Cunha e Silva Filho
O cordão umbilical
que me prende a Amarante, a Teresina e aos autores piauienses
ainda está bem preso. A parteira
o cortou no tempo, mas não na memória que, metaforizada, em resistir teima aos solavancos do passado.
O tempo está impregnado ao meu/nosso
mundo interior. É indissociável da matéria presente. Não depende de meu
controle, da minha razão. O tempo faz de
mim o que bem lhe aprouver. Está além das minhas parcas
possibilidades de comando, nem para trás nem para o futuro. uma vez que,
com ele, não se brinca, assim também
com o amor, a se ver o que um autor
francês num texto antigo afirmou
: “On ne badine pas avec l’amour.”
O presente é, por instantes, subjetivamente eterno. E por isso, de alguma maneira, a ideia do finito não nos assombra tanto. O presente, assim,
nos sustenta ou faz calar, por instantes, os limites
da condição de mortais. Aproveitando-me
dessas aporias, façamos uma deambulação pelo tema desta crônica : Teresina.
Em 1974, escrevi uma crônica, na qual dava minha impressão de Teresina depois de
dez anos de ausência. Tinha sido a minha primeira ausência. Um decênio não é um dia. Tudo ficou diferente,
declarei na crônica. Outras poucas
vezes, voltei a Teresina. Dá até pra contar nos dedos.
Mais diferenças constatei. A cidade ainda acanhada, calma, que deixei nos idos de sessenta já me
assustava pelas modificações visíveis, inexoráveis e inapeláveis
que ia tomando, fazendo dela
uma cidade com ares de modernidade. A minha visão
dela se restringia ao Centro,
à zona sul, à zona norte,
ao Barrocão, à Piçarra. à Vermelha. A cidade que se prolongou com arranha-céus, com os espigões, já despontava
altaneira, desafiadora, com ruídos
próprios das metrópoles.
Teresina, por mim configurada
na mente do tempo pretérito, até aos limites da margem direita do rio Poty, escapava dos meus dedos, estendia-se
pela zona leste, com novos bairros,
alguns elegantes, com casas suntuosos,
avenidas com nomes desconhecidos,
pontes, iluminações, ruas
arborizadas, movimentos
intenso de carros, com seus
novos shoppings, seus novos hotéis, alguns muito bons.Teresina,
meu amor: a cada visita que lhe fazia,com intervalos relativamente longos, sentia que a
ia
perdendo de vista por não ter acompanhado no seu crescimento vertiginoso.
A antiga
província só existe nas páginas
de bons escritores que
a perpetuaram na história
de tempos variados,
dependendo de cada autor, ou melhor, de cada um de seus cronistas
e da respectiva geração: Abdias Neves (1876-1928),
A. Tito Filho (1924-1992), H. Dobal (1927-2008)
Afonso Ligório, José Ribamar
Garcia, Geraldo Almeida Borges, em
alguns magníficos poemas de
Paulo Machado, entre outros. A
minha é a que medeia entre a infância
de três anos até à adolescência dos
dezoito anos, naquele divisor de águas , que é o ano de 1964.
Estou encalacrado, já não sei
me movimentar por estas novas
teresinas em que se transformou em cinquenta e dois anos. Como vou reencontrar
a Teresina dos meus dias de teresinações? Acho que foi A.Tito Filho que inventou o verbo “teresinar.” Pois é, leitor,
o que farei agora com a visão da beleza antiga dos meu
tempo vivido nessa cidade que não deixa de crescer e que encravada
eternamente está na minha lembrança? Foi por minha culpa ou por culpa dela? O
melhor não é transformar
essa cidade amada em
metafísica. O melhor
mesmo é poder contar com o que
permaneceu ainda
intocável.
E, por falar em intocável quero significar
o que internalizei de vez na memória: o velho Centro ensolarado com as suas
ruas tão conhecidas de mim repercutindo vozes do
passado, rostos familiares, meus parentes, hoje, alguns, tão afastados) vitalidade juvenil,
moças bonitas, carnavais antigos,
os filmes americanos de faroeste, Fellini (1920-1993), Vitorio de Sica (1901-1974),
Chaplin (1889-1977), O Gordo e o Magro,
Bud Abbot (1897-1974) e Lou Castello (1906-1959), filmes italianos, mexicanos, franceses, os
impagáveis Oscarito (1906-1970), Grande
Otelo (1915-1993),Zé Trindade,(1915-1990), Ankito (1924-2009), Cantiflas (1911-1993).
E mais: as atrizes, nacionais e estrangeiras, de beleza
esplendorosa, os meus atores (brasileiros e estrangeiros) inesquecíveis,
namoros fortuitos, o Parnaíba com "as barbas brancas alongando" - ícone da paisagem piauiense, Igreja de São
Benedito, as belas curicas, os coleguinhas
de infância, os amigos
da juventude, os amados
professores, a Igreja do
Amparo, o Clube dos
Diários, a Praça
Pedro II, a Praça Rio Branco, o Karnak, os Correios,
as velhas casas de outrora, os velhos
palacetes, os presépios de natal, o bacuri,
as cuscuzeiras, as belas plantas que, menino, andava caçando, os natais em casa, a galinha assada por mamãe, a missa do Galo, Praça João Luis Ferreira, o velhusco
prédio do Instituto (agora, uma ruína que dói), o Rex e o Theatro 4 de
Setembro, as velhas ruas tão
amadas e imortalizadas no tempo. A enumeração será sempre incompleta. Por isso, funciona como metonímias.
São tantas as memórias, tão densas
as visões, as vozes, os entes
queridos, o Domício, o Liceu,
a Rua Arlindo Nogueira esquina com
a São Pedro (eu as revisitei nesta
recente viagem, pegando um táxi e dando
uma boa volta até às ruas por detrás do
Liceu Piauiense.A minha casa da Arlindo
Nogueira virou comércio, Perdeu o antigo encanto. Ubi sunt as lindas meninas que passaram?
– repito no mesmo tom
nostálgico de uma antiga crônica. A aulas
de francês do meu pai, um mestre ainda
bem forte, eloquente naqueles
discursos que, de quando em vez, pronunciava
em dias festivos do Domício.
O que eu mesmo queria
era ficar andando sem rumo pelas desgastadas
ruas e logradouros de Teresina, Olhe, ali vai meu
pai em direção ao Liceu, à Escola Normal, ao Domício, ao Bar Carnaúba (só lembrança). “Veja,
ali vou eu,, menino, ao Mercado Velho com mamãe”. Espero não me encontrar
com o padre e ter que dizer-lhe novamente: “ Não, padre
veste roupa de mulher”. Mamãe
ficou ruborizada. Mas, quem mandou o padre me perguntar se eu queria
ser padre? Até outra vez, Teresina!
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