domingo, 12 de outubro de 2014

A vida literária no Brasil atual: o papel da crítica







                                                       Cunha e Silva Filho

           Não julgue precipitadamente, amável leitor,  que  eu  tenha a pretensão de radiografar  o  “vasto mundo” do que   se produz hodiernamente no país. O esforço é sobejamente  impossível e o  trabalho  nessa direção, se  realizado  individualmente,  tende  ao insucesso. A paisagem nacional  literária,  segundo  acentuei,  é muito ampla, muito  tortuosa e, se tentasse  mapear  autores e obras editados  na contemporaneidade,   já poderia antecipar  que  o papel da crítica literária   se defrontaria  com um monumental  embaraço.  Mesmo se  quiséssemos   inventariar, diga-se – uma “síntese” – estaríamos  fadados  a um  estrondoso  insucesso, sendo o pior deles  a injustiça  que cometeríamos   não  incluindo  alguns nomes  de qualidade  nos vários gêneros  literários.
       O grande desafio da crítica  é que ela  já perdeu  a dimensão  de poder de militância que  tinha  no século  passado através  dos jornais  que  mantinham  a crítica de rodapé nos áureos tempos de um Agripino  Grieco,  Tristão de Athayde,  Álvaro Lins,  Sérgio  Buarque de Holanda,  Antonio Candido,  Olívio Montenegro, só para  fazer essa breve   citação  nominal  de autores.
       Com o surgimento  incalculável de novos autores de que  tomo  conhecimento  toda vez quase que abro a folha de um  caderno cultural,  me espanta  qualquer  veleidade  de  se falar  em militância  crítica, inclusive  porque  ela  praticamente sumiu  dos jornais, só restando  uns poucos   críticos  que ainda  dispõem de um  cantinho  do jornal  para  discutir  livros  recém-saídos.
Ao falar  com justiça das mazelas e das  imposturas  da vida literária brasileira, sobretudo no grande centro representado  pela vida  literária  carioca,  lembro-me  do historiador e crítico  Afrânio Coutinho (1911-2000), na pequena obra,  No hospital das letras(1963)  que traça, com veia crítica,  numa reunião de artigos antes publicados em jornais  das décadas de 1940 e 1950, a situação  interna, os bastidores,   o compadrio, as “igrejinhas,” o que chamara “a comédia da vida literária,” enfim, as deturpações  que  presenciara no meio  literário   do Rio de Janeiro.
Fico a imaginar  que,   mutadis mutandi,   o universo  em que  transita   o escritor  brasileiro  hoje não é tão  diferente  de antigamente.  As igrejinhas  ainda persistem, os apadrinhados  idem,  as dificuldades  que arrostam os escritores para penetrar  nos meios editoriais, verdadeiro   cipoal  de grupos fechados,  que  deitam normas  de avaliação  para um  escritor, novo ou velho e desconhecido,    adentrar   essa floresta  de desencanto  e  de   insulamento  em que  vive  o autor   nacional, desprestigiado e desiludido da vida literária por se sentirem   injustiçados. Muitos deles desistem por lhes faltarem estímulos.
O escritor  de nosso país é um  isolado, como disse,   alguém ilhado  nos seus próprios   espaços  de  “emparedado,”seja para  poder  lançar   um livro, seja para   ter  um   lugar  em que   possa  demonstrar  sua capacidade  no exercício da palavra escrita. Não  empreendi nenhum  estudo  ou pesquisa  para  ir a fundo nessas questões afetas à vida  editorial  brasileira, contudo  suspeito  que  semelhante  situação  ocorra em outros estados  brasileiros.
Na questão da crítica literária,  tanto   na sua produção quanto  na sua   procura de espaço  disponível  a  algum pretendente, o fato é  que a sua atuação   ficou  mesmo   relegada  aos  limites do que   se costuma chamar  crítica  universitária, exercida, a meu ver,  na sala de aula,  nas revistas  especializadas  das universidades e eventualmente nos livros  editados, sobretudo por algumas universidades.
A multiplicidade de autores que editam  suas obras  não  pode ser  atendida  pelo  trabalho da crítica, mesmo  da crítica universitária, por lhe faltar tempo e  fôlego. Desta forma, cria-se uma outra realidade no  universo da cultura literária, ou seja,  a crítica literária,  não deixando de ser uma atividade   de alta relevância  ao aprimoramento   da  literatura   e dos leitores,  se apequena   pela impossibilidade de  dar conta   da mencionada    multiplicidade  de autores. O papel  do crítico  fica, pois, agora,    numa quase  absoluta  desproporção de  julgar  obras  de novos autores, com a agravante de que  ainda há  a circunstância   de que  o crítico  não poderá  deixar de  estar ao corrente dos autores  estrangeiros,  também  revelando  um  número gigantesco. 

O que tenho  observado, no entanto, vale como  uma   saída  à solução  do problema: a busca da especialização,  seja de autores,  seja  de gêneros,  seja  da “periodologia   estética” nos moldes  concebidos   por Afrânio Coutinho. Ora, o abarcar-se de forma  pessoal  um conjunto gigantesco  de  autores que continuam  a surgir no panorama da literatura brasileira   forçou   uma seleção  limitadora do   trabalho   do crítico. O crítico  passou  a estudar,  por exemplo, certos temas, e obras, aprofundando o conhecimento de sua área de atuação.A crítica é uma atividade  com tempo datado para seus cultores justamente  por  exigir muita  leitura,  muita pesquisa,  muito suor e paciência.
Enfim,  queremos  significar  que o  papel  atual do crítico  torna-se cada vez mais  restrito e lacunoso e, de certa forma,  nisso   ele perde  a noção  geral  do conjunto   do sistema literário. Essa é a condição  do ônus que tem  a pagar  a crítica literária   contemporânea. Seu raio de ação  tornou-se, na pós-modernidade, de curto alcance,  fragmentário, espaçado, fortuito. O individualismo  crítico é, agora,  um  dado do passado e a sobrevivência da crítica literária, para não perder  seu  campo  de  ação, deve, como já tem sido  feito,  sempre constituir  um   trabalho coletivo,  de  conjunto, i.e.,  quando  seu  objetivo for  mapear,  historiar, discutir e analisar  as obras literárias de um  povo.  

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