Cunha e Silva Filho
O problema da moradia estava
solucionado. Fora um alívio para mim, já que a moradia foi sempre, no Rio
de Janeiro, algo difícil e caro. Aquele abrigo confortador da CESB me foi de ajuda incomensurável. De 1965 a meados de 1967,
morei naquela Casa de estudantes. Só saí porque me tinha casado em
julho de 1967 e por isso não
havia mais razão para permanecer por mais
tempo na querida
Casa que me abriu as portas. Teria
que procurar outro rumo na nova condição de precocemente
casado.
Dois anos e meio bem vividos num convívio
amistoso com os outros colegas
residentes. 1965 foi um ano de intensos estudos, de preparação para o vestibular
de letras na Faculdade Nacional
de Filosofia da Universidade do Brasil, a ser realizado no final daquele ano. Se aprovado, iniciaria o curso em 1966.
Deixara
totalmente a ideia de ser médico para trás,
página virada, nada tinha a ver comigo a não ser nos planos de mamãe que, tendo lá suas razões, valorizava
muito a carreira de médico, se espelhava nos ilustres médicos piauienses
que, em geral, tinham
uma vida confortável e mesmo
com luxo, morando em residências elegantes e, acima de tudo, gozando de alto prestígio na sociedade
teresinense. Já a carreira de professor era uma velha conhecida de mamãe, que sabia quantas dificuldades
financeiras tivera meu pai
por ter escolhido ser
professor. Magistério para ela
significava aperturas
financeiras, vida limitada,
atividade não justamente
reconhecida pela sociedade, sem
falar que meu pai tinha uma família de onze filhos.
Não me
lembro se transmiti em carta a papai a minha decisão de não
fazer medicina e sim letras. Posto que preferisse uma vida mais
folgada pro filho, no fundo sabia que a
minha escolha tinha sido certa apesar dos grandes percalços que iria enfrentar
no futuro da atividade docente.
Meu pai e minha mãe não atinavam que, para
cursar medicina, teria que ter apoio seu financeiro e uma mesada era a última coisa que poderia acontecer. Mesada era para os filhos das famílias de classe média alta
ou da burguesia teresinense que vinham fazer medicina no Rio de Janeiro. Poucos jovens
transporiam essa barreira
financeira; era quase impossível, porque o
curso médico tomava
o dia todo do estudante, além de
despesas com livros caros que teria que fazer, sem falar num aluguel ou compra de um apartamento para o filho rico.
Em outros textos memorialísticos, (1) já me havia
referido ao conselho de um amigo
piauiense, o Rodrigo Ayres, que
vim a conhecer no Rio e Janeiro. Logo percebeu
pelas nossas conversas que a minha
inclinação seria para os estudos
de literatura e línguas. Se não me engano, foi ele mesmo que me indicou a Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, que ficava na Av. Antonio Carlos, Centro,
bem perto do restaurante Calabouço.
Rodrigo viera do Piauí pra estudar no Rio. Se alojaria na casa de uma tia, no bairro
de Laranjeiras, Zona Sul da cidade. No tempo em que o conheci,
fazia direito na Faculdade Cândido
Mendes, na Praça Quinze, Centro. Contudo, no segundo ano, decidira
mesmo o que lhe impunha a vocação: medicina. Preparou-se pro vestibular. For aprovado, mas
ficara excedente. Sua vaga iria
ser noutra parte do país, se não estou
enganado, no Pará. Me recordo bem que dispunha entre meus livros, de
obras de física do professor da
PUC-Rio, M. P. Maia, autor conhecido na época. Lhe ofertei os volumes de física e de outras matérias que seriam
exigidas no vestibular de
medicina. Rodrigo, uma vez, me arranjara
pra dar aulas particulares de inglês para um primo dele mais velho, que
era funcionário do Banco do Brasil e
também morava com a mãe, tia do Rodrigo. Fizemos
uma boa amizade e, nessa época
mesmo, ele conheceu minha futura esposa.
Naquele primeiro ano na CESB,
meus estudos eram feitos parte
da noite nessa Casa; de dia,
ia para a Biblioteca Castro Alves, meu local mais frequente.
