segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Memórias da infância de um estudante


                                                   


                         Cunha  e Silva Filho


         Havia aquela merenda deliciosa composta mais de frutas (a  melancia que gostosura,  doce e fresca!) enviada  por mamãe  toda manhã à hora do  recreio, ansiosamente   esperada  todos os dias  de  aula. Era uma empregada de mamãe que ia levá-la.
       Da aula em si, da professora, do colegas,   pouco  me  lembro. Creio que nunca era boa a aula em si,  e a criança  ficava ansiosa por  voltar  pra casa,  que ficava no   Centro de Teresina, pertinho da Praça João Luiz Ferreira, aquela  onde  ficava o único prédio  mais alto na época,  em  Teresina, conhecido geralmente como  o  Instituto.  Suava  pra   passar o tempo do turno da manhã na escola primária  Demóstenes  Avelino, do professor Felismino  Weser.O sobrenome  do diretor   sempre   me dava   a sensação  de que era um   estrangeiro.
       A parte do primário   ficava numa ala  de lado que dava pra   rua em subida.Quando vinha de casa com meus irmãos Sonia e Winston,  tinha que  subir aquela rua  meio  íngreme. O professor Felismino Weser teve um filho  com grande  vocação  poética, mas que  faleceu  precocemente. Nem mesmo  me lembro  se eu  já  estava sabendo ler.Vem-me à  lembrança  o  problema   enfrentado  pelo  grande sociólogo  Gilberto Freyre  um caso quase perdido  nos  primeiros tempos  de  vida escolar. 
      Ao contrário  do meu tempo  de  ginásio,  nunca fui um estudante   feliz nos primeiros anos  escolares. Era curioso como eu e meus irmãos   trocávamos  de escola, até parecendo  uma daquelas advertências   que constavam  no preâmbulo da  minha  primeira versão da  Carteira Profissional,  com data de fevereiro de 1964,  tirada justamente no  prédio  do Instituto e  que, à falta de outra  palavra,  me dava como  profissão  a de comerciário, coisa que jamais   entrou nos meus  planos  de    ter como  atividade profissional,  visto  que queria mesmo   era ver  preenchida à mão, no espaço de  “profissão,” a de "jornalista” (imagine, a ousadia de um   jovem  que mal completara   dezoito anos e só porque já tinha  publicado, em jornais   de Teresina,   alguns  artigos  juvenis sobre literatura).
      Um escritor  piauiense, J. Miguel de Matos, autor  de um     romance que, à época, havia lido chamado  Brás da Santina,  por  sinal,  se encontrava no Instituto e, vendo a minha  pretensão  de que,  na carteira,   fosse  colocado  “jornalista,”  chegou a  falar sem muita energia: “Ele merece.”    
      A insinuada advertência   fala de dois  perfis   de profissional, alguém  que, na carteira assinada,   demonstra ter sido  constante  num determinado  emprego e outro que se compararia a uma  “abelha,”   i.e., alguém  que  não  parava  nas fábricas   por onde andou  trabalhando, daí a  metáfora da “abelha” Veja-se a conotação que  imprime  o autor do texto,   de nome Alexandre  Marcondes Filho, a qual está  intimamente  ligada  à atividade do operário. O tom  burocrático   do  texto é bem  explícito  na sua intenção  de ser a Carteira Profissional  um  instrumento de  identidade e de  recomendação,  boa ou  negativa,  a um eventual   patrão  ou empregador  privado  ou  público. Tanto é que,  a nova Carteira Profissional  que   tirei no Rio de Janeiro, em 1971,  ainda   repete aquele  texto  de advertência de Alexandre  Marcondes  Filho. 
            Retomando  o núcleo  deste artigo,   devo  reafirmar   que o meu  período  de  estudos  primários   foi  bem confuso,  bem  mutável.  Não  gostava de nenhum lugar  por onde   transitei  como  nômade acompanhado de meus  irmãos  já mencionados.
