Cunha e Silva Filho
Um ex-professor professor meu de
literatura, A. Tito Filho (1924-1992) no
velho Liceu Piauiense (no meu tempo se
chamava Colégio Estadual “Zacarias Góis), nome respeitado e admirado do
magistério, do jornalismo, da boêmia literária, uma vez me levando, em sua Rural Willlis , para
casa de volta de um encontro, em
lugar aprazível, se não me engano, num sítio de um amigo comum de intelectuais
e professores, incluindo meu pai, me
dissera:”Leia primeiro os autores, depois complemente com a teoria. Só terá a lucrar com isso.”
Essa recomendação, dirigida sobretudo a
jovens, enfatizava a grande importância da leitura intensiva e extensiva. Tal declaração do meu professor aproveitei para
citar no meu livro para
estudantes de Letras, Breve introdução ao
curso de Letras: uma orientação (Litteris
Editora; Quártica, Rio de Janeiro,
2009, 120 p).
A sugestão inteligente de A. Tito Filho
é ainda atualíssima, e assim será sempre. Contudo, deve ser entendida, a meu
ver, nos seguintes termos: a leitura deve ser intensa e extensa,
conforme assinalei acima, mas
acompanhada simultaneamente das leituras da teoria literária, com a leitura dos
críticos e ensaístas. Ela se põe, assim, num tripé, ou seja, autor + leitor +
teoria. Naturalmente, me estou
referindo a alunos que se destinem aos estudos literários, conquanto reconheça
que leitores há que gostam também de ler sobre o que teóricos e críticos pensam
acerca de ficcionistas, poetas,
dramaturgos, cineastas, artistas
em geral.
O que eu chamaria de leitura da perda da inocência não deve ser entendido como
aquela destinada ao divertimento, às
horas ociosas do leitor comum ou do leitor de bestsellers.
Essa leitura, assim especificada, seria
a leitura dos estudantes de
Letras, dos professores de literatura, dos teóricos e ensaístas, do espaço universitário.
Ao
ser introduzido às noções de teoria literária que, em geral, começam nas
últimas séries do ensino fundamental e se complementam, em nível intermediário, no ensino médio, o estudante das disciplinas língua portuguesa e literatura luso-brasileira, ao ler ficção e poesia já vai se familiarizando com a terminologia ou os elementos de teoria literária que lhe propiciará
entender a literatura como um refinamento da linguagem, chamada lingua
literária, diferente da linguagem da comunicação ou das referencialidades ligadas
à realidade empírica.
Se,
por acaso, fosse um leitor que, por
conta própria, gostasse de ler ficção
ou poesia ou as duas coisas,
aí se depararia com aquela
leitura não contaminada pela perda da inocência, o que seria puramente um
leitor que, de uma forma ou de
outra, também fruiria
o prazer de ler uma história e com ela se emocionar. Sentiria o prazer
estético ainda que num nível compatível
com a sua instrução. .
Ao
contrário, o estudante,
instrumentalizado com as noções
de teoria literária, e notadamente, o
estudantes que ingressa nos cursos de Letras, aos poucos
irá se desapegando da leitura ingênua, destituída interferências crescentes
metaficcionais. Iniciará uma nova
etapa de aquisição de um arsenal
teórico tanto no campo da teoria literária quanto no da linguística.
Ou seja, essa absorção fará parte de
seu repertório de conhecimentos mais profundos do fenômeno literário, gramatical, filológico
e linguístico, somados ao conhecimento de outras áreas
humanas, como a filosofia, a
psicologia, a sociologia, a história,
a política, a economia. Se já graduado em Letras, passará a conviver profissionalmente com dois processos de intelectualização contínua dos quais
não mais se apartará. Se pender para a linguística, a gramática, a
filologia, a análise do discurso, a
linguística textual, todo esse background específico estará
intimamente relacionado à sua vida mental, seja pela dimensão da metaliteratura, seja pela dimensão da
metalinguística ou, em muitos caso, por ambas.
Por fim, a sua formação, no campo das
ciências humanas, ainda será invadida
por outras disciplinas ou
saberes dada a transversalidade em que se encontram os estudos contemporâneos, com
as fronteiras do conhecimento intercambiáveis. O seu espectro de
conhecimentos convocados aos novos
comportamentos exigidos pelos
estudos do estudante e do
profissional acadêmico demandará
outros campos epistemológicos, nas disciplinas da psicanálise, da música, das artes em geral, da antropologia e mesmo das ciências estatísticas, computacionais. Mutatis mutandi, seria, a grosso modo, um “neoenciclopedismo” da modernidade célere
e em bases transnacionais.
Ora,
todas essas transformações operadas no
seio das literatura e de terrenos
do conhecimento correlatos ou não correlatos, por sua vez, tornaram muito mais complexos e mais
exigentes para os novos tempos atravessados
pela era digital e pelo mundo
virtual.
Os
antigos compartimentos estanques dos saberes já estão sepultados e com eles sofreram inflexão algumas áreas
humanas, como, por exemplo, a filologia, os estudos clássicos, com
repercussão nos grandes centros europeus e nas formulações de currículos do ensino médio e superior.
Os docentes dessas disciplinas não
desejavam perder seu espaço e prestígio cultural.
