sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Aquela foto

A arte é uma fada que transmuta
E transfigura o mau destino.
Prova. Olha. Toca. Escuta.
Cada sentido é um dom divino.
(Manuel Bandeira, A cinzas das horas)

Cunha e Silva Filho


Sim, aquela foto, olhada de hoje, não é “apenas um retrato na parede’, porque nem o coloquei na parede nem mesmo num porta-retratos, mas ficou solto, guardado em pequeno envelope junto a outras fotos do álbum de família.
Está em preto e branco e data do final da década de oitenta do século passado. Isso de falar de século passado, aos olhos dos jovens de hoje, parece associar-se à velhice, o que nem sempre é verdade porquanto muitos que nasceram até 2000 pertencem ao século passado e ainda estão na fase infantil, na adolescência, na vida adulta ou mesmo na velhice remota ou avançada. Portanto, nem sempre o século passado é sinônimo de velhice ou anacronismo. Fui eu próprio quem bateu aquela foto.
Nela aparecem meus dois filhos, Francisco e Alexandre. Ali estão juntos no gramado da Praça Marco Aurélio, na Vila da Penha, bairro da Leopoldina, no Rio de Janeiro.
Francisco, o mais velho, está sentado na grama, usando bermuda, camiseta leve estampada, sem mangas; Alexandre, em pé, ao lado do irmão, vestindo uma camisa de manga abotoada, usando um calção, parece pronto para receber o flash que marca um dia, um instante de vida. Eram dois meninos, em plena infância, sorrindo para a vida e para a inocência. Olhavam ambos para o foco da câmara. Eu era, então, apenas a ausência presente. Não podia ser diferente.
Aquele retrato, pequeno, em forma quadrada, recorda um tempo de idade e de paisagem. Fora batido naquela praça já mencionada, praça simples e sem beleza. A beleza eram aquelas duas crianças que me encantaram os olhos para sempre. Aos fundos da foto, o céu aberto descortinando o espaço formado da Estrada Vicente de Carvalho, extensa rua cujo extremo acaba em outro bairro, Vaz Lobo, sendo este precedido pelo bairro homônimo Vicente de Carvalho e um sub-bairro chamado Vila kosmos.
Concentro-me nos limites espaciais da pequena foto e vejo, recordando sempre, de um lado a calçada da Vicente de Carvalho e, do outro lado da mesma rua, a outra calçada. Esta mostra duas árvores de média altura dando boa sombra no acanto direito da foto. Neste mesmo canto, havia uma casa de móveis. Do outro lado da calçada, a foto exibe uma fieira de casas velhas, numa das quais havia uma farmácia. Hoje tudo mudou. Não há mais a fieira de casas velhas, mas sim um prédio novo de apartamentos. Do lado oposto, pouco mudou. As árvores continuam lá.
Voltando ao locus da Praça Marco Aurélio, que se forma num círculo e numa encruzilhada, por detrás da posição em que se encontravam meus filhos na foto,havia um pequeno gramado. Fora deste, um banco de cimento, naquele instante, solitário.
Sempre que lembramos fatos passados costuma-se dizer, mudando-se apenas a forma de expressão, mais ou menos o seguinte:: “Como o tempo passou rápido! Não é possível!” Recordo-me agora daquela afirmação de Roland Barthes: “Todo texto é um intertexto.” Assertiva que me leva neste instante para aquele comovente, belo e desencantado (perdoe-me o oxímoro) poema “Filhos” de Ferreira Gullar.
No poema, Gullar, na primeira parte, se didaticamente o dividir, narra a cena (no passado) em jque os três filhos do poeta, pequeninos,, álacres e buliçosos, entraram no escritório dele. Numa segunda parte do poema (poema, de resto, que primeiro vi recitado pelo próprio poeta numa conferência há anos na Faculdade de Letras da UFRJ, uma cópia do qual distribuíram aos presentes), pela boca do “eu lírico”, o poeta medita sobre a efemeridade da existência que, num pulo, parece se transportar para o futuro ( o presente da escrita do poema) e, aí, não mais tem, junto de si, aqueles meninos correndo em direção ao seu escritório, pois hoje são adultos, com mais de “trinta anos”.
Entre o passado e o presente medeia a reflexão profunda, universal e inescapável: a impossibilidade da apreensão real do passado, da perda do afeto “que poderia ter sido e não foi’ no tempo próprio. Tal tempo não aproveitado, em decorrência dos atropelos da vida, está fisicamente sepultado. Ao poeta nem vale a consolação da relembrança, porque esta se faz, no futuro, desapontamento e desconsolo, definitivo no tempo não vivido, que é o tempo perdido na voragem e precariedade existencial: “Só então/me perguntei/ por que/ não lhes dera/maior/atenção/ se há tantos/ e tantos/ anos/ não os via crianças”.
Ao meu leitor, quero asseverar que, acompanhando o universo interior do poeta do Poema sujo, me encontro, agora, na mesma posição espiritual vivenciada no futuro, que é o presente da minha a escrita desta crônica de amor e saudades.



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