quinta-feira, 7 de maio de 2015

Apenas memórias (12)




                                                       Cunha e Silva Filho

          

        O problema da moradia  estava  solucionado. Fora um alívio para mim, já que a moradia foi sempre, no Rio de Janeiro,  algo  difícil e caro. Aquele abrigo  confortador da CESB   me foi de ajuda incomensurável. De 1965 a meados de 1967, morei  naquela  Casa de estudantes. Só saí  porque me tinha casado   em  julho de 1967 e por isso  não havia mais razão  para   permanecer por  mais  tempo  na  querida  Casa que me abriu  as portas. Teria que procurar outro  rumo  na nova condição de  precocemente  casado.
        Dois anos e meio bem vividos  num convívio  amistoso com  os outros  colegas  residentes. 1965 foi um ano de intensos estudos, de preparação para o  vestibular  de  letras na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, a ser realizado  no final daquele ano. Se aprovado,  iniciaria o curso em  1966.
         Deixara totalmente a ideia  de ser médico  para trás,  página virada, nada tinha a ver comigo a não ser nos planos  de mamãe que, tendo  lá suas razões,   valorizava  muito  a carreira  de médico, se espelhava nos  ilustres médicos  piauienses  que,  em geral,  tinham  uma vida   confortável  e mesmo  com luxo, morando  em residências   elegantes e, acima de tudo,   gozando de   alto  prestígio  na sociedade  teresinense. Já  a carreira de professor era uma velha conhecida de mamãe, que sabia  quantas  dificuldades  financeiras  tivera  meu pai  por ter   escolhido  ser  professor. Magistério para ela  significava  aperturas financeiras,   vida  limitada,  atividade  não  justamente  reconhecida   pela sociedade, sem falar que meu pai  tinha  uma família   de onze filhos.
         Não me  lembro se  transmiti  em carta a papai  a minha decisão  de  não fazer   medicina e sim  letras. Posto que preferisse uma vida  mais   folgada  pro filho,  no fundo sabia  que  a minha escolha  tinha sido  certa apesar dos grandes  percalços que iria  enfrentar  no futuro   da atividade docente.
        Meu pai e minha mãe não atinavam que,  para  cursar medicina, teria que ter apoio seu financeiro  e uma mesada  era a última coisa   que  poderia   acontecer. Mesada era para os filhos  das famílias de classe média  alta  ou  da burguesia   teresinense que vinham  fazer medicina no Rio de Janeiro. Poucos  jovens  transporiam  essa barreira financeira; era quase  impossível,    porque  o curso  médico  tomava  o dia todo do estudante, além de  despesas com livros  caros  que teria que fazer, sem falar  num aluguel ou compra de um apartamento  para o  filho  rico.
         Em outros textos  memorialísticos, (1)  já me havia   referido  ao conselho  de um amigo  piauiense, o Rodrigo  Ayres,  que  vim a conhecer   no  Rio e Janeiro. Logo  percebeu  pelas nossas conversas   que  a minha  inclinação seria para os  estudos  de  literatura e línguas.  Se não me engano, foi  ele mesmo   que me indicou a  Faculdade Nacional   de Filosofia  da Universidade do  Brasil, que ficava na Av. Antonio Carlos, Centro, bem perto do  restaurante  Calabouço.
      Rodrigo viera do Piauí  pra  estudar  no Rio. Se alojaria  na casa de uma tia,   no bairro  de Laranjeiras,   Zona   Sul da cidade. No tempo em que o  conheci,  fazia direito na Faculdade Cândido  Mendes,  na Praça  Quinze, Centro. Contudo,  no segundo ano,  decidira  mesmo  o que  lhe impunha a vocação: medicina.  Preparou-se pro vestibular. For aprovado, mas ficara   excedente. Sua vaga  iria   ser noutra  parte do país,  se não estou   enganado, no  Pará. Me recordo bem  que dispunha entre meus livros,  de  obras de física do professor  da PUC-Rio, M. P. Maia, autor  conhecido  na época. Lhe ofertei  os volumes de física e de outras  matérias  que seriam  exigidas  no vestibular de medicina. Rodrigo, uma vez,  me arranjara pra dar aulas particulares de inglês para um primo dele mais velho, que era  funcionário do Banco do Brasil e também  morava com a mãe, tia do Rodrigo.  Fizemos  uma boa amizade e, nessa  época mesmo, ele conheceu  minha futura  esposa.
