terça-feira, 1 de novembro de 2016

LITERATURA: UMA ENTREVISTA DE LEYLA PERRONE-MOISÉS









                                                    Cunha e Silva Filho


            Este artigo  parte de reflexões despertadas pela leitura  de uma entrevista da conhecida  e conceituada  ensaísta Leyla Perrone-Moisés, sob o título “Em defesa da Literatura”  concedida ao jornalista Leonardo Cazes, publicada no  Globo Caderno Prosa & Verso de 29/10/2016. O núcleo  do tema  é a discussão do papel da literatura  e da crítica literária  de nossos dias, independente do alcance  geográfico face aos caminhos e  perplexidades  em que se encontram  a criação literária, o seu  julgamento e os leitores.
         É evidente que  o tema considerado em seu sentido  lato  envolve discussões derivadas do binômio literatura-crítica literária, i.e.,  questões como  o ensino  da literatura,  currículo  escolar  do ensino médio e estudos literários  na universidade e, por último, o lugar  de maior destaque que vem ocupando a indústria cultural que nada trouxe de bom  para o antigo  prestígio obra literária que, segundo Perrone-Moisés, até os meados do século passado,  teve a literatura.
          Em outras palavras,  o espaço  conquistado  pela indústria do entretenimento, com a sua natureza  passageira, o seu facilitário  junto às massas,  provocou o declínio   do fascínio, sacralização e áurea da literatura  de alta qualidade artística. Nesses tempos diluidores,  tudo passou   por um espécie  de  nivelamento  comum  do bom e do ótimo  e do produto   descartável através  da via  da mera comunicação, inclusive e sobretudo da linguagem.
          Daí, se queixar a ensaísta do rebaixamento ou da importância  da disciplina estudo da literatura no currículo escolar  do ensino médio. Reconhece a ensaísta que  o  fenômeno  não se só  no Brasil  mas é internacional.Naturalmente Perrone-Moisés atribui esse desprestígio dos  estudos literários  a um desvio na formulação de estratégias  de mercado  de trabalho destinado  a  preparar  candidatos  a funções  profissionais  para as quais  a literatura    seria,  por assim dizer,  “inútil.”  A questão, a meu ver,  vai mais fundo,  porque está vinculada  a projetos governamentais  de desenvolvimento    em  plena  efervescência   da globalização   e  das necessidades  imperiosas   de contingentes  de mão de obra, assim como de reserva de mercado.  
        A questão não é tão-somente educacional, porém  político-ideológica. Fenômeno similar  já se havia  registrado no país  no tempo  da ditadura  militar, anos 1970, e na fase do chamado  “milagre brasileiro,”com a criação e difusão dos cursos  profissionalizantes, principalmente no ensino privado, coincidentemente  época em  que se iniciaram mudanças  drásticas  no ensino  de literatura  com  a atenção especial  dispensada  ao papel  da comunicação,   ao aproveitamento   dos estudos linguísticos e à ênfase  dada à teoria da comunicação. Só se falava, nas aulas de literatura  e de língua  portuguesa  a partir do ensino  médio, nas funções da linguagem  formuladas  pelo linguista russo  Roman Jakobson (1896-1982).  Era  o tempo em que os estudos linguísticos  se imbricaram   com  os estudos  literários para o bem e para o mal.
        “Comunicação “ passou a ser a palavra chave e  o lugar  antes  privilegiado  do ensino de literatura brasileira e de língua portuguesa  foi  posto em segundo  plano e se misturando  ao que, mais tarde,  o MEC,  designou como “Linguagens, códigos e suas tecnologias,” segundo  lembra  Perrone-Moisés  em tom  irônico.  
         A ensaísta ainda  , em tom  francamente   crítico,   alude ao novo  plano de ensino médio ao falar  este de ‘linguagem’. Ao que ela,  irônica e perplexa,   se interroga: “Mas de que linguagem se trata?”
       Pondera   Perrone-Moisés  que as os alunos(eu acrescentaria as pessoas em geral)  não só precisam  de estudar  as línguas, mas  sobretudo  necessitam de  exercitar  a reflexão  crítica,  de aprofundar  suas visões da vida  e do mundo. A ensaísta não perde tempo para censurar  uma “falsa democracia”  no meio  do ensino e da educação em âmbito oficial, onde o “essencial”  é apenas  disponibilizar ao  aluno os textos mais   digeríveis, quando o que caberiam  fazer os responsáveis  pela educação   seria  elevar  “progressivamente”  o nível do educando, o que para ela seria, sim,  uma prática  democrática.


