terça-feira, 12 de maio de 2015

Apenas memórias (15)

    


                                            Cunha e Silva Filho



         O ano de  1965, que foi  decisivo  para (1) os meus estudos preparatórios e autodidáticos  com o  objetivo  de entrar para a universidade, me leva a falar  de um  encontro  com alguém  que  iria   ter  um sentido  intenso e definitivo  na minha  vida afetiva e amorosa.
       Estava eu   sentado numa das mesas da Biblioteca “Castro Alves,”  de frente para a entrada, ao lado da qual  ficava  o balcão de informações  com as suas  funcionárias  prontas a atenderem aos  usuários   daquele  ambiente  cercado de livros,   com um acervo  rico nas  áreas de literatura  e de línguas,  além de  obras de referência,  quando de repente  percebi que uma mocinha magrinha,  de olhos  quase  verdes,  de estatura  baixa, pele morena, vestida discretamente  numa  saia  meio  comprida com uma  blusa de tecido leve e também  discreto por dentro,  sentou-se  à minha frente, com um sorriso que não mais  esqueceria. Me  perguntou  sem rodeios,  o que  estudava,  de onde era, e outras  perguntas que   não me vêm mais  à mente  após tantos anos:
    “Você é do Piauí?” “Sim,”  respondi-lhe  com um sorriso  largo e  com certo ar de surpresa.
    “Sim,  sou de Teresina,   estou  me preparando  para o   vestibular  de letras.”
   “Ah, vai  fazer letras, por que não faz outro  curso, mais adequado  para  homens, como  química,  matemática,  engenharia, medicina? No curso de letras só há mais mulher.”
   Lhe  disse que  tinha  vindo para o Rio  fazer medicina, mas larguei  dessa ideia e resolvi  fazer letras, pois me sentia atraído  para os estudos literários. Ela, então,  me cortando a conversa,   me falou que estudava química na  Nacional de Filosofia. 
  “Que bom!, ”   acrescentei.
  Seu nome,  Elza,  Veio do  Piauí, de Teresina e, a princípio,  pensara fazer  enfermagem na Ana  Néri. Foi,  então, que lhe  indaguei: 
  “Se você morava em Teresina, deve ter estudado lá e deve ter conhecido  o meu  pai, o professor Cunha e Silva." 
 “Francisco,  que coincidência,  seu pai  foi meu professor  na Escola  Normal “Antonino  Freire!” 
  A conversa foi crescendo e se tornando  cada vez mais  interessante. Notei que a jovem  dava  mostras de que  sentia  uma  atração  mais forte por mim. Não nego que me agradou  muito  aquele encontro por acaso. Da biblioteca,  saímos  praticamente namorando.Foi um namoro fulminante. Parecia que éramos conhecidos  de longa data
  Soube depois por Elza que ela já me havia   visto  cerca de um ano atrás, sem que eu   percebesse.  Me  contou que, uma vez,  sentada a um dos  bancos de concreto, uma espécie de  pequeno largo, junto  do prédio da Casa d’Italia e  que dava para a Avenida  Antônio Carlos,  de repente viu passar um jovem, seguramente indo  em direção  ao Calabouço.
    Ela  conversava  com uma colega da Nacional de Filosofia e,  dirigindo-se  à colega,  fez a seguinte observação: 
.“Que rapaz  lindo  não é? Ainda  vou  namorar com ele.”
  Este rapaz era eu e, no dia que casualmente  foi à Biblioteca  “Castro Alves,”  acompanhada de uma colega,  se  aproximou  de mim  porque, conforme acentuei acima, já me tinha visto  há meses, e    nunca mais me tinha   visto  desde  aquela  primeira vez  que estava sentada  num  banco ao lado do edifício da Faculdade Nacional de Filosofia.
    Suponho que  o meu sumiço se deveu  a  meros  desencontros  de horários  de minhas idas  ao Calabouço, ou, quem sabe,  o nosso  encontro  real   já estava traçado pela mão da fortuna...
