domingo, 28 de setembro de 2014

2 fragmentos : memórias

                                  
                                        Cunha e Silva Filho


1. O edifício era o da Casa d'Italia, na Av. Presidente Antonio Carlos, Centro do Rio de Janeiro. Estávamos eu e algumas colegas conversando sobre o nosso futuro, o nosso curso, mal iniciado, nas suas primeiras aulas. A maioria daquele grupo de  estudantes de Letras era composta de garotas.O grupo compreendia uns  vinte e três alunos, seis, incluindo  quem   assina  este texto, eram  rapazes. De repente, da sacada do terceiro ou quarto andar,  a minha colega Glória, com quem tinha mais  proximidade, soltara esta: “Meus Deus! Faltam  quatro anos para nos formarmos. É muito tempo, Francisco.” Eu mesmo,   naquele momento, devo ter sentido o mesmo que ela.  Sim, quatro anos (mal sabia eu  que, ao contrário de meus colegas,  ainda  iria  prolongar por três anos  o final de minha graduação) para  percorrermos   os  estudos. Era o início do  ano de 1966. Já se passaram quase cinco décadas. E aquela queixa de Glória (Onde andará a minha colega  Glória, de português-inglês?)  é, hoje,  um  ponto   de tempo minúsculo, um minúsculo lapso de tempo.Não sabia eu que o tempo às vezes não passa de uma  subjetividade. O tempo é um pulo, um virar de página, ou  uma sensação  proustiana   de um  romance,  o Dom Casmurro ( 1899), de Machado de Assis (1839-1908).   Na obra  do  escritor, é aquele que mais  me dá a  impressão   da finitude  do ser humano,   da  certeza de nossas  fragilidades físicas  e nossas dores   morais. O fluir  do tempo  nesse  romance  é  a passagem dos dias  e  da sucessão de mortes,  muitas mortes, ao longo da narrativa,  índice, na obra,  de que  o tempo  carnal   acaba mesmo e sobre isso   devemos   levantar boas reflexões  metafísicas.

2. Estava  passando  pelo lado esquerdo da  Igreja  Santa Luzia, Centro do Rio, e me encaminhando para a Faculdade quando, de repente,  vi a figura esbelta, alta, morena,  ainda moço, e  com uniforme de  militar da Aeronáutica. Era o Pandiá Pându, um poliglota, tradutor e professor de línguas, especialista em inglês e em esperanto, autor de vários  livros  práticos  para  o ensino  de línguas,  sobretudo do inglês. Fui eu mesmo que me dirigi a ele, pois já o conhecia de vista. Vendo meu interesse pelo  inglês,  me  perguntou: Você sabe mesmo  falar  inglês?  É que vêm muitos alunos até a mim   dizendo  que  sabem  falar  e, na verdade,  não  falam nada.Vamos ver você.” Trocamos algumas frases em inglês e, ele, vendo que  tinha numa das mãos  uma  obra de Shakespeare,  me fez esta observação? “Meu jovem,   agora,  vejo  que  você  está  bem adiantado. Então,  lhe   confessei que  era estudante  da  Faculdade Nacional de Filosofia,  cursando  português-inglês. Uma vez, me levou a uma livraria que ficava na  Rua Treze de Maio,  também no Centro, onde   se vendiam  muitos  livros  para o ensino do  esperanto. Pandiá me mostrou um  grosso volume  escrito  por ele  sobre  o ensino  do  esperanto. Soube, mais tarde, que Pandiá, pseudônimo  que  usava nos livros dele, tivera  uma  polêmica com  o grande tradutor e poliglota, além de  brilhante ensaísta, Paulo Rónai. Pandiá era o exemplo de um autêntico  autodidata. Era da Bahia e, anos depois, soubera que  falecera de repente. No prefácio a uma livrinho dele, Basic English,  um amigo confidencia que Pandiá  Pându  falava “... com relativa facilidade pelo menos 8  idiomas.”  Um dado curioso é que, sempre que o via nas ruas do Centro do Rio, ele andava acompanhado de senhoras que, tudo indicava,eram  estrangeiras.  Foi uma grande admiração minha naquela  época.






sexta-feira, 26 de setembro de 2014

OS PREÇOS SOBEM, DONA DILMA!

             


