Cunha e Silva Filho
Só conhecia o
autor, Milton Borges, dos comentários gerais e breves que lhe faz o
poeta, historiador, literário e ficcionista Francisco Miguel de Moura
na sua indispensável obra Literatura do Piauí.(Teresina:
EDUFPI, 2 edição revista, ampl. e atualizada, 2013, 387 p).
O historiador me informa sobre a produção do ficcionista Milton
Borges, sobre o prêmio “Fontes Ibiapina” que lhe foi concedido pela
FUNDAC (Fundação Cultural do Piauí), pelos romances Destino sobre rodas (2002) e Vale dos mal amados,
este último inédito, segundo o historiador. Esclarece ainda que
Borges participou de antologias e de outras obras coletivas.
Na mesma história
de autores piauienses, Miguel de Moura o enquadra no grupo de autores
denominados, de modo geral, de “Geração marginal.” Na
presente resenha, não é minha intenção discutir esse tipo de
classificação geracional. Na obra de Miguel de Moura,
logo após considerações em torno da posição de Borges na história da
literatura piauiense, o historiador inclui um conto de Milton Borges, de
título “ O passeio” (p.263-265) que, de alguma maneira, me permite
refletir sobre alguns traços particulares e temáticos da forma de
narrar do autor.
Não faz muito
tempo, em artigo, falei que a literatura piauiense é muito mais
numerosa em poesia do que em prosa de ficção. Ora, tal circunstância,
por si só, nos deixa mais animado quando mais um ficcionista
surge no panorama dos autores piauienses.
Este é o caso
também de Milton Borges (assim como de outros até mais jovens) que nos
surpreende com o seu mais recente livro, Sabor de vingança
(Teresina: Editora Nova Aliança, 2015, 173 p.). A edição tem orelhas,
de resto, em síntese admirável sobre a obra, de outro ficcionista
piauiense bastante conhecido, sobretudo do público piauiense, José
Ribamar Garcia. O livro tem sugestiva capa de Ângela Rêgo.
Situemos
criticamente algumas características evidentes na escrita literária de
Milton Borges sem a pretensão de avaliá-lo por inteiro, já que só
havia lido o citado conto “Passeio” que, por sinal, abre um
flanco para o conhecimento de sua temática e, além do mais, nele
pinço uma particularidade facilmente à vista: a tematização da
violência e a força do seu diálogo, muito vivo, muito ágil, que me
remete de alguma maneira, para uma estratégia de natureza
cinematográfica, quer dizer, iniciar suas histórias, em geral, in
medias res, e por diálogos que, a princípio, podem embarcar o leitor
quanto a saber quem é quem dos interlocutores.
Este incipt
do ato de narrar ficcionalmente, de representação fílmica ou de
telenovela é muito comum na atualidade. Este estranhamento inicial
faz, a meu ver, parte do desenvolvimento de uma obra de ficção nestas
três formas de representação dramática. No entanto, à medida
que vamos lendo o texto ficcional, que é o tipo que me interessa aqui,
o narrador nos vai aclarando quem é quem e, desta forma, nos
vai pondo diante da identificação dos personagens.
Obviamente, este
modo de iniciar uma narrativa pelo diálogo não é uma constante única,
mas é efetivamente uma das constantes no livro de Milton Borges.
Mais ainda, se o diálogo assim configurado não surge no início de
cada história, ele é frequente na narrativa de Milton Borges a
partir do que constato pela incursão no seu texto.. Por outro
lado, o dado digressivo ou descritivo, da mesma forma é utilizado
pelo narrador. Entretanto, isso nos leva a uma dedução, Milton
Borges me parece dar grande importância à oralidade do discurso .
A estruturação do seu
texto se constrói por uma liberdade que o narrador se permite,
observando-se mesmo, em algumas frases, uma forma sintática que nos
lembra um anacoluto. Seria nele uma traço estilístico ou uma defeito
de estilo? Creio que seja um traço estilístico ou venha desta
tendência nele, inconsciente ou como recurso literário, de escrever
ficção como se estivesse por vezes conversando. Ou seja, uma maneira
de escrita literária que se vale da riqueza da oralidade, no
discurso ficcional a fim de mimetizar ao máximo o recurso da
verossimilhança, uma aproximação tanto quanto possível do discurso
do narrador conectado à oralidade do próprio leitor. Esta
estratégia narrativa resulta numa possibilidade renovada de narrar sem
as peias de um discurso linguisticamente bem comportado.
Sabor de sangue, composto
de vinte e oito contos, de extensão breve, a maioria não
ultrapassando três páginas, é uma outra forma de estratégia
narrativa que, de nenhuma maneira, deseja entediar o leitor, uma
vez que a trama, a intriga,o desfecho e o epílogo se realizam
tecnicamente dentro dos limites da sua brevidade de tempo de
leitura, embora o espaço seja diversificado e dinâmico - a cidade de
Teresina, de preferência sua periferia, seus lugares humildes.
O conjunto de contos
gira em torno de um tema, a violência urbana, opção no livro que é
explicitamente reconhecida pelo narrador num dos contos, “Um copo de
tentação,”(p.133-13) um dos pontos altos da narrativa de Milton Borges. Nesta
história o protagonista, Edilson, é uma espécie de símbolo da
policial brasileiro às voltas com a sua precária condição de vida,
carência de alimentação, baixos salários, falta de preparo para a sua
missão de defender a lei, flagrado num instante de fraqueza diante
da insistência de beberrões, resultando na capitulação, na prisão dele
por embriaguez envergando a própria farda e desmoralizando a
corporação a que pertence.