Entretanto, me repartia também
entre a Biblioteca Nacional, Biblioteca do Ministério do Trabalho e Biblioteca do MEC, no majestoso Palácio
Gustavo Capanema, tudo isso no Centro. As disciplinas que seriam exigidas no vestibular de letras seriam: inglês,
língua portuguesa e latim. Estudei sozinho, porquanto não podia
arcar com um cursinho
preparatório para aquela área.
Nos primeiros dias frequentando o Calabouço, pra
regularizar minha situação de comensal, tive que ir à
seção de atendimento ao estudante, que
ficava num prédio por detrás do qual havia o salão enorme do restaurante e outras dependências oferecendo
diferentes serviços. Logo
que entrei numa sala separada por um
balcão de atendimento, vi um rapaz meio magro,
moreno, de boa altura, cabelos escuros, meio lisos, curtos. Logo reparei
que estava falando em inglês com um rapaz com aparência de estrangeiro, talvez
um americano.
O jovem meio magro demonstrava ser nordestino e parecia estar dando explicações ao estrangeiro sobre o funcionamento do restaurante.Tendo atendido ao estrangeiro, se dirigiu a mim, me perguntando o que desejava. Contei-lhe que era estudante e precisava de regularizar minha situação de comensal. Durante nossa conversa, lhe falei sobre a minha situação financeira, que não era nada boa, dando-lhe a entender que precisava de um emprego , ou um bico pra suavizar o meu problema . Ary Medeiros, - era este o nome do jovem magro – me prometeu o seguinte: ele andava dando aulas de inglês numa sala de um prédio do Centro, numa daquelas ruas que desembocam na Rua Primeiro de Março.
O jovem meio magro demonstrava ser nordestino e parecia estar dando explicações ao estrangeiro sobre o funcionamento do restaurante.Tendo atendido ao estrangeiro, se dirigiu a mim, me perguntando o que desejava. Contei-lhe que era estudante e precisava de regularizar minha situação de comensal. Durante nossa conversa, lhe falei sobre a minha situação financeira, que não era nada boa, dando-lhe a entender que precisava de um emprego , ou um bico pra suavizar o meu problema . Ary Medeiros, - era este o nome do jovem magro – me prometeu o seguinte: ele andava dando aulas de inglês numa sala de um prédio do Centro, numa daquelas ruas que desembocam na Rua Primeiro de Março.
Aqui não
me recordo se ele chegou a me
testar pra saber se realmente tinha condições de ajudá-los nas aulas que estava ministrando. Só sei que cheguei a dar poucas aulas. O curso não fora adiante.
O que mesmo de importante se aproveitou
desse conhecimento meu com o Ary Medeiros for o
início de uma amizade que dura até hoje,
sendo que, por muitos anos, deixamos
de ter contato, uma vez que fui
morar em outros bairros e, depois, por longo
tempo, no subúrbio da Leopoldina.
Tornando-me mais íntimo de Ary, no ano de 1965, já me preparando pras provas
da Faculdade de Filosofia, mais uma vez, se mostrou aquele amigo
constante e solidário. Procurei
saber como seriam as provas
de ingresso à Faculdade de
Filosofia, especificamente para o curso de letras denominado Português-Inglês. Constariam de uma prova escrita de língua portuguesa composta de questões gramaticais, de uma
prova de latim na qual se pedia uma tradução de um texto clássico e, quanto ao inglês,
iria enfrentar três tipos de provas: um ditado, uma versão e uma composição.
Conversando
sobre esses exames, pedi ao Ary que me ditasse, de vez em quando, textos
em inglês a fim de verificar como
me sairia neles. De boa
vontade, me prometeu fazer o que lhe
pedira. Os ditado eram feitos, ao ar livre, na Avenida Beira-Mar, sob a sombra de árvores frondosas. Sentávamos ao chão, um de frente pro outro, eu, encostado ao tronco de uma árvore. Me saí bem nessa empreitada. Aplausos!
Ary, em Natal, estudara inglês no IBEU (Instituto Brasil–Estados
Unidos) e, como fora excelente aluno, fora convidado a lecionar
inglês no próprio IBEU do
qual ainda era aluno. Na época em que o conheci, sua fluência era tão boa que, às vezes, não
entendia alguma coisa durante alguns diálogos que
mantive com ele.
