terça-feira, 25 de julho de 2017

JOGANDO FORA PAPÉIS VELHOS: APENAS UMA METÁFORA



                                                             CUNHA E SILVA FILHO



           Chega um tempo em que (isso me soa um pouco Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), que me perdoe o leitor) é preciso  jogar fora muita coisa  que não gostaríamos de  jogar no lixo: velhos jornais,  livros que não mais nos interessam (será que não nos arrependeremos mais tarde?)  cadernos  antigos, caixas de papelão de sapatos,  sacolas, plásticos e tantos outros itens que se tornaram , com o tempo,  descartáveis. Há um misto de pena que sinto ao lança-los no lixo, pois  não haverá como recuperá-los  caso  haja o  dito arrependimento.  
          Quem  nos compele a agir dessa forma é o tempo inexorável e a falta de espaço. Porém, quem vive como eu em apartamento de tamanho médio não pode se dar  ao luxo de manter tanta  tralha no espaço caseiro. Sei de pessoas que, morando em casa vai acumulando  coisas velhas   até chegar a um ponto de saturação. Muitas vezes,  se o acúmulo da s coisas velhas cheiram mal, os vizinhos  são os primeiros a se queixar e a pedir a intervenção da saúde  pública. Isso  ocorre amiúde com pessoas que vivem anos a fio na mesma casa e, ainda por cima,  criando uma multidão de gatos e cachorros. O mau cheiro infesta os vizinhos mais  próximos. E o caso vai parar, muitas vezes,  na Polícia.
       Há uma tendência no ser humano a armazenar tudo por um longo período de vida até não poder mais. Esse apego se torna algo  doentio, mas me parece ser  inerente sobretudo às pessoas idosas, senhoras idosas, solteironas,   viúvas, gente que não recebe visitas de nenhum parente ou amigo. Talvez por isso se agarrem, com unhas e dentes, às velhas   tralhas.
     Mudando de assunto,   porque, agora,   a coisa é mais séria do que se pensa: descartar-se de nossos  velhuscos  livros que se acomodaram durante anos em nossas estantes. Bem, aqui  a coisa é diferente e  me atinge em cheio, porquanto não suporto me apartar  dos meus  vetustos  volumes adquiridos, durante anos,  com os sacrifícios de um  estudante e, mais tarde, um modesto  professor e escritor.
     Fazendo um parêntese,  menciono aqui  o que alguns  ex-colegas meus, quando ainda éramos  estudantes de curso de Letras: um certo dia,  um pequeno grupo deles , por um razão que nunca soube,  foram à casa do grande linguista  Joaquim Mattoso Câmara Jr (1904-1970) Entrando na casa do famoso  professor da Universidade do Brasil, que inaugurou,  se não incorro em erro,  os estudos de linguísticos no pais,  qual foi a surpresa desse grupo de alunos ao constatarem que, na casa  do linguista,  uma casa simples,  não havia  um grande biblioteca, o que seria de se esperar  de um  erudito  mestre respeitado  no país e no exterior.
    Como poderia explicar  esses magros livros que havia  na casa de Matoso Câmara? Onde teria o mestre de Princípios de linguística geral  colocado  os esperados  muitos volumes  de uma  grande biblioteca? Até hoje, não sei  a resposta.
    Outra vez,  perguntaram a um  filólogo  bem conhecido, Leodegário Amarante de Azevedo  Filho (1927-2011), ex-professor da UERJ, se ele havia lido  todos aqueles  milhares de livros ostentados em sua  luxuosa  biblioteca. O insigne professor lhes respondeu  que não. Por experiência  própria,  temos, por vezes,  grandes livros, e nunca  os pegamos para ler. Vamos adiando, adiando até parecer  a atitude  daqueles personagens  de uma  crônica de Paulo Mendes Campos (1922-1991) reconhecendo que nós brasileiros estamos sempre protelando alguma coisa que deveríamos  concretizar.
     Creio que  a mania de guardar aquilo de que gostamos se deva a uma espécie de sentimento  interior do ser humano   que o levaria a pensar que somos eternos. Quando todo  ser   humano  sabe que isso não corresponde à verdade. Somos finitos e, queiramos ou não,  deixaremos a vida terrena. Brincamos seriamente com uma verdade insofismável e, assim,  vamos  “fingindo”  como no poema célebre de  Fernando Pessoa (1888-1935)), um notável  poema que resume tanto  do que seja  o traço  mais caracterizador  da  criação literária.
     Olho para os meus livros, companheiros fiéis de minha vida, de minhas mudanças físicas, intelectuais e espirituais, testemunhos   oculares de  minhas alegrias, tristeza e esperanças, cúmplices de meus erros e acertos. Olho para eles como se lhes quisesse falar: “Vocês aí estão esperando  por minha decisão de os ler ou reler. Eles, velhos ou novos,  me parecem  entender: “Um dia, Francisco,  V. nos lerá. Pode  demorar ou mesmo pode acontecer que nunca nos lerá.”  E, então,  infelizmente,  será tarde, muito tarde,  ecoando no  meu  pensamento  as palavras do orador sacro Monte Alverne”(1784-1858).
