-204.






Versão para o ingl~es de um poema de Adailton Medeiros

Versão para o inglês de um poema de Adailton Medeiros
Cunha e Silva Filho

Trago para a atenção do leitor um pequeno poema de Adailton Medeiros, poeta, jornalista, ficcionista e professor. Nasceu em Caxias, Maranhão, em 1938, mas reside no Rio desde 1961. Como poeta foi bem recebido pela crítica brasileira por nomes como Ângela Fabiana, Cassiano Ricardo, Carlos Drummond de Andrade, Fausto Cunha, Laís Corrêa de Araújo, Nauro Machado, Telênia Hill. Participou de antologias e periódicos editados no Brasil e no exterior.
Adailton Medeiros é graduado em jornalismo pela Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, hoje, UFRJ, na qual fez ainda Mestrado em Ciência da Literatura. Fez parte de uma das vanguardas da poesia brasileira contemporânea, a poesia-práxis, movimento poético surgido nos anos 60, tendo como seu principal teórico Mario Chamie, autor do conhecido Lava-Lavra (1962), acompanhado de seu manifesto do “poema-práxis”. Entre outras, obras, é autor dos seguintes livros de poesia: O sol fala aos sete reis das leis das aves (1972). Cristó' vão Cristo: Imitações (1976); Poema ser poética e mais oito Pré-Textos (1982), Lição do mundo (1992), Bandeira vermelha (2001, p.). Publicou em prosa a novela Revoltoso Ribamar Palmeiras (novela, 1978). Membro da Academia de Letras do Estado do Rio de Janeiro, da Academia Brasileira de Literatura, da Academia Caxiense de Letras (Caxias, Ma), Sócio do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro.

O S I N O

ADAILTON MEDEIROS (Bandeira vermelha. Editora Caetés, Rio de Janeiro, 2001, p.78)
O sino bate
dentro de mim
O sino toca
na Catedral
ou no Mosteiro
O sino soa
surdo por mim


T H E B E L L

The bell rings
inside myself
The bell tolls
in the Cathedral
or in the Monastery
For me
The bell
The bell sounds soundless

Tradução de um poema de Théophile Gautier

Tradução de um poema de Théophile Gautier

Cunha e Silva Filho

Théophile Gautier (1811-1872) uma vez recomendara aos jovens que lessem o dicionário. Algo dessa declaração faz sentido com a visão geral de sua poesia e de sua obra, pois não foi só poeta, mas jornalista, novelista, contista, romancista. Seu livro principal, no gênero poético, intitula-se Émaux et camées (1852), do qual extraí o poema cuja tradução em português, na forma bilíngüe, entrego, agora, ao leitor.
Não podemos definir este escritor sem associá-lo ao Parnasianismo francês, do qual foi um dos precursores. Todo o esforço de Gautier foi, no campo da arte, a procura pela forma ideal da Beleza, da Palavra, minuciosamente escolhida, dos ritmos, dos sons, rimas, que deveriam primar, antes de tudo, pelo rigor da forma, pelo apuro da linguagem.

Esse cultor da Beleza e da Forma, todavia, não se confina aos estreitos esquemas da impessoalidade exigida pelos parnasianos ortodoxos, e nisso guarda afinidade com alguns de nossos parnasianos. Estudara, primeiro, pintura, mas logo foi vencido pelas musas, que não o largaram nunca. Entretanto, sua poesia é visual, pictórica, rastros que lhe deixou sua passagem pela pintura. Embora parnasiano, sua poesia mescla elementos diversificados, que vão do exótico, do concreto, do plástico-visual ao sonho, porém a um sonho que, segundo P. G Castex e P. Surer , “submete a criação poética às leis rigorosas”.
Ainda segundo os mesmos críticos, para Gautier – o que seria um princípio definitivo de sua estética -, o homem que desejaria ser seria alguém “para quem o mundo exterior existe”.


PREMIÈRE SOURIRE DU PRINTEMPS


Tandis qu’à leurs oeuvres perverses
Lês hommes courent haletants,
Mars, que rit, malgré es averses,
Prépare en secret le printemps.

Pour les petites pâquerettes,
Sournoisement, lorsque tout dort,
Il repasse des collerettes,
En ciselle des boutons-d’or.

Dans le verger et dans la vigne,
Il s’en va, furtif perruquier,
Avec une houppe de cygne
Poudrer à frimas l’amandier.

La nature au lit se repose,
Lui descend au jardin désert
Et lace les boutons de rose
Dans leur corset de velours vert.

Tout em composant dês solfèges,
Qu’aux merles il sifle à mi-voix,
Il sème aux près lês perce-neiges
Et lês violettes aux bois.

Sur le cresson de la fontaine
Où le cerf boit, l’oreille au guet
De sa main cachée eil égrène
Les grelots d’argent du muguet.

Sous l’herbe, poour que tu la cueilles,
Il met la fraise au teint vermeil,
Et te tresse un chapeau de feuilles
Pour te garantir du soleil.

Puis, lorsque as besogne est faite
Et que son règne va finir,
Au seuil d’Avril tournant la tête,
Il dit: “Printemps tu peux venir”!

PRIMEIRO SORRISO DA PRIMAVERA


Enquanto os homens, com suas obras perversas,
Ofegantes correm
Malgrado os aguaceiros,,
Março, que ri, prepara em seguida a primavera.
Para as alvas e pequenas margaridas,

Quando tudo adormecido está,
Dissimuladamente ele, mais uma vez, repassa a gola
E amarelos ranúnculos.cinzela.

No pomar e na vinha
Lá se vai, furtivo barbeiro,
Com uma borla de cisne
A amendoeira, na geada, polvilhar.

Descansa, no leito, a natureza.
Sobre ele desce um jardim deserto
Enlaçando os botões de rosa
Em seu espartilho de veludo verde.

Tudo são solfejos
Que aos melros, à meia noite, silva
Nos prados campainhas brancas semeia
Nos bosques, violetas.

Sobre o agrião da fonte
Onde bebe o cervo, a orelha em pé,
Com a mão oculta,
Os guizos d’ouro debulha.
Sob a erva, pra que a colha,
O morango de tom vermelho põe
E te trança um chapéu de folhas
A proteger-te do sol.

Em seguida, concluída a tarefa,
Vendo o fim de seu reinado.
Ao limiar de Abril, voltando a cabeça
Lhe diz: “Podes vir, ò primavera”!

Poem for Izabel, by Jurandyr Bezerra

Cunha e Silva Filho

Aos meus leitores que apreciam a leitura de um grande poema vertido para o inglês, apresento-lhes a minha versão. A seguir, transcrevo –o no original em português:

POEM FOR IZABEL

Juradyr Bezerra*

In the beginning God created the heavens and the earth. And the earth was withotu form and void; and darkness was upon the face of the deep. And the spirit of God moced opon the face of the waters.(Gen. 1, 1-2)


And God let the light come
It was the first day of creation.


She came with the light (before Eve)
and remained amongst us
she became full light
(almost eighty-two years old),
Sun, seen from within.


The sea knew nothing about fables.
But she did.


Izabel (mother), who was mine,
would have been Mary.
She bore a queen’s name
but not even a fairy-land
could hold her all-embracing love


Light buried in the ground
Bird
angel-size.



Poema para Izabel

Jurandir Bezerra

No princípio Deus criou o céu e a terra. A terra, porém, estava informe e vazia, e as trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre as águas. (Gen. 1, 1-2)

Deus fez, então, a luz.
Era o primeiro dia da criação.

Ela veio Com a luz (antes de Eva)
E ficou entre nós
Luz inteira
(quase oitenta e dois anos),
Sol, visto de dentro.

O mar não sabia fábulas.
Ela sabia.

Izabel (mãe) foi minha,
Teria sido Maria.
Tinha nome de rainha,
Mas nem em reino encantado,
O seu amor caberia.

