segunda-feira, 13 de junho de 2016

A LITERATURA É PARA SER LIDA





                                                 Cunha e Silva  Filho



        Um ex-professor professor meu de literatura, A. Tito Filho (1924-1992)  no velho Liceu Piauiense (no meu tempo  se chamava Colégio Estadual  “Zacarias Góis),   nome respeitado e admirado do magistério,  do jornalismo,  da boêmia literária, uma vez   me levando, em sua Rural Willlis,  para  casa de volta de um  encontro, em lugar  aprazível, se não me engano,  num sítio de um amigo comum  de  intelectuais e professores, incluindo meu pai,  me dissera:”Leia primeiro os autores, depois complemente com a teoria. Só terá a  lucrar com isso.”
       Essa recomendação, dirigida sobretudo a jovens, enfatizava a grande importância da leitura  intensiva e extensiva. Tal  declaração do meu professor  aproveitei  para  citar no meu livro  para estudantes de Letras, Breve introdução ao curso de Letras: uma orientação (Litteris  Editora; Quártica, Rio de Janeiro,  2009, 120 p).
       A sugestão inteligente de A. Tito Filho é ainda atualíssima, e assim será sempre. Contudo, deve ser entendida, a meu ver,  nos seguintes  termos: a leitura deve ser intensa e extensa, conforme  assinalei acima, mas acompanhada simultaneamente das leituras da teoria literária, com a leitura dos críticos e ensaístas. Ela se põe, assim, num tripé, ou seja, autor + leitor + teoria. Naturalmente,  me  estou  referindo a alunos que se destinem aos estudos literários, conquanto reconheça que  leitores há que gostam também  de ler sobre o que teóricos e críticos pensam acerca de ficcionistas, poetas,  dramaturgos,  cineastas,  artistas  em geral. 
        O que não deve acontecer é a hipertrofia, o excesso de leituras teóricas que dizem mais respeito a acadêmicos  das áreas das ciências humanas.ou até científicas, pois conheço pessoas que, sendo  engenheiros, ou mesmo  acadêmicos  de engenharia ou de  outras  áreas tecnocientíficas, valorizam  a literatura,  a linguística etc. Tanto é verdade que, no passado e no presente,  escritores existem que se graduaram  em áreas não correlatas  às humanidades.
      O que eu chamaria  de leitura  da perda  da inocência não deve ser entendido como aquela destinada ao divertimento,  às horas  ociosas  do leitor  comum ou do leitor  de bestsellers. Essa leitura, assim especificada,  seria a leitura   dos estudantes de Letras,  dos  professores de literatura,  dos teóricos e ensaístas, do espaço   universitário.
       Ao ser introduzido às noções de teoria literária que, em geral, começam nas últimas séries do ensino fundamental e se complementam, em nível  intermediário,  no ensino médio, o estudante das disciplinas  língua portuguesa e literatura  luso-brasileira, ao ler ficção e poesia  já vai se familiarizando com  a terminologia   ou os elementos  de teoria literária que lhe propiciará entender a literatura  como  um refinamento da linguagem, chamada lingua literária, diferente  da linguagem  da comunicação ou das referencialidades  ligadas  à realidade  empírica.
         Se, por acaso, fosse um leitor que,  por conta própria,  gostasse de ler ficção ou  poesia ou as duas  coisas,  aí se  depararia com aquela leitura não contaminada pela perda da inocência, o que seria puramente um leitor  que, de uma forma ou de outra,  também  fruiria  o prazer de ler uma história e com ela se emocionar. Sentiria o prazer estético  ainda que num nível compatível com a sua  instrução.     .
         Ao contrário, o estudante,  instrumentalizado   com as noções de teoria literária, e notadamente,  o estudantes que  ingressa  nos cursos de Letras,  aos poucos  irá se desapegando da leitura ingênua, destituída  interferências  crescentes  metaficcionais. Iniciará  uma nova etapa  de aquisição de  um arsenal  teórico tanto no campo da teoria literária quanto no  da linguística.