                                                         Cunha e Silva Filho


             O custo de vida atual no Brasil está subindo em três setores: na alimentação,  nos remédios e nos planos de saúde. Enquanto isso, a Presidente, nomeada pelos áulicos a “Presidenta,.” em flagrante atentado contra  as mudanças fonéticas e ortográficas que devem  seguir o  curso  próprio  de  suas  modificações  inerentes  aos  estados linguísticos diacrônicos e sincrônicos   segundo as tendências   e índoles de cada língua.  Mantém os salários do funcionalismo federal arrochados, imobilizados. Politicagem,  bajulação e questões linguísticas não se devem  misturar  e, quando isso acontece,  provocam  o caos comunicativo ou a entropia, necessários ao jogo do poder e às dissimulações.
           Ora,  para ela, Dilma,  se aumenta ou não o custo de vida do brasileiro,  pouco se lhe dá,  contanto que  o gasto que têm  ela e sua família para  os cofres do governo continuem jorrando como água das cataratas mediante o uso  liberal dos cartões   de créditos  oficiais para presidentes e outros membros do governo federal.
          O que os brasileiros  vivemos  é aquilo que meu pai  costumava chamar, na sua época  de jornalista corajoso e independente,  de “carestia.”  E esta está rondando  os assalariados  públicos que não têm tido  aumento do  governo federal  há, pelo menos,  três anos, posto que seja  campeão  de impostômetro, exibição iluminada e contínua  que há tempos não tenho mais visto  pela televisão numa rua de São Paulo  
         Comida temos nas prateleiras  dos supermercados, mas  os preços,   que sobem sorrateiramente,  estão   causando estragos nos bolsos   dos  consumidores. Aos remédios de uso continuado e obrigatório, sobretudo para as pessoas  idosas que deles mais  necessitam,   dadas as condições  do envelhecimento e   das doenças  que  dessa  fase adulta    resultam,  mês a  mês,  uma família destina   uma parte   considerável de seus  vencimentos.  
         No terceiro setor  assinalado, temos os  tão  propalados  planos de saúde, sempre ávidos para  subirem  seus preços,   seja para  crianças e  jovens, seja para adultos e  idosos; os últimos são  os que mais  estão sofrendo por culpa de planos de saúde que,  para  eles,    são elevados e, quando  chegam  a uma faixa de idade bem avançada,  nem são mais   aceitos  pelos  capitalistas   gananciosos da medicina mercantilista.  Numa palavra,  o  idoso, o muito idoso estão  desamparados, porém,  como  afirmei e é preciso  reiterar,  quando atingem  a longevidade  e caem doentes,  são  descartados pelos   “comerciantes” dos  planos de saúde no  Brasil.  O destino dos idosos  pobres e mesmo  de classe média é um só:  tentar uma vaga  num hospital público que,  em grande parte e em todo o  país,  não  tem condições  de  atendê-los com dignidade.  A morte para os  anciãos  é coisa certa e um fato anunciado.
Os planos  de cooperativas ou de associados   sindicalizados (professores,  por exemplo),  recebem  determinações da ANVISA (Agência  Nacional de Vigilância Sanitária) que é o setor   federal   responsável por   estabelecer  índices de reajuste  de preços   tanto  nas negociações com  os planos de saúde quanto com  as cooperativas  que  repassam  os aumentos  dos planos através de negociações   realizadas por assembleias, cujas  decisões são  comunicadas  aos   usuários dos  planos e cooperativados. Na  prática, o governo, através  daquele  órgão regulador,  é quem  impõe o aumento aos  planos. As cooperativas  fazem alarde,   “fingem”  não aceitar o que o governo  pede e,  no final das contas,  terminam   aceitando  algo próximo  ao que o governo   determina na  majoração  dos preços.
É um  tipo de   decisão   autoritária e anual que parte do  próprio  seio do governo, cujo  único  prejudicado  final  é o usuário, seja  de plano  individual,  seja  de plano   através de cooperativas  ou associações. O que estas últimas fazem, na realidade, é   aparentar  estar defendendo nossos direitos de usuários de  planos,    contudo,   no fundo,  o que   acontece  é o conluio  silencioso,  nos bastidores, num negócio   proveitoso  tanto  para o  governo federal,  que  arrecada mais  impostos, quanto para  as cooperativas  ou  associações   ligadas  a sindicatos  e a táticas do velho peleguismo bifronte  brasileiro.. É a roda viva de um “faz de conta”  que se retroalimenta  continuamente. 
Essas  mazelas,   negociatas,   embustes,    mistificações são próprias  de uma país   que vive à sombra  grandiosa da  impunidade  e do caos “organizado”   tacitamente   engendrado  pela estrutura  viciada  e de práticas   sociais  e econômicas anacrônicas,  fazendo com  que,  absurdamente,  o país   exiba aos olhos atentos  duas faces:  o atraso, a miséria e  modus vivendi  e operandi  de Primeiro   Mundo.
Entre tantos   desmandos  da  Nação,  em   período de  eleição  presidencial e representativa,  Dona Dilma  - se é que  realmente  pensa no bem dos brasileiros -  deveria atentar  para, entre tantos “malfeitos” ( termo da  semântica lulista)   ainda  arraigados  no solo   pátrio,  para  o desgoverno  e  completa   ausência  da Lei visíveis a olho nu  nos  três setores  que alinhei  na discussão   deste  artigo.

          

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Tradução de um poema de Manuel Machado (1874-1946)






             Cantares 


Vino, sentimiento,  guitarra y  poesia
Hacem los cantares de la patria mía.
                  Cantares...
Quien dice cantares dice Andalucia.

A la sombra fresca de la vieja parra,
La guitarra...
Um mozo moreno rasgue ala guitarra...
                  Cantares...
Algo que acaricia y algo que desgarra,

La prima que canta y el bordón que llora...
Y el tiempo callado se va hora tras hora...
                 Cantares...
Son dejos fatales de la raza mora.

No importa la vida que ya está perdida,
Y, después de todo, ¿qué es eso la vida?...
                Cantares...
Cantando la pena, la pena se olvida.

Madre, pena, suerte, pena, madre, muerte,
Ojos negros, y negra suerte...
              Cantares...
Em ellos el alma del alma se vierte.

Cantares, cantares de la pátria mia.
Cantares non sólo de Andalucia.
              Cantares...
No tiene notas la guitarra mia.

               
             Cantos

Vinho, sentimento e poesia
Formam os cantos da minha pátria.
              Cantos...
Quem diz cantos diz Andaluzia.

À sombra fresca da velha parreira,
Um jovem moreno dedilha o violão...
             Cantos...
 Algo que  acaricia  e algo que se separa
A corda fina que canta e a corda forte que chora...
E do tempo o silêncio se esvai a cada hora.
                     Cantos...
São  ritmos fatais da raça moura.

A vida pouco importa, pois já está  perdida,
E, ao final de contas,  que é isso chamado vida?...
                    Cantos...
A dor cantando, logo se olvida.

Mãe, sofrimento, sorte,  mágoa, mãe, morte,
Negros olhos,  negros, e negra a sorte...
                   Cantos...
Neles a alma da alma se iguala.

Cantos, cantos da pátria minha.
Cantos, só os de Andaluzia.
                  Cantos...
Do meu violão emudeceram os sons.

                                                                          ( Trad. de Cunha e Silva Filho)


terça-feira, 23 de setembro de 2014

A querela entre Álvaro Lins e Afrânio Coutinho

           

                                                            You are never too old to set another goal or
                                                             to dream a new dream.
                                                               C.S.Lewis                                
                                                                          