Luz enterrada no chão.
Pássaro
Do tamanho de um anjo.


NOTA:

Juradir Bezerra, respeitado poeta paraense, detentor de prêmios nacionais e no exterior, é autor, entre outras obras, do livro Os limites do pássaro. Belém: CEJUP, 1993. Atualmente, está organizando uma antologia reunindo poemas de toda a sua obra. Nasceu em Belém, em 1928. · A versão da epígrafe extraída da Gênese corresponde ao original inglês da Bíblia Sagrada na edição autorizada King James International Bible Society. East Brunswick, New Jersey.,1984.

Os dois lados

Os dois lados

Cunha e Silva Filho

“Courtesy costs nothing”
(provérbio inglês)

- Não já lhe disse que é no terceiro andar? – falou-me asperamente aquela atendente do posto de saúde da Penha. Me tratou sem a mínima educação, parecendo antes que para ela não passava de um idiota. Engoli o mau trato. Não lancei mão do recurso “Não leve desaforos pra casa”.Minha formação era outra. Estava acima daquele atendimento dado no guichê pela funcionária antipática e desumana.
Dirigindo-me ao andar indicado, flui direto à atendente da clínica geral, que me pediu a carteira do ISERJ e anotou os dados numa folha de controle e, com um voz que demonstrava gentileza e calor humano, me deu o número de chamada e pediu que aguardasse minha vez.
Me sentei num dos bancos perto de sua mesa e fiqei acompanhando o movimento da atendente quem naquele uniforme branco impecavelmente lavado e passado, não dava um só sinal de cansaço ou má vontade no tratamento ao público. Todos que para ela eram encaminhados eram bem-recebidos, até com um sorriso – um belo sorriso entre meigo e sincero -, que desarmava os espíritos mais empedernidos que por acaso a procurassem.
Os bancos de espera estavam agora cheiinhos de pacientes que pacientemente esperavam a vez de serem chamados para o médico. O ambiente em volta era dos melhores naquela manhã sem sol. Ainda que doentes, mais doentes ou menos doentes, todos naquele dia pareciam ter recebido uma injeção de otimismo. Todos conversavam livremente sobre assuntos pessoais ou outros, como custo de vida, situação da saúde no país e no estado do Rio de Janeiro, violência e sobretudo doenças – um lugar adequado às confissões, não dos pecados da carne, m as das diversas doenças de que cada paciente fora acometido.
Novamente, a minha atenção foi atraída pela figura da atendente solícita que me recebera tão bem . Que diferença daquela bruxa – disse com meus botões. Daí comecei a traçar um paralelo entre as duas, o que logo me deu mais uma vez a certeza de que nem tudo está perdido. Dois irmãos, por exemplo, não são iguais, nem no caráter, nem na inteligência.Duas pessoas são duas almas diferentes. Se uma ilustra bem a imagem da ‘porta fechada’, outra tipifica a da “porta aberta’, isto e, o ser humano em disponibilidade, aberto à solicitude. Não é conveniente tirar conclusões generalizadamente. Conviver é viver as diferenças ainda que essas causem por vezes dores e dissabores. O se humano é único e intransferível. Nem tudo está perdido - repeti. Há sempre uma mudança de perspectivas, quer referentes às realidades da Natureza, quer em relação ao comportamento humano..
Se a primeira atendente me causou tanto desapontamento e me deixou humanamente arrasado, a segunda compensou-me plenamente.
Saindo da sala do médico, voltei-me pra ela e lhe agradeci de coração leve e com o espírito de uma criança. Suas palavras finais pra mim:
- Da próxima vez, não esqueça, filho, é no terceiro andar. Até parece que ela adivinhara o que a outra me havia feito. – Vá com Deus! Apanhe o remédio lá embaixo. Tchau!


Memórias de papai: sede de sabedoria


Cunha e Silva Filho
Andávamos juntos, com passos apressados, numa rua de um bairro suburbano carioca, a Vila da Penha, área da Leopoldina. Não me recordo se era na ida para a minha modesta residência, ou se era na volta para o ponto de ônibus onde iríamos aguardar o coletivo que nos levaria ao Centro do Rio. Do Centro ele iria pegar um táxi para o hotel onde estava hospedado, no Flamengo, junto com outros jornalistas piauienses, inclusive A. Tito Filho (1924-1992). Estava de passagem, porquanto iria viajar, com seus colegas jornalistas, de avião para Porto Alegre, onde iriam participar de um Congresso Brasileiro de Jornalistas. Era o ano de 1968, mês de julho. Papai estava com sessenta e três anos; eu, com vinte e dois.
Aquela era uma manhã de sol moderado. A rua, longa, parecia mais uma avenida. Conversávamos alegremente. Pai e filho. De repente, ele me perguntou:
- Você tem sede de sabedoria, filho? Achei a pergunta um tanto estranha e pra mim difícil de responder na bucha.
- Talvez, papai. Talvez... Mas, por que essa pergunta?
- Meu filho, sempre tive a sede do saber, de acumular, não bens materiais, porém cultura, conhecimento. Esse desejo é para mim quase uma obsessão. Saber é o que me persegue, o que me faz bater o coração, o que me estimula a viver – acrescentava ele. O saber dá sentido à minha individualidade. Contraditoriamente, como tenho inveja daquelas pessoas simples, rudes, quase analfabetas, que vejo no meio rural, ou mesmo na cidade, nos bairros humildes. Gente simplória, mas de coração alegre. Gente sem as preocupações dos espíritos cultos e complexos, cheios de problemas de natureza existencial, de conflitos pessoais. Nós, intelectuais, dizia falando de si -, levamos nossas vidas confrontadas com os males da civilização, procurando meios de solucionar questões intrincadas, polêmicas, de ordem filosófica, política, econômica, religiosa, bélica, ideológica, enfim, temas que angustiam os homens, especialmente o homem contemporâneo.Produzir – prosseguiu ele – , escrever artigos, talvez livros, ser, em suma, reconhecido. Esse é um dos objetivos de minha vida, Você não tem, filho, vontade enorme de desenvolver-se intelectualmente, de querer escrever, quem sabe, poder até publicar?
Fiquei calado, pois, no fundo, julgava até desnecessária aquela interpelação paterna. Confesso mesmo que ele, naquela época, ainda não vislumbrava ou imaginava algo mais ambicioso que pudesse me acontecer. Por outro lado, entendo e relevo-lhe esta circunstância: como poderia ele ter certeza de que um simples professor ginasiano, vivendo com dificuldades, já pai de filho, pudesse ascender profissionalmente, galgar posições mais destacadas no magistério? Poucos professores da minha geração conseguiram posições mais proeminentes no ensino ou alcançaram posição no ensino superior ou nas instituições de destaque do ensino médio.
- Meu filho, isso é coisa de intelectual – me afirmava, não mais durante a nossa caminhada em direção ao ponto de ônibus no Rio de Janeiro, mas, certa vez, tempos depois, em Teresina. Lembro-me de que era numa despedida minha de regresso ao Rio de Janeiro, na rodoviária de Teresina.
Por ser um pouco tímido, muita coisa não lhe confessava das minhas aspirações íntimas, sobretudo as relacionadas à vida intelectual.Era óbvio que papai me queria ver numa posição mais elevada do prisma cultural. Por isso, não se cansava de me recomendar que estudasse línguas e tentasse fazer o mestrado, como também se queixava, às vezes, de que eu escrevesse pouco pros jornais. Na realidade, passei um bom tempo sem mandar um artigo sequer pra Teresina. Era provavelmente falta de tempo pra escrever ou mesmo falta de disposição para tanto.Dava muitas aulas e ainda tinha que dar conta, no tempo que me sobrava, para cursar Letras.Escrever, para mim, sempre implicava concentração, vontade mesmo de pôr algo no papel e que valesse a pena ser lido. Tudo, no entanto, tem o seu tempo. “Il y a temps pour tout, pour le travail, pour le plaisir” - ressoava nos meus ouvidos aquela gravação de vozes francesas das lições do Assimil.
- Você deve tentar escrever pra jornais aí do Rio, estilo não lhe falta. Você não pode ser tímido. Mande a timidez à favas! - doutrinava papai através de suas cartas encorajadoras. Aquele comentário dele segundo o qual os intelectuais eram diferentes diante de certas situações do cotidiano me deixava um pouco melindrado na minha vaidade ingênua ou juvenilmente egocêntrica, já que, da minha parte, desejava-lhe gritar bem alto:
- Papai, eu também sou dedicado à cultura, pretendo também produzir, escrever livros, artigos, ensaios, ser conhecido e respeitado. Me perdoe, filho, isso são coisas de intelectuais, não leve a mal. Somos assim mesmo – repetia ele outras vezes.
Eu via essas declarações esporádicas como uma maneira de ele mostrar alguma vaidade pessoal, consciente de seu papel de educador, de jornalista e intelectual admirado por muita gente. Ao mesmo tempo, a sua assertiva me parecia reduzir minha auto-estima recalcada ou mesmo narcísea. Por que havia ele de me falar aquilo se, ao lado dele, se encontrava um jovem professor do ensino médio cheio de sonhos e até de veleidades literárias?
O que, na verdade, queria então ouvir dele seriam palavras animadoras no sentido de que seu filho também se considerava um jovem intelectual, pelo menos no conceito de sua juventude vaidosa. Só mais tarde, em cartas, percebia que ele implicitamente me colocava no grupo de intelectuais, ou melhor, como potencial candidato ao meio intelectual. Todavia, no momento em que falava de si e das características inerentes a um homem de letras, confesso que sentia uma pontinha de decepção, como se quisesse lembrá-lo de que ali estava alguém que se sentia interiormente digno de pertencer ao incerto e bem provável ilusório mundo da intelectualidade.
Os jovens são, por natureza, vaidosos, e talvez por isso se explique, paradoxalmente, a minha vontade abafada de lhe externar meus sentimentos íntimos de pertencer ao mundo de papai.
Com o tempo, e intensificando-se a nossa correspondência durante mais de duas décadas, aos poucos, eu me ia revelando a ele. Escrevia artigos, traduzia poemas ingleses, textos em prosa do francês. Suponho que, à altura do final da década de oitenta, já se havia consolidada a nossa grande amizade pessoal e intelectual. A correspondência virou trocas constantes de elogios, de comentários mútuos entre o que eu escrevia e o que ele escrevia. Os comentários se tornaram apreciações literárias, que nos reanimavam reciprocamente.
Papai se foi em 1990. Como na minha vida tudo veio tarde e com muito sacrifício, papai não pôde acompanhar algumas vitórias minhas no campo intelectual. Que pena! Voltei à universidade, fiz o mestrado, o doutorado, publiquei livro e dei continuidade à minha produção literária. Profissionalmente, tornei-me professor titular de língua inglesa do Colégio Militar do Rio de Janeiro.Antes desenvolvi, durante anos, a atividade docente no ensino médio particular, municipal e estadual. Ingressei no magistério superior particular, lecionando durante quase dez anos língua inglesa e literatura brasileira nos cursos de Letras e de Comunicação Social da Universidade Castelo Branco, Rio de Janeiro.Tenho material produzido que, pelo menos, me renderia uns quatro livros.
Agora que não o tenho mais ao meu lado, talvez, meu querido pai, não precisasse mais da minha resposta à sua interpelação: - Meu filho, você tem sede de sabedoria?

