A Casa e a Rua: uma apólogo no Brasil de hoje
Cunha e Silva Filho
Leitor do século 21, você que está sempre apressado e não tem tempo para ninguém, nem para si mesmo, ouça o diálogo abaixo que pode ser um espaço das grandes cidades brasileiras. Penso no Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Recife, Belo Horizonte, que são as que mais interessam ao subtexto do diálogo :
Casa: - Quando penso em sair, me vem logo alguma indisposição, que pode ser gástrica, urinária, ou mesmo uma dor de cabeça. Penso duas, três vezes antes da decisão final de sair à rua. Se não incorro em erro, foi o antropólogo Roberto DaMatta que, em célebre livro, afirmou ser a rua o perigo, o que me leva a lembrar também de uma célebre frase do Riobaldo de Guimarães Rosa: “Viver é perigoso. Esta frase, na narrativa do escritor mineiro, vale como um refrão. Há ainda uma frase equivalente na narrativa do contista João Antônio, do livro Dedo-Duro – “Viver é brabo” - que parece inspirada em Guimarães Rosa, só que contextualizada no espaço urbano, enquanto em Guimarães Rosa ocorre no espaço do sertão mineiro. O que você me diz disso, amiga (!) Rua?
Rua: Não é tanto assim, porém reconheço que, no fundo, você tem razão. Veja, por exemplo, o trânsito, uma viagem de ônibus. O passageiro entra, compra sua passagem ou passa o cartão eletrônico, senta-se e daí a pouco sente que o motorista não parece ter cérebro, pois arrisca a vida dele e a dos passageiros com alta velocidade, freadas bruscas e desnecessárias, direção em ziguezague, numa palavra, usa o carro, que é grande, como se fosse uma arma. Por isso, os passageiros ficam apreensivos com a viagem, não sabendo que o pior pode acontecer por irresponsabilidade do motorista. A viagem tornou-se uma aventura perigosa. O pior é que a maioria dos passageiros nem está aí para as lambanças do motorista incompetente. Não há solidariedade na reclamação de um passageiro. Você vê, amiga (!) Casa, que eu sei dos perigos que as pessoas enfrentam na rua. São inúmeros; assaltos, bala perdida, acidentes de carro, engarrafamento e mil e outras inconveniências.
Casa: É verdade, amiga (!), é verdade. Não tenho vergonha de dizer que tenho medo de você, isso está virando quase uma obsessão, uma patologia. Daqui apouco terei que procurar um médico que, provavelmente, vendo meu estado psicológico, me prescreverá uns remédios para baixar a crista, a fim de aguentar tudo calada, e não me queixar de nada. Mas, não vê que isso não é bom para mim porque, com o tempo, ficarei dependente dos remédios, se bem que, mesmo com os remédios, ainda persiste em mim, lá no fundo, uma medozinho de encarar a vida, ou melhor, a rua. Tenho um amigo que ficou um ano quase sem sair de casa, tinha horror a tudo que fosse espaço aberto, a tudo que extrapolasse os muros de sua casa, pois ele tem ainda a sorte de morar em casa.Uma vez, estava dirigindo seu carro e, de repente, parou, largou a direção e ficou sentado na calçada, cego, mudo e surdo. A família só veio dar conta dele porque uma conhecido o viu naquele estado catatônico.
Rua: Na realidade, minha amiga(!), o espaço aqui fora não está pra peixe. As pessoas estão apavoradas com o que sabem pela televisão onde as notícias boas são exceções. Só se ouve falar de assaltos, sequestros, “saidinha do banco”, clonagem de cartão de credito, estupradores, pedófilos, crimes em família, violência policial, corrupção política, quadrilhas para todos os gostos e tipos, padres degenerados, brigas de vizinhos, brigas em condomínios, crimes estúpidos, em suma, ausência completa do Bem. Reconheço, diante de toda s essas misérias, que há algo errado com o nosso país e, em alguns aspectos, com o nosso Planeta, que não vai bem não.
Casa; Você acha, amiga (!) que essa desvida tem conserto?
Rua: Tem, se houver mudanças profundas na essência do ser humano, e citaria algumas: na formação educacional dos jovens, na procura de uma orientação espiritual séria , na união entre as pessoas, na eliminação do fanatismo de qualquer natureza, dos preconceitos, no uso da Ciência e da Tecnologia para fins pacíficos voltados para o bem-estar da humanidade. Enquanto não existirem espírito desarmado, ausência de hipocrisia, desambição entre os homens, amor ao próximo e uma mente estruturada em bases realmente cristãs, sem contrafações, as maldades persistirão. Sei que essas metas soam utópicas. Os outros dirão que essas ideias são ingênuas e que muito pouco há de se conseguir melhorar moralmente as criaturas humanas. Quer dizer, a rua será o perigo e a casa um refúgio cercado de grades, concretas ou abstratas, com calmantes ou sem calmantes. A concepção do viver dos dois ficcionistas, reforçada pelo antropólogo, atrás citados, continuaria a ser “perigo”, “perigoso” e “brabo.” A nossa conversa, por ora, vou dar aqui por encerrada. Até breve, amiga (!).
Casa: Até...
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