CUNHA E SILVA FILHO
Chega um tempo em que (isso me soa
um pouco Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), que me perdoe o leitor) é
preciso jogar fora muita coisa que não gostaríamos de jogar no lixo: velhos jornais, livros que não mais nos interessam (será que
não nos arrependeremos mais tarde?)
cadernos antigos, caixas de
papelão de sapatos, sacolas, plásticos e
tantos outros itens que se tornaram , com o tempo, descartáveis. Há um misto de pena que sinto
ao lança-los no lixo, pois não haverá
como recuperá-los caso haja o
dito arrependimento.
Quem
nos compele a agir dessa forma é o tempo inexorável e a falta de espaço.
Porém, quem vive como eu em apartamento de tamanho médio não pode se dar ao luxo de manter tanta tralha no espaço caseiro. Sei de pessoas que,
morando em casa vai acumulando coisas
velhas até chegar a um ponto de
saturação. Muitas vezes, se o acúmulo da
s coisas velhas cheiram mal, os vizinhos
são os primeiros a se queixar e a pedir a intervenção da saúde pública. Isso
ocorre amiúde com pessoas que vivem anos a fio na mesma casa e, ainda por
cima, criando uma multidão de gatos e
cachorros. O mau cheiro infesta os vizinhos mais próximos. E o caso vai parar, muitas
vezes, na Polícia.
Há uma tendência no ser humano a
armazenar tudo por um longo período de vida até não poder mais. Esse apego se
torna algo doentio, mas me parece ser inerente sobretudo às pessoas idosas,
senhoras idosas, solteironas, viúvas,
gente que não recebe visitas de nenhum parente ou amigo. Talvez por isso se
agarrem, com unhas e dentes, às velhas
tralhas.
Mudando de assunto, porque, agora, a coisa é mais séria do que se pensa:
descartar-se de nossos velhuscos livros que se acomodaram durante anos em
nossas estantes. Bem, aqui a coisa é
diferente e me atinge em cheio,
porquanto não suporto me apartar dos
meus vetustos volumes adquiridos, durante anos, com os sacrifícios de um estudante e, mais tarde, um modesto professor e escritor.
Fazendo um parêntese, menciono aqui
o que alguns ex-colegas meus,
quando ainda éramos estudantes de curso
de Letras: um certo dia, um pequeno grupo
deles , por um razão que nunca soube,
foram à casa do grande linguista
Joaquim Mattoso Câmara Jr (1904-1970) Entrando na casa do famoso professor da Universidade do Brasil, que
inaugurou, se não incorro em erro, os estudos de linguísticos no pais, qual foi a surpresa desse grupo de alunos ao
constatarem que, na casa do linguista, uma casa simples, não havia
um grande biblioteca, o que seria de se esperar de um
erudito mestre respeitado no país e no exterior.
Como poderia explicar esses magros livros que havia na casa de Matoso Câmara? Onde teria o mestre
de Princípios de linguística geral
colocado os esperados muitos volumes de uma
grande biblioteca? Até hoje, não sei
a resposta.
Outra vez,
perguntaram a um filólogo bem conhecido, Leodegário Amarante de Azevedo
Filho (1927-2011), ex-professor da UERJ,
se ele havia lido todos aqueles milhares de livros ostentados em sua luxuosa
biblioteca. O insigne professor lhes respondeu que não. Por experiência própria,
temos, por vezes, grandes livros,
e nunca os pegamos para ler. Vamos
adiando, adiando até parecer a
atitude daqueles personagens de uma
crônica de Paulo Mendes Campos (1922-1991) reconhecendo que nós
brasileiros estamos sempre protelando alguma coisa que deveríamos concretizar.
Creio que
a mania de guardar aquilo de que gostamos se deva a uma espécie de
sentimento interior do ser humano que o levaria a pensar que somos eternos.
Quando todo ser humano
sabe que isso não corresponde à verdade. Somos finitos e, queiramos ou
não, deixaremos a vida terrena.
Brincamos seriamente com uma verdade insofismável e, assim, vamos
“fingindo” como no poema célebre
de Fernando Pessoa (1888-1935)), um
notável poema que resume tanto do que seja
o traço mais caracterizador da
criação literária.
Olho para os meus livros, companheiros
fiéis de minha vida, de minhas mudanças físicas, intelectuais e espirituais,
testemunhos oculares de minhas alegrias, tristeza e esperanças,
cúmplices de meus erros e acertos. Olho para eles como se lhes quisesse falar:
“Vocês aí estão esperando por minha
decisão de os ler ou reler. Eles, velhos ou novos, me parecem
entender: “Um dia, Francisco, V.
nos lerá. Pode demorar ou mesmo pode
acontecer que nunca nos lerá.” E,
então, infelizmente, será tarde, muito tarde, ecoando no
meu pensamento as palavras do orador sacro Monte Alverne”(1784-1858).