Mocidade da CESB; memórias

MOCIDADE DA CESB: Memórias


Cunha e Silva Filho


Lembro-me como se fosse hoje dos dias em que lá cheguei carregado de livros. Tivera que tomar o trem da Central uma três vezes para transportar meus muitos volumes de Vila Isabel ao Centro do Rio. Felizmente, fora mais fácil porque a CESB localizava-se bem próxima da Estação Central do Brasil.[i]
CESB é a sigla que representa o edifício velho da Casa do Estudante Secundário do Brasil, situado na Rua Senador Pompeu. E é para lá que me volta a atenção, para os dois anos mais ou menos que del fui morador.
São muitas as recordações que, por serem tantas, como que me obrigam a ordená-las no papel a fim de que não sejam vítimas das “verba volant...”
Muitas me vão escapar à memória, não porque deliberadamente deseje, mas porque as memórias, como bem observou Álvaro Lins, são mais próprias para a velhice. É sabido que os velhos se recordam mais facilmente do que ocorrem no passado e menos facilmente do que aconteceu recentemente.
O que me vai interessar aqui é a rapaziada contemporânea dos meus dias vividos na boa Casa. A ordem em que vão aparecer neste artigo não significa maior ou menor apreço, se bem que, em qualquer lugar onde deixamos saudades, há determinados indivíduos que nos caíram mais na amizade e admiração.
É o caso de Antônio Almeida, baiano, rapaz humilde, que entrara como residente bem depois de mim. Figura singular de jovem. Moço de cor. Era apelidado de filósofo. Companheiro inseparável de volumes de filosofia, psicologia.Atente-se para a circunstância de que ainda era estudante do curso secundário.
Espírito boêmio, apaixonado do conhecimento humano. Lia tudo, desde filosofia, psicologia, história (suas preferências) até a alta literatura universal: Victor Hugo, Sartre etc., além de ser grande admirador de línguas estrangeiras, inglês, alemão, francês, e apaixonado da música clássica. Fazia tudo, até implorava à vezes para que fosse com ele ouvir Beethoven, Mozart, Schubert a Discoteca Pública, da qual era assíduo frequentador. A par dessas qualidades, era um excelente amigo. Espírito cético, não acreditava nas amizades superficiais, imediatistas. A amizade por ele compreendida por ele vinha da análise detida das pessoas, do comportamento delas. Fora-lhe bem acertado o apelido.[ii]
Dirceu Regis Ribeiro era outro residente daquele lar estudantil, com a diferença de que era o diretor da Casa na época em que cheguei. Alma enamorada das Musas. Leitor assíduo de Castro Alves, oseu poeta predileto. Devotava ao “Poeta dos escravos” um culto fora do comum. Parecia-me, na época, que, para ele, a literatura brasileira começava e parava com a poesia do condoreiro. Alimentava veleidades de orador. A sua voz era vibrante, a sua personalidade era atraente e, por isso, impunha-se entre os colegas como uma espécie de líder. Praticava o verso, versos profundamente influenciados pelo estro do vate de Espumas flutuantes. Dirceu chegou mesmo a publicar, segundo me informaram , um livro – O canto do Calabouço - inspirado em questões políticas (uma outra faceta dele eram os problemas políticos, as questões sociais).
Quando, certo dia, lhe havia dito que fora aprovado no vestibular da Faculdade Nacional de Filosofia, para o curso de Letras, recebi dele um emocionado abraço à porta do restaurante daquela instituição superior de ensino.
A política, atraindo-o cada vez mais, absorvia-lhe outras atividades, como a de aluo da Faculdade de Filosofia Gama Filho, cujo curso de Letras começara.[iii]
Procurado pela polícia, em virtude de seus discurso inflamados, em praças públicas, contra o governo, desapareceu das suas relações de amizades no Rio...
Outra figura interessante da Casa era o Raimundinho. Maranhense, baixinho, magrinho, sofria de gaguez. Raimundinho tinha pruridos de ser cantor. Só falava em mulheres bonitas, em namoradas suas, “as minhas fãs” – dizia ele -, em conjuntos musicais, em gravações de suas composições cantadas por ele próprio e que jamais apareciam... Figura cômica. Era o banco da Casa. Emprestava dinheiro a todos, poucos lhe restituíam o dinheiro. Gostava de andar bem vestido, por isso, trabalhava numa companhia, se não me engano, alemã, que ele dizia estava prestes a falir. Raimundinho, além disso, era amante das moças estrangeiras. Por isso, arranjava muitos pen friends da Suécia. Dizia que escrevia as cartas em inglês...
Tinha pouca instrução. Não era boa cabeça para os estudos. Disseram-me que não havia jeito de passar do 2º ano ginasial.Não parecia, porém, ter complexo de inferioridade. Acreditava sinceramente nos seus dotes de cantor e compositor. Conhecia artistas de música popular. Fazia amizades com maestros, compositores, gravadoras etc. Só vivia metido em shows de uventude preocupada com as tendências modernas da música popular. Acordava cantarolando. Raimundinho proporcionava alegria. Todavia, intimamente, nos causava pena.
Quando soube que eu gostava de inglês, não me deixou mais em paz. Pedia constantemente que lhe fizesse cartas para as suas fãs no estrangeiro. Também me pedia para traduzir as respostas das cartas. Até havia fluência quando me ditava oralmente as suas cartas. Em razão desses favores, se me tornara amigo.
Raimundinho nunca poderia ser olvidado das minhas reminiscências da CESB.
Outro rapaz da Casa era o João Ernesto, parnaibano, gordo, baixo, moreno, sempre sorridente quando se dirigia a alguém. Inteligente, ninguém podia. Na Parnaíba chegou a ingressar num seinário e lá passou alguns anos. Depois, saíra. Veio para o Rio. Era tido como conhecedor de latim (ai dos que saem dos seminários, pensa-se logo que são latinistas...).
