Reecontrando um “amigo”
Cunha e Silva Filho
Se meu leitor ou leitora são fieis ao colunista, bem provável é que, de quando me vez, possam discordar de mim, ou concordar, se for o caso. Entretanto, é também possível que me notem os defeitos e qualidades, pois todos nós temos tudo isso. E é bom que o seja assim, se não, não seríamos mortais e imperfeitos.
Com o tempo, os leitores que se afeiçoam aos nossos escritos vão percebendo algumas visões de vida do autor, suas preferências, seus “resmungos..” Por falar em resmungos, me lembro de que um colega do mestrado chegou a definir o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) de “resmungão”, com o que não concordei. Uma palavra puxa palavra, e não é que, se não estou enganado, Ferreira Gullar, estreou sua coluna de crônica na Folha de São Paulo com um artigo cujo titulo é “Resmungos”. Mas, vá lá.
Assim, como o artista de televisão, o cantor, o apresentador ou qualquer pessoa da área artística, precisam da boa aceitação do diretor, do público em geral, através das chamadas pesquisas de opinião, enquetes, níveis de Ibope ou de outros meios de avaliação, o cronista, o escritor, necessitam da ressonância do público. O artista necessita de feedback. Não só o artista, todos que dependem da receptividade favorável, ou não, do público. O seu desempenho visa á satisfação deste último. Não me venham, pois, dizer que, no caso do escritor, não nos lixamos para o público leitor. Ao contrario, temos enorme interesse de sermos amados, respeitados, reconhecidos.
O assunto, contudo, desta crônica não é a digressão que acabamos de fazer. Quero antes falar de “amigos” e, no exemplo que pretendo ilustrar, “amigos” significa livros, obras, textos.
Tenho um hobby que se configurou com o passar dos anos: o de conseguir reunir livros que, no passado, me cativaram a atenção. Livros que não pude comprar por falta de dinheiro, livros que perdi com o tempo ou pelas circunstâncias da vida madrasta, livros que só me deixaram saudades por não os haver ainda reencontrado.
Um desses livros é de feitio diferente. Não é ficção, nem ensaio, nem poesia, nem drama nem de outro gênero literário. No caso atual, é um dicionário, - agora conseguido pela compra na internet, nas livrarias virtuais -, que, pela primeira vez, encontrei e consultei na velha biblioteca do Liceu Piauiense que, no tempo de colegial, se chamava Colégio Estadual “Zacarias Gois”. Foi naquela relativamente pequena sala de biblioteca que se deu o meu encontro com ele.
Foi um encontro frutífero nos seus desdobramentos. O Dicionário inglês-português (English - Portuguese illustrated dictionary de J. L. Campos Jr., editado, em 1952, pelas Edições LEP, com 1042 páginas, contém uma breve introdução na qual o autor salienta que, na elaboração dele, consumiu oito anos de porfia lexicográfica. O dicionário ainda apresenta uma breve bibliografia de grandes dicionários de autores da língua inglesa da época, naturalmente por ele pacientemente compulsados.
O dicionáario de Campos Jr é notável sob todos os aspectos e de fácil manuseio, com verbetes e abonações traduzidas pelo autor, riquíssimo em expressões idiomáticas. Traz pronúncia figurada nos velhos moldes que seguramente devem ter prestado inestimáveis serviços à mocidade estudiosa de seu tempo e ainda hoje me parece prestimoso a quem ama o inglês. Além disso, esta magnum opus inclui pequenas informações culturais sobre figuras notáveis do mundo cultural e científico inglês, americano e de outras nacionalidades, e bem assim dados biobibliográficos ( o que torna a obra uma breve e oportuna enciclopédia) de autores da literatura inglesa e americana. Não sei por que algum editor, até hoje, não se interessou por atualizar, em mãos competentes no domínio da língua inglesa, uma obra dessa envergadura. E, para terminar o soneto com chave de ouro, chamo a atenção do leitor para mais uma qualidade do autor: Campos Jr. era exímio ilustrador de seus próprios livros sobre a língua inglesa e o dicionáario de que estou falando dá exemplo disso com a inclusão, ao longo de suas inúmeras páginas, de ilustrações artisticamente realizadas pela sua mão de mestre no desenho. Uma beleza, abrangendo desenhos de pessoas, objetos, flora, fauna, arquitetura, objetos de arte, objetos do universo científico, técnico etc, que só engrandecem essa obra feita com dedicação e amor ao trabalho intelectual de amplo alcance..