   Páginas atrás, mencionei o nome do  Weyden, um primo  meu, irmão do Wellington e do Norberto,  todos  tinham vindo  para o Rio  à procura de emprego.O último veio  primeiro e foi  morar provisoriamente na casa de uma  tia avó, a tia  Chiquinha,  do lado materno.
    Norberto, depois de alguns empregos mais modestos,  entrou  como  praça da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Casou-se com a Licinha, uma moça que morava e ainda mora   no bairro de Oswaldo Cruz. Teve dois  filhos, um deles falecido  precocemente. Hoje,  Norberto  está  aposentado como oficial  da Polícia Militar.  Tem uma filha médica e dois netos.  É um apaixonado pelo Piauí.   
    O Wellington, trabalhava   no  Laboratório Silva Araújo,  no escritório da Avenida Beira-Mar. O emprego fora  arranjado pela minha irmã Nélia, de que  já  falei  nestas   recordações. Depois,  regressou  a Teresina, tornou-se  escrivão  da Polícia Civil, constituiu família e ainda  mora em Teresina.  
    Tia Chiquinha  morava  também em Oswaldo Cruz no tempo em que vim para o Rio.Wellington,  por pouco tempo,  morou  também com  essa tia,  uma velhinha  bonita, de pele muito branca, alvinha, como se diz no  Piauí. Ela acolhia  sempre os sobrinhos da irmã, a tia Lolosa, apelido afetivo  pelo qual atendia a mãe desses primos.    Quando cheguei ao Rio, o marido dela ainda era vivo. O casal teve muitos filhos.  Me  parece que um só está vivo, o Jurandyr,  conhecido  como Jura. que é solteirão.Tia Chiqinha morava de aluguel. Quando  o casal residia no Piauí,  vivia bem e confortavelmente, mas, no Rio,  sobretudo após a morte do marido,  tia Chiquinha  teve seu padrão de vida reduzido.
    Lolosa, cujo nome verdadeiro era  Aurora  Teixeira e Silva,  foi, na mocidade, uma   mulher  bonita, que conquistou de imediato  o coração do meu tio Luizinho   e com ele se casou. Mais tarde,  modificou  o sobrenome para  Aurora  Cunha e Silva, omitindo o sobrenome “Teixeira,” que, se não erro,  herdara  da parte do pai. Professora  primária diplomada,  ficou  bem conhecida e conceituada por suas qualidades de  professora  em Amarante e Teresina. Inteligente como  era,   tinha  facilidade para escrever  e tinha um espírito elevado. Foi uma grande mãe.  Morava em Teresina,  teve dez filhos, dois deles já falecidos. Tio Luizinho, cujo nome por extenso  era Luís Cunha e Silva, era irmão  de meu pai, o mais novo de três irmãos. Era escrivão de polícia  e, por algum tempo,  saindo de Teresina,  foi  ser delegado  em Palmeirais, município do Piauí.
   Tio Luizinho era  um homem  muito inteligente, lido,  não  obstante  não ter-se formado em curso  superior, assim como o  tio   Enoch, sobre quem adiante  me reportarei. Sabia escrever com  correção, inclusive  por vezes  publicava algum artigo em jornal de Teresina. Amava ouvir o rádio, sobretudo as estações  do Rio de Janeiro da época.Tinha uns olhos  azuis  profundos. Ao deixar Teresina, fui me despedir dele. Se emocionou muito e me desejou  sucessos. Morreu ainda  moço. Na época escrevi para  tia Lolosa um carta de pêsames  e de consolo. Ela ficou muito feliz pelo meu gesto, de vez que a carta relembrava a figura dele, não em termos formais,  mas como  um ente  amado e querido pela família e amigos.
   Havia outro  tio meu, o mais velho, irmão de meu pai, e de tio Luizinho,  o Enoch  Cunha e Silva,  homem de estatura  baixa, tinha   olhos  verdes. Foi ele quem  cuidou dos negócios de meu avô após o falecimento  dele. Porem, ao que todo  indica,  não tinha muito tino  para os negócios,  o comércio, assim como meu pai e tio Luizinho.