Sangue de vingança se
alinha ao tipo de narrativa que, nos anos setenta e oitenta, já
fizera surgir notáveis autores brasileiros que tematizaram a
marginalidade, a violência urbana, como Aguinaldo Silva, João Antonio
(1937-1996), Rubem Fonseca, José Louzeiro, entre outros ficcionistas.
Com o processo de industrialização crescente por que passava o pais
e com o crescimento desordenado das capitais brasileiras, estas se
inflaram de um grande contingente de despossuídos do interior dos
estados, migrantes que invadiam as nossas metrópoles e as nossas
capitais, i.e., inclusive o espaço geográfico de Teresina, onde se
desenrola todo o cenário de crimes, do surgimentos do tráfico de
drogas e da escalada da violência sem precedente na cidade e, por
extensão, no país inteiro.
O aparato policial ganha
destaque nas páginas dos contos. Entretanto, ainda o narrador não
problematiza as relações subterrâneas entre a polícia e os bandidos.
A presença da polícia é relevante e o narrador mantém com ela um certo
clima favorável e compreensivo, não a criticando mas dela dando
uma imagem em geral burocrática diante das dificuldades em lidar com
a criminalidade.
Milton Borges se inclui
neste filão de ficcionistas que têm como tema nuclear a exploração,
no campo ficcional, de histórias nas quais os protagonistas
pertencem à galeria de criminosos e de todos os vícios que
apareceram nas urbes, quer nos redutos das favelas verticais (os
morros cariocas, por exemplo)), quer na horizontais, nos bairros da
periferia, onde a miséria e a promiscuidade prosperam de forma
crescente.
É bem provável que estamos
diante do ficcionista piauiense que mais se tenha concentrado em
narrar todas as mazelas trazidas pela nova marginalidade que assola
o país atualmente e até no interior. Sabor de sangue radiografa, sem
papas na língua, este underground do crime e abre espaço para a
discussão da marginalidade tentacular que, reforço, tomou conta do
Brasil sem a correspondente competência dos governos para reduzir
este gravíssimo problema social.
Usa, por vezes, da técnica da
surpresa no desfecho de um conto, como o primeiro do livro, de
título ”Segredo de confissão” (p.7-13), em que uma mulher, fingindo
manter uma vida limpa, após confessar-se, subtrai o celular do
padre, provocando um instante de comicidade, ou dá tratamento
ficcional a outros variações da temática da violência: o marido
galinha, história com um fim tragicômico, posto que o crime havia sido
cometido não pela esposa , mas por uma amante desaforada e dominadora,
inclusive por ser comadre do casal,. no conto"Faca no peito" (p.35-37);
denúncia social, a brutalidade escancarada, o tráfico de influência,
como no conto “O maioral”(p73-79), em que um funcionário da
Secretaria de Segurança, um espertalhão, por ser primo do governador,
não permitia que lhe cortassem o fornecimento de luz por fala de
pagamento, deixando em situação embaraçosa o funcionário designado
para desligar a luz de sua casa;.o conto do vigário de que foi
vítima uma viúva metida a esperta, no conto “Loteria premiada”
(p.57-62); um deficiente bancando de assaltante, no conto “Pavor
coletivo” (p. 103-109); a delinquência juvenil, no conto “Amor de mãe”
(p. 149-150); o trágico drama de um jovem epilético e doente mental,
no conto “O cadáver disputado” (p. 157-161); outro drama trágico de
dois amigos de infância que se tornam marginais de “gangues rivais,” no
conto que dá título ao livro, “Sabor de sangue”(111-115); a violência
doméstica no conto "Fuga para lugar nenhum" (p.139-147); Este livro
de contos - pode-se dizer - é o cartão de visita às avessas da
marginalidade e da violência em que se transformou a velha Teresina
tranquila e provinciana dos anos 1960, aproximadamente. .
Milton Borges se coloca,
assim, no que tange à sua temática focalizando a violência urbana, como um dos seus principais intérpretes e como um ficcionista
que traz para as páginas desta obra a fisionomia de uma Teresina que
reclama por soluções mais efetivas e urgentes no enfrentamento da
criminalidade, da brutalidade, da selvageria e do desamparo em que se
encontra a sociedade local, desde as camadas mais humildes até as
mais sofisticadas. Violência que se equipara, em muitos
ângulos, àquela enfrentada pelas grandes metrópoles brasileiras.
Por outro lado, fica uma
sugestão ao autor: que não restrinja a sua imaginação e o seu
talento apenas ao tema da marginalidade. Que abra espaços do seu
universo ficcional para novos temas visto que me parece ter
domínio e condições de amadurecer tanto a linguagem literária
quanto a sua disponibilidade para novas obras.
NOTA: No que tange à afirmação (primeiro parágrafo do resenha acima), de como tive o primeiro contato com o contista Milton Borges, por esquecimento involuntário, eu esqueci de mencionar a leitura que tinha feito da "Apresentação" do livro Sabor de vingança a cargo do professor, critico literário e ensaísta Carlos Evandro Eulálio na época do lançamento da obra, na Livraria Entrelivros, Teresina,PI. O texto de apresentação do Carlos Evandro é um modelo de acuidade crítica e de reconhecimento do valor dessa obra do Milton Borges.
NOTA: No que tange à afirmação (primeiro parágrafo do resenha acima), de como tive o primeiro contato com o contista Milton Borges, por esquecimento involuntário, eu esqueci de mencionar a leitura que tinha feito da "Apresentação" do livro Sabor de vingança a cargo do professor, critico literário e ensaísta Carlos Evandro Eulálio na época do lançamento da obra, na Livraria Entrelivros, Teresina,PI. O texto de apresentação do Carlos Evandro é um modelo de acuidade crítica e de reconhecimento do valor dessa obra do Milton Borges.
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