domingo, 19 de outubro de 2014

As urnas dividiram o povo brasileiro e dizimaram o sentido da alteridade









                                                      Cunha e Silva Filho


         A premiada escritora  Ana Maria Machado,  agora colunista   de O Globo,   que  substituiu Cacá Diegues,  em artigos publicados  aos sábados,  lamenta a circunstância de que  pessoas que admiramos (ver seu artigo “O dia seguinte,” O Globo, 18.10.2014),  a quem  respeitamos  pelos suas qualidades  intelectuais,  ou por outros  dotes ou valores, quando  vistas   no campo  de preferências  políticas, nos  provocam  perplexidades, ao percebermos   que   nada têm a ver com as nossas convicções,  as nossas visões  partidárias  ou  ideológicas. De alguma maneira,  isso  nos  causa,  lá no nosso  interior,   uma decepção (logo ele/a a quem  tanto   prezo!).
      Nesse terreno de discussões,   como que perdemos   um  lado   nosso   de lógica  e de racionalidade e  passamos  a ver   uma certa  “realidade” derivada  talvez  de íntimos   interesses   que não poderiam   ser  perdidos    sob  pena  de  sofrermos   consequências  que abalariam  o nosso  conforto e as nossas conquistas materiais. Por exemplo,  quem,  no passado, fosse monarquista,  não  desejaria uma mudança   para o regime  republicano,  ou seja,  perder  os  direitos e as prerrogativas que  aquele  sistema  de poder  lhe concedia.  
      Essa postura, de alguma  forma,  impede  o indivíduo  de enxergar,  com  isenção,  o outro, o diferente no   terreno  das ideias  e  visões na condução  do governo ou numa  forma  de  administrá-lo. É nesse ponto  que somos  tomados  pelo  proselitismo,  nos tornamos sectários e não  vemos senão  o lado errado e o espelho  invertido ou estilhaçado, em que o  outro, na condição de mero   eleitor,   transmuda-se, em tese,  em adversário  e, para  agravar mais o quadro  das divergências,  o partido  do qual discordamos  torna-se  objeto de nosso  escárnio, de nosso  desprezo.
        Essa alteridade dos agentes políticos, protagonizados como  candidatos de um partido,  se anula,  dando  origem  a  refregas  intoleráveis. Os candidatos são objeto de distorções, mentiras, manipulações  seja dos marqueteiros, seja  dos eleitores  que não abrem  mão  de suas  posições extremadas, gerando a “cegueira,”  a ofensa e o  vilipêndio.
        Todos os podres da vida pregressa dos candidatos  são escancarados publicamente e,  nessa agressividade mútua, não há medidas nem limites. Tudo vale,  verdade ou  dissimulação,  no caldeirão dos ataques  com fotos, vídeos,  textos, cartoons, desconstruindo (é o termo  em moda) a pessoa  política e a personalidade de cada candidato. Valem até as palavras   chulas,  as fotos  deformadoras das expressões  fisionômicas, seja da Dilma, seja a do Aécio, para a Presidência, seja a do Pezão e do Crivela, para governador. Não há  quase o meio termo, ou são  oito ou  oitenta. Neste lamaçal com setas  venenosas atiradas de ambas as partes,  o eleitor  comum vê-se  enredado  num labirinto  de uma saída  para um  opção   conclusiva  sobre a polarização incandescente.
        Entretanto,   essa  agressividade sectária e anuladora da alteridade, no país,  remonta  há décadas na história  política  brasileira. Nas campanhas  políticas  do tempo da UDN e do PSD, intervalos de maior   agressividade daquelas campanhas,   não só havia   brigas  entre  partidários  na condição de eleitores,  mas   desavenças  violentas  entre os candidatos que  vasculhavam  os mínimos detalhes da vida  privada de um  candidato, até mesmo a sua  opção  sexual  ou a sua suposta condição  de  corno convencido.
      Os candidatos,  em campanhas  pelo  interior  dos estados,  nos comícios  em praças públicas  ou em carrocerias  de  caminhões estacionadas em  lugares   centrais  das cidades,  desancavam   seus  opositores, muitas vezes  acompanhados de capangas disfarçados no meio da  população   a fim de garantirem   a integridade física   dos candidatos. A violência se estendia entre famílias de   partidos  antagônicos a tal ponto que  seus membros  não se  falavam  e se tornavam  inimigos  durante  anos, se não  até  à morte. Quando mais  virulentas,  iam  às vias de fato  e  mesmo a homicídios   entre  opositores.
        Não houve,  por conseguinte,  melhoria  nos ânimos exaltados   de hoje por parte dos  eleitores.  Basta ver o que se posta no Facebook e o que se afirma e se diz  dos candidatos.  Impera o reino  das aleivosias, do achincalhe. Entre as sujeiras do  petismo   e  a empulhação  dos tucanos,   fica, assim, difícil  a escolha.
      Com os avanços  da  tecnologia e  dos meios virtuais de comunicação, uma  denúncia daqui, outra dali,   são suficientes  para abalar  a consciência dos eleitores. O  que é mais curioso  e intrigante,  a campanha  política é uma  luta  de foice, com já afirmei alhures,   a qual semelha, em muitos ângulos, às divergências   religiosas,  de futebol  e de escola  de samba e, se forçarmos  a barra,  há até uma  dose  de carnavalização, de espetáculo  burlesco,  de pantomima e momice. A semelhança  se sustenta  pelo fanatismo  e,   por este motivo,   espinhosa  é a tarefa de  fazer  um eleitor  mudar  de opinião. Ele se torna empedernido,  intratável algumas vezes, pois, segundo  ele, a verdade e  a certeza  estão  na suas  convicções  formadas ao longo do tempo.
      E  não é a diferença   social,  econômica,  ou de nível de escolaridade, não é a separação entre letrados e não letrados, que vai  fazer alguém  mudar  a sua opção. Se alguém  buscar  um pouco de racionalidade na consciência  do eleitor,   decerto não a encontrará. Isso se deve a um  componente  imponderável: cada eleitor  tem (ou não)   a sua  formação  ético-moral, as suas conveniências, os seus interesses inconfessos (ou confessos)  individuais  os seus   compromissos   classistas ou   de corporativismos. As diferenças, as alteridades, diante dessas  contingências,  não se contam, i.e., se  diluem e perdem a sua grandeza, quando não,  se  transformam  em  contundente    polêmica.


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