                                                                                                      Cunha e Silva Filho

              Em 1940, o  então jovem  intelectual  baiano Afrânio Coutinho publicou no Rio de Janeiro o ensaio  A filosofia  de Machado de Assis,  obra  que, na  opinião  de Tristão de Athayde, o grande  crítico do Modernismo da sua  primeira fase (1920-1945), o “consagrou.” [1]
            Coutinho, antes, só era mais conhecido na sua  província natal, onde exerceu o magistério secundário nas disciplinas de literatura e história, e, ao mesmo tempo,  desenvolvia  atividade na imprensa. Já dera a lume três ensaios, Daniel Rops e a ânsia do sentido novo da existência, publicado na Bahia em 1935, O humanismo, ideal de vida (1938), e L’Exemple du métissage,  editado  em Paris, em 1939. O segundo destes ensaios,   todavia,  não aparece na relação  do conjunto de suas obras completas no espaço  reservado  às edições   de sua produção  intelectual
               Como seria natural a qualquer  moço estudioso de literatura,  história, e filosofia,  Coutinho, no ano  em que saiu  publicado  seu  ensaio  sobre  Machado de Assis,   enviou exemplares a vários críticos  que militavam nos rodapés da imprensa  do Rio de Janeiro e   certamente de outros  estados, alguns  já firmados na vida literária brasileira, entre  eles, Sérgio Buarque de Holanda e Álvaro Lins. Este último atuava intensamente  como crítico literário numa coluna do Correio da Manhã, do Rio de Janeiro;  o primeiro, nos anos 1940 e 1941, fora  convidado  para exercer a crítica  literária no Diário de Notícias do Rio de Janeiro.
             Por  obrigação do ofício, as obras  recém-lançadas tinham que ser lidas com  certa  rapidez e simultaneamente serem apreciadas com a necessária seriedade, pelo menos   é o que se esperava  de um  crítico  de rodapé  consciente  e competente. Ao críticos  incumbidos de  ler, opinar e julgar um novo  livro, caberia  uma tarefa  espinhosa para a qual  era  de se  esperar    que fossem  eles  indivíduos  de reconhecido  preparo intelectual, sobretudo na esfera literária.  Em geral, assim como acontece até hoje, os críticos pertenciam  a  profissões ligadas à vida  cultural,  como  professores,  jornalistas,  escritores, autodidatas ou pessoas  de outras atividades  mas que também   tinham  vocação  para  os estudos   literários.
              A atividade crítica através dos rodapés de Suplementos Literários corresponde,   guardadas as diferenças   de estilo  de escrita, extensão  dos artigos  e de objetivos  associados aos interesses  da imprensa,  às chamadas  resenhas das seções  dos jornais  atualmente   que ainda  dedicam  um caderno ou seção de literatura, notas  de lançamentos  de livros,  anúncios de  eventos culturais, reportagens  sobre  escritores e outras matérias afins. 
             No mesmo ano de 1940, conforme era de se esperar, o ensaio de Coutinho sobre Machado de Assis foi lido, entre outros,  pelos dois críticos mencionados.          
             Inicialmente, posto que identificando alguns pontos meritórios no ensaio A filosofia de Machado de Assis,  os artigos de Álvaro Lins[2] e Sérgio Buarque de Holanda,[3] cada qual  à sua maneira, e dentro de seus  princípios estéticos  de  compreensão  no terreno  da  metacrítica, consideraram  a análise   de Coutinho  imperfeita no seu  conjunto, mal  planejada e carente  de argumentação  plausível no tocante  à defesa  do eixo central  da  tese,   a qual,  em  síntese,   seria  afirmar  ser Blaise  Pascal  o  ponto de apoio  fundamental   como elemento  de maior  influência sobre  o pensamento  do  escritor  Machado de Assis, principalmente,  para  mostrar  que  Machado de Assis,  como  autor e como  intelectual,  devotava  um sentimento  abissal  de “ódio à vida.”
               Foi essa visão de Coutinho, i.e., eleger Pascal como o autor  que mais  influenciou Machado de Assis, quer como  intelectual, quer como  ficcionista, agravada, além disso,  pelo  sentimento de “ódio da vida” na obra   machadiana,  que desencadeou algumas argumentações   desfavoráveis    de Álvaro Lins e de Sérgio Buarque de Holanda em torno do ensaio. Segundo Lins,  esta questão do “ódio à vida” foi igualmente levantada por outros exegetas de Machado de Assis. [4]
               Comentando a repercussão da polêmica sustentada entre Álvaro Lins e Afrânio Coutinho, o ensaísta João Cezar de Castro Rocha, em tom de desabafo,  conciliatório e favorável  a Álvaro Lins,  considerou ter sido o artigo de Sérgio Buarque de Holanda muito mais  devastador do que o de Álvaro Lins, consoante  as palavras de Castro Rocha: “(...) à luz dessa resenha, o artigo de Álvaro Lins transforma-se num grande elogio.”[5]  Não vemos  tanto  assim, porquanto   Lins é mais contundente e mais  incisivo ao  levantar  a questão  do estilo da escrita de Coutinho.
              A par  disso, o artigo-ensaio, conquanto, inicialmente   se mostre  receptivo com  o ensaio, ressaltando-lhe  algumas qualidades,  nos deixa  perceber certa  ironia   que bem pode ser  evidente  quando,  por exemplo,  alude ao ensaio de Coutinho  como  um ‘exercício’ literário indiciado   pelo sentido catafórico  do título do artigo-ensaio:   “O segundo Afrânio, um ‘exercício’  literário acerca de Machado de Assis” 
              Quem tenha maior conhecimento da obra de Lins sabe o quanto o crítico pernambucano valorizava nos seus julgamentos, além da personalidade literária de  um autor e o valor da obra,  a qualidade  de estilo de um escritor e, no caso  específico  de um crítico literário, a valorização  desse aspecto ainda  tinha  para ele maior peso.
             De resto, desde a publicação do seu  segundo trabalho, o  conhecido  ensaio  História literária de Eça de Queiroz,[6] escrito  quando ainda  muito moço, Lins,  já àquela  época  da edição  desse  ensaio sobre o romancista  português, destinara   um  importante capítulo, o de número onze, “O problema do estilo,” a uma discussão  sobre  o    “instrumento verbal”   do autor de O primo Basílio que, desde logo,  confirma   a importância  que  o ensaísta  brasileiro dava  à linguagem  literária no que tange  ao elemento   do estilo, e essa  preocupação estética  se faz patente ao longo  de toda a sua  obra  de crítico.
               Na realidade, ao censurar o estilo da escrita de Coutinho, Lins, embora  muito cedo  tivesse  demonstrado ser  um espírito   lúcido nos seus  juízos  críticos,   choveu no molhado  e não conseguiu lobrigar  um aspecto no desenvolvimento da vida de um escritor, e mesmo  do ser humano  em geral,  quer dizer, uma falha  estilística pode figurar apenas uma fase passageira na escrita de um autor, assim como um  mesmo   autor pode, em outros trabalhos,  escrever com uma  qualidade  bem superior.
                 Escritores há, em todos  os tempos, e aí podemos   incluir  igualmente os críticos  – por que não? – os quais se  modificam, se aperfeiçoam e atingem  uma fase  admirável  de sua expressão   escrita. A formação literária, em qualquer gênero, desde que   exercitada com   seriedade e  devotamento  à atividade, desejo  de  superar-se,   pode  alcançar  um   bom  ou mesmo  excelente  nível  de elaboração literária, ainda que  não  possamos  generalizar, como  é exemplo  o  caso do crítico José Veríssimo,  por sinal  lembrado  por Lins  no  mencionado   artigo.
              No entanto, vendo, sob outra perspectiva, o incidente biográfico-literário envolvendo Coutinho, nos inclinamos a reconhecer que qualquer mortal, em sã consciência,  não tende a receber  passiva e  generosamente uma  observação  severa de um  elemento   decisivo   da linguagem de qualquer   escritor, que é o estilo,  além do mais  em artigo-ensaio que,  na sua generalidade,   economiza    comentários  favoráveis a   um  texto escrito  com   competência, boa pesquisa e com   um objetivo indisfarçável de contribuir para o evoluir dos estudos machadianos entre nós. 