De vez em quando, não sei se para testar-me, perguntava:
-Como você traduziria esta sentença: Homo homini lupus? Onde é que está o verbo, que não vejo?
João queria ser médico. Arranjava cursinhos para se preparar ao vestibular. Diziam-me que João, assim que ia estudar na biblioteca do Ministério da Educação, costumava dormir pesadamente (era um bom garfo, batia duas ou três bandejões do famoso Calabouço), esquecido das fórmulas químicas e dos intrincados problemas de física.
Tentara o vestibular.. Não passara. Ficara como excedente. Pouco tempo depois, ingressou por concurso nos Correios e Telégrafos. Só vivia se inscrevendo em concursos públicos: “Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”.
Os outros moços da Casa eram muitos, todos de fora do Rio. Não havia um carioca. Eu era o único piauiense até então.
O Marinho, rapaz inteligente, era meu companheiro de estudo durante horas a fio naquela sala de leitura da Casa. Marinho, preparava-se para ingressar no curso de Engenharia;eu, para o de Letras. Marinho hoje cursa o 4º ano de Engenharia na Faculdade Nacional de Engenharia. Da Universidade do Brasil. Exemplo de moço pobre que, vindo de Goiás, vence brilhantemente neste mundo de concorrência, que é o Rio de Janeiro, sofrimento de muitos jovens incautos. Só pelo seu valor conseguiu um lugar ao sol no importante ramo de estudos, que é a Engenharia.[iv]
José Almeida, baiano, simpático, ótimo companheiro, encaminhado já para o curso de Geologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Sebastião, outro lutador, conhecido como Tião. Desejava ser engenheiro. Conseguira entrar na Engenharia Operacional. Amigo do carnaval, gostava de sambar em plena rua do Centro da acidade. Atualmente, leciona matemática.
Francisco de Paula, muito político , amigo de Dirceu, de ótima memória, estuda atualmente Medicina em Córdova, na Argentina. No Brasil, não tentara o vestibular.
Domingos, goiano, muito alto, mulato, queria por força ser diplomata. Vive ainda na Casa , bem como o João Ernesto.
Jordão, pernambucano. Pobre Jordão, sempre procurando melhorar de emprego, sempre em luta pela vida. Fez curso médio de contabilidade. Era protestante. Dizem que hoje está dando aulas no Estado do Rio. Político arrebatado. Tanto ele com Tião e Jordão não eram mais novinhos como os demais.
Não podia, entretanto, deixar de mencionar o nome de Raimundo Durans (ou Durães?), conhecido como Chapu, Chapô e outras alcunhas. Talvez o mais velho morador da Casa. Maranhense. Acho que nem primário completo tinha. Entrara na Casa através de amizades. Era muito pobre.Figura excêntrica, inconfundível, brumosa, misteriosa. Diziam-se dele muitas coisas fantásticas.
O seu leito ficava no alto da parede, perto do teto de uma salinha. Sua cama era pregada na parede. Chegava até ela por uma escada.
Tipo de desequilibrado inteligente, incompreendido, desajustado do meio. Falava sozinho pelas ruas. Em casa, não perturbava ninguém. A sua presença não era quase notada pelos moradores. Só andava de gravata e camisa de mangas compridas.
Para sobreviver, trabalhava numa alfaiataria, possivelmente como auxiliar de alfaiataria. Nunca soube ao certo. Era ele quem fazia consertos em nossas roupas a preço camarada. Chamavam-no também de filósofo.Só vivia enfurnado num quartinho no qual cabia apenas a sua pessoa. Ali era seu laboratório, a sua biblioteca, lugar onde matinha seus arquivos.
Chapô tinha respostas para todas as questões da vida. Considerava-se numa fase mental superior a todos – dizia ele. Aquela fase havia atingido, segundo ele, a custa de muito estudo e disciplina mental.
Certa vez me mostrara um recorte de jornal com um artigo de sua lavra. As suas leituras eram livros de filosofia oriental, livros de conteúdo nebuloso. De quando em vez, me mostrava uns desenhos multicoloridos, com traçados geométricos complicados.
Cada linha, horizontal, vertical, inclinada, pontilhada, representava uma porção de problemas e questões filosóficas. Criticava o governo, os homens atuais, as mulheres, a socieddae, tachando tudo de corrupção, rematando os seus pontos de vista com uma série de palavrões. O ser humano para ele era apenas a vítima inconsciente das conseqüências desastrosas de um estágio atrasado.
-São uns inconscientes – dizia ele. Como podem homens ser dominados por mulheres?!
Uma vez, fora preso porque atacara o Exército nas barbas do Ministério da Guerra. Raimundo ainda vive n a veneranda Casa[v]




NOTAS

[i][i] O tempo de escrita destas memórias remonta aos anos setenta do século passado. Por outro lado, o tempo da narrativa transcorreu nos meados da década de sessenta. Os dois tempos abrangem o período da ditadura militar.
[ii] Pouco depois que me casei (1967) e deixei de morar na CESB, soube que Antônio de Almeida tinha entrado para o Exército e atingido a patente de sargento. Mas, a nota estranha e trágica que me chegou ao conhecimento foi a de que, um dia, o meu querido companheiro da CESB fora encontrado morto em Copacabana. Tinha sido baleado. Nunca fiquei sabendo o real motivo de sua misteriosa morte..
[iii] Não mais tive notícia notícia do querido companheiro. Portanto, não sei se ainda está vivo e o que fez da vida.
[iv] A respeito de Marinho, soube que teria , depois de formado, ido para São Paulo, onde iria trabalhar na área em que se graduara. Acredito que tenha feito uma boa carreira como engenheir

[v]Anos mais tarde,no Centro da cidade, vi Chapô.. Ele estava conversando com alguém. Era dessas pessoas que não o largam quando por acaso o encontrem.Depois, nunca mais o vi.

