sábado, 9 de maio de 2015

Apenas memórias (13)




             Cunha e Silva Filho



   Ao longo do  período  venturoso   que passei na CESB,  evoluindo  nas amizades   com os meus  companheiros  de alojamento, é obvio que alguns  colegas  se   me tornassem mais  íntimos   do que outros. A filtragem da amizade é uma coisa curiosa. Está muito  relacionadas a ideias afins  compartilhadas entre amigos   tendo  como  base  de sustentação  o nível de liberdade,  de confiança,  de admiração mútua que se  estabelece  entre dois ou mais amigos.   
    Tentando ser o mais  possível justo  com a minha consciência,  vejo  a figura altaneira,  inteligentíssima  de Antônio de Almeida, aquele  jovem baiano de Ilhéus grande amigo  que encontrei lá na  Casa. Talvez  em muitos aspectos, ele fosse mais amadurecido  do que eu. Ao saber que me ia casar,  logo  lobriguei-lhe no olhar uma nuvem  de  tristeza e, agora,  depois de tantos  anos decorridos,  a interpreto   com mais clareza. Antônio de Almeida sabia que eu ainda  era muito jovem, mal tinha  completado  vinte e um anos.
   Nem compareceu à cerimônia  do meu  casamento, em 15 de  julho de 1967  na Igreja  Nossa  Senhora da Glória do Largo do Machado. Dos meus colegas da CESB, lembro apenas que estiveram presentes o  maranhense Raimundinho e o  paraibano  João Ernesto, aquele  que  gostava   de  latim, tinha sido   por um tempo,  seminarista na terra natal. Estiveram  também  presentes  os amigos  de Elza, alunos dos cursos  de licenciatura de química da Faculdade Nacional de Filosofia e outros da Faculdade Nacional de Química Industrial.    Outro que compareceu, através de um convite  da  Elza, foi o ex-governador  do Piauí,  João Clímaco de Almeida, o Joqueira,  que,  por sinal  se encontrava no  Rio de Janeiro por algum motivo.Ela  conhecia seu secretário e, por intermédio dele, num simples e casual  encontro na Cinelândia,   enviou o convite ao  governador piauiense.
    Após a cerimônia, preparamos uma   pequena e modesta   festa  para alguns convidados, realizada no  lindo bairro de Santa Tereza. Ao final da festa,  fui, com alguns amigos,   para a Cinelândia,  conversar  um pouco. Depois,  já era tarde da noite,  regressara para a CESB.  Minha esposa  voltara para um pensionato na Rua Pererira a Silva, em Laranjeiras, aprazível bairro da Zona Sul. 
       Na vida de dois enamorados e em hora solene e histórica que,  por vezes,  se torna única como no nosso  caso,  Elza me falara ter uma conhecida  que se prontificou a tirar fotos   dos principais  lances da cerimônia. Todas as fotos  que alegou  bater   foram extraviadas, segundo a colega de véspera. a qual  dizia ser    funcionária do Itamaraty. Acredito que tudo não passou de um  farsa, uma hipocrisia, um fingimento. Aquelas fotos  do clássico álbum de um casal jamais tivemos  para mostrar a nossos filhos,  netas e amigos.  Não contratamos um fotógrafo  profissional por razões financeiras. Olhe como são as coisas, pouco empo depois, Elza, conversando com um fotógrafo, o Sr. José,   que tinha  um estúdio de fotos no Catete,  bairro da Zona Sul,  perto  do Centro  do Rio, ouvira dele: "Menina,  por que você não me falou antes,  eu teria feito  todo  o trabalho  da cerimônia em todos os passos.Já era tarde e como dói aqui pensando num  poema de Carlos  Drummond de Andrade (1902-1987).
    Só fiquei na  querida  CESB por  apenas um dia mais. Cuidei de arranjar uma  morada  a fim de  começar  uma outra etapa   de minha vida  pessoal. Uma amiga da Elxa  nos colocou à disposição um a casa  velha mas confortável  para passarmos uma semana  de lua de mel. Era na Tijuca,  justamente  no  bairro   que,  muitos anos depois,  iria   residir.
    De regresso  a Teresina,  o  governador  Joqueira  transmitiu ao meu  pai  a notícia de meu  enlace. Papai  não aprovou,  alegando que  eu era muito jovem e ainda não estava  preparado  para o casamento. Mamãe deve ter tido a mesma  opinião sobre o  acontecimento.   Por outro lado,  em  1927, com  vinte e dois anos,  meu pai igualmente  se casara no Rio de Janeiro. A história aí se repetiu. Com o tempo, meus pais foram  aceitando, porém não completamente.
     Realmente,  aos vinte e um anos,  somos muito jovens para o casamento e,  no meu caso, com uma agravante,  não tinha ainda me formado nem  tinha  emprego  certo,  porquanto  vivia  de bico,  dando aulas particulares de português  e inglês pra amigos  que conheci no Calabouço.