            Tampouco sei   por que  houve tantas mudanças. Tempos depois, já no ginásio e muito feliz, por sinal, jamais levantei esse assunto com meu  pai, com quem  confidenciava  com muita frequência  em seu  quarto-biblioteca – quarto  que teve   um relevo  especial   pra minha  formação    de adolescente  chegado  a leituras  e  aos estudos  das minhas  áreas  preferidas, de resto  passagem de minha vida já  narrada tendo como   cenário doméstico  meu  pai sentado na rede e    eu, ao pé dele,  com um pente  passando-lhe  pela parte  superior  da cabeça  que começava a ficar  grisalha.
         Nas minhas reminiscências da infância, há esse gap   de entendimento e percepção  sobre  como  se processou   a minha formação de leitura,  de domínio  dessa competência.  Creio,  por outro lado,  que ela está  muito   conexionda   ao aprendizagem da leitura,  a qual pode ser por  deficiências  minhas como  provavelmente   pode ter origem na timidez  que,   em  assuntos   de  estudos,  tanto me atrapalhou.
         Infiro  que talvez tenha sido   ainda  por falta   de   tato  pedagógico-didático  de professoras   que cuidaram  de mim, das quais não  tenho  boas lembranças do tipo   que a maioria das pessoas    definem, com justiça,   com muito  carinho e afeto: “Oh, minha  querida!  professora primária!” de nome  tal. Comigo não houve isso,  o que me sobrou de relembrança  me  remete a certas passagens de Graciliano Ramos   com  respeito  aos seus  pais e, assim,  não  diretamente   relacionadas aos estudos.  
Em compensação,   quando fui  estudar  no Domício(nome famoso e  popular  pelo qual ficou  conhecido o Ginásio "Des. Antonio Costa," em Teresina, Piauí),   acompanhado   ainda pelos meus  dois  irmãos,   Sonia e Winston,   e ainda  cursando  o primário,  houve uma  repentina  mudança   de minha visão   da escola. Ainda  não  era  aquela que experimentei ao cursar o  período  preparatório  do admissão ao ginásio, cujos   exames me proporcionaram momentos profundas    de contentamento  e de alegria  de  estar  de bem com os  estudos  e com a vontade   incoercível e  prosseguir meus estudos  ginasianos.
         Portanto,  foi no ginásio   que me encontrei  com  a magia  dos estudos, das leituras, da vontade  de abrir  tantos  caminhos     do meu  universo   mental.  E tudo isso,  como  já   relatei  em  outros textos meus,   graças   ao período de quatro anos   do  Domício. Lá aprendi  a  amar  todas as disciplinas, especialmente,  a leitura  de autores  brasileiros e  portugueses, a gramática da minha língua, o estudo   da sintaxe portuguesa,    de  me aplicar  ao  estudos do inglês, do francês, do latim.
        Aprendi, sim, no ginásio,   a ser aluno exemplar, a amar meus  mestres queridos, a sentir  o  prazer inefável  de  estar na   escola, de conviver com  alguns tão bons  companheiros de classe, muitos dos quais devem  estar ainda vivos  por lugares  do Piauí  ou em terras   diversas. Descobri, um dia, que  estava lendo em inglês e francês naquela sempre lembrada biblioteca-quarto de meu  pai, onde me  escondia   solitariamente  longe  do “burburinho das ruas.”  Foi no ginásio, que para Olavo Bilac, era o período mais importante da aprendizagem  do adolescente,  que me preparei  para os complexos  e longos    estudos, de leitura e do exercício  da   escrita  literária, de levar os estudos a sério como se fosse ainda um  adolescente.

No entanto, a dúvida sobre  o período  obscuro  e  infeliz do primário continua  a me  martelar  a cabeça,  procurado  as razões  primeiras,   os motivos   fundos, dos quais,  quiçá, só  a psicanálise me possa indicar  alguns   caminhos de  entendimento  daquela quadra   de deambulações passageiras (até em grupo escolar)  por escolas,  do medo  de professoras,  de ausência de alegrias  e  de    sentimento    de  prazer  em   lidar com os meus  primeiros anos   de vida escolar. Esses fantasmas  ainda  retomarei   em  textos  futuros  de natureza  memorialística.

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