Ao ver que alguns livros meus ficaram tão
velhinhos, tão fraquinhos, cos as lombadas se soltando,
as páginas se largando, a
capa rasgando, costumo, há tempos, cuidar dessas enfermidades que atacam os livros: tento,, à minha maneira
artesanal, consertá-los, reforçando-os na capa, nas páginas, na lombada
alquebrada, . Faço isso com o maior carinho, com paciência de Jó, usando
apenas uma tesoura maior,
cola, folhas de papel branco. É
uma espécie de cirurgia que lhes vai
permitir alguns anos de vida. Descobri, ao fazer isso, que os livros
parecem pessoas. Às vezes, os mais
velhos duram muito, continuam firmes, resistem aos reveses do tempo insano. Outros, de data muito menos antiga,
ou morrem de vez, ou permanecem em estado de causar
dó. O tempo os destruiu. Esses me desesperam. Sei que seus dias estão contados. Pouco há
para fazer por eles. Já estou resignado.
Estão para lá da UTI.
Se dificilmente admito a ideias de que terei que me separar deles um dia, o mesmo
sentimento de melancolia sinto dos livros que perdi e, alguns, em momentos
de grande aflição. Nunca mais os encontrei. Tentei, por diversas vezes e sem sucesso, encontrá-los nos sebos do Rio de Janeiro,
depois, com alguma expectativa, nos
sebos da Virtual. E nada que os fizessem aparecer. Livros
perdidos, já disse outrora numa crônica,
são ...) filhos perdidos, assassinados.” Ai, como me doem as perdas de alguns livros!
Ao nos abeirarmos da velhice, na condição de amantes de livros, já nos vai
assaltando o fantasma de qual vai ser o destino de cada livro amado, daquele livro, cuja descoberta numa
livraria nos deu tanto prazer.
Levamo-lo para casa álacres,
pressurosos de o poder ler na íntegra, lhe devorar, antropofagicamente, como o fizeram
os iconoclastas modernistas de primeira hora, o conteúdo. Oh, quanta “quilometragem” de leituras e ao mesmo quanta “quilometragem” de não leituras!
V. acha justo, leitor, esse encargo de nos
livrarmos de nossos próprios volumes tão
por nós reverenciados? Acho injustas a ideia e a ação de descarte de
nosso patrimônio conseguido, como diria
meu pai, com “sangue, suro e lágrimas.”
É melhor mudar de assunto, visto que
aquele descarte é a última
coisa que não desejo fazer. Por que
somos tão egoístas com os nossos
pertences em geral, sobretudo com os nossos livros, tanto com os que escrevemos quanto com os que
possuímos de outros autores. A dor é quase igual.
Oh, só quem ama os livros pode
imaginar o que sentimos por eles. Oh, com agora entendo bem o que o Sérgio Buarque de Hollanda (1902--1982)),
fato que, de resto, já narrei em
crônica, mas que, agora, vou repetir para reforçar a ideias geral desta
crônica) sentia quando, tendo comprado um livro novo, chegava, de mansinho, à
sua residência a fim de que a esposa não lhe surpreendesse com um livro a mais
que iria tomar mais espaço na casa. Comigo, igual circunstância, sucede,
às vezes, e suponho que com
outras esposas de quem
gosta de livros: “Olhe o espaço! – dizem elas. Daqui a pouco, os livros nos estão expulsando de casa.” Quem mora em apartamento
não pode ter biblioteca, o que, talvez, tenha levado o ficcionista Rogel Samuel numa crônica, declarar: “Biblioteca é para ricos.”
O fato é que o descarte é, na maioria das
vezes, algo que nos deixa meio triste, com a querer dizer que aquele
objeto jogado fora um dia nos poderia ser útil. Reconheço, contudo, a ponta de egoísmo nossa. “fazer o quê? – diria o povo
brasileiro meio impotente diante de
situações adversas.
É certo que de alguma forma o que
lançamos fora, vai ser de algum proveito
para alguém e até mesmo lucro.
Mas essa coisa de jogar meus livros fora
e me deixa inquieto e ansioso.
Tenho alguns colegas na
mesma situação quando o descarte é atinente ao livros. “ Por ora, vou
deixar parte de livros não tão consultados mais nalguma biblioteca pública, vou doá-los a
pessoas que fariam deles, vou, sei lá, vendê-los a um livreiro de um antigo sebo, hoje um
comércio praticamente extinto no Rio de Janeiro, ou vou vende-los
a uma livraria virtual. Não sei ao certo. Vou
pensar, pensar, pensar.”
Vou contar (será que já lhe contei?), finalmente, um caso relacionado a livros. Não citarei
nomes, mas foi verdade. Um escritor
famoso, dono de uma baita biblioteca, assim que faleceu, familiares
foram logo procurar algum potencial
comprador de grandes acervos. Não demorou muito tudo ficou consumado. Apareceu, um membro da família do autor e, ao abrir a
sala da biblioteca do escritor, exclamou
estupefato: “Já se livraram do acervo?
Mas tão cedo? Nem deixaram a poeira assentar?!
Escrevi
esta crônica inspirado realmente
na situação que vivi hoje pela manhã.
Fui ver algumas folhas velhas, papéis guardados, jornais
não lidos inteiramente,
livros fora do meu campo de
atuação, revistas prospectos, agendas há tempos ultrapassadas, tudo isso que, de vez em quando, temos
que levar ao livro com muito
cuidado, porém, na escolha, na triagem, a fm deque não cometamos um erro
grosseiro de livrar-nos, por engano,
de algo do qual poderíamos nos arrepender mais tarde: pode ser até um
simples papel de alguém querido, numa data
recuada no tempo, desejando-nos
felicidade.
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