“Deixem as mulheres amar à vontade.”
Lima Barreto (numa crônica de 1915)
Cunha e Silva Filho
Tenho acompanhado pela TV algo que me causa espécie: o crescente número de mulheres assassinadas pelo marido, companheiro ou namorado.A multiplicidade desses casos me leva a pensar que as autoridades responsáveis pela segurança das mulheres não podem relaxar nessa questão. Não obstante já se possa contar com a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006, mas só aprovada pelo presidente da República em 2015) os cuidados com as mulheres brasileiras, jovens ou mais velhas, vítimas de crimes covardes e torpes, muitas vezes cometidos por razões fúteis, devem ser aperfeiçoados e postos em prática com urgência, quer pelas ações das delegacias da mulher, quer pela delegados de polícia civil.
No tempo do escritor Lima Barreto (1881-1922)), os matadores de mulher eram chamados de “uxoricidas,” do latim uxor, que significa mulher, esposa, e –cida, “que mata,” assassino. O escritor, por sinal, foi um dos primeiros a levantar sua bandeira atacando os “valentões” covardes (permita-me o oximoro) de crimes passionais. Em crônicas ácidas e corajosas, criticava os inúmeros homicídios de mulheres desprotegidas.Portanto, o feminicídio já vem sendo tema de crônicas desde as primeiras décadas do século passado, talvez antes.
Muitas mulheres que sofrem torturas dos seus companheiros comparecem a uma delegacia, fazem o registro de ocorrência e providências não são tomadas efetivamente pelos órgãos de segurança pública, particularmente quando os maus tratos se repetem e novos registros são feitos junto às delegacias. No caso de a justiça determinar que o agressor se afaste da ex-companheira limitando a distância que ele deve manter em relação a ela, a ordem judicial com frequência não é cumprida. Ao contrário, o agressor começa a fazer ameaças de morte contra a ex-mulher, seja por telefone, por celular ou por palavras ditas à distância.
Essa desarmonia entre casais se inicia logo que a mulher não deseja mais manter o relacionamento entre os dois e, nesse caso, quem mais toma a decisão de separar-se é o lado feminino, ao passo que o companheiro, por sua vez, é quase sempre aquele que não deseja a separação. Ora, como desejar reconciliar-se o homem que maltrata, machuca e tortura a mulher? Somente se entenderia essa atitude masculina se consideramos que o homem é movido por uma patologia, uma vontade de não querer a ruptura do casal mesmo continuando a torturar a companheira, a parte mas fraca fisicamente falando, presa fácil dos brutamontes ensandecidos pela rejeição que ele mesmo provocou no convívio a dois.
Tenho observado que essa questão do feminicídio se encontra com mais frequência em estratos mais baixos da vida social. É óbvio que também podemos encontrá-lo nas camadas médias e mais altas da sociedade.
O feminicídio, vocábulo formado de dois termos, um grego, phemi, que significa “manifestar seu pensamento, sua opinião, e outro do latim de –cid/um, do mesmo étimo –cida (mencionado acima), pode embutir vários componentes da vida familiar e social e se afigura, a meu ver, um fenômeno maior na vida atual.
O seu surgimento também se entrelaça às condições de mudanças no seio familiar, na cultura machista, na falta de instrução e na ausência de formação moral e espiritual do indivíduo.
Com o esfacelamento do antigo núcleo da família, com a desagregação do tecido social e padrões de comportamento desvirtuados e de exagerada liberalidade e licenciosidade dos costumes, repercutindo negativamente no relacionamento amoroso, antes mais sólido, mais saudável, a sociedade de massa, envolta em tantos problemas e dificuldades de sobrevivência, sobretudo vivendo no meio da alta violência urbana, naturalmente vai contribuindo para o aceleramento dessas desarmonias de casais, propiciando desentendimentos, desavenças e rompimento dos laços amorosos antes mais duradouros.
Vivendo numa sociedade afluente, individualista, frenética e imediatista, pautada mais em valores materiais e hedonistas, a que se poderia denominar sociedade fundada na impessoalidade, nas desigualdades e nas facilidades hoje franqueadas aos jovens que, bem imaturos, principiam sua vida sexual, antes vigiada por pais mais rigorosos que não admitiriam as atuais transformações profundas ocorridas nas intimidades de vida sexual dos filhos, onde os namoros à moda antiga praticamente estão desaparecendo entre as famílias de todas as classes econômicas, sobretudo com o advento do uso de preservativos.
Um olhar mais acurado sobre a questão do feminicídio nos vai permitir logo divisar outros fatores que se agregaram ao elevado índice de violência contra a mulher, seja adulta, jovem, velha, adolescente e mesmo crianças. Todas sofrem diariamente torturas, estupros, lesões no corpo e na alma, de criminosos que, destituídos de algum valores morais, voltam-se contra elas sem dó nem piedade. Prometem assassiná-las caso não voltem ao namoro e ao convívio, casados ou amancebados, o que é mais comum agora.
Querem, na marra, obrigá-las a ficar com ele, elas que, de tanto padecerem em suas mãos, já não mais os amam. O rejeitado, quando sofrendo de algum desequilíbrio mental, com frequência um psicopata, um desajustado ou meramente um indivíduo cruel, não as perdoa. Persegue-as quando veem que elas não mais o amam mais e, em alguns caso, já até encontraram um outro relacionamento outro, um amor em suas vidas. É nesse ponto, que o criminoso, o feminicida, consegue uma maneira de pôr fim à vida da ex-companheira.
Fatores outros há que concorrem para essa onda de assassinios de mulheres: a impunidade das leis brasileiras. O facínora, sabendo que não será punido com uma longa prisão e de forma integral, se vê estimulado a dar cabo de mulheres por considerá-las como objeto de posse, dono do destino feminino e senhor absoluto do poder machista.
Não podemos, da mesma forma, desprezar o fato de que tais crimes contra as mulheres se devem - cumpre reiterar – à falta de instrução da população masculina, desigualdades sociais, miséria, desemprego, ausência de formação moral e dissolução da família.
Por outro lado, agrava ainda a questão do feminicídio a circunstância de que os relacionamentos não mais se sustentam por muito tempo. As opções feitas por ambos os parceiros se dão em clima de improviso, de falta de orientação das mulheres, de amadurecimento maior e de cultura.
As decisões sobre o sentimento amoroso são intempestivas, não veem bem com quem estão começando um namoro ou um projeto de vida a dois estribado na sinceridade, na troca de conhecimento de um para outro e bem aconselhados no seio da família. Sem referências da família, as jovens escolhem mal e, ao se portarem assim, não demora que desavenças comecem a irromper, com brigas, insultos mútuos, e agressões físicas ou verbais. Perdendo o respeito de um para o outro, dificilmente o casal terminará bem sua vida amorosa.
O feminicídio é parte substancial na escalada da violência que toma conta da sociedade brasileira e a solução a todas essas diferentes manifestações de violência demandam um refundação de valores éticos, culturais, sociais, econômicos educacionais e aos quais não deve estar ausenta a dimensão espiritual, a transcendência, o cultivo do humanismo adaptado aos tenebrosos tempos pelos quais atravessamos sob a ameaça constante de todos os males assinalados linhas atrás.
Nenhum comentário:
Postar um comentário