   Alguns  bons amigos farão sempre parte de nossas relembranças como, entre tantos,    o  maranhense  João Nepomuceno,  um moço esforçado, trabalhador,  que cursava,   se não incorro em lapso  de memória,  contabilidade numa faculdade. Morava, num pequeno  apartamento,  na época, em  Botafogo. Suponho que na  Rua  Marquês de Abrantes. Toda vez que lhe ia dar aulas,   almoçava  com ele e era sempre bem tratado. Guardei sua  lembrança  no meu coração.
  Volto  a falar de meu saudoso amigo  da CESB, Antônio de Almeida. No dia seguinte ao meu casamento,   depois que acordei,  Antônio de Almeida  se dirigiu a mim e, sem papas na língua,   me  afirmara que  tinha   feito  algo  precipitado. Não era tempo pra casamento. “E a faculdade? E o emprego? E a moradia?  Como  vai  resolver tudo isso, Francisco?” Me calei, pois sabia que, no fundo,  ele estava  certo e  só queria o meu bem. 
       Entretanto,  me despedi  de todos os que estavam  presentes naquele dia. Não me  lembro de ter dado um abraço apertado no meu  amigo  de Ilhéus,  misto de filósofo e de historiador,  leitor  assíduo de Will Durant,  apaixonado  pela  música clássica,  uma inteligência de  menino precoce. Estou a me  recordar  de um dia que com ele fui a uma favela de Copacabana, bem no alto de um morro, de onde se descortinava  a paisagem  da bela  praia  de Copacabana, um deslumbramento, um encanto da natureza soberana. É que lá  morava um irmão dele, a quem  fomos visitar.  Antônio de Almeida  tinha  bom gosto em tudo, até na  escolha de amigos. 
   Se dava bem com as camadas  pobres tanto quanto  com  gente abastada, como aquele estudante  de engenharia  da PUC-Rio, educado, simples,  morador de um  amplo e luxuoso apartamento da Avenida Atlântica. Uma vez,  me levou pra conhecer  o estudante de engenharia. Tomamos café juntos. Ele nos pôs à vontade. Um café farto   nos foi servido   pela  doméstica. Eu fiquei meio acanhado  durante o café e,  ao cortar um pedaço de queijo,  estava comendo  a casca dura quando fui  aparteado  pelo  estudante: “Francisco,  não precisa  comer  a casca,  tire-a e coma  apenas  o  queijo.  “Que gafe a minha!” Os dois  apenas  riram e sem ironia.
    Dele gostava muito um amigo comum, muito mais velho que nós, mas  pessoa  culta,   inteligente,  conhecedora de história universal, adorava  literatura, e de grande memória,  Chamava-se Wismar. Não me lembro bem,  mas  acho que Wismar  trabalhava na  Imprensa  Nacional.
   Uma  simpatia  de  pessoa. Carismático,  era um  incondicional  amigo  de Antônio de Almeida. Sabia também que  tinha uma grande  admiração por mim,  como se fosse um  pai  presente ou  um tio  querido. Da última vez que o vi – acredito que foi numa rua  perto da Mem de Sá -,   ele me havia  prometido  ofertar um dicionário ou uma enciclopédia  de escritores universais  publicado em inglês. Combinamos de nos encontrar no Centro do Rio,  mas, por um contratempo, não consegui realizar o encontro e pegar o exemplar.Dessa data em diante, nunca mais  revi o  querido  amigo.
   Foi chegado o dia  dos exames para a Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi).  As provas se realizaram  num antigo  prédio do Tribunal Eleitoral,  prédio antigo,  com  uma entrada em  duas escadarias conduzindo ao interior  do andar  de cima. Hoje, aquele prédio,  depois demolido,  abriga  o arranha-céu construído  pela Academia  Brasileira de Letras, Petit Trianon, que fica ao lado dele  e a ele tem acesso, visto que a ABL mantém  dois ou três  andares  do espigão para acomodar  algumas seções  da  Casa de Machado de Assis.
    Não me membro se  estava   nervoso e apreensivo com  as provas. Senti que me ia dar bem em  todas as etapas. Me recordo da prova de ditado, feita por uma professora   que iria me lecionar  gramática inglesa em dois cursos   que faria com ela.
   A professora  era a Regina Pinto. Séria, vestida com elegância, já madurona – lembro-me mais dos lábios dela, finos,  com leve toque  aristocrático,   entrara na sala da prova, que aconteceu no   auditório  daquele prédio do Tribunal onde, ainda teria aulas com o famoso   linguista brasileiro, Mattoso  Câmara Jr., chamado merecidamente  pelo  também  linguista Francisco Gomes de Matos,   o "Pai da Linguística" no Brasil.           
    Estávamos todos  sentados calados, esperando pelo momento em que  ela  iniciaria  a leitura  um tanto  pausada  e com  voz  firme de acento britânico. Era um texto  de extensão  média. A leitura não se fazia com repetição de frases. Quem não acompanhasse,  estaria  em maus lençóis. (Continua).



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