    Pessoa  humana, calma, foi, por mais de uma vez,   prefeito de Amarante e, pelo resto da vida,  foi  fiscal de renda. Pessoa  discreta,   honesta,  de  princípios   firmes. Casou-se  com uma mulher notável  pelo valor  humano,   a tia  Maricô, uma mulher santa,  que só enxergava nos outros  bondade. Tinha belos olhos  verdes e deveria ter sido bela quanto   jovem.
   O casal teve três  filhas:  a Dioneia, a mais velha,  a Valdineia e a Maria Nilza, a mais nova e a mais bela das três,  falecida ainda  moça. Maria  Nilza  era professora,  assim como o é Valdineia, agora aposentada e a  única sobrevivente das três. Valdineia e Maria Nilza se tornaram  professoras primárias.Quando adolescente,  sentia-me enamorado de Maria  Nilza, talvez por sua  beleza,  sua doçura,  sua feminilidade. Era mais velha do que eu.
   Todas nasceram com  olhos verdes, belíssimos. Tio Enoch ainda teve dois filhos: o Valdo e o Netinho. Não me  lembro se o Valdo  tinha  olhos verdes,  contudo, é possível que fossem. verdes. O primeiro  nasceu com  um problema  de nervos. Ficara  interno  no Meduna,  hospital psiquiátrico, em Teresina dirigido  pelo  Dr. Clidenor de Freitas Santos,  que pertenceu à Academia Piauiense de Letras e era homem  ilustrado. Uma vez,  fui  visitar   o Valdo com a minha prima, Maria Nilza, sempre linda. Netinho possuía  olhos muito azuis, tinha  ótima aparência, e um  palestra   fascinante. Era um  cronista ambulante de Amarante,  sabia tudo sobre a sua época, o passado de Amarante,  a vida da política  do município, a vida  íntima das pessoas. Era um arquivo  vivo  de informações  sobre a sociedade de Amarante.     
  Na minha infância e até no princípio da adolescência,  tio Enoch, quando  vinha a Teresina, sempre visitava meu pai. Conversavam  por horas. Se davam muito bem. Sua chegada à minha casa era sempre aguardada  com  ansiedade e tinha  um motivo  maior  que fazia a alegria da  criançada. Sempre  ao se despedir,  abria a carteira e dela tirava uma  boa   quantia em dinheiro, segundo ele,  para repartir entre nós. Quanta alegria para nós!
    Meu pai e seus irmãos  nasceram em berço de ouro, em Amarante,  onde meu avô era comerciante  de peso e um homem respeitado  por todos.  Segundo me contou meu pai,  o meu avô  Manuel  Alexandre e Silva, hoje nome de rua em Amarante,  era de estatura baixa,  tinha olhos  azuis, uma  aparência solene num rosto  bonito com uma bela cabeleira. Foi assim que o vi  numa foto  de família, ao lado de  vovó  Candinha.
   Papai me dizia que meu avô foi um pai extremoso. Gostava de  tomar banho no rio Parnaíba, à noite, num tempo que me dá inveja. Vovó Candinha,  ou melhor,  Cândida  da Cunha e Silva.  Foi a única avó que conheci ainda viva. Tinha eu três anos e estava perto de sair  de Amarante, porquanto meus pais foram  residir em Teresina.
    Em Teresinha, muito velhinha, já prestes a se despedir  desse “vale de lágrimas, a sua figura vem  à  minha lembrança como  algo esfumado, com alguém  que não tive o  prazer  mais  intenso de beijar a fronte querida, os cabelos branquinhos,  a voz  carinhosa, cheia de cuidados comigo, conforme eu  narrei em parte numa  crônica do meu  livro  As ideia no tempo. (1)Papai me contou  que era descendente de cearenses. Subiu ao Céu  bem  idosa. Me vem, agora, à mente   a tarja  preta colocada numa  das mangas  do paletó de meu pai, em sinal de luto. Eu era menino.  Morava na  Rua  24 de Janeiro, centro de Teresina.
