“Meu Deus,
creio que estais aqui presente!”*
Cunha e Silva Filho
Será, leitor, que existe crítica
literária para certos livros? Digamos, assim, para a Bíblia
Sagrada, para As confissões, de Santo Agostinho (354 d.C- 430 d.C), e para outras
obras superiores da cultura universal? Sim e não, não importa. O que releva é a sua grandeza.
Livros há que são forjados por inteiro
pelo universo fabuloso das subjetividades e sobretudo no
terreno das afetividades, lexema do campo semântico que tanto peso tem na obra ora lançada, que é Pulando nuvens (Teresina: Bienal Editora, 2016,148 p), do jornalista e
escritor Zózimo Tavares, piauiense de coração, mas nascido no Ceará
A pergunta acima não é uma blague,
mas uma constatação que me
inclina mais para o não, visto que, no domínio literário, o que prevalece é a qualidade da linguagem e o sentido específico
de como o tema foi
trabalhado artisticamente pelo
autor.
Formalmente, o livro
é ousado na sua construção e me lembra logo de cara uma estratégia, tão bem entrevista numa ensaio
“A ciranda da malandragem” de Jesus Antônio
Durigan acerca da escrita do contista
João Antônio (1937-1996), na qual o
ficcionista não só se vale da
imaginação - espaço do domínio da
ficção, da mimese -, mas do que lhe oferece a vida, a realidade que, no caso do livro, são textos que se contextualizam e se
unificam ao mundo de esperanças e de
anseios de Daniel, jovem sintonizado com os modos
de vida e os costumes saudáveis
de sua geração.
Deste modo, se inserem, de maneira alusiva, ao
texto geral dos relatos o capítulo inicial de Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva, uma letra de música de
Gabriel, o Pensador, o soneto “Amarante”
de Da Costa e Silva (1885-1950), um excerto de uma peça teatral de Ariano
Suassuna (1927-2014), um famoso
fragmento poético de Gonçalves
Dias( 1823-1864), um fac-símile
do poema “O menino que descobriu as palavras,”
de autoria de Cinéas Santos e Gabriel Archango, marcado por Daniel a lápis e com
as respostas escritas à mão, um fac-símile de um “manifesto redigido à mão, dirigido aos condôminos de um prédio e reivindicando liberdade
e respeito aos direitos de brincar no espaço comum do moradores. O nomezinho
de Daniel (p.34) aparece no espaço
reservado aos subscritores, assinalado à mão, um
texto de um jovem que sabe expressar-se literariamente, como o
Dilson Tavares, irmão de Daniel Tavares,este último assunto
nuclear da obra de Zózimo.
Escreve sobre si mesmo e principalmente
sobre Daniel. Ao mesmo tempo busca
em outros textos complemento
de sua inquietação extravasada belamente, harmoniosamente, no texto em seu todo, gerando uma unidade de
sentido e verossimilhança narrativa, ao fazer convergir outra vozes que, ao
cabo, se confundem e de alguma forma, mutatis mutandis, se equivalem.
Ora,
construir uma obra assim exige esforço
e criatividade, porquanto, na ficção, ou no gênero híbrido em que
se materializa este livro, misturando memórias,
textos alheios, inserções
autorias compatíveis no campo da linguagem
literária, inclusive a
parte referente aos textos virtuais, em
forma de anexo ao texto geral da obra só a vivificam ainda mais. Na realidade, decorre
desses recursos do autor a qualidade do
texto.
O exemplo mais ilustrativo dessa singularidade textual, dessa recolha de textos diversos mas que tenham
direta ou indiretamente ligação
cultural com a vida de Daniel Tavares, é haver Zózimo Tavares pinçado o tocante texto, acima
citado, “Daniel mano” (p. 115)
escrito para servir, como título e, a meu ver,
como metáfora do livro e do seu
personagem principal, Daniel
Tavares, um jovem que, aos 21 anos, filho
do autor, com toda
as esperanças de uma vida vitoriosa,
é de repente, pelos insondáveis arcanos
da vida terrena, afastado de nós mortais.
Zózimo Tavares, jornalista
tarimbado, de estilo objetivo, contudo não destituído de uma
profunda sensibilidade que, por vezes, alcança as fontes do lirismo, como seria
exemplo, entre outros no livro,
aquele trecho em que ele,
menino, em Água Branca, Piauí, avistava,
da calçada da igreja, na distância,
aquele tempo católico que lhe
parecia cada vez maior à medida que
dele se aproximava, situação tão
bem expressa da perspectiva da memória e linguagem infantis: “Chega dava tontura!” (“De volta ao começo,” primeira seção, p. 21).
Pulando
nuvens é mais um livro sobre a vida,
e não sobre a morte, pela vida pulsando
delicadamente na memória do autor e cobrindo todas as lembranças tenras,
guardadas no fundo do
coração do escritor.
É uma narrativa que se propõe provocar, na
sensibilidade dos leitores, o compartilhamento
dos deliciosos momentos da presença querida desse
jovem belo, forte, amante da vida intensa e de todas as alegrias que a existência pode propiciar a quem sabe amá-la com o peito aberto às amizades, aos amores
de juventude, às predileções culturais, seja
na música, no teatro, na dedicação ao parkour, à arquitetura e às passarelas, no campo da imagem publicitária,
na vida familiar. E que exemplo
de bem-aventurança familiar
nos dá o autor, até mesmo no
sentido pedagógico de um pai extremoso, responsável e
intensamente amoroso de sua família!.
Tudo isso é muito bem
relatado pela voz paterna que, ao contrário de outros
autores, não faz da tragédia familiar um oceano
de lamúrias, mas conserva, no
limite do possível, resguardar o que de vivo e amado o filho lhe deixou.
O
espírito do livro se bifurca entre as recordações do autor e as do filho trazido
ao texto pela força da linguagem
que sustenta a narrativa através da exaltação à vida – urge sublinhar - suscitada pelas múltiplas e preciosas recordações do filho
vivo, falecido precocemente em acidente ao pular da ponte sobre o rio Longá, em
Esperantina, interior piauiense.
Em algumas passagens do livro não há como não se comover até às lágrimas diante de situações que são verdadeiros modelos de amor, de amizade, de solidariedade, entre o autor e o filho,ou
entre o autor e a família.
Confesso que, durante a leitura desse
livro de afetividades – repito - lamentei
não ter conhecido e abraçado (o abraço forte desse menino-gigante), esse rapaz que, no verdor dos anos,
admirado pelos amigos e por todos os que
por acaso o conheceram. Daniel, na verdade,
não
foi embora, não. Está vivo e esbelto
não apenas na memória impressa de
Pulando nuvens – milagre do poder da
linguagem -, a qual, em forma de arte, se torna, fenomenologicamnte, vida perene -
mas também no pensamento fiel e
recorrente das reminiscências que
duram porque são eternas.
*Cf.
Orações do meu dia a dia,
coordenação do Pe. Lourenço Ferronatto.São Paulo : Associação Católica Nossa Senhora de Fátima. 1ª ed., 2016,
p.7-8.
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