       Ou seja, essa absorção fará parte de seu  repertório  de conhecimentos  mais profundos  do fenômeno literário, gramatical, filológico e linguístico, somados ao conhecimento de outras   áreas  humanas, como a filosofia,  a psicologia,  a sociologia,  a história,  a política, a economia. Se já graduado em Letras,  passará a conviver  profissionalmente com dois processos  de intelectualização contínua  dos quais  não mais se apartará. Se pender para a linguística, a gramática, a filologia, a análise do discurso,  a linguística  textual,   todo esse background  específico   estará   intimamente  relacionado à  sua vida mental, seja pela dimensão  da metaliteratura, seja pela dimensão da metalinguística ou, em muitos  caso,  por ambas.
          Por fim, a sua formação, no campo das ciências humanas,  ainda  será invadida  por outras   disciplinas ou saberes dada a transversalidade em que se encontram os estudos contemporâneos, com as fronteiras do conhecimento intercambiáveis. O seu espectro de conhecimentos  convocados aos  novos    comportamentos exigidos  pelos estudos  do estudante  e do  profissional  acadêmico demandará outros campos epistemológicos, nas disciplinas da psicanálise,  da música, das artes em geral,  da antropologia e mesmo das ciências estatísticas,   computacionais. Mutatis mutandi,  seria, a grosso modo,  um “neoenciclopedismo” da modernidade  célere  e em  bases  transnacionais.
       Ora,  todas essas transformações operadas no  seio das literatura e de terrenos   do conhecimento correlatos ou não correlatos, por sua vez,  tornaram muito mais complexos e mais exigentes para  os novos tempos  atravessados  pela era  digital e pelo  mundo   virtual.
       Os antigos compartimentos estanques dos saberes  já estão sepultados e com eles  sofreram inflexão  algumas áreas  humanas, como, por exemplo, a filologia, os estudos clássicos, com repercussão   nos grandes centros  europeus e nas formulações   de currículos   do ensino médio e superior.
    Os docentes dessas disciplinas não desejavam perder seu espaço e prestígio  cultural. A própria sociedade culta, os estudantes se manifestaram  contra   as medidas das autoridades educacionais de exclusão  do latim e, se não laboro em erro,  também do grego,   como, não faz muito tempo, aconteceu na França.
     O Brasil sofreu dessa mesma espécie de  aversão das autoridades educacionais pela abolição da língua latina do ensino fundamental  e médio que se efetivou no início dos anos sessenta do século   passado, com a exclusão do latim  do curso ginasial. Eu mesmo,  tendo  concluído o curso  científico,  fiz um  inflamado  artigo criticando  a exclusão do latim Felizmente,  ainda temos, em algumas escolas e cursos de direito pelo menos, um ou dois  semestres,   do ensino do latim.
       Por outro lado, apesar dos novos tempos  globalizados, no tocante à implantação da interdisciplinaridade  professores mais conservadores de universidades  e do curso de Letras, sub-áreas de língua portuguesa e  filologia,  ainda veem com  certa  má vontade (acredito que nem todos) que, em  congressos de língua e filologia,  se apresentem trabalhos abordando temas  especificamente literários, ou  seja,  professores que  ainda insistem  na clivagem entre estudos literários e estudos  filológicos e linguístico, o que é  desconhecer  os avanços  dos estudos  interdisciplinares. Felizmente, creio que  esses tabus   com o tempo serão superados.Um deles me chegou a fazer um comentário, no mínimo ingênuo, ao me dizer que  os professores de literatura  “viajam muito” e se perdem em  especulações interpretativas   intermináveis.