              Mesmo em faixas de maior amadurecimento intelectual, não faltam exemplos,  mais no passado do que no presente -  é bom que se frise -,  de esgrimistas de ideias discordantes,  reagindo contra um adversário, ao contrário  de  algumas  polêmicas  que, de vez em quando, surgem  atualmente nos cadernos  culturais dos   maiores jornais do  país. Geralmente,  são bem  mais  comportadas e não ostentam a virulência   expressa na linguagem desabusada  das antigas polêmicas,  que desancavam  os  oponentes e os  transformavam em  retratos caricatos e grotescos.
              Hoje, não, as divergências  de ideias  são expostas, em geral, com  maior respeito ao antagonista. Quando menos educada, de ordinário  não passam  da tréplica  no uso do espaço da imprensa ou de outros meios de comunicação, de parte a parte em defesa de  posições  supostamente  feridas.
               Ninguém gosta  de receber críticas de outrem em plano algum da vida social ou cultural, O troco logo vem de quem se sente  ultrajado com o que produz,  especialmente no plano intelectual. A vítima da crítica  geralmente parte para o revide, que pode  ou não se transformar em polêmica, a qual pode  ser duradoura - repetimos -  como  o foi na  refrega   entre  Coutinho e Lins.
               Por outro lado, o fulcro  dessa polêmica,   a nosso ver,  está  radicalmente atrelado a razões de política literária, de disputa de hegemonia intelectual no cenário  brasileiro, ao lado de outros motivos também  prevalentes: visões diferentes, em muitos  temas no campo da crítica literária,  da relação entre jornalismo  literário e  crítica, de  ensino universitário. Em outras palavras, o vetor  principal da polêmica foi  o embate entre o Impressionismo e a Nova Crítica.
               O que a nossa experiência de leitura da  obra crítica de Lins indica é que,  para  Lins,  não  seria  coerente e  sensato   fugir ao dever intelectual de apontar qualidades  e deficiências  de  obras que passassem pelo seu  julgamento. Por isso, não manifestava o mínimo gesto de  indulgência  diante de uma obra considerada por ele  sem qualidades, não somente . na área estritamente literária, mas também em outros domínios  por onde circulava  a sua curiosidade intelectual.
               Um exemplo  marcante dessa  postura do crítico foi o seu julgamento do romance naturalista, A carne, de Júlio Ribeiro,[7] obra que para Lins  não significava nada para a literatura brasileira, ou como  ele costumava  dizer citando   uma frase   no original de  uma das línguas   que possivelmente mais  dominava: “hors de  la   littérature...”[8] 
              Seu raio de ação na incansável  atividade  de crítico,  suas  posições  vigorosas,   destemidas e sua  independência  intelectual provavelmente tenham levado  o poeta  Carlos Drummond de Andrade a chamá-lo de “Imperador  da Crítica,”   antonomásia que  esconde um tanto  de  sutil   ironia, dado que o primeiro  elemento do sintagma, “imperador,” (do latim  “imperator, significando  “mandar,” “comandar,”  figurativamente,  “senhor”, “árbitro da  vida  de alguém”)[9]  não deixa de remeter a um  sentido  plurívoco,  i.e, soberania  crítica, espírito de liderança,  autoridade  intelectual, poder de controle  sobre   valores  estéticos, bem  ajustado, por sinal,  àquela declaração de guerra contra  Lins  feita  por Fausto Cunha, ou seja, a  “(...) da luta contra a perpetuação da mentalidade critica que lhe parecia  simbolizar.”[10]  
               Lembraríamos  a propósito e de relance que o lado relativo e  perverso da crítica é que, ao se rebelarem  contra    figuras e companheiros   da experiência  literária, sobre uma  forma  de práxis crítica ainda  utilizada, mas já  reputada como  ultrapassada   por uma nova geração,  invariavelmente,  mais adiante,   os mesmos   agentes detratores se tornam da mesma  forma   rejeitados pela outra   geração mais nova,  nessa  espécie de eterna  linha de tempo  volúvel de surgimento de  outros approaches e  visões  estéticas.
               Isto serve tanto para os gêneros literários  tradicionais   ou   para  novas  formas  de experiências  e ousadias  ficcionais  ou poéticas  quanto  para   essa forma de gênero de prosa  -   uma atividade  visceralmente  estético-filosófico-literária denominada crítica literária, em suas várias correntes  do pensamento  contemporâneo.
               Ora,  desfrutando de uma  posição  proeminente nos áureos  tempos como  crítico  impressionista, a vertente crítica a que se filiava  decerto seria o alvo mais indicado  a fim de que Coutinho  disparasse toda a munição de que dispunha na peleja  para ver  implantada   no país a Nova Crítica no nível  do ensino secundário e da  universidade – diríamos -  na “unidade de sua diversidade,” segundo  era sua  pretensão, num tempo em que mal  começava   a funcionar  o ensino superior de  letras.
              De 1940 à década de 1950, aproximadamente, podemos considerar   Álvaro Lins um dos maiores críticos  de  sua geração  com  inegável  prestígio na segunda  fase do Modernismo,[11] período em que a sua militância critica o alçava a uma  posição  de liderança no papel   por vezes nem sempre  confortável  de julgar  autores, novos ou já firmados  na produção  literária   brasileira.
  .      Tal  se deu   com o surgimento, em nosso país,  de novas correntes do pensamento crítico provenientes dos  Estados Unidos e   da  Europa  a partir das  décadas de   30, 40, 50 e 60   do século passado e cujos métodos aqui  foram   progressivamente  sendo aplicados   graças  à experiência de intelectuais brasileiros   com formação  em grandes centros  norte-americanos  ou europeus  em geral, ou   por via das leituras de  livros importados  com os quais estudiosos  nossos  se atualizavam, numa  época em que  no país iam  surgindo  as primeiras  Faculdades de Letras e de Filosofia.  
               Mais uma década após a publicação do artigo de Álvaro Lins, ou  seja,  precisamente, em 1951,  outro fato circunstancial coloca  Lins e Coutinho em situação  de confronto ou de competição, qual seja,  num concurso daquele ano  para duas  vagas  da cátedra de Literatura do Colégio Pedro II, se inscreveram quatro candidatos, dois dos quais   eram   Lins e Coutinho. Lins vinha lecionando  no Colégio Pedro II desde 1941. Coutinho, de regresso dos Estados Unidos, em 1947, da mesma forma fora nomeado professor  interino daquela instituição  federal de ensino, permanecendo nessa condição até 1951, ano do concurso.
             Realizado o concurso, Lins  e Coutinho foram aprovados.  O primeiro  apresentou a tese A técnica do romance em Marcel Proust, trabalho  depois  publicado em livro; o segundo a tese Aspectos da literatura barroca, a qual, da mesma sorte  foi  publicada em  livro.
         Coincidentemente, as duas teses, em forma de livro, tiveram grande repercussão, sendo que  Aspectos da literatura  barroca,  conforme  assinalou José Paulo Paes,  foi   estudo  pioneiro  no país,  inclusive,  é obra citada na bibliografia sobre o Barroco na notável  obra  Teoria  da literatura  de René Wellek e Austin Warren,  a qual, em   tradução portuguesa, veio a lume em 1962.  Aspecto da literatura  barroca  foi ainda citada  na monumental  obra Teoria da literatura, de Vítor Manuel de Aguiar e Silva.                 
          Um  estudioso  da vida e obra  de Afrânio Coutinho,  Odilon Belém,  no livro Afrânio Coutinho filosofia - uma filosofia da literatura,[12] apresenta,   todavia,   outra versão sobre  a realização do concurso  nestes   termos:

Concorreram a duas cátedras quatro candidatos. Dois deles bafejados pela maioria  da congregação, sendo que uma das duas cátedras, todos sabiam,  destinava-se ao  postulante  que faz carreira na imprensa e que tinha por  trás de si um dos  grandes jornais da época, de que era  redator. (...) (grifo nosso)[13]

          Na mesma  obra do trecho  citado  acima,   Odilon Belém  relata que o concurso  teve características de um  “evento”comemorativo, espécie de torcidas organizadas, acompanhando  pari passu as fases do  certame, as conversas dos bastidores, o que pensavam os componentes da banca, a congregação do Colégio Pedro II,[14]  e podemos  imaginar  o quadro que ali  se  desenhava  ou a paisagem física, humana, o clima de tensão  e nervosismo de candidatos de mistura com  a tranquilidade da   exposição de outros candidatos durante  a prova  oral, cujo tema sorteado para todos  era discorrer sobre Rousseau. Relata Odilon Belém que Coutinho estava “tranquilo” durante a exposição e  dela saiu-se de forma  brilhante.Belém ainda menciona um pequeno  trecho  lido na imprensa do momento que, acerca   do concurso, afirmou ter sido ‘um dos pleitos mais memoráveis do  espírito naquele  educandário’.[15] Não é preciso  grande esforço   da parte do  leitor  da obra de Odilon Belém para  identificar   que o “postulante” em  causa é o crítico  Álvaro  Lins e o jornal  não é nada menos do que o Correio da manhã, do qual  Lins  fora  redator-chefe  
      As circunstâncias nas quais transcorreu  o concurso são, en passant, relatadas na obra  A luta  literária,[16]   do crítico  e ficcionista  Fausto Cunha, intelectual que,  junto com outros,  no ano de 1951, se colocou  ao lado   de Afrânio durante o concurso, assim como  igualmente esteve a favor de Coutinho, na refrega que este travava contra o Impressionismo na sua  coluna dominical  “Correntes Cruzadas,” do Suplemento   Literário do  Diário de Notícias, do Rio de Janeiro.
            Fausto  Cunha e outros  companheiros, perfilhando  os mesmos   propósitos  de  desbancar  o Impressionismo crítico e   “o primado  crítico de Álvaro Lins”, escreviam na  revista  Ensaio e  Revista  Branca. A meta de Fausto Cunha e de seus  colegas era a mesma  de Coutinho,  lutar por  mudanças  e renovação    da crítica  literária brasileira.  No dia do concurso de Coutinho  Fausto Cunha   estava presente e torcia, como outros  companheiros,  pela vitória  de Coutinho.[17]
            Era a primeira vez que via o escritor baiano pessoalmente. Fausto Cunha aproveitou  a realização do concurso para, através da Revista Branca, fazer “uma cobertura  entusiástica” do evento.[18] Representa, ao lado de outros companheiros,  desse modo,  a claque dos que  queriam  a  cátedra  para Coutinho, assim como  provavelmente haveria   os simpatizantes  de Lins.
          Fausto Cunha e seu grupo já contavam com a vitória de Lins, dado o  seu  prestígio  na época, assim  podemos  deduzir. Por essa razão, segundo Fausto, a “participação  de Lins no concurso era de significação secundária.” [19] O que ele   e o seu grupo só  desejavam era, repetimos,   o sucesso de Coutinho ou como ele mesmo  declara: “(...) a vitória de um novo conceito de critica  e de uma nova atitude perante o fato literário”.[20]
               No capítulo  “A Nova Crítica’ da  mencionada obra de   Fausto Cunha, o crítico   assume abertamente a  defesa de Afrânio diante do clima  tenso  resultante da  polêmica  entre Lins e Afrânio,  que já durava até então dez anos:

 Tínhamos  naquele tempo, Afrânio Coutinho e eu  um  ponto   em comum:   a luta contra o primado de Álvaro Lins – dizendo melhor, a luta contra a perpetuação  da mentalidade crítica que ele parecia simbolizar. Na verdade, combatíamos em campos  quase opostos. Eu via no autor do Jornal de crítica um representante da ‘crítica colonial,’ mas via nele sobretudo a encarnação por excelência do banausismo literário.(...)  (grifo do autor)[21]

                 Porém, em nota de pé de página do citado livro de ensaios, Fausto Cunha, se não renega a sua  posição  crítica  na guerra contra o Impressionismo crítico de Álvaro Lins,   no início dos anos de 1950, da mesma forma  não deixa escapar esta confissão, a nosso ver,  reveladora na primeira metade dos anos de 1960:

 (...) Minha posição em relação a Álvaro Lins como crítico foi sustentada em vários artigos; hoje não valeria a pena evocá-los. São crises de idealismo literário, cuja importância o tempo e o meio se encarregam de esfriar. Hoje considero sua obra perfeitamente válida em muitos  pontos admirável.”[22] 