      Ao ver que alguns livros meus ficaram tão velhinhos,  tão fraquinhos,  cos as lombadas  se soltando,  as páginas se largando,  a capa  rasgando, costumo, há tempos, cuidar dessas enfermidades  que atacam os livros: tento,, à minha maneira artesanal, consertá-los, reforçando-os na capa, nas páginas,  na lombada   alquebrada, . Faço isso com o maior carinho, com paciência de Jó, usando apenas uma  tesoura  maior,  cola,  folhas de papel branco. É uma espécie de cirurgia que lhes vai  permitir alguns anos de vida. Descobri, ao fazer isso, que os livros parecem  pessoas. Às vezes, os mais velhos  duram muito,  continuam firmes, resistem  aos reveses do tempo  insano. Outros, de data muito menos  antiga,  ou morrem de vez, ou permanecem em estado  de causar  dó. O tempo os destruiu. Esses me desesperam.  Sei que seus dias estão contados. Pouco há para fazer por eles. Já estou  resignado. Estão para lá da UTI.
        Se dificilmente  admito a ideias de que terei que  me separar deles um dia, o mesmo sentimento  de  melancolia sinto  dos livros que perdi e, alguns, em momentos de grande aflição. Nunca mais os encontrei. Tentei,  por diversas vezes e sem sucesso,  encontrá-los nos sebos do Rio de Janeiro, depois, com alguma expectativa,  nos sebos da Virtual.   E nada  que os fizessem aparecer. Livros perdidos,  já disse outrora numa crônica, são ...) filhos perdidos, assassinados.” Ai, como me doem  as perdas de alguns livros!⁢
      Ao nos abeirarmos da velhice,  na condição de amantes de livros, ⁢já nos vai assaltando  o fantasma  de qual vai ser o destino de cada livro  amado, daquele livro, cuja descoberta numa livraria  nos deu tanto  prazer.  Levamo-lo para casa álacres,  pressurosos de o poder ler na íntegra, lhe  devorar, antropofagicamente, como o fizeram os  iconoclastas  modernistas de primeira hora,  o conteúdo. Oh, quanta “quilometragem”  de leituras e ao mesmo  quanta “quilometragem”  de não leituras!
    V. acha justo, leitor, esse encargo de nos livrarmos de nossos  próprios volumes tão por nós   reverenciados? Acho  injustas a ideia e a ação de descarte de nosso  patrimônio conseguido, como diria meu pai, com “sangue, suro e lágrimas.”  ⁢
   É melhor mudar de assunto, visto que  aquele descarte  é a última coisa  que não desejo fazer. Por que somos  tão egoístas com os nossos pertences em geral, sobretudo com os nossos livros, tanto  com os que escrevemos quanto com os que possuímos de  outros autores.  A dor é quase igual.⁢
     Oh, só quem ama os livros pode imaginar  o que sentimos  por eles. Oh, com agora entendo bem  o que o Sérgio Buarque de Hollanda (1902--1982)), fato que, de resto,  já narrei em crônica, mas que, agora, vou repetir para reforçar a ideias geral desta crônica) sentia quando, tendo comprado um livro novo, chegava, de mansinho, à sua residência a fim de que a esposa não lhe surpreendesse com um livro a mais que iria tomar mais espaço na casa. Comigo, igual circunstância,  sucede,  às vezes, e suponho que com  outras  esposas  de quem  gosta de livros: “Olhe o espaço! – dizem elas. Daqui a pouco,  os livros nos estão  expulsando de casa.” Quem mora em apartamento não pode ter biblioteca, o que, talvez, tenha levado o  ficcionista Rogel Samuel numa crônica,   declarar: “Biblioteca é para ricos.”
    O fato é que o descarte é, na maioria das vezes,   algo que nos deixa  meio triste, com a querer dizer que aquele objeto jogado fora um dia nos poderia ser útil. Reconheço, contudo,  a ponta de egoísmo  nossa. “fazer o quê? – diria o povo brasileiro  meio impotente diante de situações  adversas.
     É certo que de alguma forma   o que lançamos fora, vai ser de algum proveito  para alguém  e até mesmo lucro. Mas essa coisa  de jogar meus livros fora e  me deixa inquieto e ansioso.
Tenho alguns colegas na mesma  situação quando  o descarte é atinente ao livros. “ Por ora, vou deixar parte de livros não tão consultados mais  nalguma biblioteca pública, vou doá-los a pessoas que fariam deles, vou, sei lá, vendê-los a um  livreiro de um antigo sebo, hoje um comércio  praticamente   extinto no Rio de Janeiro, ou vou vende-los a uma livraria virtual. Não sei ao certo. Vou  pensar,  pensar,  pensar.”
     Vou contar (será que já  lhe contei?), finalmente,  um caso relacionado a livros. Não citarei nomes, mas foi verdade. Um  escritor famoso, dono de uma  baita  biblioteca, assim que faleceu,   familiares  foram logo  procurar algum  potencial  comprador  de  grandes acervos. Não demorou  muito tudo ficou consumado. Apareceu,  um membro da família do autor e, ao abrir a sala da biblioteca  do escritor, exclamou estupefato: “Já se livraram  do acervo? Mas tão cedo? Nem deixaram a poeira assentar?!⁢
     Escrevi  esta crônica  inspirado realmente na situação  que vivi hoje pela manhã. Fui ver algumas folhas velhas, papéis guardados,  jornais  não lidos inteiramente,  livros  fora do meu campo de atuação,  revistas prospectos,  agendas há tempos  ultrapassadas, tudo isso  que, de vez em quando,  temos  que   levar ao livro com muito cuidado, porém, na escolha, na triagem, a fm deque não cometamos  um erro  grosseiro de livrar-nos, por engano,  de algo do qual  poderíamos  nos arrepender mais tarde: pode ser até um simples papel de alguém querido, numa data  recuada no tempo,  desejando-nos felicidade. ⁢⁢⁢
       ⁢⁢⁢
 ⁢

     
    


Nenhum comentário:

Postar um comentário