sábado, 10 de outubro de 2009

Ausência de caráter

AUSÊNCIA DE CARÁTER



Cunha e Silva Filho



O Estado – esse Leviatã na expressão de Thomas Hobbes (1588-1679) -, se fez para permitir que os indivíduos em sociedade possam conduzir suas vidas e realizar-se social, pessoal e profissionalmente. Hoje em dia, a complexa máquina estatal tornou a vida de cada pessoa pouco ou o mínimo possível suportável. A estrutura dessa máquina dispõe dos mais diversos mecanismos que limitam excessos e abusos do cidadão, assim como, em outras circunstâncias, vitais, serve como dispositivo altamente coercitivo da chamadas liberdades individuais.
A natureza do Estado é impessoal. Seu funcionamento pleno só pode ser exercido em razão de seus objetivos fundamentais: a engrenagem da máquina administrativa não pode sofrer solução de continuidade.Caso isso aconteça, todo um aparato jurídico- policial se põe a funcionar coartando qualquer possibilidade de desarticular aquela engrenagem.
A essência do seu funcionamento e de sua normalidade subsiste na medida em que as leis do Estado são cumpridas, conquanto ,em alguns casos, o sejam em detrimento de terceiros.
A força do Estado é centrípeta, controladora, fiscalizadora, coercitiva, por vezes castradora. Assenta-se no poder legal da autoridade constituída e é em seu seio que os fatos sociais se concretizam, seja para o bem , seja para o mal.
Se essa máquina impessoal, com disse, não dá exemplo de conduta moral do ponto de vista dos indivíduos que a representam na condição de servidores públicos, instaura-se a desordem e a perplexidade da comunidade social diante do dolo, do crime, da corrupção.
Se o Estado, em qualquer instância do poder, falha em sua conduta ética, então a tendência normal por parte do tecido social é considerá-lo sob suspeita e indigno de respeito.
Basta um incidente grave cometido por um de seus membros para que maior seja o sentimento de indignação da sociedade.
No país não se registram apenas casos isolados de improbidade de servidores públicos, civis ou militares. Quando o ato ilícito é praticado por setores do governo, cuja função e responsabilidade são proteger o cidadão dos criminosos e encaminhá-los à justiça, então, a única possibilidade que vejo seria, após rigorosa apuração dos inquéritos instaurados contra o suposto réu, na hipótese de este ser julgado culpado, a perda do cargo a bem do serviço público e, além disso, com a consequente punição e encarceramento do condenado. Mas – sublinhe-se aqui -, com prisão real, sem possibilidades das chamadas brechas da justiça que remontam aos tempos dos meirinhos do reinado de Dom João VI no Brasil, tão bem caricaturados pelo nosso Manuel Antônio de Almeida (1831-1861) nas deliciosas Memórias de um sargento de Milícias (1853)
Há pouco tomei conhecimento de uma oficial superior,da Polícia Militar de São Paulo que supostamente foi acusada de receber polpudas propinas da contravenção a fim de que os criminosos de caça-níqueis ou mesmo do tráfico pudessem conduzir seus negócios espúrios sem serem molestados ou reprimidos por quem deveria por lei fazê-lo. Se comprovada pela justiça tal prática criminosa por parte de um militar, o Estado não pode se omitir, sob pena de flagrante cooptação com os desmandos da criminalidade.
Um fato como esse me leva a refletir sobre o caráter do indivíduo e, pr extensão, sobre o caráter do brasileiro que, em linhas gerais, não tem dado bom exemplo nos diversos segmentos da sociedade contemporânea.
Como uma pessoa, escolarizada, algumas com curso superior, tendo sido orientada para o exercício da justiça e do bem comum, de repente, se vê enredada em práticas imorais nas suas funções públicas ou privadas, pois também vale para este setor?
Os exemplos de falta de caráter e de honestidade no desempenho de um cargo não são casos isolados entre nós, mas estatisticamente revelam um número bastante elevado de pessoas sem escrúpulos nem dignidade que, de uma hora para outra, viram manchetes de jornais ou notícias de TV, rádio ou da internet por estarem envolvidos até à medula em prevaricações.
Nos causa medo, até um certo sentimento de prevenção contra quem está no poder, seja nas altas esferas de nossas instituições, públicas ou privadas, seja nas esferas inferiores. Esse sentimento de prevenção que nos invade interiormente chega mesmo até à irracionalidade de julgarmos que todo mundo seja um potencial agente da ilegalidade e da corrupção. Sabemos que tal situação não é apenas restrita ao Brasil. Creio, entretanto, que, em nosso país, ela se mostra com maior aprofundamento.
Será possível que não tenhamos a capacidade de reduzir ao máximo essas tendências latentes nos indivíduos de, quando adultos principalmente, se tornarem mais um exemplo da falta de caráter?
É preciso uma reformulação rigorosa da formação moral da pessoa humana. Um dos fatores que muito nos ajudará a contornar aos poucos essa alta incidência de praticantes de imoralidades de todas as matizes será o aprimoramento da educação brasileira, de uma formação integral (Lembremo-nos das sábias lições de Mário Gonçalves Viana expostas na sua notável obra A educação integral. 2 ed. Porto: Editora Educação Nacional, 1950) que não descure do ensino da filosofia com lições adaptadas ao nível fundamental nas suas duas últimas séries e de, pelo menos, uma das séries do ensino médio, e de ensinamentos genuinamente oriundos de fontes cristãs ou de outras religiões ou crenças que ponham a dignidade da pessoa humana como o mais elevado atributo de sua personalidade. Nesse sentido, recorro às palavras de Santa Teresa de Jesús, que dizem: “La tierra que no es labrada llevará abrojos y espinas, aún que fértil; asi el entendimiento del hombre.”

Um poema de William Butler Yeats

Cunha e Silva Filho

Hoje, escolho para o leitor um poema de William Butler Yeats, poeta inglês, ganhador do prêmio Nobel, nascido em 1865 e falecido em 1939.*
O poema em questão, “When you are old”, foi extraído da obra The Rose (1893). Mais adiante, apresento ao leitor a tradução bilíngue dessa peça poética.
Os primeiros poemas de Yeats receberam o influxo do material mítico e folclórico do Norte da Irlanda. A essa temática ele acrescentou outros tópicos, transformando tudo isso em poesia de alta elaboração poética.
Cumpre recordar que, com o tempo, seu lirismo se expandiu em outros temas que, além da antiga dicção ligada à Irlanda, poetizando o amor, a saudade, a reflexão sobre o tempo, a história, a balada amorosa, a dimensão espiritual, a poesia narrativa, num clima de magia e misticismo, o poeta explorou, depois, temática vinculada a um realismo angustiado de base nacionalista e preferências políticas. A par disso, Butler escreveu também peças teatrais, ensaios, contos, autobiografias e sobre filosofia. Muitos poemas de sua lavra têm suas raízes plantadas no seu tempo de criança na Irlanda.
Uma característica sua como poeta, que o acompanhou obstinadamente durante toda a vida, era fazer revisões e alterações em seus escritos poéticos. O poeta deixou as seguintes obras: Crossways (1889), The Rose, já referida, The Wind among the Reeds (1889), In the Seven Woods (1903), The Green Helmet and Other Poems (1910), Responsabilities (1914), The Towers (1928) The Windig Stairs and Other Poems (1929) e The Collected Poems (1933).
Segue, abaixo, o mencionado poema :


When you are old


When you are old and gray and full of sleep,
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Yours eyes had once, and of their shadows deep;
How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true;
But one man loved the pilgrim soul in you,
And loved the sorrows of your changing face.
And bending down beside the glowing bars
Murmur, a litle sadly, how love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face amid a crowd of stars.


Momento da velhice


Quando a velhice chegar, grisalha e sonolenta,
A cabeça movendo, ao pé da lareira, pegue este livro
Leia-o sem pressa, e sonhe com o doce olhar de outrora
E sonhe com suas sombras profundas.
Quantos lhe amaram o tempo de viço e alegrias
Quantos lhe amaram a beleza com sinceridade, ou não.
Um homem, porém, sua alma peregrina amou, sim,
E amou ainda as tristezas de sua face mutável.
Inclinando-se, junto às grades em brasas
Sussurou algo triste: o amor se foi e
Atravessou as montanhas bem distantes
E ela, entre miríades de estrelas, dele ocultou a face.