             Convém assinalar que aquela nota de pé de página  se reporta à data de  publicação  de A luta  literária, i.e., 1964. No mesmo ensaio, Fausto Cunha, em outra nota de pé de página, a de nº 1,  faz  outra afirmação  pertinente: “Também aqui vale o que ficou dito na primeira nota. Lembrar que tudo se passou em 1951 e que de lá para cá muitos ventos sopraram. Nada renego, mas também já não tenho as mesmas ilusões imberbes”. (grifos nossos)
               Naquele ano do concurso, 1951, a polêmica ainda estava bem acesa, notadamente pela continuidade  dos artigos  de Coutinho na já aludida  coluna dominical “Correntes cruzadas,”do Suplemento  Literário do Diário de Notícias. Persistiam os  ataques fulminantes  do crítico  baiano ao Impressionismo de alguns  críticos  brasileiros. Sua virulência, da mesma sorte, se voltava para  o estado, segundo ele,   deplorável da vida literária  de então, onde grassavam o compadrio, os grupelhos, os conchavos entre  escritores e lideranças intelectuais    cristalizadas.    
               Entretanto, a meta principal de Coutinho, consoante acentuamos anteriormente, era  atingir o Impressionismo de Lins e seus seguidores. Grande parte dos artigos saídos na coluna “Correntes cruzadas,” cujo  início data de 1948 e vai até 1953,   foi,  mais tarde, selecionada e reunida em livro  que levou o nome da coluna.[23]
                 Afirma  Coutinho,  na longa  introdução  ao volume, ter  incluído,  além dos artigos,  chamados  por ele de “crônicas,” outros textos  publicados em lugares e datas  diferentes. Da mesma sorte,  ele coligiu  outros artigos antes  saídos na imprensa datados de 1952 a 1959, que farão parte do livro No hospital das letras,   editado em 1963.  




[1] AMOROSO LIMA,  Alceu. Quadro sintético da literatura brasileira. Op. cit., p. 148-149.
[2] LINS, Álvaro.  O segundo Afrânio: um "exercício" literário acerca de Machado de Assis. In:__. Os mortos de sobrecasacas. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 191963, p. 348-354.  
[3]  HOLANDA, Sérgio Buarque de. A Filosofia de Machado de Assis. In: __. Cobra de vidro. Coleção Debates.  São Paulo: Perspectiva,  p. 53-58.
[4] LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca, Op. cit., p.352.
[5] CASTRO ROCHA, João Cezar de. A crítica literária: em busca do tempo perdido? Op. cit., p. 190. Ver  o que afirmamos na nota  6.
[6] LINS, Álvaro. História literária de Eça de Queiroz. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1965, p. 247-269, capítulo 11.
[7]  LINS, Álvaro Lins. Júlio Ribeiro: hors de la littérature...In:_. Os mortos de sobrecasaca. Op. cit., p. 217-219.
[8] Ibidem.
[9] QUICHERAT, L. Novissimo diccionario latino-portuguez.  3.ed. Rio de Janeiro: H.Garnier; Livreiro-editor, s.d., p. 580. Conservamos a grafia original dessa  edição. 
[10] CUNHA, Fausto. A luta literária. .Rio de Janeiro: Lidador, 1964, p. 53.
[11]  Cf. AMOROSO LIMA, Alceu. Quadro sintético da literatura brasileira. Op. cit. p.145.
[12]  BELÉM, Odilon. Afrânio Coutinho – uma filosofia da literatura. Rio de Janeiro: Pallas,  1987. Em nosso juízo, a obra de Odilon Nunes, se excetuarmos  o seu lado de exaltação em decorrência da sua dimensão  afetiva e de laços de  grande amizade com  Afrânio Coutinho,  é o melhor  estudo,   quase uma  biografia  do crítico  baiano. Para quem  quiser  penetrar  em aspectos da vida pessoal e intelectual de Afrânio Coutinho,  julgamos  ser a melhor  obra neste gênero  sobre o crítico. Ademais,  contém um precioso  Curriculum Vitae de Afrânio Coutinho,  organizado por Juracy dos Santos Pereira,  uma  riquíssima   e bem  organizada bibliografia  ativa e passiva  sobre o  autor estudado a cargo de Maria da  Graça Coutinho de Góes e  capítulos  decisivos  -  todos  -  para  compreender  melhor  o perfil  do crítico e do intelectual: ”Uma vocação,” “A experiência jornalística,” “Jornalismo e Literatura,” “Segunda Guerra Mundial,”  “Amigos,”  “Volta ao Brasil,” “Faculdade de Letras e”Viagens ao Exterior”.
[13]  Idem, p. 120. O “postulante” de que fala Odilon Belém era, no caso,  o crítico Álvaro Lins, e o jornal  era o Correio da Manhã, do qual foi crítico  titular.
[14] Segundo  Odilon Belém, na obra  citada na nota  anterior, faziam parte da banca examinadora  do  concurso os seguintes professores: Clóvis Monteiro, Cândido Jucá [ Filho], que representavam  o Colégio Pedro II, e os examinadores  “convidados”:  Abgar Renault, Afonso Arinos de Melo Franco e Cassiano Ricardo. Ver BELEM, Odilon. Op.cit., p. 120. Como complemento  de informações sobre o  concurso,  recorri ao livro de João Cezar de Castro Rocha. Op. cit., p. 191, em que elenca os nomes  dos dois  outros concorrentes: Celso Cunha e Vieira Souto.
[15] Ibidem.
[16] CUNHA, Fausto. A luta literária.  Op.cit.,   p. 52-53.
[17] Idem, p. 53.
[18] Ibidem.
[19] Ibidem.
[20] Ibidem.
[21] Ibidem.
[22] Ibidem. Nota de pé de página  1.
[23]  O livro em questão é Correntes cruzadas. Ver COUTINHO, Afrânio. Correntes  cruzadas .-  questões de literatura. Op. cit.

Fonte da epígrafe do  ensaio: C.S. Lewis, extraída de uma página do Facebool.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Governador e Prefeito de São Paulo: como explicar o assassinato do camelô?




