segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Carta a um aniversariante ilustre: Cunha e Silva (1905-1990)





                    Rio de Janeiro,  03 de agosto de 2015


        Querido pai:

           
           Antes de tudo,  me permita  por esta  relembrá-lo de que hoje é a data do  seu 110º aniversário de nascimento.O Sr. não  a esqueceu, sim? Espero que não e sei que outros familiares já manifestaram no Face  que hoje é dia  diferente,  dia de festejá-lo ainda que  pela dimensão  do espírito, a qual  -  seja dita  essa verdade -,  ao fim e ao cabo,  é o que vai  mais importar  entre a terra e o céu.
        Tendo  passado alguns meses fortemente concentrado na esfera das minhas  memórias,  e tendo  terminado  um novo  livro, Apenas memórias,  já pode  verificar que  a sua presença   encantadora, em várias passagens  da obra,  tem lugar  sobranceiro por muitos motivos,  principalmente pelo amor  que sempre   manifestei  por sua  pessoa. 
         Fomos dois  grandes amigos, na inocência de dois anos em Amarante, na adolescência  durante quinze anos em Teresina e, através de  uma  longa correspondência de mais de duas décadas, com  algumas poucas   visitas minhas  a Teresina e duas visitas suas  ao Rio.
           Quis,  contudo, o destino  que vivêssemos  separados pela distância  entre o Rio – cidade que tanto  amou e nela permaneceu estudando  por seis anos  -  e Teresina. O único  consolo  foi  a nossa  longa correspondência por escrito com tantas  cartas, mais suas do que as minhas,  trocando   carinhos,  elogios,  contando  os sucessos seus e  eu relatando os meus, numa amizade  que  crescia com o passar dos anos  e com a chegada da minha  mocidade  que o Sr. conheceu  em  boa parte,  não o suficiente para   ver meus  maiores sonhos   realizados. Pelo menos   um dos desejos que almejava para seu filho  -  fazer o mestrado  - se concretizou
         “Filho, quando vais fazer o mestrado, quero  te ver  professor universitário.” Não sabia, meu pai, que só  um ano depois, em 1991,  ingressaria eu  no mestrado.
         A dor  maior  por mim sentida foi  me ter deixado na conturbada   Terra sem que lhe pudesse dar o último   beijo na testa amada e envelhecida  à altura dos seus oitenta e cinco  anos,  o último abraço forte,   o último aperto  de mãos -  apertar aquelas mãos   lindas que  tinha, as mais lindas de Amarante, enfim,   o último   olhar     pedindo a Deus que o Sr.   não me deixasse só, no estado de abandono  e solidão   absoluta e inconsolada.
         Mas, nesta carta agora,  pai,  há outras coisas que,  bem sei,  foi bom que não  presenciasse e delas não participasse como  jornalista combatente e intrépido.Ainda bem que a sua saída da cena da vida brasileira o poupou de assistir a tantos  dissabores da política brasileira, sobretudo  dos mais  escandalosos acontecimentos  do baixo clero  da  politicagem que o país tem vivido no domínio  petista. 
        Certeza tenho  de que  não ia  aguentar calado  à derrocada ética e à patuscada  preparada  nos circos mambembes  que se instalaram  nos centros do poder, lá em Brasília. Bem fez a Providência  que o livrou  de  tanta podridão disseminada  pelos quatro cantos do país manifestada  em  várias   formas: impunidade,  violência  gigantesca  e sem perspectiva de solução,  delinquência juvenil sem  redução de maioridade pelo menos  por  tempo  determinado, economia   escangalhada  por culpa  da roubalheira  do desvio do dinheiro  público, volta da inflação ( com aumentos  escorchantes dos preços dos remédios,  da alimentação,  das tarifas gerais),  cujos efeitos  deletérios já se fazem sentir nas camadas baixas e médias da sociedade, juros altos  determinados  pelo  governo  federal, onda de     desemprego, fechamento  de lojas  por falta   de compradores, em suma, sinais de recessão.
        Veja o exemplo, no Rio de Janeiro, de velhas lojas da Rua da Carioca fechando as portas.Veja a  política de ajuste fiscal    com mão de ferro a fim de  tapar  os buracos   da arrecadação  em declínio e, por tabela,  para  cobrir, com  o sacrifício  forçado  do contribuinte,  os rombos  das estatais  das quais  saíram  as milionárias  propinas  para encherem  os bolsos  ou as contas  milionárias  de partidos que apoiam   o governo federal     e políticos  corruptos.
        O Sr, meu pai,  que passou  por prisão  durante a ditadura  Vargas,  por  longos anos   de  ditadura militar-civil, por períodos de normalidade  democrática, não alcançou os dias mais perversos  da ditadura  econômica,  dos escândalos do Mensalão, dos assaltos  à Petrobrás   e da mais  deplorável   situação de decadência ética da vida  pública brasileira.  
       Jamais, meu pai, iria  imaginar que pudéssemos   chegar a este ponto em que nos encontramos, não por nossa  causa, mas  por culpa da   imoralidade de práticas  atuais de   nossa política, as quais   definem os modos de governança  feitos à base de barganhas mútuas entre o governo federal  e os partidos sem princípios democráticos firmes.
        Se o Sr. se encontrasse ainda entre nós,  teria, assim,  que redobrar  e retemperar  a sua retórica de jornalista desassombrado, cuja trajetória  esteve  quase sempre na oposição e, portanto,  foi vítima no seu tempo  de  perseguições ao ponto de ser demitido  de um  famoso colégio  público em Teresina  por um  governador  do Piauí a  quem  combatia com muita coragem os erros e injustiças de administração.Com muitos filhos para criar, sofreu aflições  e privações e, se não fossem uns poucos amigos, as atribulações seriam  ainda piores. Com ânimo forte,  aguentou todos  os percalços e  infâmias  dos governantes desafetos.
      O Sr., meu pai, grande e bravo  jornalista, segundo A. Tito Filho (1924-1992), outro ilustre jornalista e intelectual  do Piauí,   nunca “baixou o topete” diante dos poderosos,  e,  na história do jornalismo  piauiense,    provavelmente tenha  sido  o jornalista  mais  prolífico do seu estado natal.
    Sendo um jornalista  que sempre  escreveu  freneticamente  à mão (sem nem mesmo   ter aderido à máquina de escrever) e ao correr da  pena, não pôde  alcançar a era do computador, da internet,  dessa maravilhosa e gigantesca    enciclopédia  virtual de âmbito universal, que é o Google,  das celulares, do tablets, dos e-books.
    Porém,  estou certo de que  essas conquistas  do mundo eletrônico  teriam a sua aprovação,  pois sempre foi  um homem que tanto  amava as humanidades quanto  as ciências, como é prova  o   belo discurso de posse, na Academia Piauiense de Letras, da cadeira  nº 8 que,  pelo seu talento e suas qualidades de  intelectual,  soube  conquistar e  tão bem  dignificar  como  escritor.
   Aceite, meu querido pai, os cumprimentos   pelo seu  110º aniversário de  nascimento.
       Com as saudades do filho



                              Cunha e Silva  Filho

Nenhum comentário:

Postar um comentário