Cunha
e Silva Filho
Era de se esperar o dia fatídico. Numa ação
delegada à Polícia de São Paulo, na
capital, ontem, ocorreu
uma tragédia com
traços de tragédia grega: camelôs considerados
praticantes de pirataria de produtos entraram em confronto com a polícia resultando, no final da ação, na morte de um
jovem camelô piauiense que procurava, junto
com outros companheiros, impedir que
policiais, dois, algemassem outro
camelô, numa luta desesperada para
conseguir conter o jovem que reunia
todas as energias para não se deixar
algemar. O jovem, antes de ser assassinado, tinha discutido duramente com os policiais que, no chão, tentavam
imobilizar o camelô.
Contudo,
um terceiro policial, um homem
baixo e calvo, de cara redonda, dava cobertura bem junto aos dois
colegas de farda a fim de que alguns
outros camelôs presentes não se aproximassem e tentassem
ajudar o jovem que estava sendo algemado.
O camelô, entre outros, que tomou as dores
do colega caído ao chão, sempre reclamando
firmemente contra ação brutal dos dois policiais, aproveitou-se de um instante em que o policial
que protegia os outros dois da suposta
sanha dos populares (camelôs,
melhor dizendo), tentou agarrar o spray de pimenta de uma das mãos do policial. Não o conseguindo, numa
fração de segundos, o policial
baixo e de rosto redondo,
com a outra mão empunhando uma arma de fogo, e possivelmente com um dedo próximo do gatilho, sentindo-se acuado e
já perdendo o equilíbrio que deveria ter na sua função de militar, disparou
um tiro à queima-roupa no rosto
do jovem camelô, que trajava uma
camisa xadrez de mangas compridas abotoadas.
O disparo se deu simultaneamente no instante em que o spray
foi utilizado contra o rosto do camelô. O mais agravante é que, após o tiro mortal, o soldado baixo, com arma em punho, a apontava para todos os lados, com se desejasse ameaçar os populares. Estava visivelmente desequilibrado e receoso da reação dos outros camelôs que, felizmente, não ocorreu para não tornar a tragédia ainda mais sangrenta.
O jovem de camisa
xadrez deu uma volta e encaminhou-se, cambaleando, a poucos passos dali, não suportando os efeitos letais do tiro. Estava morto. A
imagem desse jovem - não sei como explicar a analogia - camelô estirado na
rua, me lembrou não uma cena da
realidade, mas a tragédia que se deu no filme o “Pagador de Promessas”(1962), de Anselmo
Duarte. Narro isso tudo a partir
das imagens vistas na televisão, que confesso
serem uma das cenas mais tristes, entre tantas, que mancham
o cotidiano da sociedade brasileira.
Havia bem
pouco o camelô de camisa de xadrez estava
discutindo asperamente com os policiais e, agora, seu corpo
jazia no cemitério de uma rua paulistana.
A guerra, se assim posso designar melhor,
entre o poder publico e o
indivíduo na sua condição de cidadão
pobre e lutador da vida se me afigura como um dos traços mais
dramáticos e trágicos do crime
da força legalizada contra
a fraqueza dos desfavorecidos,
ainda que sejam estes rotulados de vendedores piratas. Se eu comparar o crime
praticado por eles com os crimes
abomináveis do Estado
Brasileiro contra a
sociedade civil, aquelas quinquilharias vendidas
sob ameaça doa rapa e, agora, de
policiais ou guardas
municipais armados, são uma insignificância.
Os crimes de improbidades de nossos governantes comparados
com essas ilicitudes de somenos
importância só me trazem
indignação e desprezo
pelas nossas autoridades. E
diria mais: em plena campanha política, um
fato escabroso como esse ainda agrava
mais a situação incômoda das autoridades constituídas.
Já tenho defendido em artigos
anteriores que a Polícia
Militar não está preparada
para lidar com esse tipo de situação. A Polícia, em qualquer
situação, foi
uma instituição organizada para salvar
pessoas, não para
fuzilá-las diante dos olhos dos transeuntes que tudo viram e tudo filmaram
em seus celulares.
Matar alguém que nada fez
assim de nada grave se
falarmos de uma atitude
de violência extrema, é
demonstração cabal de que nossa Polícia
não tem o preparo e a logística adequados para lidar
com um cidadão brasileiro. Visivelmente, percebi
pelas imagens repetidas na
televisão,que o soldado que cometeu o homicídio estava
amedrontado, como que vendo em todos os lados um inimigo
em potencial que o queria
exterminar. Não era um comportamento de alguém treinado
para suportar situações extremas. Mais um grave erro tático dos repressores dos camelôs pude constatar: por que, sendo apenas três, não chamaram
mais reforço policial a fim
de afastar a presença
de outros camelôs que se aproximavam indignados contra que estavam vendo o jovens e camelô sendo algemado.
Numa repressão contra pirataria, o que a
Polícia deveria fazer é agir com cautela, com até
o recurso do diálogo, mas não da brutalidade. Afinal, se os camelôs
estavam vendendo artigos
piratas, isso não tem a gravidade
de facínoras, de bandidos,
de assaltantes, de homicidas. Tratar um camelô ,
ainda que pirata, como se fosse um bandido de alta periculosidade é uma
ação arbitrária, humanamente ilegal e injusta. O que seria pior,
um camelô pirata ou um sequestrador
ou assaltante de banco? As diferenças são
extremas.
Tenho
observado que, no Brasil, sobretudo nas grandes cidades, a brutalidade de policiais é cada vez mais indesejável. O que
policiais cometem de
atrocidades em alguns casos, ou
mesmo de atos de incompetência
como o do crime que estou analisando são componentes negativos
que se vão agregando no
inconsciente coletivo sobre uma
imagem cada vez mais hostil contra a instituição da Polícia Militar.
O governador
de São Paulo, assim como o Prefeito atual, estão falhando enormemente
nas questões de combate à violência e à
criminalidade tentacular de que são
exemplos tanto o estado de São Paulo quanto o do Rio de
Janeiro, os dois maiores pólos de
violência indiscriminada. Como
podem políticos que
administram suas funções pensarem em se reeleger? A sociedade, que paga tributos
pesados aos governos, não
tem sido atendida nas suas reivindicações contra o descaso
e a negligência de governantes que parecem
- é o que se comprova na prática - estar anestesiados diante
de flagrantes atos de
selvageria diuturnamente
noticiados nos canais de televisão e, nas rádios e redes sociais.
Não tenho
visto candidato algum nesse período de campanha política priorizar esse cancro que está dizimando nossas famílias, nosso filhos,
nossos vizinhos, nossos
compatriotas, em lares dilacerados
por assaltos, estupros,
crimes praticados por menores
acobertados pela “Lei” da
menoridade criminal e pela
abominável impunidade geral que
grassa não somente no seio da política,
do crime organizado, das milícias, dos esquadrões da morte, do mundo das drogas
fartamente compradas sobretudo pelos endinheirados da nossa vida
social, num patamar em que os limites de tolerância das pessoas decentes já de longe chegaram
ao fim.
Os
governantes, em todos os níveis, devem sair de seus casulos bem protegidos por
guardas pretorianas, e, com qualquer
cidadão mortal, sair às ruas para sentirem
o peso de nossas misérias, de nossas desgraças sociais e da ameaça
iminente de criminosos que
nos surgem em cada canto
de uma esquina vitimando famílias
e mais famílias desprotegidas de segurança, obrigação precípua de um estado democrático.
O assassínio
do pobre piauiense usando camisa xadrez se torna, assim, mais um crime hediondo contra a dignidade de uma Nação que clama
por Justiça.
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