Nota:
* As informações biobibliográficas aqui fornecidas, e bem assim dados relevantes sobre a temática do poeta, foram pesquisadas principalmente na seguinte fonte, da qual extraí o poema traduzido: YEATS, William Butler. Early poems, unabridged,. New York: Dover Publications, INC., 1993. O poema se encontra nas págnas 29-30.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Onde está a nossa moral política?



Cunha e Silva Filho


Depois de ler uma carta que me enviaram pela Internet escrita pela Teresa Collor e endereçada a Renan Calheiros, sinto calafrios, não de medo, mas de vergonha de ter um titulo de eleitor e ter que, em data de eleição, ser obrigado a votar. É muita infâmia, sujeira moral, falta de pudor, de formação ético-religiosa, de estudo e preparo para a vida pública, o que relata a bela Teresa, que carrega um sobrenome maldito nas costas. Fosse ela, retiraria tal sobrenome. Não é digno de sua beleza e de sua sensibilidade e elegância não só física, mas também ética. O que essa senhora, viúva do irmão do caçador de marajás, nos relata da trajetória desse Renan Calheiros é de causar horror a qualquer vivente.
Não concebo a atual vida política nacional senão recorrendo a uma figura de retórica, no caso, a metonímia. O país, desde a sua fundação, nunca deu bom exemplo de lisura e honestidade palaciana, com poucos intervalos históricos.
Ou seja, em nossas plagas, a parte nunca funcionou tanto como a metáfora do todo num movimento dinâmico e constante de reversibilidade que remonta à chegada de Dom João VI, cujo retrato mais fiel busco, não na História nacional, mas na ficção, precisamente na ficção de Manuel Antonio de Almeida (1831-1861), com as suas Memórias de um sargento de milícias (ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. Rio de Janeiro: Ediouro, Biografia e introdução de Afrânio Coutinho, s/d, ).
Algumas passagens da narrativa almedina dão a imagem perfeita e ainda atual da dissolução da ordem e da segurança das instituições públicas. O ponto ideal que traduz a realidade do poder é aquela passagem em que o narrador, capítulo 8, chamado “O Pátio dos Bichos,” com tintas de deboche, descreve o espaço do paço imperial, então chamado palácio del-rei. Esse espaço compreendia uma “saleta ou quarto,”que, na época joanina, servia para alojar três ou quatro oficiais superiores, chamado pelo narrador de “velhos” que não passavam, de resto, de “sessenta” anos. A caricatura que lhes faz o narrador dá uma idéia perfeita e acabada do que o subtexto fornece ao leitor.
Vejamos mais de perto, transcrevendo os trechinhos seguintes: a) “... oficiais superiores, velhos, incapazes para a guerra e inúteis na paz...” 2) “... o tempo todo passavam em santo ´ócio, ora mudos e silenciosos...”3)”Às vezes, acontecia de adormecerem todos ao mesmo tempo...”(op. cit., p.26-27) O povo, os próprios oficiais e os soldados de guarda do palácio, todos, enfim, que assistiam àquela costumeira cena modorrenta e farsesca, somavam-se às risadas dos populares . O mais ridículo era que, pilhados no ronco em conjunto, num ressoar em coro, eram acordados de repente por um gaiato que lhes pregava uma peça, lhe dizendo que el-rei os chamava com urgência. Os patetas, dando ouvido ao “gaiato”, lá iam à presença de el-rei que, percebendo a patuscada, explodia em risos...
Em várias passagens deste divertido romance, não é difícil pinçar passagens e situações hilariantes que não deixam de ser ainda atuais, como sugeri linhas atrás,em muitos aspectos da nossa querida República.
Não foi por menos que Antonio Candido formulou o conceito de “ordem e desordem” da reversibilidade do comportamento de nossa vida social. E a sua visada interpretativa da sociedade brasileira partia da ficção ambientada no Brasil colônia.
Os últimos acontecimentos da política brasileira têm demonstrado que vivemos dias carnavalizados. Para onde olhamos, nada vemos que nos dê algum ânimo de melhoria de nossas instituições representativas, sobretudo na Câmara e no Senado. O país perdeu sua identidade política na esfera moral. Nossos representantes, com raras exceções, não se pejam em exibir um comportamento que fere a dignidade da alma brasileira. Suas ações políticas visam, não aos interesses coletivos, mas a regalias pessoais. Não só regalias, mas ações pautadas na ilegalidade, no desempenho do mandato pela prática contumaz, pelo dolo, pela prevaricação, pelo conchavo, pelos golpes baixos do tráfico de influência, de apadrinhamento, do antiga e malsinada prática do “favor”, do nepotismo, das indicações feitas na base do interesse eleitoreiro, de captação do voto pela urdidura de natureza demagógica ou messiânica.
Nossos representação política não está dando bom exemplo ao povo brasileiro, que é o de tornar a nossa vida melhor e mais justa. Uma vez eleitos, agem, em Brasília, como se fossem representantes deles mesmos e de grupos de má liderança, não do povo.
No caso mais recente da CPI contra supostas ações partidas da presidência do Senado, houve muito barulho, mas, ao final, nada de concreto se fez para punir culpados e cúmplices, porque ninguém se torna imune de culpabilidade se não conta com o apoio de seus pares. Toda essa bulha criada até parece que não passou de encenação de bastidores, porquanto, no final, quem sai vitorioso é a força do poder, não das idéias, não dos argumentos justos, não da legalidade, não da Constituição e da força do Direito.
O desenlace fica sempre favorável ao indigitado. Lembra uma comédia shakesperiana na qual “Tudo fica bem quando termina bem.” E terminar bem significa que as esperanças e expectativas do povo brasileiro, mais uma vez, capitularam diante das pressões do poder. Há pouco, na Folha de São Paulo, Frei Beto, escrevendo, com sentido de parábola, sobre Catilina, conspirador da República romana no ano 63 a. C., no período em que o grande orador e escritor, então cônsul, Cícero (106-43 a. C.) denunciou-o através de quatro vigorosas orações reprovando a conduta imoral de Catilina. Esses discursos ficaram conhecidos como Catilinárias e valeram ao seu autor o título de o “Pai da Pátria”. A parábola de Frei Beto tem endereço certo.