     Na mencionada  entrevista,  Perrone-Moisés levanta a questão de uma tendência atual  da ficção, conhecida  como autoficção, termo cunhado, em 1977,  por Serge Doubrowski,   no âmbito da crítica literária, que funde autobiografia  com  ficção, numa combinação de traços contraditórios para esse tipo de  subgênero  literário. aparentado, segundo  se pode  constatar,da biografia e  das memórias  para  designar esse  tipo de ficção  na qual  o narrado fica a cargo do “eu” do autor, ainda que seja  dirigido em terceira pessoa, ou mesmo em primeira (por que não?). Por acaso, uma terceira pessoa  não poderia escamotear  a primeira ou vice-versa?
       Na opinião dela, esse tipo de subgênero literário é fruto do nosso  tempo e tem a ver com  a impossibilidade com que o escritor,  um autor se defronta  diante  do seus  “limites” de “compreensão da totalidade” num  mundo  altamente  complexo  como  é o que    estamos  vivenciando a duras  penas.
      Ora,  esse fato  determinante conduz o escritor  para uma forma de  escapar  daquela   impossibilidade,  fazendo com que se volte para a sua própria  identidade,    a sua  história  pessoal  e os seus  dilemas específicos.
      No então,  assinala a ensaísta,  a vida  pessoal  de um autor  não constitui em si  uma chancela  para que  sua  autoficção se torne  uma  feliz elaboração  estética.  É precisos que o autor vá mais além das peripécias pessoais e adentre as condições fundamentais  de produção de  textos   que tenham algo mais a  dizer  em termos  de linguagem  e de  composição estética. Seria preciso que a obra de autoficção não só desvele  “autoconhecimento,” mas também  “compreensão dos outros.”  .Ou seja,  não é o dado  narcisista que é relevante, mas  a realização  literária  pela linguagem, pela excelência do nível estético e humano.
        Mais um tópico de que fala a ensaísta refere à sua desfavorável posição com  respeito às abordagens conhecidas como  culturalistas na literatura. Não  negando  a validade da  literatura   como manifestação  histórico-cultural, a ensaísta  toma  posição  mais  ousada  e  muito aderente  ao elemento  da “imaginação” e da forma da linguagem  da escrita literária que,  para ela,  são componentes  intrínsecos  do fenômeno  literário.     
        Ao afirmar que  não se opõe às discussões  de temas políticos e  polêmicos  como  o feminismo,  o homoerotismo, por exemplo,  a ensaísta   reforça a ideias de que literatura não é “panfleto” nem “manifesto.” Nada, segundo ela, contra as questões políticas, desde que  estas não se sobreponham  às qualidades  do fazer   literário, desde que não abra mão  do ato criativo com “valor  estético”  e cognitivo”
         Ao  abordar  a situação da literatura  no meio  universitário,   ela  chama a atenção  para o fato de que hoje em dia  as comunicações acadêmicas em congressos  só interessam, em alguns  casos,  aos iniciados, aos  universitários de letras.Sua entrevista  reage com firmeza contra   quem  entende ser a “obra  de arte” um  produto comerciável,  consumível,  descartável, comproduto  passageiro,  isso tudo na contramão do sentido de “conservação,”  valorização e perenidade   da arte literária.
           No balanço que faz da literatura contemporânea, ela reconhece que a literatura  tem agora uma “presença  frágil” na mídia.”  Para que sobreviva,  ela precisa  de alavancar  meios   de melhorar a leitura e o ensino  da literatura.
       . Contraditoriamente, concluo, a ensaísta frisa que o número de  publicações  literárias  é muito   animador  e  mesmo   grande e  em suas palavras para a atividade da crítica  literária  ela deixa perceber  que os críticos  perderam o antigo reconhecimento  que alcançou seu apogeu “nos meados do século XX, o mesmo  valendo  para a literatura   que,  no seu juízo,  perdeu  seu  lugar de destaque passando, com o tempo, a se misturar  com  o rótulo geral  e insosso   de  outras   vias de comunicação, resultado, é óbvio, do avanço  incontrolável, da indústria  cultural  e de  todas as suas nuanças.O leitor  interessado na discussão  de todas  essas questões  encontrará  o aprofundamento   delas  na nova  obra da ensaísta, razão  da entrevista,  Mutações da literatura no século XXI (Companhia das Letras).

            

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