       Naquele primeiro ano  na CESB,  meus estudos    eram feitos  parte  da noite  nessa  Casa; de dia,  ia para a Biblioteca   Castro Alves, meu local   mais  frequente. Entretanto,  me repartia  também  entre a Biblioteca Nacional, Biblioteca do  Ministério do Trabalho e Biblioteca do  MEC, no majestoso   Palácio Gustavo  Capanema, tudo isso  no Centro. As disciplinas  que seriam exigidas  no vestibular de letras seriam:  inglês,  língua  portuguesa e latim. Estudei  sozinho, porquanto  não podia   arcar  com  um cursinho  preparatório  para aquela  área.
       Nos primeiros dias  frequentando o Calabouço,  pra  regularizar minha situação de comensal, tive que  ir  à seção de atendimento  ao estudante, que ficava  num prédio  por detrás do qual  havia o salão enorme  do restaurante e  outras dependências  oferecendo  diferentes  serviços. Logo que  entrei numa sala separada por um balcão  de atendimento,  vi um  rapaz meio  magro,  moreno,  de  boa altura, cabelos   escuros, meio lisos, curtos. Logo reparei que  estava falando  em inglês  com um rapaz com aparência  de estrangeiro,  talvez   um americano. 
        O jovem  meio magro demonstrava ser   nordestino e parecia estar  dando  explicações ao estrangeiro sobre o funcionamento  do restaurante.Tendo  atendido  ao estrangeiro,  se dirigiu a mim, me perguntando  o que  desejava. Contei-lhe que  era  estudante e precisava de   regularizar minha situação de comensal.     Durante  nossa conversa,  lhe  falei sobre a minha  situação financeira, que não era nada boa, dando-lhe a  entender que  precisava de um emprego , ou um bico pra suavizar  o meu problema . Ary Medeiros, - era este o nome do jovem magro – me prometeu  o seguinte: ele andava  dando aulas  de inglês numa sala de um prédio do  Centro, numa daquelas ruas  que  desembocam na Rua Primeiro de Março.
        Aqui não me recordo se ele chegou a  me testar  pra saber  se realmente tinha condições de  ajudá-los nas aulas que estava    ministrando. Só sei que  cheguei a dar poucas   aulas. O curso não fora adiante.
       O que mesmo de importante  se aproveitou  desse conhecimento  meu com  o Ary Medeiros  for  o início de uma  amizade que dura até hoje, sendo que,  por muitos anos,  deixamos  de ter contato, uma vez que  fui morar em outros  bairros e, depois, por longo tempo,    no subúrbio da Leopoldina.
        Tornando-me  mais íntimo de  Ary, no ano  de 1965, já me preparando  pras provas  da Faculdade de Filosofia,   mais uma vez,  se mostrou  aquele amigo  constante  e solidário. Procurei saber  como seriam  as provas  de ingresso  à Faculdade de Filosofia, especificamente para o  curso  de letras denominado  Português-Inglês. Constariam de uma  prova escrita de língua portuguesa composta de questões  gramaticais, de uma prova   de  latim na qual se  pedia uma  tradução de um texto clássico e,  quanto ao  inglês,  iria  enfrentar  três  tipos de provas:  um ditado, uma versão e uma composição.  
       Conversando  sobre  esses exames,  pedi ao Ary que me ditasse, de vez em quando,  textos  em  inglês  a fim de verificar  como  me sairia  neles.  De boa vontade,  me prometeu fazer o que lhe pedira. Os ditado eram  feitos, ao ar livre,  na Avenida Beira-Mar,  sob a sombra  de árvores frondosas. Sentávamos  ao chão, um  de frente pro outro, eu, encostado ao tronco de uma árvore. Me saí bem nessa  empreitada. Aplausos!
     Ary, em Natal,  estudara inglês no IBEU (Instituto Brasil–Estados Unidos) e, como  fora  excelente  aluno, fora convidado  a lecionar  inglês no próprio IBEU  do qual  ainda era aluno.  Na época em que o conheci, sua fluência   era tão boa que, às vezes,  não  entendia  alguma coisa   durante alguns diálogos  que  mantive com ele.
