domingo, 8 de setembro de 2013

Escrever à mão:o medo de perder esta habilidade







                                                        Cunha e Silva Filho


             Dizem que  o escritor  Ernest   Hemingway (1899-1961)  tinha um pavor  enorme na vida, o de perder  a capacidade  de  continuar fazendo ficção Era um fantasma  que  me parece tê-lo acompanhado na sua trajetória de  escritor. No meu caso,  não descartando  de todo  o medo  do autor de O velho e o mar (1952),  tenho  ainda o temor   de perder  o costume,   aliás, o bom e saudável costume, de  escrever à mão. 
           Confesso,  porém, que tenho,  sim,  esse receio tecnológico  à medida em que vou  me utilizando mais  da tecla do computador. A princípio, supunha eu que  jamais  seria capaz de escrever um texto  literário diretamente  no teclado. De repente, me descubro que inconscientemente  o estou  fazendo cada vez mais frequentemente. Daí o meu  temor de  não mais  necessitar  de  fazer meus manuscritos. Realmente, leitor,   isso está me  preocupando.
Isso me leva agora àquela imagem encantadora  e lírica de  tantas vezes  ver meu pai, Cunha e Silva (1905-1990), jornalista, professor e escritor  piauiense,  escrevendo  seus artigos febrilmente,  utilizando-se  da caneta esferográfica e,  muito antes,  da pena  molhada no tinteiro,  numa  escrivaninha  que  usava  em  seu quarto que, um dia,  chamei de “quarto-biblioteca’, alheio a todos ao seu redor,  mas    movimentando a caneta -  quase  sem  fazer  pausa -, com  os dedos ágeis e firmes  da mão direita. Isso até seus últimos dias. Seus  artigos saíam  praticamente  sem rasuras, escritos que  eram ao correr da pena como se costumava   falar antigamente.
Poucas vezes, nele reparei  modificações  à margem da página. Os artigos, em geral, saiam  perfeitos,  com a  clareza  que lhe era  inata ainda que  tratando de  temas  mais  complexos  envolvendo  argumentação mais cerrada. Ao contrário,    amiúde surgiam  erros nos seus artigos quando  ele ia ler as chamada  “provas  dos artigos,” com  os  senões de impressão  que vinham das redações dos jornais  para os quais  escrevia.
 Aí é que revelava seu cuidado de ler a prova toda, sobretudo  daquelas composições  antigas  antes do surgimento da linotipia. Ficava  zangado quando,  depois  de ter ele mesmo feito a revisão, ainda mostrassem,  no exemplar  da edição, algumas gralhas. Contudo,   não esquecia,  para qualquer  erro grosseiro que ainda  aparecesse no jornal já pronto para a tiragem  ao público, de, na próxima coluna,  fazer constar, ao final do artigo,  uma errata alusiva a algum  erro ou erros do número  anterior.Todo esse processo  eu acompanhei durante o início da minha adolescência   quando eu mesmo  lhe ia  pegar  a "prova do artigo" para ele corrigir em casa. Era rigoroso  com  a correção  de seus escritos.
Como estava falando no  início desta crônica,  o meu temor  é  deixar completamente  de escrever  à mão, embora venha  fazendo isso  ultimamente com mais  frequência .   Sei que antes  pensava  que escrever direto  no computador  era impossível e me  atrapalhava -   não vou  chamar  isso de “inspiração,” para não me classificarem de  romantismo  tardio -,  no que concerne à a fertilidade das ideias, o germinar  das frases  e à transformação  destas  no texto  completo. Uma coisa, entretanto,   observei: quando  se trata do ato  escrever um texto  de natureza  ensaísta ou crítica, de maior  ou grande extensão,  o faço  primeiro à mão e, em seguida,  passo ao computador.
 Na passagem do  manuscrito, já por si  cheio de  correções feitas e    modificações várias indicadas nas duas  margens   do papel  com  linhas  em formas  de setas para  alterações  que me ocorrem na trabalho  da  escrita,  mudanças  de  palavras, enxertos, torneios diversos dado a enunciados, melhoria  de construções  frasais,  ou  de  parágrafos  inteiros ou mesmo de   ter que  fazer um  “x” enorme   como sinal de  descarte  de parte  do texto, aquela velha ideia de escrita  fluente comigo não  aconteceu. Para mim, o ato de composição  escrita sempre  me foi  difícil, suado,   trabalhoso,  por vezes cansativo, a ponto  às vezes de sentir  vontade de  desistir de muitos parágrafos  já feitos  e  de recomeçar  tudo da estaca zero.
Por outro lado,  sei que escrevendo  diretamente no computador como estou fazendo agora,   me dá a possibilidade  de correção  mais rápida, de  alterações  e inversões  necessárias, de melhoria  no arranjo das frases, ou “amanho do texto, para empregar uma expressão  colhida na leitura  dos  artigos de meu pai.
De alguns escritores brasileiros famosos   tive a oportunidade  de  ver, nos fac-símiles de  seus   manuscritos  o quanto   modificavam   partes  de suas construções ou trocavam  de palavras,  pondo um risco  em cima  das palavras ou borrando–as por inteiro  com  a tinta da pena ou da caneta .Em Rui Barbosa (1849-1923), em Euclides da Cunha (1866-1909), em Guimarães Rosa (1908-1967), enfim,  em  muitos  escritores. Dificilmente,  vemos  um manuscrito  de um  escritor  impecavelmente  limpo e fluente -  indicadores  de uma  escrita que já sai quase perfeita  e pronta para a impressão.  Desses tenho  uma ponta de inveja, mas que hei de fazer?
Não aconselho a ninguém  desistir de  usar algumas vezes ou mesmo  sempre  a forma  manuscrita de seus textos.Há pouco  li que o poeta  Armando Freitas Filho,  mais radical ainda, usa,  primeiro, a  forma manuscrita, em seguida, a datilografada – isso mesmo,  a velha máquina de escrever! - e,  finalmente, passa  o texto para o  computador. O cuidado, neste caso,  é triplo.
Descobrir  as facilidades  e as potencialidades  de escrever  diretamente  no computador   é uma  sensação  agradável, mas agradável  mais  é recorrer ao velho hábito de  pôr no papel as ideias que  vão surgindo  naturalmente no nosso  cérebro, fazendo  as necessárias pausas para dar continuidade  à estruturação   das frases, dos parágrafos e do conjunto  inteiro do texto a que  daremos, na horaa  certa, um   ponto final.
Prometo a mim mesmo  que retornarei sempre ao texto manuscrito, embora  tenho  certeza de que, usando o teclado, as ideias  não me faltaram e as possibilidades  múltiplas  estarão  ao meu alcance. Pausa para  refletir e descanso não serão  impedimentos  à capacidade  criativa por via digital.
O medo,  leitor,  de que eu falava há pouco, pensando  melhor,  reside no  ato  puro  de escrever à mão,  de não  perder   o talhe  caligráfico  intransferível, i.e.,   de  dar  o desenho  próprio à letra  de nossa  escrita graças aos   movimentos  motores imprimidos e à   liberdade de sentirmos  o controle sinestésico  do próprio  punho ao constatarmos   que    o processo de criação de um  texto é tanto físico como   imaterial. É corpo e alma.






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