A própria sociedade culta, os estudantes se manifestaram contra
as medidas das autoridades educacionais de exclusão do latim e, se não laboro em erro, também do grego, como, não faz muito tempo, aconteceu na
França.
O
Brasil sofreu dessa mesma espécie de aversão
das autoridades educacionais pela abolição da língua latina do ensino
fundamental e médio que se efetivou no início
dos anos sessenta do século passado, com
a exclusão do latim do curso ginasial.
Eu mesmo, tendo concluído o curso científico,
fiz um inflamado artigo criticando a exclusão do latim Felizmente, ainda temos, em algumas escolas e cursos de
direito pelo menos, um ou dois
semestres, do ensino do latim.
Por
outro lado, apesar dos novos tempos globalizados,
no tocante à implantação da interdisciplinaridade professores mais conservadores de
universidades e do curso de Letras,
sub-áreas de língua portuguesa e
filologia, ainda veem com certa má
vontade (acredito que nem todos) que, em
congressos de língua e filologia,
se apresentem trabalhos abordando temas
especificamente literários,
ou seja,
professores que ainda
insistem na clivagem entre estudos
literários e estudos filológicos e
linguístico, o que é desconhecer os avanços
dos estudos interdisciplinares.
Felizmente, creio que esses tabus com o tempo serão superados.Um deles me
chegou a fazer um comentário, no mínimo ingênuo, ao me dizer que os professores de literatura “viajam muito” e se perdem em especulações interpretativas intermináveis.
Retomando a questão da perda da
inocência no que tange à leitura da imaginação (romance, novela, conto,
poesia, drama, teatro escrito) pelo
menos de uma boa notícia já dispomos.
Foi exatamente de um ex-estruturalista
famoso, principalmente no auge do estruturalismo, tempo de minha graduação em Letras, Tzvetan Todorov,
que ouvimos uma forma de “mea culpa” ao afirmar que o
excesso de hermetismo teórico
afastou os leitores do “prazer” da leitura.
E acrescento eu, afastou, além de alguns estudantes de Letras, até pessoas
estudiosas no campo da literatura, provocando nelas ojeriza pelo
estruturalismo, pelas análises
alicerçadas nessa corrente do pensamento crítico. O estruturalismo foi atacado
por alguns intelectuais brasileiros, sendo um dos mais ferrenhos o jovem crítico
José Guilherme Merquior (1941-1991). O aparato técnico e científico do estruturalismo
seguramente teria dias contados.As cansativas leituras teóricas estruturalistas, com seus famosos “esquemas fonogramáticos” (de
árvores) ou os esquemas de “parentetização
etiquetada,” (Eduardo Lopes, Fundamentos da linguística contemporânea,
Cultrix, 1974) tomados aos avanços
na época da linguística. Sucede que, mesmo aos especialistas de hoje aquelas cansativas visualizações que lembravam
as decomposições dos elementos da química ou funções algébricas, quadros esquemáticos,
estatísticos os especialistas, o estruturalismo dos anos 1970 já não diz
muita coisa.
Suponho tenha sido ele, o estruturalismo
aproveitado da antropologia de Lévi Strauss (1908-2009) e adaptado aos
estudos literários, um dos
principais responsáveis pelo
perda do antigo
prazer de ler e de escrever sobre
literatura.
Críticos literários, com o tempo,
encontrariam novas correntes do pensamento crítico, da Nova crítica defendida por Afrânio Coutinho (1911-2000) para formas mais abertas
e não ortodoxas de estudar e analisar
o fenômeno literário, não
necessariamente subordinadas à linguística e ao vezo de, em vão,
submeter a literatura a um formalismo cintificizante e tecnicista.
Outras vias de abordagens de análise
surgiriam, outras mais aproveitariam o
que de positivo encontraram nas diversas
correntes críticas, inclusive no estruturalismo, mas dando
maior peso de análise aos aspectos culturais,
sociais e estilísticos da obra
literária.
Quer dizer, approaches
que dariam conta da análise literária e dos
estudos críticos tendo em consideração que a
obra literária, sendo criação humana,
deve proporcionar prazer, emoção, sentimento, humanidade e elaboração estética fazendo com que o leitor, o crítico e o teórico sinalizem para a leitura como vida, gosto de
ler, encantamento, enfim, um
diálogo constante entre o leitor e o
criador no sentido de melhor compreender
os homens e tudo que há à sua volta.
Só
pela citação de um pequeno trecho do livro A
literatura em perigo. Trad. de Caio Meira. (Rio de Janeiro:DIFFEL, 2009, p..25), de Todorov, de quem assisti a uma conferência
nos anos 1970, na Faculdade de Letras da UFRJ, pode o leitor imaginar uma mudança de atitude diante da obra
literária: “Na escola não aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam os críticos.”
Por isso,
vejo com certo fundamento
a minha referência, no domínio da literatura de ficção, àquilo que chamei a perda da inocência tão logo somos envolvidos
intelectualmente com o arcabouço teórico que, em si,
é basilar, mas que, não posso
negar, nos tira para sempre a leitura pela leitura, ou seja, o encontro com um mundo de vidas e de sentimentos,
segundo
assinalei acima, um pedaço da
vida encontrado na materialidade da palavra escrita. O que posso fazer se a pureza
da leitura se acaba na vida adulta
de um estudioso?
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