        Eu estava  exultante,  sabia que tinha condições de enfrentar  os exames e me sair bem nas provas. O meu amigo  Ary,  natural de Rio Grande do Norte, fora aluno  marista em Natal, se não me engano,     tinha cursado  assistência social na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.    Sempre prudente,  me  avisara   que encontraria  muita concorrência de pessoas  preparadas  com as  quais  ia disputar  as vagas limitadas pro curso de letras. Que não pensasse que seria fácil a aprovação e classificação. Ele tinha razão.
     Naquele mesmo ano - 1965 - em que  começava a fazer refeições no Calabouço,  travei amizade com  um jovem de dezoito anos, chamado  José Ribamar  Garcia, o qual, como o  Antônio de Almeida,  o Ary, o Dirceu, o Wísmar, o RodrigoAyres,  o Raimundinho,  entre outros,  teria  um lugar  permanente no meu pequeno círculo de amizade.
      Meu encontro  foi  o que se poderia   chamar  de amizade à primeira  vista. Ribamar Garcia,  conforme  costumo chamá-lo,  não sei se dentro  do refeitório ou fora dele,   principiamos  um  papo alegre,  com aquelas  perguntas   costumeiras  de  começo de relacionamento   social. Lhe disse que era  do Piauí, de Teresina, mas nascido em Amarante interior do Estado. Falei que estava me preparando  a fim de cursar  letras, portuguê-inglês,  na Universidade do Brasil (depois chamada  Universidade Federal do Rio de Janeiro,  UFRJ). “Ah, Francisco,  também sou  piauiense, de Teresina. Estudo inglês na Cultura  Inglesa e trabalho  num  escritório aqui no Centro” Vou fazer  direito. Faço um cursinho  pré-vestibular.
      Me lembro de  que a conversa  foi continuando mesmo depois que  saímos  do Calabouço. Garcia,  muito jovem, pele clara, voz vibrante, gestos rápidos, já dava sinais de que seria um homem batalhador,  decidido, ousado.Tínhamos, - me perdoe o leitor o lugar comum -   toda a vida pela frente. Caminhando e conversando, ele me convidou a ir ao local de trabalho. Acho que era uma clínica médica. Nos despedimos com certa efusão.  Curioso,  nem ele nem eu  externamos  o sentimento  íntimo de que  gostávamos   visceralmente  de literatura  e de escrever em gêneros literários  diferentes. Ele,  ficcionista,  eu,  ensaísta, crítico. Nem ele ficou sabendo, então,  que, em Teresina,  eu  publicara  alguns artigos  em jornais. Por outro lado,  lhe falei que meu  pai era o professor Cunha e Silva. “Cunha e Silva? Ele foi um dos  meus examinadores  no  Liceu Piauiense! Grande figura! Me recordo que  comentara  sobre a admiração  dele pelo  professor  Arimathéa Tito Filho,   um intelectual  piauiense sempre  objeto da admiração  de seus ex-alunos.
     Outra vez,  conversando  com Ribamar Garcia, me convidou a ir ao seu  apartamento, um prédio  ainda hoje existente no Largo do São Francisco, Centro. O apartamento  divida,  se não erro,  com um irmão dele mais velho, João Alfredo Garcia, que me parece, naquele tempo,  já trabalhava  no Banco do Brasil,  pessoa  educada que conheci tempos  depois num encontro de piauienses em Santa Tereza,  bairro   velho  sobranceiro  ao Centro  do Rio, por onde, naquela  época se chegava de bondinho Ah, tempos dos bondinhos que trafegavam  pelas ruas do Centro,  do subúrbio e da Zona Sul carioca! Saudosos  bondinhos! Nos seus  dias finais! (2) Se assim o desejássemos,  podíamos      entrar no bairro a pé por outra passagem, através de   uma conhecida  escadaria, na  Lapa. 
   O tempo passou.  Ribamar Garcia se tornou advogado conceituado,  membro da OAB, da qual foi  conselheiro. Garcia fez brilhante carreira de advogado trabalhista.  Dirigiu durante trinta anos  o Departamento  Jurídico das Casas Sendas.   Montou, depois,  o seu próprio   escritório de advocacia na Rua Treze de Maio, onde milita até hoje sempre com a garra  e a disposição que o caracterizam.     
   Contudo, a faceta que mais  me interessa no amigo é a de  escritor, de ficcionista,  de contista,  romancista,  cronista, com  uma produção  bastante considerável em números  de livros. Atualmente,   é  um nome  consagrado não só no Piauí, mas em outras partes do país.