                                                                       Cunha e Silva  Filho


                  Era de se esperar o dia fatídico. Numa ação delegada à  Polícia de São Paulo, na capital,  ontem,   ocorreu  uma  tragédia  com   traços   de tragédia  grega: camelôs  considerados   praticantes de  pirataria de  produtos entraram em  confronto com a polícia resultando,  no final  da ação,  na morte  de um  jovem  camelô piauiense  que procurava, junto com  outros companheiros,    impedir que  policiais, dois,   algemassem  outro  camelô,   numa luta desesperada para conseguir conter o jovem que  reunia todas as energias para não se deixar  algemar.  O jovem, antes de ser   assassinado, tinha  discutido   duramente  com os policiais que, no chão,   tentavam   imobilizar  o camelô.
                  Contudo, um terceiro  policial,  um homem  baixo e calvo, de cara  redonda,  dava cobertura bem junto   aos dois  colegas de farda a fim de que alguns  outros  camelôs  presentes não se aproximassem e tentassem ajudar  o jovem que estava sendo algemado. O camelô, entre outros,  que tomou as dores do colega    caído ao chão, sempre  reclamando  firmemente contra   ação brutal  dos dois  policiais, aproveitou-se de um  instante em que o  policial  que protegia  os outros dois  da suposta  sanha dos populares (camelôs,  melhor dizendo), tentou agarrar o spray de pimenta de uma   das mãos do policial. Não o conseguindo, numa fração de segundos,  o  policial  baixo e de rosto  redondo, com  a outra mão empunhando  uma arma de fogo, e possivelmente com um  dedo próximo do gatilho, sentindo-se acuado e já perdendo  o equilíbrio  que deveria ter  na sua função de militar,  disparou  um tiro à queima-roupa no rosto  do jovem camelô, que  trajava uma camisa  xadrez de mangas compridas abotoadas. O disparo   se deu  simultaneamente no  instante em que  o spray   foi utilizado contra o rosto do camelô. O mais  agravante é que, após o tiro  mortal,  o soldado  baixo, com  arma em punho, a apontava para todos os lados,  com se desejasse  ameaçar os populares. Estava visivelmente desequilibrado e receoso  da reação  dos outros  camelôs que,  felizmente, não ocorreu para não tornar a tragédia ainda mais  sangrenta.
O jovem  de camisa  xadrez deu uma volta e encaminhou-se, cambaleando,   a poucos   passos  dali, não suportando   os efeitos letais do tiro. Estava morto. A imagem desse jovem  - não sei como  explicar  a analogia -  camelô estirado na rua, me lembrou não uma cena  da realidade,  mas  a tragédia que  se deu no filme  o “Pagador de Promessas”(1962), de  Anselmo  Duarte. Narro  isso tudo a partir das imagens vistas na televisão, que confesso  serem  uma das cenas mais  tristes, entre tantas,  que mancham  o cotidiano  da sociedade  brasileira.
Havia bem pouco  o camelô de camisa de xadrez  estava  discutindo  asperamente com  os policiais e, agora,   seu corpo  jazia  no cemitério de uma  rua   paulistana. A guerra, se assim posso  designar  melhor,  entre  o poder publico  e  o indivíduo na sua condição de   cidadão pobre  e lutador  da vida se me afigura como  um   dos  traços mais  dramáticos e trágicos    do crime da força    legalizada  contra  a fraqueza dos  desfavorecidos, ainda que sejam estes   rotulados  de vendedores piratas. Se eu comparar   o crime  praticado  por eles com  os crimes   abomináveis  do  Estado  Brasileiro  contra a sociedade  civil,  aquelas quinquilharias  vendidas  sob ameaça  doa rapa e, agora, de policiais  ou  guardas  municipais  armados, são uma insignificância.
 Os crimes de improbidades  de nossos governantes  comparados  com essas  ilicitudes   de somenos  importância  só me  trazem  indignação  e  desprezo  pelas   nossas autoridades. E diria mais: em plena campanha política,  um fato  escabroso como esse ainda agrava mais   a situação   incômoda das autoridades  constituídas.  Já tenho  defendido  em artigos  anteriores  que a Polícia Militar  não está  preparada  para  lidar com   esse tipo de situação. A Polícia, em qualquer  situação,   foi  uma instituição organizada para salvar  pessoas,   não para  fuzilá-las  diante dos olhos  dos transeuntes  que tudo viram e tudo  filmaram  em  seus celulares.
Matar alguém  que nada fez  assim de  nada grave se falarmos  de   uma atitude   de violência extrema,  é demonstração cabal de que  nossa  Polícia  não tem o  preparo e a logística  adequados para  lidar  com  um cidadão  brasileiro. Visivelmente,   percebi  pelas imagens  repetidas na televisão,que o soldado  que  cometeu o homicídio  estava   amedrontado, como que vendo em todos os lados  um inimigo  em potencial   que  o queria  exterminar. Não era um comportamento de alguém  treinado  para  suportar situações  extremas.  Mais um grave erro tático  dos repressores  dos camelôs pude constatar: por que,  sendo apenas três,  não chamaram  mais reforço  policial a fim de  afastar  a presença  de outros  camelôs  que se aproximavam  indignados contra que estavam vendo  o jovens e camelô  sendo algemado.  
Numa  repressão contra pirataria,  o que a  Polícia deveria  fazer  é agir com cautela,  com  até o  recurso do diálogo, mas  não da  brutalidade. Afinal, se  os camelôs  estavam  vendendo  artigos  piratas,   isso  não tem  a gravidade  de facínoras, de bandidos,  de  assaltantes,   de homicidas. Tratar um camelô  ,  ainda que  pirata,   como se fosse um  bandido de alta  periculosidade  é uma  ação arbitrária,  humanamente ilegal  e injusta. O que seria  pior,  um camelô  pirata ou  um  sequestrador  ou assaltante de banco? As diferenças são extremas.
Tenho observado que, no Brasil, sobretudo nas grandes cidades,  a brutalidade de policiais  é cada vez mais    indesejável.  O que  policiais  cometem  de   atrocidades em alguns casos, ou  mesmo de atos  de  incompetência  como  o do crime  que estou analisando são componentes  negativos  que se vão  agregando  no  inconsciente coletivo   sobre uma imagem cada vez mais hostil  contra  a instituição da Polícia Militar.
O governador de São Paulo, assim como o Prefeito atual, estão falhando   enormemente  nas questões  de combate à violência  e  à criminalidade   tentacular de que são exemplos  tanto  o estado de São Paulo quanto o do Rio de Janeiro, os dois maiores  pólos  de  violência  indiscriminada. Como podem  políticos  que  administram  suas funções  pensarem em se  reeleger?  A sociedade, que paga  tributos  pesados  aos governos,   não  tem  sido atendida nas suas  reivindicações  contra  o descaso  e a negligência de governantes  que parecem  - é o que se comprova  na prática -    estar anestesiados   diante  de flagrantes    atos de selvageria diuturnamente   noticiados  nos canais  de televisão e, nas rádios e redes sociais.
Não tenho visto candidato algum nesse período de campanha política priorizar  esse cancro que está  dizimando nossas famílias,  nosso filhos,  nossos  vizinhos, nossos compatriotas, em lares dilacerados   por  assaltos,   estupros,  crimes  praticados  por menores  acobertados pela “Lei” da  menoridade  criminal e  pela  abominável  impunidade geral  que  grassa não somente  no seio   da política,  do crime organizado,  das milícias,   dos esquadrões da morte, do mundo das drogas fartamente   compradas sobretudo  pelos endinheirados da nossa  vida  social, num   patamar  em que  os limites de tolerância  das pessoas decentes  já de longe  chegaram   ao fim.  
Os governantes, em todos os níveis, devem sair de seus casulos bem protegidos  por  guardas pretorianas, e, com qualquer  cidadão  mortal,    sair às ruas  para sentirem  o peso  de nossas misérias,  de nossas desgraças sociais e da ameaça iminente de  criminosos   que  nos surgem  em cada  canto  de uma  esquina vitimando  famílias  e mais  famílias  desprotegidas   de segurança, obrigação   precípua de um  estado democrático.
O assassínio do pobre piauiense usando  camisa  xadrez se torna,  assim, mais um  crime hediondo   contra a dignidade  de uma Nação que  clama  por Justiça. 