        Retomando a questão da perda da inocência no que tange à leitura da imaginação (romance, novela,  conto,  poesia,  drama, teatro escrito) pelo menos de uma  boa notícia já dispomos. Foi exatamente de um  ex-estruturalista famoso, principalmente no auge do estruturalismo,  tempo de minha graduação em Letras, Tzvetan Todorov, que ouvimos  uma forma de  “mea culpa” ao afirmar  que  o excesso de  hermetismo  teórico  afastou  os leitores  do “prazer” da leitura.
       E acrescento eu,  afastou, além de alguns  estudantes de Letras,  até pessoas  estudiosas  no campo  da literatura, provocando nelas ojeriza pelo estruturalismo, pelas análises  alicerçadas nessa corrente do pensamento crítico.  O estruturalismo foi  atacado  por alguns intelectuais brasileiros, sendo um dos mais  ferrenhos o  jovem  crítico  José Guilherme Merquior (1941-1991). O aparato  técnico e científico do estruturalismo seguramente teria dias contados.As cansativas leituras teóricas  estruturalistas, com seus  famosos “esquemas fonogramáticos” (de árvores)  ou os esquemas de “parentetização etiquetada,” (Eduardo Lopes,  Fundamentos da linguística contemporânea, Cultrix,  1974) tomados aos  avanços  na época da linguística. Sucede que,  mesmo  aos especialistas de hoje  aquelas cansativas visualizações que lembravam as decomposições  dos elementos da  química ou funções algébricas, quadros  esquemáticos,   estatísticos os especialistas, o estruturalismo dos anos 1970 já não diz muita coisa.
      Suponho tenha sido ele, o estruturalismo aproveitado da antropologia  de  Lévi Strauss (1908-2009) e adaptado aos estudos  literários,   um dos principais  responsáveis  pelo  perda do   antigo  prazer de ler  e de escrever sobre literatura.
     Críticos literários, com o tempo, encontrariam  novas  correntes do pensamento crítico, da Nova crítica   defendida por Afrânio Coutinho (1911-2000)  para formas mais  abertas  e não ortodoxas de  estudar  e analisar  o fenômeno  literário, não necessariamente   subordinadas   à linguística e ao vezo  de, em vão,  submeter  a literatura  a um formalismo cintificizante e tecnicista.
        Outras vias de abordagens de análise surgiriam, outras mais  aproveitariam o que de positivo  encontraram  nas diversas  correntes críticas, inclusive no estruturalismo,  mas dando  maior  peso  de análise aos aspectos  culturais,  sociais e estilísticos  da obra literária.
       Quer dizer,  approaches que dariam  conta da análise literária e dos estudos críticos tendo em consideração que a  obra literária, sendo criação humana,  deve proporcionar prazer, emoção, sentimento, humanidade  e elaboração estética fazendo  com que o leitor, o crítico e o teórico  sinalizem para a leitura como vida, gosto de ler, encantamento, enfim,  um diálogo  constante entre o leitor e o criador no sentido de  melhor compreender os homens e tudo que há à sua volta.       
        Só pela citação de  um pequeno  trecho do livro  A literatura em perigo. Trad.  de Caio Meira. (Rio de Janeiro:DIFFEL, 2009, p..25),   de Todorov, de quem assisti a uma conferência nos anos 1970, na Faculdade de Letras da UFRJ, pode o leitor imaginar  uma mudança de atitude diante da obra literária: “Na escola não aprendemos acerca do que falam as obras,  mas sim do que falam os críticos.”
     Por isso,  vejo com  certo  fundamento  a minha   referência,  no domínio da literatura   de ficção,  àquilo que chamei a perda da inocência tão logo somos  envolvidos  intelectualmente  com  o arcabouço teórico  que, em si,  é basilar,  mas que, não posso negar,   nos tira para sempre   a leitura pela leitura, ou seja,  o encontro com um mundo de vidas e de sentimentos,  segundo  assinalei acima,  um pedaço da vida  encontrado na materialidade  da palavra escrita.  O que posso fazer se  a pureza  da leitura se acaba na vida adulta   de um estudioso? 
       
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