Eu
estava exultante, sabia que tinha condições de enfrentar os exames e me sair bem nas provas. O meu
amigo Ary, natural de Rio Grande do Norte, fora aluno marista em Natal, se não me engano, tinha cursado assistência
social na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Sempre
prudente, me avisara
que encontraria muita concorrência
de pessoas preparadas com as
quais ia disputar as vagas limitadas pro curso de letras. Que não
pensasse que seria fácil a aprovação e classificação. Ele tinha razão.
Naquele mesmo ano - 1965 - em que
começava a fazer refeições no Calabouço,
travei amizade com um jovem de dezoito
anos, chamado José Ribamar Garcia, o qual, como o Antônio de Almeida, o Ary, o Dirceu, o Wísmar, o RodrigoAyres, o Raimundinho,
entre outros, teria um lugar
permanente no meu pequeno círculo de amizade.
Meu encontro foi o que se poderia chamar
de amizade à primeira vista.
Ribamar Garcia, conforme costumo chamá-lo, não sei se dentro do refeitório ou fora dele, principiamos
um papo alegre, com aquelas
perguntas costumeiras de
começo de relacionamento social.
Lhe disse que era do Piauí, de Teresina,
mas nascido em Amarante interior do Estado. Falei que estava me preparando a fim de cursar letras, portuguê-inglês, na Universidade do Brasil (depois
chamada Universidade Federal do Rio de
Janeiro, UFRJ). “Ah, Francisco, também sou
piauiense, de Teresina. Estudo inglês na Cultura Inglesa e trabalho num
escritório aqui no Centro” Vou fazer
direito. Faço um cursinho
pré-vestibular.
Me lembro de que a conversa foi continuando mesmo depois que saímos
do Calabouço. Garcia, muito jovem,
pele clara, voz vibrante, gestos rápidos, já dava sinais de que seria um homem
batalhador, decidido, ousado.Tínhamos, -
me perdoe o leitor o lugar comum - toda
a vida pela frente. Caminhando e conversando, ele me convidou a ir ao local de
trabalho. Acho que era uma clínica médica. Nos despedimos com certa
efusão. Curioso, nem ele nem eu externamos
o sentimento íntimo de que gostávamos
visceralmente de literatura e de escrever em gêneros literários diferentes. Ele, ficcionista,
eu, ensaísta, crítico. Nem ele
ficou sabendo, então, que, em
Teresina, eu publicara
alguns artigos em jornais. Por outro
lado, lhe falei que meu pai era o professor Cunha e Silva. “Cunha e
Silva? Ele foi um dos meus examinadores no
Liceu Piauiense! Grande figura! Me recordo que comentara
sobre a admiração dele pelo professor
Arimathéa Tito Filho, um
intelectual piauiense sempre objeto da admiração de seus ex-alunos.
Outra vez, conversando com Ribamar Garcia, me convidou a ir ao seu apartamento, um prédio ainda hoje existente no Largo do São
Francisco, Centro. O apartamento divida, se não erro,
com um irmão dele mais velho, João Alfredo Garcia, que me parece, naquele tempo, já trabalhava
no Banco do Brasil, pessoa educada que conheci tempos depois num encontro de piauienses em Santa Tereza , bairro
velho sobranceiro ao Centro
do Rio, por onde, naquela época
se chegava de bondinho Ah, tempos dos bondinhos que trafegavam pelas ruas do Centro, do subúrbio e da Zona Sul carioca!
Saudosos bondinhos! Nos seus dias finais! (2) Se assim o desejássemos, podíamos entrar
no bairro a pé por outra passagem, através de uma
conhecida escadaria, na Lapa.
O tempo passou. Ribamar Garcia se
tornou advogado conceituado, membro da
OAB, da qual foi conselheiro. Garcia fez
brilhante carreira de advogado trabalhista.
Dirigiu durante trinta anos o
Departamento Jurídico das Casas Sendas. Montou, depois, o seu próprio escritório de advocacia na Rua Treze de Maio,
onde milita até hoje sempre com a garra e a disposição que o caracterizam.
Contudo, a faceta que mais me interessa no amigo é a de escritor, de ficcionista, de contista,
romancista, cronista, com uma produção
bastante considerável em números
de livros. Atualmente, é um nome
consagrado não só no Piauí, mas em outras partes do país.