J. L. Campos Jr. foi , assim, um notabilíssimo autor didático e um exemplar lexicógrafo. Nada sei da sua vida familiar e de sua biografia mais pessoal. Presumo que tenha nascido em São Paulo. Sei que publicou vários - livros - adiante mencionados - para o ensino da língua inglesa. Sua primeira obra levou o título de The entertainer, publicada em Nova Iorque, se não incorro em erro, lá pela segunda década do século passado. Em Nova Iorque estudou inglês pelo chamado American Progressive Method, cuja abordagem de ensino-apredizagem desconheço como era.. Na sua produção didática escreveu os seguintes livros: How to learn English, Falemos inglês (Let us speak English. Através destes dois tomei conhecimento do autor, pois era exemplares pertencentes à biblioteca de papai.). Ambos, porém, estavam em estado de conservação precária, e ainda com páginas faltando, o que me deixava sempre decepcionado, porquanto não suporto livros incompletos; Springtime, Dicionário de verbos ingleses, Seleta de autores ingleses, The master key (em três volumes para a 2ª, 3ª e 4ª séries ginasiais), Correspondência comercial inglesa (adquirido por mim em 1968, no Rio, com um dinheiro que papai me dera durante sua passagem por essa cidade em direção a Porto Alegre, onde participaria de um congresso de jornalistas ) Dicionário português-inglês e o já citado Dicionário inglês-português (English- Portuguese illustrated dictionary, assunto principal desta crônica.
J. L. Campos Jr. deve ter sido um autor feliz, porquanto suas obras alcançaram muitas edições e reimpressões, sobretudo o How to leann English, possivelmente no país todo graças ao seu método prático e simples de ensinar inglês, em especial aos alunos com inclinações ao autodidatismo como eu e tantos outros. A par de sua produção didática, manteve, em São Paulo, seu próprio curso de inglês, o Curso de inglês Washington Irving. Sua produção medeia entre os anos 20 e 50 do século passado. Campos Jr. foi professor concursado do Ginásio de São Paulo e de outras escolas respeitadas da capital paulista. O livro Correspondência comercial inglesa, já referido, recebeu do professor americano Alfred R. Hill, antigo professor da Tabor Academy, Marion, Mass., USA, este parecer consagrador : “...após cuidadoso exame das obras do Sr. Campos, posso, com toda ênfase, afirmar que elas nada ficam a dever às melhores que me chegaram às mãos [ quando do meu ingresso para a Universidade de Yale]”. Sobre outro livro de Campos Jr., - os três volumes sob o titulo The máster key, citado acima -, o mesmo professor americano referiu-se ao autor afirmando, entre outros elogios, ser o professor Campos Jr. um “professor nato”.
Devo a esse autor, assim como a tantos outros queridos “amigos”, o meu desenvolvimento nos estudos de língua inglesa. De resto, fiquei tão contente com a recente compra do dicionário ilustrado que, como costumo às vezes fazer, escrevi, em inglês, logo na primeira página do velho e querido dicionário, o seguinte, que me desculpe o leitor por autocitar-me e autotraduzir-me: “Finalmente, meu bom amigo, você veio ao meu encontro. A primeira vez que o orgulho tive de folheá-lo, você não passava de uma obra pertencente à velha Biblioteca do Liceu Piauiense, em Teresina. Dessa forma, não poderia tomá-lo de empréstimo à biblioteca, visto que você fazia parte das obras de referência. Naquele tempo, lá pelos inícios da década de 60 do século passado, apenas era um adolescente ansioso por aprender uma língua estrangeira tão útil. Bem sabe Deus, quanta saudade tinha de você (...). Graças à ciência e à tecnologia, pude encontrá-lo e adquirir essa obra maravilhosa. Agora, você me pertence e, espero eu, há de pertencer aos meus descendentes”
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