quinta-feira, 26 de setembro de 2013

O descanso de Aquiles







     Cunha e Silva Filho

              Eu o vi pela primeira  vez na cidade de Teixeira Soares, interior do Paraná. Tinha sido adquirido por meu  filho, o professor e  advogado Francisco Neto,  há pouco  tempo e ainda  era bem  pequeno. Demonstrava, contudo,   que seria um cão belo,  forte, grandão,  como são os    de sua  raça, pastor belga. Era preto e peludo,  elegante, e já dava  sinais evidentes  de que  seria   firme e decidido, sempre   pronto a  proteger o lar que o   acolheu até o seu  último  dia  de velho  guardião da casa.
           Deram-lhe o nome de Aquiles, de resto,  nome  bem  escolhido, por   certo  inspirado  naquele  herói máximo da Guerra  de Tróia,  aquele que  fora  mergulhado no  rio Stix para se  tornar  invulnerável.Sua mãe, a ninfa  Tétis,  ao colocá-lo na água,  esqueceu de  molhar-lhe  o calcanhar. Daí a expressão que correu  mundo,”calcanhar  de Aquiles,”para significar a única  parte de seu corpo que poderia  atingi-lo mortalmente, ou seja,  generalizando,  o ponto  fraco de alguém. 
Aquiles foi crescendo até tornar-se  um cão adulto com todo o seu  viço, sua beleza apolínea,  sua pujança,  seu latir portentoso, assim,  impondo-se mitologicamente  a quem se atrevesse  a fazer algum  mal ao seu dono e à família  que o   amava e da qual passava a fazer  parte  integral, como  um membro  merecedor  de cuidados e de  carinho. Quantas  vezes,  falando  com meu  filho,  ouvia  pelo telefone  o seu latido  heroico,  ressoando   pela  vizinhança na sua  posição  sempre alerta contra  qualquer   inimigo  que  pudesse  ali surgir! Sua presença,   seus movimentos  em frente  da casa de meu  filho, seus sinais,    seus aviso, sua defesa  feroz  contra   o perigo   que pudesse ameaçar  aquele lar  eram  mais do que  transparentes. Eram para valer.
Todas as vezes que pude vê-lo ainda  com toda a sua energia, ele me olhava fixamente, se aproximava de mim com  todo  aquele  peso e tamanho. Era um  deus grego. Era  um  titã do lar,  pronto sempre, disponível sempre,  a defender a quem  amava  e por quem  velava  nas vigílias  das noites e das madrugadas. Ninguém  ousaria   transpor  aquele  espaço  de lar sem que  primeiro   sentisse  a presença poderosa  e decidida  daquela  fortaleza  inexpugnável. E, se o fizesse,   sentiria   fatalmente  o peso  enorme daquelas patas  preciosas e poderosas.
Não é possível que os cães não tenham alma e sentimento humanos. Tantos  são os exemplos  na vida  real, na ficção, no cinema, nos quais os cães  se mostram amigos  fidelíssimos, até mais do que os familiares,  tanto  na vida como  no túmulo. Os cães têm alma, sim leitores,   não tenham  dúvidas  dessa  afirmativa.
Agora,  me lembro daquela   página antológica,  escrita  com  a  extraordinária  capacidade de descrição de Buffon (17-7-1788), célebre   escritor  francês,  grande naturalista que,  na literatura,   ficou   famosos  por aquela   frase com a qual  compreendia a relação  entre a personalidade  de um  escritor com   a sua obra: “O  estilo é o homem,” afirmativa que li, pela primeira vez, na velha Gramática Expositiva  - curso superior, de  Eduardo Carlos Pereira (1855-1923),  publicada pela  Companhia Editora Nacional , volume da biblioteca de meu  pai. A passagem de Buffon faz um perfil  psicológico  de um cão, ou melhor,  de qualquer cão. Página lida na minha adolescência no livro  de Marcel Debrot, da Faculdade de Filosofia da  Universidade de Minas Gerais, Le français  au gymnase,  da Companhia  Editora Nacional,  livro,  por sinal,  adotado  por meu  pai, meu  professor de francês,  no período ginasiano do Domício,  um famoso e popular   colégio de  Teresina. O texto tem por título Le chien.  Basta  esse  trechinho para exprimir todo o valor  universal  que  o cão  reúne em si: “Sans avoir comme l’homme, la lumière de la  pensée, il a toute la chaleur du sentiment, il a plus que lui, la fidelité, la constance, dans  ses affections:  nulle  ambition,  nul  intérêt, nul désir de vengenance, nulle crainte que celle de déplaire...”
Aquiles, nos últimos  meses,   quando já tinha doze anos – e nessa idade já   considerado  idoso na sua espécie animal -  com  largos serviços  prestados à família que o   recebeu  de braços  abertos,  foi atingido na sua parte  vulnerável de herói  grego: um câncer na próstata. Era o seu calcanhar  incapaz de conter  a força  indiferente  da natureza  física. Seu latir  começava a fraquejar,  seus movimentos  não eram mais os mesmos,  seus latidos emudeceram, seus afagos se esfumaram.  Tinha dificuldade para  alimentar-se, seus sintomas  estavam  a olhos  vistos. Quanta  tristeza dele não  poder  mais dar conta  da  defesa  de quem  o amava . Veio inclemente a fraqueza geral, a meia-vida, o sofrimento  mudo e profundo. À minha  mente me vem  a figura da   Baleia,   de Graciliano    Ramos (1892-1953),  personagem  criada   de forma genial  na obra Vidas seca,  graças à humanidade  que   transmitia, ou aqueles  bichinhos todos,  cheios  de  humanidade  na obra  de Guimarães Rosa (1908-1967). Isso tudo  me veio à tona  ao pensar  no destino  do  velho  Aquiles, o Cachorrão,  como,  às vezes, o  chamava  com ternura..

Era tempo de partir,  de “adeuses  às disponibilidades.” Aquiles,  no meu espírito,  tem o seu  panteão de honra  e glória  pela ajuda  inestimável  prestada  à família de meu  filho,  a  quem serviu com denodo,  bravura, na chuva,  no sol,  no frio  curitibano.  Assim nos deixou na memória e na ternura com as marcas da nossa  dor  e saudade  

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