O nosso reencontro se deu ao tempo em que eu já estava
casado com a Elza e com dois filhos, Francisco Neto e Alexandre. Exercia
intensa atividade docente em escolas
públicas e privadas no Rio de Janeiro. Uma vez, estando com a
Elza, o avistei saindo de um
prédio da rua Almirante Barroso. Elza também o viu, mas não me decidi a me aproximar dele julgando
que não me ia reconhecer talvez.
Mais uma vez, entrando num edifício altíssimo da Rua Treze de Maio, me deparei com ele. Elza
estava comigo. Por sinal, ela o conhecia
dos tempos em que, ainda estudante
secundarista, fazia refeições no Calabouço e
era estudante de uma amiga dela, a
Justina. Justina cursava pedagogia na
Nacional de Filosofia. Desta vez,
resolvi cumprimentá-lo. Ele,
vestido num terno elegante, ainda
bem moço, nos reconheceu. Trocamos algumas palavras cordiais e ele mesmo me convidou a
subir ao escritório dele.
Foi ai que se deu realmente o
reencontro de dois amigos. Ele naturalmente
pensava que só me dedicava inteiramente
à minha carreira de professor inglês. Foi, então, que lhe disse: “Há tempos,
aliás, desde Teresina, que lido com
literatura e escrevo para
jornais de Piauí.” Não sei se isso o surpreendeu. Ele, por sua vez, me confessara
queda mesma forma tinha escrito
um livro, um pequeno livro de
memórias sobre Teresina, numa exposição
deliciosa, rememorando, com pinceladas
vívidas, a paisagem humana e
urbanística de Teresina. Antes de
sair, me ofertou um exemplar daquele livro de estreia, mas sem
autógrafo, cujo título é Imagens da cidade verde. O livro, de
capa modesta, fora impresso por conta própria,
numa gráfica da Rua dos Inválidos., Centro do Rio.Abaixo do título se lia ”Depoimentos”
e, ao pé da capa, o nome do autor.O título na capa, com letras grandes e de cor verde, se sobrepunha
ao mapa do Piauí. Nunca vi tanta simplicidade e tão bom gosto na ilustração modesta e criativa de uma pequena obra.Era dedicado, como o autor tem feito
com toda a sua produção, aos seus pais,
só que neste opúsculo a dedicatória se
estendia ao nome de seu irmão, João Alfredo Garcia, aquele mesmo
que com ele compartilhava um
apartamento no Largo do São Francisco.
Este livro, atualmente, está na terceira
edição, lançado pela Litteris Editora,
que tem editado toda a sua obra, embora alguns títulos tenham sido publicados, em edições anteriores, por outra editora.De uma
pequena obra inicialmente com 72 páginas, Imagens da cidade verde se foi ampliando com novos textos e melhorando em todos os aspectos. Na sua mais recente edição, a 3ª edição, 2008, contém 104 páginas.
Imagens da cidade verde, a meu ver, junto com Em preto e branco, Entardecer e Filhos da mãe gentil, formam uma quarteto do que de melhor fez Ribamar Garcia no campo da crônica memorialística e da prosa de ficção. Tive o prazer e a honra de poder resenhar boa parte de sua obra.
Imagens da cidade verde, a meu ver, junto com Em preto e branco, Entardecer e Filhos da mãe gentil, formam uma quarteto do que de melhor fez Ribamar Garcia no campo da crônica memorialística e da prosa de ficção. Tive o prazer e a honra de poder resenhar boa parte de sua obra.
O amigo Ribamar Garcia tem uma qualidade:a solidariedade nos
momentos mais espinhosos da vida de um
amigo. Digo isso por experiência própria. Além de amigo certo, foi um
grande filho, tem sido um grande pai, um avô cuidadoso e atencioso, com seus filhos todos bem
postos na vida ou se encaminhando bem na vida. Ribamar Garcia pode-se incluir como um autêntico self-made man. Chegou ao Rio de Janeiro ainda bem adolescente.
Posto que, durante tanto tempo tenha sido seu amigo e, de certa forma, o considero um irmão, já que irmãos há só no sangue, mas não na alma, com Garcia às vezes discordo, me
irrito, mas algo acima de nós
permanece sólido: a amizade.Esta o tempo
e o espaço não apagarão.
Nota:
(1) Cf. As ideias no tempo, op. cit., p. 27-29.
(2). Idem, p. 195-197.
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