  

terça-feira, 16 de setembro de 2014

A opinião da Presidente Dilma Rousseff: "Há corrupção em todos os partidos "




                                                       Cunha e Silva Filho



           Quando a fala de um Chefe de Estado assim se manifesta,  é porque, de alguma forma,   está aceitando  o crime  da corrupção e mesmo  pondo-se em defesa de corruptos. Ou, por outra,  se localiza  esse mal espúrio que não pode nem  deve  fazer parte de um governo  honesto  e sério, dá sinal  de que  a corrupção seja  algo natural,  inerente  à função  ocupada  por um  presidente da  República. No exemplo específico da  Dilma,  o problema se torna mais   delicado, uma vez que o partido  a que pertence é reconhecidamente um partido  de corruptos, pelo menos  de uma boa  quantidade  de  malfeitores que merecem  a execração  do  eleitor.
         Se atos ilícitos  contra o dinheiro  público  são  praticados  por  mais de uma vez, se são multiplicados,  se reaparecem em vários   tempos do mandato   de um  presidente, ou de um  período  que cobre  o domínio do petismo  na política nacional,  se aduz que  o crime da corrupção, ativa ou passiva, não importa,   deve ser algo  que  não  causa   constrangimento  por parte  de quem  é acusado de praticá-lo.
A aceitação  e o reconhecimento  da  realidade  da corrupção por um  presidente  não contribui para  o fortalecimento  das  democracia   brasileira, porquanto   o ato corrupto  passa a ser parte  estrutural   de um  governo e isso  é  extremamente  nocivo ao país.
O que, na realidade, se espera do comportamento de um estadista é que seja, antes de tudo,  comprometido com a dignidade  e inteireza moral  durante  o seu mandato. Quer dizer,  não pode compactuar,  em hipótese alguma,  com  quaisquer  ilicitudes  cometidas  por seus   ministros  e outros   auxiliares. A política com   “p” maiúsculo   não pode  deixar de ser  transparente  em todas as ações  e determinações  do governo.       
O excesso de  coligações – as chamadas  bases aliadas do governo -  mal  assimiladas  pelos que  estão do lado da situação política, só pode gerar  ações  falhas  e reprováveis Ora,   imprimir  o governo  de Dilma   acordos ou ligações com  partidos nanicos  ou mesmo  grandes  partidos,  sem critérios  de  grandeza   de execução de um  plano de governo  ilibado e  voltado para o bem-estar de todos os segmentos da sociedade  civil,  é  contrariar o  princípio básico do  dever  moral  de um  presidente.
Governantes sem fibra,  truculentos,   incompetentes e  que  se alçam ao poder  meramente para  dele se beneficiar  financeiramente devem ser alijados  do voto  popular. No  Brasil,  há tempos  não temos tido  grandes  políticos dignos  desse  nome. O eleitor se sente desconfortável diante  da  pobreza  moral  dos candidatos. Daí  grande parte do eleitorado  não  confiar em nenhum  político. Ainda vão às urnas  em razão de que,   por vontade própria,   nãoo  desejam  que  a nação   resvale para  a anarquia e o vazio   político.
A corrida  presidencial em curso  não  está  respeitando  a luta  das ideias e dos programas   consistentes  que levem  o país  a uma mudança   de rumos,   eliminando     os  vícios  e  os desastres de ações  cometidas   no desempenho   dos governos, com poucas exceções  pelo Brasil afora.
Não  acredito  na boa governança  de um  presidente, de um governador ou de um prefeito  se ele  alardeia estar  diminuindo  o índice de  pobreza de seu  povo. Não basta implementação de benefícios  sociais  aos menos desfavorecidos. O país  necessita  não  simplesmente de  reconhecer  suas falhas  ou erros no campo  econômico,  na área da saúde,  dos transportes de massa, na segurança  do indivíduo  e na educação  pública em todos  os  níveis. Nem mesmo adianta termos  uma nação   desenvolvida  apenas. Urge termos uma  nação   cuja  política seja  composta de homens  de caráter,  de homens preparados  intelectualmente  e com visão ampla  dos  problemas  do país  e vontade   política de  solucionar   os  mais  gritantes  e prementes  flagelos   sociais.  Riqueza e dignidade de uma nação  devem  caminhar juntas.  Não é com cinismo deslavado  do  slogan “rouba mas faz” de um antigo político  paulista  que se constrói uma  grande país e uma nação  civilizada  e pacífica, mormente em tempos   atuais  onde   o mundo   anda   desandado,   em ritmo   de barbárie e involução  do estado  de paz   internacional.
A troca de ofensas  mútuas em compasso  triplo, antes de  atrair  eleitores,  leva-os  de roldão  para  o  estado  de absoluto  pessimismo  e indiferença pelos  rumos   da política brasileira,  justamente   anatematizada  em decorrência  de tantos males, falcatruas,   mistificações  e enxovalhamento    que a conduziram   a um descrédito total, ou seja, a um práxis política  na contramão  dos países   para os quais a  Política  é a arte de governar  visando ao bem-estar  da sociedade. Que os  políticos  e governantes brasileiros  imitem  o que  seja  bom  do estrangeiro   como exemplo  eficaz de democracia e governabilidade.