  O Weyden era o mais  próximo  amigo  meu. Companheiro  das aventurosas  romântico-amorosas nas noites de Teresina, cujo  epicentro  era o adro e os fundos  da Igreja de São Benedito e de lá o dom-juanismo  adolescente  partia  para outras  partes da cidade, Cada um  com uma  mocinha  cheia de amor para dar, ainda que fosse por uma noite  só.   
     Éramos como dois irmãos,  primos pelo lado materno e paterno. Weyden  gostava de cantar  em inglês ou  cantar canções de  conhecidos   artistas da época,  todos praticamente  do Rio de Janeiro ou São Paulo.Tinha bossa também  para fazer  a gente rir das piadas que sabia tanto  contar, me matando de rir, fora as imitações que  fazia de figuras  diversas. Era danado  para encontrar os defeitos físicos dos outros e com esta matéria, na minha companhia,  fazíamos as traquinagens,  provocando,  ocultos  pelas janelas ou portas semi-abertas,  quem  passasse por acaso  pela rua. Morria de rir de suas  brincadeiras e sátiras.
    Outro hábito que tinha era  falar em inglês  comigo por onde passássemos – um forma de  esnobismo  ingênuo de adolescentes   sem rebeldia.Mesmo no Rio,  quando estávamos juntos,  falávamos em inglês diante dos balcões de bares do Catete, bairro da Zona Sul do Rio. Os garçons,  ignorantes,  se entreolhavam embasbacados. Dizia o Weyden  que era para passarmos  por gringos, tirando  onda com  as pessoas  que se encontravam  perto de nós.   Ele não tinha tanta fluência, mas dava para se safar porque era  inteligente e  espirituoso.
    No Rio de Janeiro, morando por pouco tempo na casa de tia Chiquinha, Weyden,  por algum tempo,  continuou com a   nossa amizade. Depois, tomou  rumo sozinho,  foi morar na Glória, Rua  Benjamim Constant, zona sul,  bairro bem peerto do Centro   do Rio. arranjou emprego e nossos  encontros foram se rareando. Weyden   é inteligente,  tem boa  voz e sempre  esteve  ligado  à atividade de rádio. Tornou-se radialista, creio, primeiro em  Goiânia,  onde morou, depois que deixou o Rio de Janeiro e, de volta a Teresina,  firmou-se como  um conhecido  radialista e homem  relacionado com a imprensa local.
    Desde adolescente,  demonstrara  ter vocação para o rádio. Uma vez,  acompanhando, em campanha política   o meu pai, candidatos a cargos   políticos e eu, numa cidadezinha do interior do Piauí,  subiu a um improvisado  palco  sobre  um caminhão e discursou  para  os ouvintes que se aglomeravam diante  do carro.
    Discursou, primeiro,   meu pai e, em seguida,  usaram da palavra outros   oradores.  Ocorreu, na ocasião,   um fato pitoresco.  Meu pai me pediu que usasse também da palavra Não aceitei, alegando  ser tímido, encabulado. “O que eu tinha para falar? Nada,”  pensei comigo. Me deixaram de lado,  uma vez que  da minha “oratória” não iria sair nada,  nem que invocássemos  o talento do grande  Demóstenes.  Não tinha assunto nem interesse  em dirigir  algumas  palavras  de agradecimentos  aos que  estavam  formando  uma pequena   assistência. Entretanto, compensei minha timidez participando de um baile de interior, com  dança, forró e tudo. O bom  foi que havia ali  moças bonitas  para um  breve namoro  de   uma única noite.(Continua) 

NOTA:

(1) A partir deste parte, deixaremos de empregar  a forma coloquial "pra"" e derivados substituindo-os  pelas equivalentes   formas   de linguagem  culta. Revisaremos, neste caso,   todos os textos  precedentes de Apenas memórias. O emprego, entretanto,  daquelas contrações limitar-se-á    a enunciados em discurso direto.



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