quinta-feira, 12 de março de 2015

Crônica é tudo aquilo que se chama crônica




                                                             Cunha  e Silva Filho

 “Não me lembro de nenhum presidente que, após ser eleito,  desapareça da vista da  nação, como fez Dilma” (Ferreira Gullar,  Ilustrada, Folha de São Paulo, 8/02/2015).


          Aquela velhinha macérrima que, com gestos rápidos,  entrou no  banco, pegou  a senha depois de esperar uns  dois ou três minutos, foi sentar-se numa das cadeiras enfileiradas formando  um conjunto de assentos  para  serem  usados à espera  da ordem  mostrada  na tela daquela   espécie  de quadro  eletrônico  com números e prefixos  referentes  à ordem geral  das chamadas.
    Da minha parte,   já me encontrava  sentado na primeira   fileira; a velhinha  ficara atrás  de mim. Foi assim que  pude  escutar  alguns comentários   que ela  fazia  a  uma jovem  senhora  sentada ao seu lado. A velhinha  era  elétrica,  falava muito  e depressa, mas de forma  clara  e audível.  A sua conversa  girava em torno  das dificuldades   da  vida moderna, fazendo  questão  de   acentuar   os caros valores do passado que, praticamente,   já se sepultaram  na contemporaneidade  de um  bairro, no caso,  o da Tijuca:
 “Outrora,   sabe,  tudo era  melhor  em todo o sentido: não havia   esta  maldita  violência ,  esta correria,  o medo de ser  assaltada. Certa vez, não faz muito tempo,  me  roubaram  umas notas  de   reais  que deixara  numa  parte  dessa  bolsa.” Aí a velhinha   apontava  exatamente o lugar da bolsa  onde  o dinheiro  fora  surrupiado  por  uma  batedor  de carteira.                            
Continuava  a   velhinha:  “Não aguentava  mais  tanta  dificuldade  para  se   receber  um  pensão.  O pior é que todo mundo sabe  a respeito de nossos  dados  pessoais de tal  sorte que, se o gerente   não for  honesto,  é até  possível   nos  enganar,  ainda mais  sabendo  que   está lidando com uma  pessoa de  setenta e três anos.”
Foi, então, que  olhei  atentamente pra ela e  verifiquei  que a idade  mencionada  não corresponderia  à verdadeira   idade dela. Pra mim, já entrava  na casa dos  oitenta.Estava  engelhadinha, com aqueles  lindos  olhos  azuis  circundados  pela  pele  flácida. Além disso,   falava que  seu  filho mais  novo   tinha   vinte e  cinco anos (sic!)    e, sendo  inteligente, segundo  alegava, já  andava   fazendo  o segundo  curso  superior, desta vez de medicina.
“Você já viu,  hoje em   dia,  quando  um jovem  até bem vestido   olha  com atenção  pra gente,  não  é com  a ideia  de dirigir  um elogio  à nossa beleza, mas sim  pra assaltar-nos.  Ninguém hoje  confia  em ninguém e,  em assuntos de banco, algumas  gerentes  se atrapalham  com  o próprio  desempenho do que fazem. Aqui nesta  agência, havia uma gerente,  uma doce criatura,  amável,   prestativa,  resolvia  tudo pra  mim, até por telefone”
A velhota  magrinha voltava ao  tema  do passado,  expondo,   em  tom  nostálgico,  o quanto  a cidade do Rio de Janeiro era melhor:  “Podia-se  voltar  pra casa  bem tarde,  não havia  trombadinha,   assalto  à  mão armada,   enfim,  todas  essas  mazelas  atuais. Tempos bons,  tempos felizes,   quando  se podia   ficar  à vontade na rua,   na condução, em tudo.”   Mostrei com o meu  olhar  que aprovava tudo  que me dizia. A jovem senhora ao lado dela  igualmente  concordava  com  a visão da velhinha.
De repente,  ela,  mudando de assunto,   falou  que o país  estava  todo   sucateado, contudo  nesta  palavra   podia  conter  todos  os  problemas graves  que  o Brasil  atravessa: corrupção,  violência  sem precedentes,  falta  de    respeito  aos velhos,   desconfiança de  tudo  que  os políticos  afirmam nas campanhas. “Não  posso   acreditar  em  nenhum   governante. Todos são a mesma coisa. Prometem  tudo  e nada cumprem. Não viu  o que a Dilma  anda fazendo em seu governo, e logo  no início do seu  segundo mandato ?
Antes da campanha,   enumerou  um série de mudanças   que só  melhorariam  a condição do cidadão brasileiro. E veja agora,  descumpriu  tudo e sobretudo   a direção  da economia.  Mudou  o  ministro  desta  Pasta que, segundo dizem,  fica doidinho  pra cortar  despesas  e  aumentar   os impostos.  O custo de vida  está  subindo, os juros, idem.  Estão desvalorizando todo o nosso  dinheiro de pensionista federal. Estamos encalacrados.  A Dilma,   aonde vai,   é vaiada. É sinal  de que  parte do povo, ou melhor,    uma expressiva parte,  não   aprova  o que   anda fazendo.  Se fosse mais jovem, iria, no dia 15, tomar  parte  nas manifestações  contra  o  governo  Dilma lá na Zona  Sul.  É mesmo  na Zona  Sul?” Não  confirmei. Entretanto,   o que  aquela  velhinha de olhos  azuis   reclamava ninguém, em sã consciência,  pode  negar  que contrariasse     a realidade   brasileira atual.

De repente,  o quadro  eletrônico indicava o número da minha senha, ou seja, a minha  vez  de ser atendido. Tive que me   desculpar  do curso da conversa e a deixei  falando com  a senhora  ao seu lado. Imagino que  falava ainda  das misérias  de nossa   política.

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