   O nosso reencontro  se deu  ao tempo em que eu já  estava   casado com a Elza e com dois filhos, Francisco Neto e Alexandre. Exercia intensa atividade docente em escolas  públicas e privadas no Rio de Janeiro. Uma vez,  estando com a  Elza,  o avistei saindo de um prédio da rua Almirante Barroso. Elza também o viu, mas não  me decidi a me aproximar dele julgando que  não me ia   reconhecer talvez.
    Mais uma vez,  entrando num  edifício altíssimo da  Rua Treze de Maio, me deparei com ele. Elza estava comigo. Por sinal,  ela o conhecia dos tempos em  que, ainda estudante secundarista,  fazia refeições no  Calabouço e  era estudante de uma amiga dela, a  Justina. Justina  cursava pedagogia  na  Nacional de Filosofia. Desta vez,  resolvi  cumprimentá-lo. Ele, vestido num terno  elegante,  ainda  bem moço, nos reconheceu. Trocamos algumas  palavras cordiais e ele mesmo me convidou a subir ao escritório dele.
    Foi ai que  se deu realmente o reencontro de dois amigos. Ele naturalmente  pensava que  só me dedicava inteiramente à minha  carreira de    professor inglês. Foi, então,  que lhe disse:  “Há tempos,  aliás, desde  Teresina,  que lido com  literatura   e escrevo para jornais  de Piauí.” Não sei se isso  o surpreendeu. Ele, por sua vez,  me confessara  queda mesma  forma   tinha escrito  um livro, um pequeno livro  de memórias sobre Teresina,  numa  exposição  deliciosa,  rememorando, com pinceladas vívidas,   a paisagem humana e urbanística  de Teresina. Antes de sair,  me ofertou  um exemplar daquele livro de estreia, mas sem autógrafo, cujo título  é Imagens da cidade verde. O livro, de capa  modesta,  fora impresso por conta  própria,  numa gráfica da Rua dos Inválidos., Centro do Rio.Abaixo do título se lia ”Depoimentos” e, ao pé da capa, o nome do autor.O título na capa, com  letras grandes e de cor verde, se sobrepunha ao mapa do Piauí. Nunca vi tanta simplicidade e tão bom gosto na ilustração  modesta e criativa de uma pequena  obra.Era dedicado, como o autor tem feito com  toda a sua produção, aos seus pais, só que neste  opúsculo a dedicatória se estendia ao nome de seu irmão, João Alfredo Garcia,  aquele mesmo  que com ele compartilhava  um apartamento  no Largo do São Francisco.
   Este livro, atualmente,  está na  terceira  edição, lançado pela Litteris Editora,   que tem  editado toda a sua  obra, embora alguns títulos tenham  sido publicados, em edições   anteriores,  por outra editora.De uma pequena obra inicialmente com  72  páginas,  Imagens da cidade verde se foi ampliando com novos textos e melhorando em todos os aspectos. Na sua mais recente edição, a 3ª edição, 2008, contém 104 páginas.
   Imagens da cidade verde,   a meu ver,  junto com  Em  preto e branco, Entardecer e Filhos da mãe gentil,  formam uma quarteto  do que de melhor  fez Ribamar  Garcia no campo  da crônica memorialística e da prosa de ficção. Tive  o prazer e a honra de poder  resenhar  boa parte de sua obra.
  O amigo  Ribamar  Garcia tem uma qualidade:a solidariedade nos momentos mais  espinhosos da vida de um amigo. Digo isso por experiência própria. Além de amigo  certo, foi um  grande filho, tem sido um grande pai, um avô cuidadoso e atencioso,  com seus filhos todos  bem  postos na vida ou se encaminhando bem na vida. Ribamar Garcia pode-se incluir como um  autêntico self-made man. Chegou ao Rio de Janeiro ainda  bem adolescente.
  Posto que, durante  tanto  tempo tenha sido seu  amigo e, de certa forma,  o considero  um irmão, já que irmãos  há só no sangue, mas não na alma,  com Garcia às vezes  discordo,   me irrito, mas algo  acima de nós permanece  sólido: a amizade.Esta o tempo e o espaço não apagarão.  

Nota: 
 (1) Cf. As ideias no tempo, op. cit., p. 27-29.
(2). Idem, p. 195-197.

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