Highbowism e lowbrowism: eis o dilema

Highbrowism e lowbrowism: eis o dilema


Cunha e Silva Filho

Há muito, muito tempo, o jornal o Observer, de Londres, lançou um concurso no qual competidores deveriam formular definições para a palavra “highbrow”, cuja acepção no dicionário corresponderia a uma “pessoa excessivamente intelectualizada”. Dois escritores ingleses entraram no páreo: Aldous Huxley (1894- 1963), o célebre autor de Admirável Novo Mundo e Gilbert Frankau (1884-19520), romancista e contista muito conhecido e autor, entre outros, dos romances Peter Jackson e Cigar Merchant. Ambos, diferentes intelectualmente em muitos aspectos, logo se posicionaram acerca do termo proposto.1
Aldous Huxley tomou a defesa do highbrowism – o que era de se esperar -, pois ele era um ilustre descendente de uma linhagem de intelectuais. Neto do famoso cientista Thomas Huxley. Seu tio-avô era Matthew Arnold. O pai foi editor da Cornhill Magazine. Sua tia, Humphrey Ward foi uma famosa romancista no tempo dela. O irmão de Aldous Huxley, Julian Huxley, foi um insigne biólogo. O próprio Aldous Huxley educou-se em Eton e Oxford. Huxley exerceu uma atividade intelectual múltipla, repartindo-se entre o jornalista, o dramaturgo, o crítico de música e arte, o ficcionista, o poeta, o ensaísta, o biógrafo.
Gilbert Frankau foi um contista e romancista de muito talento. Suas estórias eram do tipo que fisgava a atenção do leitor até a última página. Mas, a crítica informa que esse autor não alimentava nenhuma veleidade literária. Huxley, entretanto, compunha romances altamente complexos, que não davam importância à fabulação, mas punham sua tônica na denúncia irônica às loucuras e defeitos do seu tempo. Sua literatura acentuava primordialmente a argúcia da inteligência, a seriedade moral e o desinteresse pelos padrões convencionais. Ficção avessa aos sentimentalismos, porém impregnada de conhecimentos e erudição.
Gilberto Frankau, ao contrário, foi um ficcionista que ia fundo na vivência e na experiência direta da vida, no conhecimento do homem comum. Era dessa matéria da realidade que construía seu universo ficcional.
Huxley fora o protótipo do intelectual complexo e sofisticado, distante das massas, senhor de gostos refinados, preferindo fruir não a sensualidade de uma bela mulher estampada nas revistas da época, porém o prazer estético das figuras produzidas pela pintura de um Rubens, de um El Greco, de um Constable, de um Seurat. No plano literário, na música, seu intelectualismo se voltava para as obras de Dostoiévski, a música de Beethoven, de preferência ao jazz ou às estórias meramente excitantes.
Todo o seu gosto artístico direcionava-se à esfera da altas elucubrações intelectuais, que para ele eram uma questão de gosto. Por isso, se definia: “ -- Sou um highbrow.” Na sua discussão em defesa do highbrowism, menciona algumas preferências que não se coadunavam com os seus interesses: corridas de cavalo, jogos de futebol,.. A esses dois interesses prefere dedicar-se ao cultivo e aperfeiçoamento do conhecimento. Já a matança de animais por simples diversão o deixava tremendamente enojado e furioso de indignação. Huxley, no entanto, não vê apenas a questão do gosto individual por algumas coisas. Entende que o debate se prende aos argumentos tendentes ao confronto de “padrões mais objetivos.”
Sendo assim, Huxley assinala que o antípoda do highbrowism, o lowbrowism, está sempre se insurgindo contra o que consideram ser a desumanização do highbrowism, ponderando que eles, os lowbrows2, é que afirmam expressar “admiravelmente” o sentimento do homem. Acham, portanto, que estão com a razão, principalmente porque alegam que formam um conjunto maior de adeptos.
No entanto, curiosamente Huxley observa que os highbrows são como os fariseus da parábola, que agradecem a Deus por serem diferentes dos outros e, ao contrário, fazem um retrato dos que lhes são adversários de forma muito menos lisonjeira do que Jonathan Swift (1667-1745) fez dos Yahoos.
Huxley nota que as críticas dos lowbvrows se tornaram tão virulentas que para eles a única forma de revide dos higbrows seria uma atitude de desprezo com ares de superioridade. O highbrowism, para Huxley se relaciona à virtude e ao caráter de bondade, ao passo que a ignorância e a grosseria de seus adversários ligam-se à maldade.
No parágrafo seguinte, Huxley afirma que as argumentações oferecidas pelos dois tipos de intelectuais se lhe parecem “fúteis” e cada “atitude emocional” dos dois lados se lhe afigura também “deplorável”. Um maior número de adeptos de uma visão não é evidência suficiente da validade de um conceito e, para tanto, cita o exemplo de que, em 1600, a Terra não era o centro do universo só porque a maioria então pensava que o fosse, nem o fato de que Ella Wheeler Wilcox(1850-1919), poeta americana de dicção sentimental, por ter mais leitores, seja melhor poeta do que Gerald Manly Hopkins (1844-1889),, cujo poema mais conhecido é “Pied Beauty”, segundo a crítica um poeta que se distinguia pela beleza sutil e original de pensamento e som. Huxley não entende por que motivo os lowbrows reivindicam só para si o apanágio de humanidade. Por que razão, segundo ele, deveria ser “desumana” a distinção feita entre homens e animais e “humana” aquela que os homens compartilham com os “animais inferiores?” Os highbrows argumentam que, ao contrário dos lowbrows, pelo fato de serem minoria eles estão com a razão. A maior ofensa cometida pelos highbrows é a de votarem desprezo pelos outros e manifestarem um sentimento de farisaísmo auto-complacente. Huxley ressalta que, no passado, os highbrows detinham sozinhos o poder da superioridade, ao passo que os lowbrows se resignavam à sua condição de inferioridade.
Para Huxley, tempos depois, houve uma mudança. Os lowbrows manifestaram um comportamento semelhante aos highbrows. Valorizram-se e ainda mais valorizaram sua diferença. A idéia da mediania e da simplicidade ganha foros de legitimidade e grandeza, i.e., puseram-se em igualdade de condições singularizados pela diferença e até engrandecidos por uma certa forma mística em sua própria identidade comum. Essa nova postura acrescentou ainda uma nota dissonante à confusão contemporânea.
O autor de Ponto Contraponto, em última análise, vê entre os dois grupos apenas uma diferença qualitativa, no entanto reconhece que, em alguns ângulos, a vida de um highbrow se afigura “mais intensa do que a de um lowbrow.
Entre os highbrows, frisa Huxley, há uma variedade muito maior de aspectos, havendo ainda o fato de que o poder que detêm do conhecimento propicia uma maior racionalização dos fatos da experiência.
Lembra que os lowbrows têm uma visão do mundo desconexa, enquanto que os highbrows, pelo conhecimento, conseguem a fusão desses acontecimentos isolados e, com isso conseguem dispor de um todo parcialmente inteligível.
Lembra ainda que os highbrows são privilegiados já que a assimilação do valor artístico ´´e mais completa e dispõe de maior opulência graças ao seu refinamento e à sua complexidade. Para o ensaísta a absorção de um maior refinamento artístico se faz superior em qualidade e engrandece muito superiormente a experiência. Passa a ter um caráter de profundidade, não de horizontalidade.
Todavia, é inegável que ele encontra na sofisticação da inteligência uma vida mais plena ainda que sublinhe a circunstância de que uma vida menos plena não significa que seja melhor ou pior.
Ao dignificar o conteúdo da vida de um highbrow pelo balizamento estético e científico, o ensaísta não tem dúvida de que ele seja muito mais enriquecedor e significativo. Por outro lado, nada garante a muita gente de boa formação a possibilidade de desfrutar de maiores prazeres mercê dos “processos e experiências” conducentes a uma vida “rica” e “significativa”, visto que elas bem podem usufruir de prazeres por “processos e experiências” derivados de uma existência menos rica e menos plena de sentido.
Tudo se resume, como ressalta o ensaísta, a uma questão de preferências e capacidades individuais.
Pelas características já apontadas atrás, podemos facilmente deduzir como Gilbert Frankau reagiu diante das idéias discutidas por Huxley no tocante ao conceito de highbrowism. Ao se proclamar “Eu sou um lowbrow,” Frankau se opõe frontalmente a Huxley, que, pelo visto, encarna o protótipo do highbrowism. A exposição de Frankau praticamente acompanha, pelo prisma da divergência contundente, cada afirmação huxleyana. O seu discurso é uma réplica ao intelectualismo do autor do Admirável Novo Mundo.
O discurso contra-argumentativo de Frankau se incia por uma citação, de resto, irresistível, de um trecho poético de Rudyard Kipling (1865-1936), o qual, em última análise, equivale a um diálogo contrastivo com a cosmovisão huxleyana. O pequeno trecho poético de Kipling acentua um dado evidente – a valorização da vontade individual, um sentido de liberdade. Evidencia, ademais, um sentimento de comunhão humana, de liberdade de escolha, sem receio mesmo da ameaça de forças negativas ou de diretrizes de cunho cristão. Ao invocar o nome do Senhor, Kipling eleva às alturas o papel das pessoas como seres bem conscientes, situados nas duas pontas da existência,de sua finitude e fugacidade.
Ironicamente, Frankau reforça que essas idéias são de Kipling, autor para quem a visão de cavaleiros galantes sobre ginetes caçando raposas a toda brida e arriscando suas vidas, não lhe causa nenhuma indignação extrema ou indiferente repulsa. O trecho poético de Kipling reafirma, em forma de prece, a repulsa por qualquer sentimento de orgulho – o Médio, o Alto, o Baixo, assim maiusculados, é uma maneira de permitir a aproximação fraterna.
Com a citação de Kipling, Frankau procura desconstruir o edifício ideológico huxleyano e primeiro o faz lamentando profundamente a sua posição e a de seus colegas highbrows, acrescentando que, ao se comportarem como o fazem, não avaliam o quanto de alegria estão perdendo.
Frankau, então, vai alinhando todos os pontos de discórdia entre ele e seu colega-ficcionista, assim resumidos nos seus aspectos principais: - A vida de um highbrow não é mais plena do que a de um lowbrow. - A mensagem desse tipo de intelectual considerada “significativa” (território de todo higbrow) – divisor de água de todos os highbrows – só lhe provoca consternação. - As ”manifestações de vida” consubstanciadas nos “símbolos privados” com os quais os poetas protegem suas emoções pessoais. - Huxley não pode se considerar melhor do que os lowbrows só porque encontra numa pintura de Rubens uma emoção muito superior a uma garota sex appeal de uma capa de revista ilustrada por Harrison Fischer. - Não seria demonstração de virtude que um livro lido por Huxley seja mais divertido do que uma partida de bridge. - Empregando mais de uma vez no seu texto expressões características de auto-inferioridade, discorda da assertiva de Huxley de que os seres humanos passam no mínimo metade de seu tempo de lazer discutindo sobre gostos. - Pontuando ironicamente o repto a Huxley, rebate, ponto por ponto, o pensamento intelectualista do adversário e o faz ao longo de todo o seu ensaio. - Utilizando-se de expressões de auto-inferioridade que não deixam de ser um forte e recorrente traço de ironia, tais como “organismos presumivelme inferiores,” “mente essencialmente lowbrow”,”nós lowbrows,” “humilde lowbrow”, em vez de rebaixarem, elevam a qualidade do nível de seu próprio intelectualismo.
Frankau não rejeita o valor do conhecimento científico e do conhecimento da chamada arte erudita. Tampouco renega o conhecimento oriundo de outras áreas consideradas inferiores. Note-se que, citando o trecho de Kipling, o ensaísta demonstra que à valorização hipertrofiada da ciência e do conhecimento huxleyano, ele contrapõe a exaltação da convivência de nosso semelhantes.
Além disso, toda a argumentação de Frankau reveste-se de uma enganosa aparência de mediania do espírito. A defesa de sua posição não é mais do que uma questão de opção por determinados aspectos da vida cultural e de preferências antiintelectualistas. O seu horror dirigir-se-ia com certeza à presunção e à fatuidade dos highbrows. Tanto é verdade que o texto dele está permeado de alusões literárias e de evidências de um escritor sintonizado com a cultura letrada.
Ao dizer que a maior parte do seu dia e daqueles de sua espécie se gasta no trabalho árduo – e aqui se pode indiciar uma metáfora para a atividade do espírito -, ele está apenas asseverando que o tempo dolazer, entendido como entretenimento simples e corriqueiro, não possui outra função senão a de relaxar a mente e o corpo.
Frankau de modo algum se põe contra as preferências intelectuais de Huxley ilustradas pelas leituras de romances russo e da fruição da música de Beethoven. O grande erro de Huxley para ele é a intromissão nas preferências não-eruditas pelo jazz e por estórias policiais. O que ele reprova com veemência é o caráter marcadamente elitista de Huxley que não entende serem as preferências pelas coisas mais humildes tão ou mais abrangentes do que as do autor de Ponto Contraponto.
Frankau discorda das pretensões de Huxley quando este alega que sua experiência é mais ampla e que, por vivermos num mundo constituído de acontecimentos “isolados e desconexos,” somente o conhecimento é capaz de fundi-los num todo no mínimo parcialmente inteligível. Daí utilizar-se de uma citação de um apóstolo: “Conhecimento em demasia leva à demência”. Afirma o ensaísta que não se pode exagerar as nossas crenças com base no saber, pois este somente tem funcionalidade na medida em que atende à nossa profissão ou ofício particular. A vida – assinala ele -, não passa de uma questão de trabalho e jogo. E conclui; “... em quase cada dificuldade, a consciência e o senso comum se tornam a nossa mais segura orientação.
O ensaísta - repito -, não abjura a ciência verdadeira “que lida com os fenômenos materiais”. Invoca uma citação de um falecido satírico sem nomeá-lo, que diz; “... toda Arte prestar-se-ia à inutilidade a menos que transmitisse a complexidade de sua experiência por meio de palavras simples, sons simples e pinceladas simples.”
Aí, de acordo com Frankau, residiria o grande impasse entre highbrows e lowbrows, e dá um exemplo. O lowbrow diria: “Seja claro.” O highbrow: “É claro, a menos que você seja um imbecil.” Isso é que para Frankau seria puro esnobismo.
Entretanto, o ensaísta não deixa de reconhecer que o esnobismo, o complexo de superioridade podem, infelizmente, conviver com o lowbrowism. Estende, então, sua crítica até os limites de seu grupo, ilustrando com alguns exemplos. Qualquer homem que exerça um ofício ou trabalho pode se dar a esse pedantismo inócuo. Um bom operário não está isento de um leve complexo de superioridade, assim como um mecânico de motor qu, no trabalho, faz questão de envolvê-lo de um certo mistério para não-iniciados. Da mesma sorte, um cirurgião operando, ou um advogado defendendo uma causa.
E, agora, afastando-se de sua ironia mais explícita, se interroga como se intentasse modelizar sua réplica: “Por que não deveria o autor de obras admiráveis como Ponto Contraponto e Admirável Novo Mundo se dar ao luxo do complexo de superioridade?” Com falsa modéstia, Frankau revigora seu elogio a Huxley, mas ao mesmo tempo sustenta sua posição central ao afirmar que o romancista famoso muito ganharia caso pudesse se entusiasmar com a “multidão ensurdecedora num divertido final de uma Copa de Futebol.”.
No entanto, declara ser bem provável que Huxley sinta um secreto desejo de compartilhar do momento em que um homem de negócios, extenuado, vai encontrar uma forma de relaxamento no tranqüilo e lúdico exercício de palavras cruzadas. No entanto, o ponto alto de sua réplica a Huxley me parece esta bela, profunda e filosófica conclusão: “Todas as alturas são solitárias.”
Para finalizar, o ensaísta se permite uma divagação sondando o interior de Huxley. O grande highbrow não sentiria por vezes entre a frieza e a gelidez de seus hábitos o acicate de se embrenhar na companhia calorosa, por exemplo, daquele tipo de pessoa que lhe vai colher um morango, ou de ler poesia desde que seu poeta genuíno fizesse poemas para aquela gente modesta “em estilo simples sobre coisas singelas que elas bem conhecem e amam?"
NOTA:

1.Na preparação desta síntese comparativa, utilizei-me da seguinte fonte: ECKERSLEY, C.E. Brighter English. Revised edition. London: Longmans, 1964. O texto de Aldous Huxley tem por título “I am a highbrow”, p. 206-210; o de Gilbert Frankau tem por titulo “I am a lowbrow”, p. 213-217. Ambos se encontram na seção Essays, p. 193-222.
2 “Lowbrow” refere-se às pessoas sem nenhuma ligação ou interesse com idéias sérias no planos artístico ou cultural. É óbvio que, no texto de Frankau, o termo conota-se de auto-ironia quando aplicado ao próprio escritor, mas não quando dirigido às pessoas simples.

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